Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2936/14.2T8SNT.L1-2
Relator: JORGE LEAL
Descritores: PLANO DE REVITALIZAÇÃO
RECUPERAÇÃO DE EMPRESA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/22/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Sumário:
Sumário (art.º 663.º n.º 7 do CPC)
Deve ser recusada a homologação de plano de revitalização aprovado em PER que consubstancie desrespeito injustificado do princípio da igualdade entre credores e cause grave prejuízo a credores face à situação em que se encontrariam se não houvesse plano de revitalização.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral:
Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO
Em 30.11.2014 D. S.A., instaurou, na Comarca de Lisboa Oeste – Sintra, processo especial de revitalização.
Alegou encontrar-se em situação económica difícil, mas ser ainda suscetível de recuperação, expressando, juntamente com um dos seus credores, a intenção de encetar negociações conducentes à revitalização da requerente, através da aprovação de um plano de recuperação.
Em 07.11.2014 o sr. juiz (J4) da Secção de Comércio da Instância Central – Sintra – declarou iniciado o processo especial de revitalização e nomeou administrador judicial provisório.
Em 09.12.2014 o Sr. administrador judicial provisório juntou aos autos lista provisória de credores.
Foram apresentadas impugnações à lista provisória de créditos.
Em 15.01.2015 foi proferida decisão definitiva sobre algumas das impugnações e notificados os intervenientes para juntarem mais elementos, quanto aos restantes créditos impugnados.
Em 11.02.2015, por acordo entre a devedora e o Sr. administrador judicial provisório, o prazo de negociações foi prorrogado por um mês.
Em 31.3.2015 o Sr. administrador judicial provisório juntou aos autos plano de recuperação da devedora, aprovado pela maioria dos credores.
Em 13.4.2015 foi proferido despacho em que se julgou desnecessário apreciar as impugnações de créditos que ainda não haviam sido decididas, pois o plano de recuperação havia sido aprovado por uma confortável maioria de votos, ainda que tendo em consideração tão só os créditos não impugnados, e ordenou-se a publicação do plano.
Os credores L. S.A., R. Lda, M. Lda, Isabel e Banco. S.A., requereram a não homologação do plano de recuperação.
Por sentença de 14.5.2015 os pedidos de não homologação foram julgados improcedentes e foi homologado o plano de revitalização da devedora D., S.A.
Os credores L. S.A. e Banco. S.A. apelaram da aludida sentença.
A credora L. S.A. formulou as seguintes conclusões:
I. O presente recurso vem interposto da decisão, que, não acolhendo os cinco pedidos de não homologação do plano de revitalização aprovado no âmbito dos presentes autos, homologou tal plano.
II. Entendeu o Mmo. Juiz “a quo”, e bem, estar em causa a alínea a) do nº 1 do artigo 216º do CIRE.
III. Tal “Como escrevem João Labareda e Carvalho Fernandes… que a prova da eventualidade referida na alínea a) pressupõe um exercício intelectual de prognose, frequentes vezes complexo, que se traduz em comparar o que é previsto resultar do plano e, portanto, no caso de se concretizar a liquidação universal do património do devedor, segundo o modelo supletivo.”.
IV. “Quanto aos credores, isto reconduz-se a cotejar quanto recebem com o plano e quanto se estima receberiam sem ele.”.
V. No entanto, e salvo o devido respeito, andou mal o Mmo. Juiz “a quo” quando, concordando com as razões invocadas pela Devedora, entendeu que, num cenário de liquidação, os credores comuns dificilmente receberiam qualquer importância relevante dos activos da devedora, tendo em conta todos os créditos privilegiados que resultariam da sua insolvência.
VI. E andou mal, desde logo porque, não só não considerou o exercício de prognose feito pela ora Recorrente.
VII. Como ainda não teve em conta o argumento utilizado, não só pela ora Recorrente, de regularização do IVA em caso de liquidação.
VIII. A hipótese de liquidação do património da Devedora seria muito mais favorável para a Recorrente.
Vejamos,
IX. Se atentarmos no activo que a Devedora possuía a 31.12.2013, nos termos da Informação Empresarial Simplificada (IES) apresentada pela própria e realizável em caso de liquidação, temos o montante de € 47.311.000,00.
X. Sabe-se, no entanto, que, no caso de uma venda forçada de activo, o seu montante realizável não será de 100%, pelo que, no exercício que se fez diminuiu-se tal percentagem para cerca de 50%, tendo-se obtido o montante global realizável de € 23.483.000,00.
XI. Considerou-se ainda o valor global de € 7.869.520,00 (e não de 14 milhões como a sentença incorrectamente considera), a título de créditos privilegiados reclamados.
XII. Assim, o montante global realizável obtido (€ 23.483.000,00) cobriria o montante privilegiado reclamado (€7.869.520,00), restando ainda a quantia de € 15.613.000,00 (arredondada) para se proceder ao rateio pelos restantes credores (comuns).
XIII. No caso da Recorrente, o seu crédito representa 16,7% dos créditos reclamados, pelo que a Recorrente teria a receber a quantia de €2.607.000,00.
XIV. Com a homologação do plano de recuperação aprovado, a Recorrente vai receber € 194.000,00, em 17 anos (incluindo o período de carência).
XV. Comparando a quantia que a Recorrente irá receber com a homologação do plano - € 194.000,00, com a quantia que poderia receber em caso de não homologação - €2.607.000,00, resulta claro que “a sua situação ao abrigo do plano é previsivelmente menos favorável…”.
XVI. Mesmo que a percentagem de recuperação considerada seja de 35% e não de 50%, a situação da Recorrente ao abrigo do plano continua a ser menos favorável.
XVII. Ainda assim a Recorrente teria a receber € 1.439.000,00.
XVIII. Ainda que se baixe a percentagem de recuperação para 20%, a Recorrente teria a receber 271.000,00.
XIX. O mesmo se diga se o exercício que acima se fez for efectuado tendo por base não os valores da IES, mas os valores apresentados pela própria Devedora nas páginas 10 e seguintes do plano de recuperação aprovado referentes a 31.12.2014, onde o montante global do activo realizável apurado ascende a € 45.387.000,00
XX. Neste caso, a Recorrente teria a receber:
- O montante de € 2.463.000,00, caso o montante do activo realizável fosse reduzido para 50%,
- O montante de € 1.340.000,00 caso o montante do activo realizável fosse reduzido para 35% ou
- O montante de € 216.000,00 caso o montante do activo realizável fosse reduzido para 20%;
Ao invés de receber a quantia de € 194.000,00 que resultaria da execução do plano aprovado.
COM PLANOSEM PLANO
€ 194.000,00
A 17 ANOS
IVA€ 185.000,00
CRÉDITO
DATA% ACTIVOMONTANTE
201350€ 2.607.000,00 + iva
201335€ 1.439.000,00 + iva
201320 € 271.000,00 + iva
201450 € 2.463.000,00 + iva
201435€ 1.340.000,00 + iva
201420 € 216.000,00 + iva
XXI. Acresce ainda a questão do IVA…
XXII. O plano de recuperação ora homologado derroga o regime previsto nos artigos 78º e seguintes do CIVA
XXIII. Tal significa, na prática, que a ora Recorrente, e os restantes credores, não poderão ser reembolsados do IVA que já entregaram ao Estado.
