Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
150/2006-9
Relator: JOÃO CARROLA
Descritores: LUGAR DA PRÁTICA DO FACTO
NULIDADE
ACUSAÇÃO
REJEIÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/06/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: Se na acusação não consta, podendo constar, a precisa indicação dos factos e do lugar onde os mesmos foram praticados, é nula a acusação por falta de indicação de elementos a que se reporta o artº 283º, nº 3, al. b) do C.P.Penal, devendo manter-se o despacho que rejeitou tal acusação, por manifestamente infundada, nos termos do disposto no artº 311º, nº 2, al. a) e nº 3, al. d), também do C.P.Penal.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I.
No processo n.º 980/04.7 TASXL do 2.º Juízo Criminal do Seixal, o Magistrado do Ministério Público, inconformado com a decisão de não recebimento da acusação por se entender que era manifestamente infundada, nos termos do disposto no art. 311.°, n.°s 2 al. a) e 3, al. d), do Código de Processo Penal, veio interpor recurso da mesma, com os fundamentos constantes da respectiva motivação e as seguintes conclusões:
- “ ...

Afirma a decisão ora em recurso que rejeita a acusação em análise porque padece de total omissão quanto ao lugar onde ocorreram os factos, sendo tal indicação essencial para determinar a aplicabilidade da lei portuguesa e a competência internacional dos tribunais portugueses.

Invocando o disposto no art. 283°, n.° 3, alínea b C.P.P., afirma que a acusação deve referir o local da prática dos factos, se tal for possível, para logo adiantar que a indicação espacial dos factos não reveste carácter obrigatório e depois concluir que é essencial, pelo menos, uma vaga alusão a este aspecto, por forma a permitir concluir que os factos fundamentam uma pena.

Prossegue afirmando a necessidade que da narração resulte, no mínimo, a aplicabilidade da lei penal portuguesa e a competência internacional do tribunal nacional, pois, de outro modo, não se justificaria submeter o arguido a julgamento, já que não seria possível aplicar-lhe uma pena, " (...) mesmo que se provassem todos os factos da acusação (...)".

Em conclusão, entendeu o Senhor Juiz "a quo" rejeitar a acusação por não conter a narração dos factos que se traduzem na prática de um crime punível, fundando tal rejeição no art°. 311°, n.° 2, alínea a e n.° 3, alínea d, do C.P.P..

O art. 4° C.P., consagra o princípio da territorialidade, ou seja, a lei penal portuguesa é aplicável a factos praticados em território português, seja qual for a nacionalidade do agente. Consagra ainda, no mesmo normativo, o princípio do pavilhão, pelo que a lei penal portuguesa é ainda aplicável a bordo de navios ou aeronaves portuguesas.

Por seu turno, o art. 7° C.P. consagra o critério da ubiquidade, estipulando que o facto se considera praticado tanto no lugar em que, total ou parcialmente, e sob qualquer forma de comparticipação o agente actuou, ou no caso de omissão, devia ter actuado, como naquele em que o resultado típico se tiver produzido.

Por outro lado, o art. 5° do C.P. viabiliza ainda a aplicação da lei penal portuguesa a uma pluralidade de situações com reporte a factos praticados fora do território nacional, implicando ainda outras possibilidades decorrentes agora da aplicação do direito convencional mas em que também os factos tenham ocorrido para além do limite do espaço geográfico português.

A verdade, porém, é que toda a factualidade descrita na acusação ocorreu em território português, o que decorre implicitamente do texto da acusação: refere--se "Bancos " e "Banca ", e " (...) a arguida A., deslocava-se aos Bancos, munida de bilhete de identidade de B., preenchia os formulários e assinava-os" (artigo 5°}, "No dia 31 de Janeiro de 2003, A., outorgou e assinou o contrato de creditotta, com o Banco I (...)" (artigo 7°), "No dia 10 de Março de 2003, A., outorgou e assinou o contrato de credito pessoal com o Banco II, SA (...) ".

