Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
29624/13.4T2SNT-W.L1-1
Relator: RIJO FERREIRA
Descritores: PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
PROCESSO JUSTO E EQUITATIVO
DECISÃO SURPRESA
INSOLVÊNCIA
APENSAÇÃO DE ACÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/11/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I. Não é lícito ao juiz pronunciar-se sobre questões sem que as partes tenham tido a oportunidade de sobre elas se pronunciarem, salvo caso de manifesta desnecessidade.
II. Em princípio, podem considerar-se caso de manifesta desnecessidade as situações em que o efeito pretendido resulta automaticamente da lei, o enquadramento fáctico relevante se mostra insusceptível de controvérsia ou em que os contornos da lide tornam a decisão expectável.
III. Não se verifica caso de manifesta desnecessidade no caso de pedido formulado no processo de insolvência para ser apensa acção intentada no Tribunal Marítimo pela massa insolvente contra um pretenso devedor da mesma.
IV. Nesse caso antes de decidir o juiz deve possibilitar ao Réu naquela acção a possibilidade de se pronunciar sobre a requerida apensação, porquanto essa apensação não só é susceptível de afectar a sua posição e os seus interesses como depende da formulação de um juízo de conveniência positivo.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I – Relatório
Por sentença de 06OUT2014 foi decretada a insolvência da Devedora, nomeado o Administrador da Insolvência e fixado em 30 dias o prazo para a reclamação de créditos.
Em 28JUL2017 a Massa Insolvente da Devedora intentou, no Tribunal Marítimo de Lisboa, acção declarativa de condenação contra a Ré / Apelante pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de 904.650,00 €, acrescida de juros moratórios vencidos e vincendos, à qual foi atribuído o nº 129/17.6TNLSB.
Tal acção foi contestada em 06OUT2017.
Por requerimento de 24NOV2017 no processo de insolvência o Administrador da Insolvência solicitou a apensação daquela acção declarativa de condenação ao processo de insolvência, invocando o disposto nos artigos 85º, nº 1, do CIRE e 267º, nº 3 do CPC, considerando tal apensação conveniente por ela poder influenciar o valor da massa insolvente.
Sem qualquer outra diligência, por despacho de 07DEZ2017 (que nas versões do processo a que pudemos aceder não se evidencia material ou electronicamente assinado[1]), foi deferido o solicitado.
A remessa da referida acção declarativa foi solicitada ao Tribunal Marítimo por ofício de 13DEZ2017.
Em 14DEZ2017 foi ordenada a remessa da acção declarativa para apensação à insolvência, despacho esse de que foram notificadas as partes por ofício elaborado em 20DEZ2017.
A acção declarativa foi apensada à insolvência em 23JAN2018 (tendo-lhe sido atribuído o nº 29624/13.4T2SNT-U).
Inconformada, apelou a Ré na acção declarativa, concluindo, em síntese, pela nulidade de não ter sido assegurado o contraditório e por não estarem reunidas as condições exigidas para a apensação.
Houve contra-alegação onde se propugnou pela manutenção do decidido.

II – Questões a Resolver
Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio.
De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.e., a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.
Por outro lado, ainda, o recurso não é uma reapreciação ‘ex novo’ do litígio (uma “segunda opinião” sobre o litígio), mas uma ponderação sobre a correcção da decisão que dirimiu esse litígio (se padece de vícios procedimentais, se procedeu a incorrecta fixação dos factos, se fez incorrecta determinação ou aplicação do direito aplicável). Daí que não baste ao recorrente afirmar o seu descontentamento com a decisão recorrida e pedir a reapreciação do litígio (limitando-se a repetir o que já alegara na 1ª instância), mas se lhe imponha o ónus de alegar, de indicar as razões porque entende que a decisão recorrida deve ser revertida ou modificada, de especificar as falhas ou incorrecções de que em seu entender ela padece; sob pena de indeferimento do recurso.
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, são as seguintes as questões a resolver por este Tribunal:

- da nulidade decorrente da violação do princípio do contraditório;
- da verificação dos requisitos da apensação.