XXIV. Ou seja, com a homologação do plano de recuperação, a Recorrente não só não será ressarcida de 95% do seu crédito, como, relativamente a tal percentagem, não poderá recuperar o IVA respectivo que entregou ao Estado e de que a Devedora usufruiu financeiramente.
XXV. O que, no caso da Recorrente, significa não recuperar € 185.000,00.
XXVI. Com a homologação do plano a Recorrente recebe a quantia de € 194.000,00 a 17 anos, sendo que com a liquidação ou execução da Devedora, a Recorrente recebe o IVA já entregue ao estado no valor de € 185.000,00 acrescida do valor de realização do activo da Devedora, o qual, sendo superior a € 9.000,00 (diferença entre 194.000 e 185.000) a coloca sempre numa situação mais favorável se o plano não for homologado.
XXVII. A Recorrente está ciente que o PER tem subjacente a prossecução do interesse público.
XXVIII. No entanto, estamos aqui perante uma grave e flagrante desproporcionalidade entre a recuperação da Devedora e o sacrifício dela decorrente para a Recorrente, desde logo com impacto relevante na sua situação económico-financeira.
XXIX. A ora Recorrente encontra-se, ela própria, num processo de recuperação, pelo que a não recuperação dos montantes decorrentes quer do perdão, quer da derrogação do regime do IVA são-lhe causadores de grande prejuízo.
XXX. Por todas as razões expostas, contrariamente ao entendimento preconizado pela douta sentença recorrida, deveria o requerimento de não homologação do plano apresentado pela Recorrente ter sido atendido e a homologação recusada.
XXXI. A sentença recorrida violou a alínea a) do nº 1 do artigo 216º e o nº 5 do artigo 17º-F, ambos do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
XXXII. Nestes termos e nos mais de Direito, deve a sentença recorrida ser revogada, assim se fazendo Justiça!
A devedora contra-alegou relativamente às duas apelações, tendo formulado, quanto ao recurso interposto pela L. S.A., as seguintes conclusões:
a) É manifesto que os cálculos apresentados pela Recorrente Lisgráfica são um mero exercício académico que em nada têm a haver com os valores de mercado dos activos contabilizados na contabilidade da Recorrida;
b) Esteve bem o tribunal a quo ao verificar que os activos apresentados pela Recorrida são, na sua essência, participações financeiras e activos financeiros, relativos a empresas pouco profícuas, razão pela qual, em caso de liquidação da Recorrida e, fazendo uso das regras da experiência, facilmente se conclui – tal como o tribunal a quo doutamente fez – que o resultado da sua venda chegaria ao seu valor nominal;
c) Além disso, como bem salientou o tribunal a quo, os credores privilegiados – que não requereram a não homologação do plano – possuem créditos que atingem os 14,4 milhões de euros e, em caso de liquidação da Recorrente, só com a obtenção de uma receita superior a este valor é que os credores comuns, como a Recorrente L. S.A., é que iriam receber qualquer importância;
d) O activo da Recorrida na sociedade Galparque, avaliado contabilisticamente, em €: 28.717.572,00, em caso de liquidação da Recorrente esta participação social, resumir-se-á à venda, em mercado, de uma quota-parte de um terreno rústico, após descontado o próprio passivo da Galparque, apurando-se valores muitíssimo inferiores aos 28 milhões de euros da quota detida pela Recorrida;
e) Assim sendo, dos 44 milhões de euros de activo da Recorrida, que servem de base ao cálculo da Recorrente, uma parte substancial deste valor (quase 29 milhões de euros) desaparece em caso de liquidação da Recorrida;
f) O que resultaria – cerca de 15 milhões de euros – mal chegaria para pagar a todos os credores privilegiados, isto partindo do princípio, extremamente optimista, que o mercado pagaria, em leilão, o preço pelo qual os restantes activos da Recorrida estão avaliados, o que não é só incerto como, atendendo às regras da experiência, é extremamente improvável;
g) Além disso, analisando a outra participação social detida pela Recorrida no capital social da sociedade Actitur S.A., calculada pelo valor de €: 3.491.716,00, que representam 27,6% do seu capital social, verifica-se que esta regista um capital próprio igualmente inferior ao capital social;
h) Na realidade, esta empresa tem registado, nos últimos anos, prejuízos elevados e, presentemente, não possui actividade relevante e o activo desta empresa está onerado por força dos acordos fiscais e financiamentos bancários concedidos, razão pela qual, caso a Recorrida entre em liquidação, em virtude da sua insolvência, estes activos serão executados pela banca e Estado;
i) Consequentemente, descontando-se o passivo e executando-se os activos onerados da Actitur, é de prever que o valor da participação social da Recorrida na Actitur será muito próximo do zero;
j) Quanto á rubrica de “Outros Activos Financeiros”, que contabilisticamente surge valorizada em cerca de 11 milhões de euros, nesse total estão considerados € 8.080.191 de créditos sobre empresas do grupo inactivas há vários anos e sem qualquer capacidade financeira de liquidar essas obrigações e, no que diz respeito aos remanescentes activos considerados nesta rubrica, e num cenário de liquidação, dificilmente poderá a empresa esperar obter um resultado próximo do seu valor contabilístico;
k) Relativamente aos Inventários, contabilisticamente considerados por 1,2 milhões de euros, cerca de metade desse valor são relativos a papel da Recorrida, retido pela própria Recorrente L. S.A. e que, até á data, não obstante a sentença condenatória que a obriga a devolver o mesmo à Recorrida, não o fez ou pagou o valor de tal papel. E a situação de fundada incerteza quanto á capacidade da Recorrente de liquidar esta obrigação é efectiva, face à situação de PER em que a mesma se encontra e que é expressamente alegada por esta;
l) Em face de liquidação da Recorrida, a Recorrente L. S.A. teria que entregar à massa insolvente papel, no valor de 779 mil euros ou, caso não o tenha, o valor correspondente ao mesmo, não sendo líquido que esta credora tenha liquidez para tal, situação esta que poderia mesmo levar à insolvência da própria Recorrente L. S.A.;
m) Só por este facto se verifica que a situação de insolvência da Recorrida não constitui um cenário melhor para a Recorrente na medida em que, sendo obrigada a entregar à massa insolvente, cerca de 779 mil euros e estando a atravessar uma situação económica difícil, muito provavelmente a insolvência da Recorrida acarretaria a insolvência da Recorrente. E só por isso o cenário de insolvência da Recorrida é pior para a Recorrente;
n) Quanto ao restante valor constante na rúbrica “Inventários”, os mesmos correspondem a livros editados pela Recorrida, cuja data de edição remonta já a datas com mais de dois anos, razão pela qual o seu valor comercial será muito diminuto ou próximo de zero, não sendo previsível que, em leilão, tal valor seja realizado ou superado, muito pelo contrário;
o) É inegável, face ao supra exposto, que, em caso de liquidação imediata da Recorrida e, consequentemente, da liquidação das participações sociais que esta tem nas empresas Galparque e Actitur, será impossível esperar resultados superiores a um milhão de euros ou sequer idênticos ao valor nominal das respectivas quotas ou acções e, relativamente ao restante activo descrito na rúbrica “Outros Activos Financeiros”, em caso de liquidação da Recorrida é de prever que este activo rondará o zero ou próximo do zero;
p) Em caso de liquidação, o resultado da venda de todos os activos da Recorrida nunca chegará, á presente data, aos 3 milhões de euros, quanto mais a valores superiores a 14,4 milhões de euros (valor a partir do qual os demais credores comuns – como é a Recorrente – em sede de insolvência e não de PER) receberiam qualquer coisa para satisfazer os seus créditos;
q) É, pois, claro e manifesto que o acordo de PER aprovado pela generalidade dos credores da Recorrida é a melhor opção para todos os credores, incluindo a Recorrente;
r) E assim é por um motivo muito simples: em caso de liquidação da Recorrida, não é certo e, aplicando as regras da experiência, dir-se-á até que é extremamente improvável que se reúna activos suficientes para pagar todos os créditos privilegiados que resultariam da insolvência da Recorrida, quanto mais activo para liquidar o que quer que seja dos credores comuns, como a Recorrente L. S.A..