Da acusação consta ainda a identificação das contas bancárias onde as quantias mutuadas foram creditadas pelas respectivas, entidades bancárias, sendo que tal indicação é feita através da enunciação de um conjunto de números, correspondendo os primeiros deles ao código da correspondente agência ou dependência.
10°
Quanto aos factos atinentes à falsificação, temos de ter em conta que não se sabe exactamente o local onde foi, efectivamente, realizado o acto de falsificação, sabendo-se que os documentos correspondentes foram entregues às entidades bancárias onde os mútuos foram contraídos e onde as duas contas bancárias foram abertas.
11°
Porque a indicação da prova a produzir deve constar expressamente da acusação conforme estipula o art. 283°, n.° 3, alínea f, cominando-se esta ausência com nulidade que, de acordo com o disposto no art. 311°, n.° 3,alínea c C.P.P., acarreta que seja a acusação manifestamente infundada, podendo, por esse motivo, ser aquela rejeitada, impõe se conclua que a acusação tem de ser tida como um todo, pelo que a prova documental indicada é parte integrante de tal peça processual.
12°
Ora, da prova documental constante dos autos e expressamente indicada na acusação objecto de recusa, da qual faz parte integrante, decorre, sem margem para dúvida legítima, a localização dos factos.
13°
Dúvidas não podem subsistir que toda a factualidade descrita na acusação ocorreu em território português.
14°
Da acusação constam todos os factos que, em abstracto, se subsumem à prática de ambos os crimes, in casu burla e falsificação, que às arguidas se imputa, como decorre, inquestionavelmente, da mera leitura de tal peça processual. Assim, caso se venham a provar tais factos em sede de julgamento, certa e segura será a punição das arguidas pelos crimes de burla agravada pelo valor e de falsificação de documento.
15°
Na fundamentação do despacho recorrido diagnosticam-se algumas contradições, atente-se para esta, insanável: por um lado, afirma que não se encontram narrados factos susceptíveis de integrar qualquer crime, por se considerar que não se pode inferir o local da prática dos mesmos e, por outro lado, refere-se que mesmo que todos os factos da acusação fossem provados não havia punição, mas admitindo, implicitamente, que os factos narrados contêm todos os elementos do tipo objectivo e subjectivo dos crimes em causa, excepto indicação do local do seu cometimento. Esta contradição, sem mais, fundamento de recurso – cfr. art. 410°, n.° 2, alínea b, do C.P.P..
16°
A decisão de acusação que o despacho que ora se coloca em crise rejeitou contem a narração dos factos que permite às arguidas imputar os enunciados crimes de burla agravada e falsificação, alega o local da verificação dos factos determinantes para a imputação dos crimes em causa e reporta o facto determinante para o estabelecimento da competência do tribunal.
17°
Por outro lado, ainda que a decisão acusatória fosse omissa quanto à indicação do local dos factos, o tratamento jurídico a dar a tal situação sempre seria diverso daquele que foi acolhido pelo Senhor Juiz "a quo" ao proferir o despacho agora colocado em crise.
18°
O art. 283°, n.° 3 C.P.P. consagra os elementos que devem constar de uma acusação, cominando a sua omissão com nulidade. De acordo com o disposto na alínea b, deverá a acusação conter "a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada ".
19°
Tal nulidade rege-se pelo disposto no art. 120° do mesmo diploma, que estabelece o regime a que estão submetidas as nulidades sanáveis, ou seja, dependentes de arguição pelos interessados, dentro do prazo legalmente estipulado para o efeito, sendo que se o não forem, verificar-se-á a sua sanação, tomando-se aquele acto um acto válido.
20°
O prazo em referência é o previsto na alínea c do invocado preceito legal, até cinco dias após a notificação do despacho que tiver encerrado o inquérito.
21°
Assim, mesmo que se considerasse que a acusação dos presentes é totalmente omissa quanto ao local da prática dos factos, e se se entendesse que dai resultaria a nulidade da mesma, sendo esta sanável e uma vez que não foi arguida no prazo legal, ter-se-ia, então de considera que, entretanto, ter-se-ia tomado válida, dela não podendo o Senhor Juiz "a quo" ter conhecido oficiosamente.
22°
Por via da motivação que antecede, conclui-se que a decisão agora em recurso viola as normas vertidas nos artigos 120°, 283°, n° 3, alínea b e 311°, n° 2, alínea a e n° 3, alínea d, todos do C.P.P..
23°
Em suma, a decisão de acusação que o despacho que ora se coloca em crise rejeitou contem a narração dos factos que permite às arguidas imputar os crimes de burla agrava e falsificação, alega o local da verificação de ambos indicando factos que habilitam à determinação da competência do tribunal que julgará, razão pela qual deverá ser substituído por outro que receba tal acusação, seguindo-se o julgamento das arguidas, assim se repondo a Justiça.”

A arguida D. veio responder às motivações de recurso concluindo que deve prevalecer a o despacho recorrido.