III – Fundamentos de Facto
A factualidade relevante é a constante do relatório deste acórdão, para o qual se remete.

IV – Fundamentos de Direito
A apelante queixa-se de que não lhe foi dada oportunidade de se pronunciar sobre o pedido de apensação, em particular porquanto o Administrador da Insolvência a não notificou do requerimento em que solicitou a apensação da acção que corria no tribunal marítimo.
De um ponto de vista estritamente formal não se pode afirmar que o Administrador da Insolvência (mais precisamente o seu mandatário) estivesse legalmente adstrito, face ao disposto no art.º 221º do CPC, a notificar o mandatário da Apelante do requerimento em que solicitava a apensação do processo declarativo ao processo de insolvência uma vez que tal requerimento foi formulado no processo de insolvência e aí a Apelada não era parte[2].
É certo que, de um ponto de vista ético e tendo em conta o dever de agir de boa-fé e o dever de cooperação, nos parece que teria sido adequado o Administrador da Insolvência ter dado conhecimento da pretensão que formulou junto da insolvência a quem por ela seria directamente afectado. De qualquer forma a eventual censura a essa omissão é, em nossa opinião, insusceptível de constituir causa de nulidade nos termos do art.º 195º do CPC.
Do que vem dito não pode, porém, concluir-se pela inexistência de nulidade.
Com efeito, é manifesto que a pretensão de apensação à insolvência da acção declarativa é susceptível de afectar directamente a posição ou os interesses da Apelante, Ré naquela acção, assistindo-lhe o direito, decorrente dos princípios do processo justo e equitativo e do contraditório, de se pronunciar sobre tal pretensão previamente à decisão; tal como expressamente se enuncia no nº 3 do art.º 3º do CPC ao determinar não ser lícito ao juiz pronunciar-se sobre questões sem que as partes tenham tido a oportunidade de sobre elas se pronunciarem.
Segundo o princípio da proporcionalidade, tal pronúncia é dispensável, no dizer do mesmo nº 3 do art.º 3º do CPC, em caso de manifesta desnecessidade; vislumbrando-se como tal, designadamente, aquelas situações em que o efeito pretendido resulta automaticamente da lei, o enquadramento fáctico relevante se mostra insusceptível de controvérsia, ou dados os contornos da lide a decisão era expectável para os seus destinatários. O que não é o caso dos autos uma vez que a apensação, ademais de processo instaurado já depois de decretada a insolvência, não é automática, dependendo antes da formulação de um juízo de conveniência para os fins do processo.
Entendemos, assim, que o Mmº juiz a quo não podia ter decidido da apensação sem antes proporcionar à Apelante a possibilidade de se pronunciar sobre a mesma; e que essa omissão teve influência na decisão da causa uma vez que o despacho recorrido não evidencia que tivesse sido apreciada a conveniência para os fins do processo (cuja existência a Apelante contesta) mas antes que se deu esta de barato.
Foi, pois, cometida nulidade nos termos do art.º 195º do CPC, determinante da anulação de todo o processado relativamente à apensação da acção declarativa em causa após a referida omissão.
E com o reconhecimento dessa nulidade fica prejudicada a apreciação do erro de julgamento da decisão de apensação.

V – Decisão
Termos em que, na procedência da apelação, se declara ter sido cometida nulidade ao não possibilitar à Apelante pronúncia prévia relativamente ao pedido de apensação da acção declarativa à insolvência e, consequentemente, anular todo o correspondente processado após a apontada omissão.

Custas da apelação pela massa insolvente, fixando-se a taxa de justiça global em 2.000,00 € e dispensando-se do demais remanescente.

Lisboa, 11JUL2019

Rijo Ferreira
Afonso Henrique
Rui Vouga

[1] - Devendo, logo que possível e se for o caso, na 1ª instância proceder-se conforme disposto no art.º 615º, nºs 2 e 3 do CPC.
[2] - Cremos, até, que, por essa razão, o sistema informático não lhe permitiria proceder a essa notificação através do mesmo.