s) Mais: a insolência da Recorrida implicará que a Recorrente seja obrigada a entregar à massa insolvente desta papel no valor de 779 mil euros ou o valor em numerário deste papel, o que poderá implicar a insolvência da Recorrente ou a reformulação do plano a que esta está sujeita, pelo que, só por isso, a execução do plano é melhor para a Recorrente do que a liquidação da Recorrida;
t) Quanto à não recuperação do IVA, também aqui estamos perante um argumento falacioso, pois aquilo que a Recorrente vai receber com o plano é o equivalente ao IVA que suportou;
u) Inexiste, pois, qualquer desproporção no sacrifício imposto à Recorrente (e aos restantes credores comuns que aprovaram o plano e que são a sua esmagadora maioria);
v) O tribunal a quo teve bom senso e sabedoria na análise e decisão do pedido de não homologação apresentado pela Recorrente, não se podendo apontar qualquer defeito à sentença recorrida;
w) Não colhe, por isso, os argumentos apresentados pela Recorrente, razão pela qual ao presente recurso deve ser negado provimento e se confirmar a sentença homologatória proferida pelo tribunal a quo.
A apelada terminou pedindo que não fosse concedido provimento ao recurso de apelação interposto pela Recorrente L. S.A., mantendo-se, na íntegra, a decisão recorrida.
O apelante Banco rematou as suas alegações com as seguintes conclusões:
1. O presente recurso vem interposto da decisão, indeferindo cinco pedidos de não homologação do plano de revitalização aprovado, homologou o mesmo.
2. O Tribunal a quo considerou, e bem, estar em causa a alínea s), do nº 1 do artigo 216º do CIRE.
3. Invocou para tanto, as palavras de João Labareda e Carvalho Fernandes “…a prova da eventualidade referida na alínea a) pressupõe um exercício intelectual de prognose, frequentes vezes complexo, que se traduz em comparar o que é previsto resultar do plano para o reclamante com aquilo que aconteceria na ausência de qualquer plano e, portanto, no caso de se concretizar a liquidação universal do património do devedor, segundo o modelo legal supletivo.”.
4. “Quanto aos credores, isto reconduz-se em cotejar quanto recebem com o plano e quanto se estima receberiam sem ele.”.
5. Entendendo ainda, especificadamente quanto ao Banco que
“Por outro lado, quanto à argumentação apresentada pelo Banco, em caso de insolvência, provavelmente haveria que aplicar o teor do Acórdão do STJ n.º 10/2008 (DR de14 de Novembro de 2008), o que implicava a extinção da mencionada reserva de propriedade, caso fosse reclamado o crédito nestes autos, sob pena de a liquidação não prosseguir quanto a tal bem, não derivando desta situação qualquer vantagem para o Banco.”.
6. No entanto, e salvo devido respeito por entendimento diverso, o Mmo. Juiz “a quo” não atentou ao juízo de prognose feito pela Recorrente, o qual incontestavelmente dá conta de que, quer num cenário de insolvência, quer no âmbito de um processo de execução, a mesma veria o seu crédito liquidado.
7. Além disso, partindo de pressupostos fácticos errados, considerou que a reserva de propriedade do aqui Apelante seria inválida em sede de liquidação.
8. Dispõe o Acórdão do STJ n.º 10/2008 (DR de14 de Novembro de 2008) que inexiste possibilidade de registo de penhora e consequente venda do bem penhorado em sede de acção executiva, na qual o Exequente é o reservatário da propriedade do mesmo.
9. Concordamos com o entendimento do Tribunal a quo, uma vez que em sede de insolvência a reserva de propriedade impediria de facto que o processo seguisse para liquidação daquele bem, porquanto o registo a favor da massa insolvente ficaria provisório.
10. Porém, o Tribunal a quo parte de um pressuposto fáctico errado.
11. Desde logo, quanto ao contrato em questão, o Sr. Administrador da Insolvência, depois de interpelado para o efeito, teria sempre que se pronunciar nos termos do art.º 102º e do nº 4 do art.º 104º do CIRE quanto ao interesse em cumprir o mesmo.
12. Caso optasse pelo não cumprimento, o bem em questão teria de ser entregue ao Credor Reservatário, de acordo com o disposto no nº 5 do art.º 104º do CIRE, sendo que posteriormente a sua venda, procederia o mesmo à redução do valor reclamado pelo diferencial do produto desta.
13. Por outro lado, caso o Sr. Administrador fizesse tábua rasa da existência da reserva de propriedade e da sua validade, registando a apreensão do bem a favor da massa insolvente, tal registo ficaria provisório, em virtude da existência da aludida reserva.
14. Não restaria então outra solução ao Sr. Administrador da Insolvência que não a notificação do Credor Reservatário nos termos do nº 1 do art.º 119º do CRP, para indicar se tal bem lhe pertence.
15. E a Recorrente declararia que o bem efectivamente lhe pertence, requerendo a sua entrega, o que culminaria na remessa do processo para os meios comuns, nos termos do nº 4, do art.º 119º do CRP, de forma a decidir-se a validade da referida cláusula e a consequente entrega do bem ao Reservatário.
16. Sendo tal acção procedente, o bem em crise não seria liquidado em sede de insolvência, pelo que as questões tratadas no douto Acórdão supra citado não estariam em causa.
17. Assim, e quando à validade da reserva de propriedade, é certo que o nº1 do art.º 409º do CC, se cinge de forma clara aos contratos de alienação.
18. Não obstante, e ainda que assim o seja, o Apelante era o proprietário do veículo imediatamente anterior à Mutuária, como ora se demonstrou pelo documento junto ao abrigo do artº 651 do CPC.
19. Nessa conformidade, foi o Apelante que vendeu o veículo à Mutuária.
20. Ou seja e inequivocamente, o Apelante cumulou em si próprio, quer a figura de alienante, quer a figura de financiador.
21. Ora, o art.º 409º do CC, no seu nº 1, diz expressamente ser lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até cumprimento da obrigação acordada.
22. Claro se mostra que, não obstante o Apelante ter financiado a aquisição do referido veículo pela Mutuária, também alienou a propriedade do mesmo.
23. Pelo que preenche perfeitamente o âmbito de aplicação do supra mencionado preceito.
24. Sem prescindir, acresce ainda, em consonância com o nº1 do art.º 409 do CC, que a lei que regula o crédito ao consumo – Decreto-lei nº 359/91-, no nº 3 do art.º 6º, prevê expressamente a Reserva de Propriedade a favor da entidade financiadora.