Neste Tribunal, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto teve vista nos autos emitindo parecer em que conclui pela procedência do recurso com a consequente revogação do despacho recorrido e sua substituição por outro que receba a acusação.
Foi dado cumprimento ao artigo 417.º do C.P.Penal, não se tendo verificado qualquer resposta

II.
Colhidos os vistos legais, cumpre agora apreciar e decidir.
O recurso foi interposto pelo M. Público e incide sobre o despacho judicial proferido nos termos do art.º 311.º CPP que rejeitou, por "manifestamente infundada"e ao abrigo das alíneas a) do n.º 2 e d) do n.º 3 daquele preceito legal, a acusação pública.

O despacho recorrido apresenta o seguinte teor:
“A consumação do crime opera quando há preenchimento da totalidade dos elementos do respectivo tipo.
Assim, na burla, dá-se com a prática pelo ofendido de actos que lhe causam um prejuízo patrimonial e consequente enriquecimento para outrem, após a criação de erro ou engano por parte do agente.
Quanto à falsificação, ocorre (designadamente) com o fabrico, falsificação, abuso de assinatura ou uso de documento falso.
Ora para apurar da aplicabilidade da lei penal portuguesa e da competência internacional dos tribunais portugueses, é mister determinar onde sucederam tais factos.
No caso da acusação, importaria saber em que ponto geográfico foram creditadas as quantias referidas nos artigos 9° e 12° do libelo.
Relativamente à falsificação, haveria que determinar onde a arguida A. fez constar da declaração de IRS a assinatura de B. ou onde tal documento falsificado foi usado. E também onde a arguida C. teria imitado a mesma assinatura ou onde os documentos foram usados.
Isto sem abordar questão diversa: a eventual pluralidade de crimes.
Sucede que na acusação apenas existe uma referência geográfica: a residência da arguida D., na Cruz de Pau, onde ela recebia toda a correspondência expedida pelos bancos (artigo 6°).
De resto, tal não parece assumir especial relevo, para efeitos de determinação do lugar da consumação. Poderia tal residência situar-se em qualquer parte. Mesmo que ela morasse em Badajoz e aí recebesse a correspondência, não era nesse local que se dava a consumação do crime.
Há, portanto, total omissão de referência ao lugar onde ocorreram os factos.
As alusões à "Banca", aos "Bancos", ao "Banco I, actualmente denominado Banco III, S.A." e ao "Banco II, S.A." não são esclarecedoras (artigos 2°, 5°, 7° e 10° da acusação). Embora os dois últimos sejam empresas portuguesas, possuem balcões no estrangeiro.
Também a menção às contas "D.O. …" e "…" não elucida, pois não se informa a que local respeitam as mesmas (artigos 9° e 12°).
Nos termos do artigo 283°, n° 3, b) do CPP, a acusação deve referir o lugar da prática dos factos, se possível.
Admite-se que não seja possível mencionar o lugar.
Assim, é aceitável afirmar "em lugar desconhecido cuja localização exacta não foi possível apurar, mas durante o trajecto percorrido entre Coimbra e Porto" ou "em lugar de localização duvidosa, mas em Sintra ou em Mafra".
Todavia, na presente situação, não se menciona que é impossível referir o lugar da prática dos factos. E tal omissão só é de aceitar se realmente não for possível mencionar a localização.
A indicação espacial dos factos não reveste carácter obrigatório.
No entanto, é essencial que haja, pelo menos, uma vaga alusão por forma a permitir concluir que os factos fundamentam a aplicação de uma pena.
É, portanto, absolutamente necessário que da narração resulte, no mínimo, a aplicabilidade da lei penal portuguesa e a competência internacional dos tribunais nacionais (artigos 4° e 5° do Código Penal e 19° a 22° do Código de Processo Penal).
Por mais sintética e imprecisa que seja, a descrição deve, pelo menos, permitir retirar esta ilação.
De outro modo, não se justificaria submeter o arguido a julgamento, pois não seria possível aplicar-lhe uma pena. Corria-se o risco de serem provados todos os factos constantes da acusação e tornar-se inviável a condenação.
É o que sucede na presente situação.
Mesmo que se provassem todos os factos constantes da acusação, nunca poderiam as arguidas ser condenadas.
Tal é mais do que suficiente para rejeitar a acusação, sendo esta a única possibilidade que se impõe. A acusação não contém narração de factos que se traduzam na prática de crime punível.
Nem sequer é possível inferir que os factos terão ocorrido em Portugal.
Fica prejudicada uma questão acessória, respeitante à falsificação.
As três arguidas são acusadas como co-autoras de um crime de falsificação.
Sem dúvida, tal reporta-se à conduta descrita no artigo 12° do libelo: a arguida A. fez constar a assinatura de B. numa declaração de IRS. Embora no artigo 14° se diga que todas as assinaturas foram imitadas pela arguida C. (poderá tratar-se apenas de lapso de escrita ou erro na manifestação da vontade, querendo-se dizer todos os negócios aludidos em 7, 8, 10 e 11 e não em 7 a 12).
Porventura, essa falsificação também respeita ao que figura nos artigos 7°, 8°, 9°, 10° e 11°: em certos documentos constava a assinatura de B.. Contudo, no artigo 19°, já se afirma que B. tomou conhecimento de que a sua assinatura foi aposta e imitada nesses documentos. Por outro lado, no artigo 14° esclarece-se que a mesma foi imitada pela arguida C..
Não se vai agora abordar o tema da eventual pluralidade de crimes.
Em todo o caso, ficaria por esclarecer qual a intervenção das arguidas que não imitaram as assinaturas.
Caberia esclarecer se elas seriam co-autoras morais do crime previsto na alínea a) do n° 1 do artigo 256° do Código Penal. Ou se seriam co-autoras materiais quanto ao crime tipificado na alínea c).
Porém, tal matéria de qualificação não releva, dado o manifesto carácter infundado da acusação.
Por manifestamente infundada, rejeito a acusação de fls 104-111, à qual falta a narração de factos que constituam crime punível (artigo 311°, n° 2, a) e n° 3, d) do CPP).”