25. Razão pela qual, o despacho recorrido deverá ser revogado, dando-se a referida Reserva de Propriedade por plenamente válida e eficaz.
Ainda sem prescindir, e por mera hipótese de raciocínio,
26. O art.º 405º do CC estipula o princípio da liberdade contratual, através do qual, e dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de celebrar contratos diferentes dos legalmente tipificados e de fixar livremente o conteúdo dos mesmos.
27. Entendemos então que tais limites mais não visam do que afastar o estabelecimento de cláusulas abusivas.
28. Não obstante, advogamos que, quando esteja em causa a salvaguarda dos interesses sociais e a segurança no comércio jurídico, deverá ser levada a cabo uma interpretação actualista das normas que os regulam.
29. Posto isto, e não obliterando a existência de outras garantias, as chamadas “garantias tradicionais”, a Reserva de Propriedade a favor da entidade financiadora tornou-se uma prática consolidada no que diz respeito às modalidades de contratação no âmbito da compra de veículo com recurso a crédito.
30. Destarte, mostra-se notória a estreita ligação funcional entre os mencionados contratos, porquanto o contrato de mútuo tem como único escopo a aquisição do veículo por parte do Mutuário.
31. É o preço pago pelo Mutuante ao vendedor/fornecedor que permite ao Mutuário obter o bem.
32. Ora, o risco de incumprimento deixa de correr por conta do vendedor/fornecedor, dado o contrato de compra e venda encontrar-se completamente cumprido, e desloca-se para o Mutuante que pagou o preço do bem.
33. Impõe-se então, uma interpretação extensiva e atualista do nº1 do art.º 409º do CC, nos termos do art.º 9 do mesmo diploma, aliada à figura da sub-rogação prevista no art.º 589º do CC e ss.
34. O Mutuante deve nestes termos assumir a posição do credor primitivo, quer quanto às obrigações, quer quanto às garantias, dado que, ao pagar o preço, cumpriu a principal obrigação do devedor.
35. A Requerente/Devedora D. S.A. não se encontra em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas sim em situação de insolvência.
36. O passivo da Devedora ascende a 50.228.457,25 €, conforme Lista Provisória de Credores elaborada e junta aos autos pelo Administrador Judicial Provisória.
37. Com efeito, é considerado em situação de insolvência o devedor que possua um passivo superior ao activo, detendo dividas ao Fisco e Segurança Social, sendo, como de resto resulta da Lista Provisória supra referenciada, o caso em apreço.
38. Para a declaração de insolvência basta o preenchimento de um ou alguns dos factos contidos nas diversas alíneas do artigo 20.º do CIRE, através dos quais a situação de insolvência se manifesta ou exterioriza, uma vez que tais factos são taxativos, e não cumulativos.
39. O Plano de Recuperação apresentado pela Devedora prevê (i) o pagamento ao Banco, apenas, da quantia de 720,53 € que corresponde a um perdão de 95% do capital em dívida ao Banco (ii) o perdão da totalidade dos juros vencidos e vincendos e (iii) Período de carência de 60 meses após a data da sentença de homologação do PER; (iv) prestação do acordo vence-se no 30º dia após o terminus do período de carência.
40. A totalidade dos credores comuns receberá então 625.153,20 €, o que consubstancia um perdão imposto unilateralmente de 11.877.910,84 €.
41. A solução prevista consubstanciará um verdadeiro efeito de arrasto para os Credores, não sendo economicamente encaixáveis tais perdas.
42. A proposta de reembolso do crédito ao Apelante, acima mencionada e descrita no Plano de Recuperação do Devedora, coloca o mesmo numa situação menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano.
43. Efectivamente, se não existisse qualquer Plano de Revitalização o Apelante não veria o seu crédito reduzido para 5%, no que diz respeito ao capital;
44. Não veria os juros em dívida totalmente perdoados;
45. Não veria a Devedora adquirir a viatura por si financiada pelo valor 720,53 €, quando a mesma se encontra actualmente avaliada em 14.000,00 €.
46. Não teria de aguardar 60 meses para que fosse ressarcido daquela ínfima parte do seu crédito.
47. Conseguiria ser ressarcido, integralmente, do seu crédito através da venda da referida viatura.
48. Num cenário de liquidação, o crédito do Banco seria integralmente pago ao Banco, por força da garantia contratual prestada.
49. Mais, analisado o plano apresentado verifica-se o interesse da Devedora em prever condições discrepantes para os credores comuns e para os credores privilegiados.
50. É manifesto o interesse da mesma em favorecer os credores que de facto teriam peso efectivo na votação, muito prejudicando para tanto os credores comuns.
51. Trata-se de uma verdadeira violação do princípio da igualdade, nos termos do disposto no nº 2 do art.º 13º e do nº 2 do art.º 18 da CRP.
52. O Plano de Recuperação apresentado pelo Devedor deve ser recusado, na medida em que a situação do credor Banco, ao abrigo do supra referido Plano, no caso do mesmo vir a ser aprovado, é menos favorável do que a que seria na ausência de qualquer Plano, nos termos do disposto no art.º 216, n.º 1, do CIRE.
53. O plano e o despacho de homologação violam o disposto artigos nº 3º, 17º F, nº 5, 20º, 192º, 215º. 216º e 217º do CIRE.
O apelante terminou pedindo que a decisão recorrida fosse revogada e substituída por outra que recusasse a homologação deste plano.
A devedora apelada contra-alegou, formulando as seguintes conclusões:
a) Apesar da douta argumentação discursiva apresentada pela Recorrente, entendemos que a decisão do tribunal a quo, no que respeita à extinção da reserva de propriedade da Recorrente, em caso de insolvência, é douta e correcta, não merecendo qualquer das críticas apresentadas pela Recorrente. E, em consequência, entendemos que o douto entendimento proferido pela 1.ª instância deve ser validada pelo tribunal ad quem;
b) No que respeita à situação de insolvência e não de dificuldades económicas, sempre se dirá que não tendo tal questão sido apresentada tempestivamente ao tribunal a quo, quer pela Recorrente ou outro credor, não pode a 1.ª instância se pronunciar sobre a mesma. Consequentemente, também o tribunal ad quem não a poderá agora apreciar na medida em que é uma questão nova e totalmente extemporânea à decisão recorrida;
c) Por outro lado, cumpre afirmar que a prova da invalidade dos argumentos apresentados pela Recorrente no sentido da situação de insolvência da Recorrida consiste, por um lado, no facto de a esmagadora maioria dos credores desta ter aprovado o plano, incluindo os credores privilegiados, a Autoridade Tributária e a Segurança Social e, por outro lado, num universo de várias dezenas de credores, terá havido apenas cinco requerimentos de não homologação do plano e dois recursos da sentença homologatória;
d) Relativamente à posição mais favorável para a Recorrente em caso de insolvência da Recorrida, dir-se-á que, como é bom de ver pela análise do activo e do passivo desta, os credores comuns – como a Recorrente – só receberão, para satisfação dos seus créditos, o resultado da venda dos activos que seja superior aos €: 14,4 milhões supra indicados, o que significa que a hipótese de a Recorrente vir a receber qualquer coisa em caso de insolvência da Recorrida é nula;
e) Por outro lado, o Plano aprovado pelos credores não contempla situações de créditos comuns com garantias como a da Recorrida, razão pela qual, perante tal omissão, deve de entender-se que o plano não se aplicará a esta credora, enquanto durar o plano;
f) O mesmo já não se dirá se a Recorrida for declarada insolvente pois, nesse caso, o contrato de financiamento celebrado com a Recorrente caduca por força da insolvência daquela;
g) Face ao exposto, é manifesto que não só a execução do plano representa uma situação melhor para a Recorrente como é mesmo a única situação em que esta pode continuar a receber as mensalidades contratadas;
h) Não colhe, por isso, os argumentos apresentados pela Recorrente, razão pela qual ao presente recurso deve ser negado provimento e se confirmar a sentença homologatória proferida pelo tribunal a quo.
A apelada terminou pedindo que fosse negado provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
Foram colhidos os vistos legais.
FUNDAMENTAÇÃO
A questão que se suscita em ambos os recursos é a da inadmissibilidade da homologação do plano de recuperação da revitalizanda, pelas razões adiantadas pelas recorrentes.
As apelações serão apreciadas em conjunto.
A matéria de facto a considerar é a que consta do Relatório supra e, ainda, a seguinte:
1. Os apelantes votaram contra o plano de recuperação (fls 1537 a 1539, fls 1559 a 1563).
2. Votaram a favor do plano de recuperação 232 credores, representativos de € 38 525 265,25, correspondentes a 81,77% dos votos (fls 1721 a 1725).
3. Votaram contra o plano de recuperação 24 credores, representativos de € 8 591 113,73, correspondentes a 18,3% dos votos (fls 1721 a 1725).
4. Os votos expressos, representando o valor total de € 47 116 378,98, correspondem a 95,68% dos créditos constantes na relação de créditos (fls 1721).
5. O total de créditos reclamados foi de € 50 229 617,00, distribuídos pelas seguintes espécies:
Créditos laborais: € 6 546 814,00;
Créditos do Instituto de Segurança Social: € 7 385 915,00;
Créditos da Fazenda Nacional: € 545 856,00;
Instituições financeiras: € 2 004 699,00;
Créditos a fornecedores: € 6 925 538,00;
Créditos “decisão judicial”: € 26 820 749,00 (fls 1738 dos autos).
6. A rubrica “crédito decisão judicial” engloba o crédito reclamado por Massa falida de E, Lda, no valor de € 19 611 577,74 (fls 351), a qual aguarda trânsito em julgado da sentença que fixou tal valor (vide decisão sobre impugnação, a fls 1230 a 1232).
7. O crédito da apelante L. S.A. está provisoriamente relacionado com o montante de € 7 092 452,15 e classificado como crédito de fornecedor e sob condição (fls 349 e 1724).
8. O crédito da apelante L. S.A. contém capital e juros, e reporta-se ao fornecimento de bens que deu origem à emissão de faturas com liquidação de IVA à taxa de 5% (acordo entre as partes).
9. A L. S.A. encontra-se a cumprir um plano de recuperação aprovado em processo de revitalização, que foi homologado por sentença proferida em 14.5.2013 (decisão publicitada no portal Citius).
10. O crédito do apelante Banco está provisoriamente relacionado com o montante de € 14 410,51, descrito como crédito emergente de contrato de mútuo e classificado como crédito comum (fls 344 e 1724).
11. O crédito do Banco emerge do financiamento na aquisição de uma viatura automóvel, de matrícula 63-GP-30, marca JEEP.
12. Em 04.6.2015 existiam, no registo automóvel, em relação à viatura referida em 11, as seguintes inscrições:
Registos de propriedade:
Registo de propriedade com ap. 00269, em 27/10/2008, a favor de:
CHRY Portugal Distribuição Automóveis SA
Registo de propriedade com ap. 01672, em 28/05/2010, a favor de:
Banco Primus, SA
Registo de propriedade com ap. 01676, em 28/05/2010, a favor de:
Jaques
Registo de propriedade com ap. 00294, em 01/03/2011, a favor de:
Banco, SA
Registo de propriedade com ap. 00296, em 01/03/2011, a favor de:
D., SA
Encargos
Reserva
N. Ordem -0 Data – 01/03/2011
Sujeito ativo – Banco SA
Sujeito Passivo – D., SA
Penhora
Registo provisório – Existe reserva
N. Ordem – 5992 Data – 08/11/2013
Sujeito ativo – Serviço de Finanças de Sintra – 1
Sujeito passivo – D. SA
Montante – 147 508,67 EUR
Entidade – Tribunal de 1. Inst. das Contrib. e Impostos de Sintra.
13. Um veículo com as características do referido em 11 e 12 está avaliado, em abril de 2015, em € 14 000,00 (acordo entre as partes, fls 2665 a 2667).
14. A Autoridade Tributária Aduaneira reclamou créditos no montante de € 545 856,05, que se encontram relacionados como “comuns” (fls 344 e 1738).
15. O Instituto de Gestão Financeira e Segurança Social reclamou créditos no valor total de € 7 385 915,42, dos quais estão relacionados € 1 322 706,11 como “privilegiados” e € 6 063 209,31 como “comuns” (fls 348 e 1738).
16. No plano de recuperação aprovado consta o seguinte:
Os valores considerados no presente documento, no que diz respeito ao montante de endividamento foram baseados na Lista Provisória de Créditos elaborada pelo Sr. Administrador Judicial, a que se refere o artigo 17º-D, n.º 3 do CIRE.
Importa, contudo, referir que os valores aqui mencionados correspondem aos valores considerados exclusivamente para efeito da análise económica e financeira desenvolvida, pois o cumprimento do Plano e os pagamentos a realizar no âmbito do mesmo serão feitos nos termos e de acordo com o valor e titularidade dos créditos que vierem a ser reconhecidos e fixados pelas vias normais e legais.” (fls 1738).
17. O plano de recuperação divide os créditos em privilegiados, comuns e subordinados.
18. Quanto aos créditos privilegiados, subdivididos em “créditos laborais”, “Instituto de Segurança Social, I.P.” e “Autoridade Tributária e Aduaneira” no plano prevê-se o seguinte:
CRÉDITOS LABORAIS
Para as dívidas desta natureza reconhecida no processo, a Descobrirpress propõe o seguinte acordo:
1. Liquidação destes créditos de natureza monetária em 60 prestações mensais, iguais e sucessivas;
2. A primeira prestação vencer-se-á nos 90 dias após o trânsito em julgado da sentença de homologação do PER;
3. Renúncia da totalidade dos juros vencidos, e de outros encargos financeiros também vencidos;
4. Não se vencerão juros vincendos sobre o capital em dívida;
5. Para os créditos reclamados, com fundamento em horas de descanso e folgas por gozar de trabalhadores com contratos de trabalho em vigor, ou seja, créditos que cujo pagamento monetário ainda não é exigível em função da manutenção do vínculo jurídico-laboral, os mesmos serão liquidados em espécie, ou seja, através da concessão, após a aprovação do PER, de horas e dias de descanso correspondentes a esses créditos.