Nos termos do artigo 283.º CPP, a acusação formulada pelo Ministério Público deve, por força do seu n.º 3, conter, sob pena de nulidade:
a) As indicações tendentes à identificação do arguido;
b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;
…”
Por sua vez, o art.º 311.º do CPP permite que:
2 - Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:
a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;
b)….
3 - Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:
a) Quando não contenha a identificação do arguido;
b) Quando não contenha a narração dos factos;
c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou
d) Se os factos não constituírem crime.”
Deste último citado preceito se extrai que ao M.mo Juiz, quando recebe o processo com vista a receber a acusação deduzida e a marcar julgamento, é permitido rejeitar a acusação quando a mesma for manifestamente infundada, adiantando desde logo, quais as situações em que mesma acusação tem aquela característica. Destacamos dentre elas, com interesse para o caso concreto, as situações em que “não contenha a narração dos factos”, o que, conjugadas com o disposto no art.º 283º CPP acima referido, equivale a dizer quando a acusação estiver afectada de nulidade por omissão de narração dos factos e nestes, sendo tal possível, não estejam indicados “o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve”.
Revertendo para o caso concreto - independentemente de a fundamentação vertida no despacho recorrido apontar para que a consequência da omissão da indicação do lugar do cometimento dos factos delituosos imputados às arguidas vir a reflectir-se na competência do tribunal (internacional) – certo é que a acusação não indica o lugar do cometimento dos factos, quer os relativos à abertura de contas em que se terá verificado o uso indevido ou fabricação da assinatura do queixoso, quer o local em que as livranças referidas nos art.ºs 8º e 11º da acusação foram preenchidas com a assinatura do queixoso.
Se bem que relativamente a estas últimas assinaturas os autos de inquérito não permitiram obter indícios onde terão ocorrido, já relativamente à abertura das contas e aos pedidos de empréstimo os autos permitem chegar à conclusão, segura, onde ocorreram, bastando a consulta de fls. 17 e 25. Logo e para usar a terminologia legal, é possível indicar o lugar onde ocorreram os factos.
Deste modo, com a apontada omissão por falta de rigor na análise da prova documental, a acusação encontra-se afectada de nulidade nos termos do art.º 283º n.º 3 al. b) CPP, sendo que o momento adequado para a mesma ser declarado é exactamente aquando da prolação do despacho a que se refere o art.º 311º CPP e como tal não está dependente de arguição por qualquer interessado como pretende o recorrente.

III.
Em face do exposto, embora com fundamentos algo diferentes, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
Sem custas.

Feito e revisto pelo 1º signatário.

Lisboa, 6 de Julho de 2006

João Carrola
Carlos Benido
Ana Brito