INSTITUTO DA SEGURANÇA SOCIAL, IP
Para os valores em dívida perante ao Instituto de Segurança Social, I.P., a D. SA propõe:
1. Pagamento do capital reconhecido em 150 prestações mensais, iguais e sucessivas;
2. Pagamento de 20% de juros vencidos em 150 prestações mensais, sucessivas;
3. Taxa anual de juros vincendos à taxa de 2,5%;
4. A 1ª prestação do acordo vence-se no 30° dia após o trânsito em julgado da sentença de aprovação do plano;
5. Para garantia de pagamento da dívida acrescida de 25%, serão constituídas hipotecas voluntárias sobre o Prédio Urbano descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Sintra sob o n.º (…) e inscrito na matriz predial urbana da União das freguesias de Sintra (Sta. Maria e S. Miguel, S. Martinho e S. Pedro de Penaferrim) sob o artigo n.° (…), e sobre o Prédio Urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Albufeira sob o n.º (…) e inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Albufeira sob o artigo n.° (…), nas seguintes frações A até Z, AA até AD, BV, BX, CM, CN, CS até CZ, DA, DB, e DD;
6. Consolidação da dívida de capital à data do despacho de nomeação do administrador judicial provisório;
7. Manutenção da suspensão das ações executivas pendentes para cobrança de dívidas à Segurança Social após aprovação e homologação do plano de recuperação e até integral cumprimento do plano de pagamentos que venha a ser autorizado;
8. Pagamento integral dos valores referentes a custas processuais devidas no âmbito de ações executivas que se encontram suspensas na respetiva secção de processo executivo, no prazo de 30 dias após o trânsito em julgado da sentença homologatória do plano de recuperação, a ser tal pagamento efetuado junto da secção de processo executivo na qual se encontra suspensa a ação executiva;
AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Para os valores em dívida perante a Autoridade Tributária e Aduaneira, a D. SA propõe:
1. Pagamento do capital reconhecido em 150 prestações mensais, iguais e sucessivas, de acordo com o disposto no artigo 196º-- do C.P.P.T.;
2. Pagamento de 20% de juros vencidos em 150 prestações mensais, sucessivas;
3. Taxa anual de juros vincendos à taxa de 2,5%;
4. Para garantia de pagamento da dívida acrescida de 25%, manter hipoteca constituída sobre o Prédio Urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Albufeira sob o n.º (…) e inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Albufeira sob o artigo n.º (…), fracções AH a AQ, AS e AV;
5. A 1ª- prestação do acordo vence-se no final do mês seguinte ao da sentença homologatória do plano”.
19. Quanto aos créditos comuns, no plano prevê-se o seguinte:
Para os créditos vencidos e reconhecidos no âmbito do PER a credores comuns, a D. SA propõe:
1. Pagamento de 5% dos créditos em dívida, em 12 anos, em prestações mensais e sucessivas;
2. Período de carência de 60 meses após data da sentença de homologação do PER;
3. A 1.ª prestação do acordo vence-se no 30.º dia após o términus do período de carência;
4. Perdão total de juros vencidos e vincendos.
20. Quanto aos créditos subordinados, no plano consta o seguinte:
Aplicação do regime legal previsto no art.º 177º do CIRE.”
21. Como “condições transversais a aplicar a todos os credores consta o seguinte, no plano:
O presente plano de PER tem as seguintes condições transversais a aplicar a todos os credores:
1. A aprovação do Plano não constitui novação da dívida;
2. As garantias propostas são parte integrante do património imobiliário de empresas do Grupo;
3. O presente plano de PER será financiado pelos meios libertos com a actividade da empresa;
4. O presente plano de PER está sujeito à cláusula "salvo regresso de melhor fortuna", no caso dos activos financeiros virem a prazo a realizarem-se;
5. Não haverá lugar à distribuição de resultados durante a vigência do Plano.
22. Ficou igualmente consignado no plano o seguinte:
O presente plano de PER apresentado, nos termos em que é elaborado, pressupostos admitidos e objectivos que se propõe, é manifestamente um PLANO DE RECUPERAÇÃO FINANCEIRA DA SOCIEDADE.
Assim, por definição são derrogados todos os artigos do C.I.R.E. que preceituam que à declaração de insolvência se segue a apreensão, liquidação e partilha dos bens que integram a entidade, designadamente os artigos 156º a 170º por não contemplar a liquidação.
O presente Plano de PER derroga o artigo 78.º, 78.º—A, 78.º—B, 78.º-C e 78.º—D do Código do I.V.A., aplicável a todos os créditos reclamados, ou não, enquadráveis neste artigo.”
23. Os ativos realizáveis existentes no Balanço da devedora, de acordo com os valores provisórios constantes no Plano de recuperação (fls 1742 dos autos), em 31.12.2014, são os seguintes:
Participações financeiras: € 32 209 287,00
Outros ativos financeiros: € 11 019 895,00
Inventários: € 1 279 070,00
Clientes: € 772,00
Outras contas a receber: € 262 286,00
Caixa e depósitos bancários: € 107 989,00
Total: € 44 879 299,00.
24. No Plano de recuperação, a título de “Impacto expectável da proposta de acordo”, consta o seguinte:
Através da presente proposta no âmbito do PER, a Descobrirpress pretende estabelecer negociações com os seus principais credores de modo a concluir com eles um acordo conducente à sua revitalização, na medida em que acredita convictamente reunir as condições necessárias ao restabelecimento do seu equilíbrio financeiro e continuidade no mercado.
O presente acordo permitirá à empresa revitalizar e reestruturar o seu passivo e liquidar grande parte da sua divida perante aos seus principais stakeholders.
O impacto expectável das alterações propostas apresenta uma posição mais favorável aos credores, quando comparado com a situação que se verificaria na ausência de qualquer plano de recuperação.
A não execução do presente plano implicará o encerramento da empresa com a liquidação dos activos e a obtenção de valores muito abaixo do que se obteriam com a sua continuidade, bem como terá custos sociais acrescidos derivados do desemprego de todos os trabalhadores da empresa. Com efeito:
A sociedade sem a aprovação do PLANO:
Na ausência do apoio dos credores ao Plano de PER toma-se como certo o cenário de liquidação imediata dos activos da entidade, no qual todos os credores ficariam numa situação menos favorável do que a proposta no presente plano.
Assim, decorrente do resultado da venda imediata do activo da empresa e distribuição do resultado pelos credores seria menos vantajoso para todos. 0 cenário de liquidação implicaria a rescisão de todos os contratos de trabalho, cuja continuidade de cerca de duas centenas de postos ainda pode ser assegurada. O que, só por si, fará aumentar os créditos privilegiados na ordem de € 5.796.109.
A liquidação terá por efeito necessário o aumento do passivo exigível, consequente à cessação dos contratos de trabalho, por ponderação das indemnizações a pagar, com os privilégios creditórios, mesmo imobiliários especiais, que estão associados a tais créditos.
Com os inerentes prejuízos - nos que se incluem os sociais e não apenas restritos à questão dos créditos e da graduação deles - para os credores, o que não ocorre no caso da aprovação do presente Plano de PER.
A sociedade com a aprovação do PLANO
No essencial, possibilitará não só manter cerca de duas centenas de postos de trabalho, com a correspondente mais-valia social, e contribuições e impostos futuros associados, como por outro lado, os credores da Empresa poderão recuperar € 14.037.475, como segue:
Credores Laborais € 6.546.814
Credores Comuns € 911.825
Credores Públicos € 6.578.836
Assim sendo, esta proposta de reestruturação que se apresenta é, convictamente, a única que neste momento satisfaz o melhor interesse de todos os stakeholders envolvidos.”
O Direito
Em 29.9.2011 o Conselho de Ministros aprovou uma Resolução (Resolução n.º 43/2011) em que, visando dar cumprimento ao memorando de entendimento celebrado entre a República Portuguesa e o Banco Central Europeu, a Comissão Europeia e o Fundo Monetário Internacional no quadro do programa de auxílio financeiro a Portugal, “no qual se prevê um conjunto de medidas que têm como objectivo a promoção dos mecanismos de reestruturação extrajudicial de devedores, ou seja, de procedimentos que permitem que, antes de recorrerem ao processo judicial de insolvência, a empresa que se encontra numa situação financeira difícil e os respectivos credores possam optar por um acordo extrajudicial que visa a recuperação do devedor e que permita a este continuar a sua actividade económica”, no pressuposto de que esses mecanismos, em comparação com o processo judicial de insolvência, terão, como vantagens, a empresa manter-se sempre em atividade, os credores terem uma taxa de recuperação de crédito mais elevada e a empresa manter as suas relações jurídicas e económicas com trabalhadores, clientes e fornecedores, além de se libertar os tribunais para outros processos, enunciou os “Princípios Orientadores da Recuperação Extrajudicial de Devedores” e, bem assim, onze Princípios Orientadores da conduta do devedor e dos credores durante o procedimento extrajudicial de recuperação de devedores.
Seguindo a mesma linha político-legislativa, em 30.12.2011 o Governo apresentou na Assembleia da República a Proposta de Lei n.º 39/XII, a qual visava proceder à sexta alteração ao Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março, “simplificando formalidades e procedimentos e instituindo o processo especial de revitalização.”
Aí se anunciava que “o principal objectivo prosseguido por esta revisão passa por reorientar o Código da Insolvência e Recuperação de Empresas para a promoção da recuperação, privilegiando-se sempre que possível a manutenção do devedor no giro comercial, relegando-se para segundo plano a liquidação do seu património sempre que se mostre viável a sua recuperação.” Assim, desde logo se justificava o proposto retoque na redação do art.º 1.º do CIRE, como visando, “por um lado, sublinhar que a recuperação dos devedores é, sempre que possível, primacial face à sua liquidação, desde que, obviamente, tal não prejudique a satisfação tão completa quanto possível dos credores do devedor insolvente, designadamente a administração fiscal e a segurança social”. E acrescentava-se que, “na mesma linha, é criado o processo especial de revitalização (artigos 17.º-A a 17.º-I), lançando-se a primeira pedra deste processo logo no n.º 2 do artigo 1.º, explicitando-se, em traços muito largos, quais os devedores que ao mesmo podem recorrer. O processo visa propiciar a revitalização do devedor em dificuldade, naturalmente que sem pôr em causa as respectivas obrigações legais, designadamente para regularização de dívidas no âmbito das relações com a administração fiscal e a segurança social.”
Desenvolvendo os traços característicos do processo de revitalização, dizia-se, na Exposição de Motivos, que “o processo especial de revitalização pretende assumir-se como um mecanismo célere e eficaz que possibilite a revitalização dos devedores que se encontrem em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente mas que ainda não tenham entrado em situação de insolvência actual. A presente situação económica obriga, com efeito, a gizar soluções que sejam, em si mesmas, eficazes e eficientes no combate ao “desaparecimento” de agentes económicos, visto que cada agente que desaparece representa um custo apreciável para a economia, contribuindo para o empobrecimento do tecido económico português, uma vez que gera desemprego e extingue oportunidades comerciais que, dificilmente, se podem recuperar pelo surgimento de novas empresas. Este processo especial permite ainda a rápida homologação de acordos conducentes à recuperação de devedores em situação económica difícil celebrados extrajudicialmente, num momento de pré-insolvência, de tal modo que os referidos acordos passem a vincular também os credores que aos mesmos não se vincularam, desde que respeitada a legislação aplicável à regularização de dívidas à administração fiscal e à segurança social e observadas determinadas condições que asseguram a salvaguarda dos interesses dos credores minoritários”. Mais se dizia, na Exposição de Motivos, que “o processo terá o seu início com a manifestação de vontade do devedor e de, pelo menos, um dos seus credores, no sentido de se encetarem negociações, que não poderão exceder os três meses. Durante este período, suspendem-se as acções que contra si sejam intentadas com a finalidade de lhe serem cobradas dívidas, assegurando-se, assim, a existência da necessária calma para reflexão e para criação de um plano de viabilidade para o devedor que se encontre em negociações”.
A Proposta de Lei n.º 39/XII deu origem à Lei n.º 16/2012, de 20.4, que alterou o CIRE, nomeadamente através do aditamento dos artigos 17.º-A a 17.º-I, referentes ao processo de revitalização. Esses artigos formalizam as normas anunciadas na Exposição de Motivos, realçando-se, aqui, o disposto no n.º 1 do art.º 17.º-A (“o processo especial de revitalização destina-se a permitir ao devedor que, comprovadamente, se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja susceptível de recuperação, estabelecer negociações com os respectivos credores de modo a concluir com estes acordo conducente à sua revitalização”), no art.º 17.º-B (“Noção de situação económica difícil - Para efeitos do presente Código, encontra-se em situação económica difícil o devedor que enfrentar dificuldade séria para cumprir pontualmente as suas obrigações, designadamente, por ter falta de liquidez ou por não conseguir obter crédito”), n.º 1 do art.º 17.º-E (“A decisão a que se refere a alínea a) do n.º 3 do artigo 17.º-C [nomeação, pelo juiz, de administrador provisório] obsta à instauração de quaisquer acções para cobrança de dívidas contra o devedor e, durante todo o tempo em que perdurarem as negociações, suspende, quanto ao devedor, as acções em curso com idêntica finalidade, extinguindo-se aquelas logo que seja aprovado e homologado plano de recuperação, salvo quando este preveja a sua continuação”), n.º 2 do art.º 17.º-E (“caso o juiz nomeie administrador judicial provisório nos termos da alínea a) do nº 3 do artigo 17.º-C, o devedor fica impedido de praticar atos de especial relevo, tal como definidos no artigo 161.º, sem que previamente obtenha autorização para a realização da operação pretendida por parte do administrador judicial provisório”), n.º 10 do art.º 17.º-D (“durante as negociações os intervenientes devem actuar de acordo com os princípios orientadores aprovados pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 43/2011, de 25 de Outubro.”) e n.º 6 do art.º 17.º-F (“A decisão do juiz [decisão de homologação ou não homologação do plano de recuperação] vincula os credores, mesmo que não hajam participado nas negociações, e é notificada, publicitada e registada pela secretaria do tribunal, nos termos dos artigos 37.º e 38.º, que emite nota com as custas do processo de homologação.”
De entre os princípios de atuação que devem pautar as negociações entre o devedor e os credores no decurso do processo de revitalização e que estão enunciados na citada Resolução do Conselho de Ministros n.º 43/2011, realçam-se os seguintes:
Segundo princípio. — Durante todo o procedimento, as partes devem atuar de boa-fé, na busca de uma solução construtiva que satisfaça todos os envolvidos.
Nono princípio. — As propostas apresentadas e os acordos realizados durante o procedimento, incluindo aqueles que apenas envolvam os credores, devem reflectir a lei vigente e a posição relativa de cada credor.
Décimo princípio. — As propostas de recuperação do devedor devem basear -se num plano de negócios viável e credível, que evidencie a capacidade do devedor de gerar fluxos de caixa necessários ao plano de reestruturação, que demonstre que o mesmo não é apenas um expediente para atrasar o processo judicial de insolvência, e que contenha informação respeitante aos passos a percorrer pelo devedor de modo a ultrapassar os seus problemas financeiros.
A revitalização visa, assim, evitar os custos inerentes ao desaparecimento de agentes económicos que se encontram em dificuldades, no pressuposto de que ainda é possível mantê-los em atividade, por terem viabilidade e o esforço da recuperação não ser (pelo menos manifestamente) desfavorável aos credores (por contraposição com a liquidação do património do devedor em processo de insolvência).
No caso dos autos, foi tempestivamente apresentado plano de recuperação que, se não obteve aceitação unânime de todos os credores, logrou obter a necessária maioria de votos (n.º 3 do art.º 17.º-F), ou seja, 81,77% de votos a favor, sendo certo que votaram credores cujos créditos representavam 95,68 relacionados com direito de voto.
Ora, nessa situação, estipula o n.º 5 do art.º 17.º-F que “o juiz decide se deve homologar o plano de recuperação ou recusar a sua homologação, nos 10 dias seguintes à receção da documentação mencionada nos números anteriores, aplicando, com as necessárias adaptações, as regras vigentes em matéria de aprovação e homologação do plano de insolvência previstas no título ix, em especial o disposto nos artigos 215.º e 216.º”.
Sendo que o art.º 215.º regula situações epigrafadas de “não homologação oficiosa”:
O juiz recusa oficiosamente a homologação do plano de insolvência aprovado em assembleia de credores no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza, e ainda quando, no prazo razoável que estabeleça, não se verifiquem as condições suspensivas do plano ou não sejam praticados os actos ou executadas as medidas que devam preceder a homologação.
Relativamente às regras atinentes ao conteúdo do acordo avulta, até pela frequência com que é citado em juízo, o teor do art.º 194.º do CIRE:
Princípio da igualdade
1 - O plano de insolvência obedece ao princípio da igualdade dos credores da insolvência, sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objectivas.
2 - O tratamento mais desfavorável relativamente a outros credores em idêntica situação depende do consentimento do credor afectado, o qual se considera tacitamente prestado no caso de voto favorável.
3 - …”
Por sua vez o art.º 216.º regula casos em que a recusa de homologação decorre de requerimento de algum interessado:
Não homologação a solicitação dos interessados
1 - O juiz recusa ainda a homologação se tal lhe for solicitado pelo devedor, caso este não seja o proponente e tiver manifestado nos autos a sua oposição, anteriormente à aprovação do plano de insolvência, ou por algum credor ou sócio, associado ou membro do devedor cuja oposição haja sido comunicada nos mesmos termos, contanto que o requerente demonstre em termos plausíveis, em alternativa, que:
a) A sua situação ao abrigo do plano é previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano, designadamente face à situação resultante de acordo já celebrado em procedimento extrajudicial de regularização de dívidas;
b) O plano proporciona a algum credor um valor económico superior ao montante nominal dos seus créditos sobre a insolvência, acrescido do valor das eventuais contribuições que ele deva prestar.
A ora apelante L. S.A. e o ora apelante Banco (…) votaram contra o plano de recuperação. E, tempestivamente, requereram (assim como três outros credores) ao tribunal que não homologasse o plano, invocando a situação prevista na alínea a) do n.º 1 do art.º 216.º (o plano é-lhes desfavorável, face a uma eventual inexistência do mesmo) e, ainda, quanto ao Banco (…), a violação do princípio de igualdade entre os credores.
A decisão recorrida foi, como é sabido, contrária a esses requerimentos, tendo o tribunal a quo homologado o plano de recuperação aprovado.
Banco (…) e L. S.A., inconformados, reagiram contra esta decisão.
Na sua apelação a L. S.A. reiterou a argumentação anteriormente apresentada perante o tribunal a quo, centrada na comparação entre a situação para si decorrente do plano de recuperação e aquela em que se encontraria se não houvesse o aludido plano.
O Banco reiterou também, no seu recurso, a argumentação deduzida perante o tribunal a quo (comparação entre as situações decorrentes da existência do plano e a sua não existência; violação da igualdade entre os credores) e ainda lhe acrescentou outra questão, que é a de que a devedora se encontra em situação de insolvência.
Vejamos, então.
Quanto à verificação da situação de insolvência da devedora
O apelante Banco afirma que não se verificam os requisitos legais para o recurso ao PER, na medida em que a devedora não se encontra em situação económica difícil ou em situação de insolvência iminente, mas sim em situação de insolvência. Isto, face ao passivo relacionado, no montante de € 50 228 457,25, entre os quais se contam dívidas à fazenda pública, à segurança social, a trabalhadores e a fornecedores.
A apelada contrapõe que essa questão é nova e não foi levantada por mais nenhum credor, sendo certo que a grande maioria dos credores apoiou o plano de recuperação, o que significa que a empresa é viável e não se encontra insolvente.
Como decorre do exposto supra, o PER tem como destinatários devedores que não se encontrem ainda em situação de insolvência, ou seja, devedor que se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, sendo ainda suscetível de recuperação (n.º 1 do art. 17.º-A). Sendo certo que se encontra em situação de insolvência quem “se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas” (n.º 1 do art.º 3.º do CIRE). Tratando-se de pessoas coletivas, são também considerados insolventes os devedores cujo passivo “seja manifestamente superior ao activo, avaliados segundo as normas contabilísticas aplicáveis” (n.º 2 do art.º 3.º), mas ainda aqui o ativo e o passivo deverão ser avaliados tendo em conta o seu justo valor e numa perspetiva de continuidade da empresa ou de liquidação, consoante o que se afigurar mais provável (n.º 3 do art.º 3.º).
Ora, apesar da enunciação desses pressupostos do PER, ao juiz não são concedidas condições para avaliar ponderada e aprofundadamente acerca da sua verificação. Afinal, o processo decorre sobretudo extrajudicialmente e o seu início sustenta-se numa mera declaração de intenções de negociação por parte do devedor e de, pelo menos, um dos seus credores, acompanhada de declaração escrita e assinada pelo devedor, mediante a qual “ateste que reúne as condições necessárias para a sua recuperação” (n.º 2 do art.º 17.º-A).
Assim, embora se admita que o juiz pode indeferir liminarmente o requerimento inicial do PER ou recusar oficiosamente a homologação de plano de recuperação se tiver nos autos elementos suficientemente comprovativos de que o devedor não reúne condições para beneficiar deste mecanismo (neste sentido, cfr., v.g., acórdão da Relação de Coimbra, de 05.5.2015, processo 996/15.8T8CRA-A.C1), em regra o juiz não se pronunciará sobre esse aspeto, pois, como se expendeu no acórdão da Relação de Coimbra, de 10.3.2015 (processo 36/14.4TBOLR.C1), “a regulação da tramitação do procedimento de revitalização é de todo desadequada para a discussão sobre o carácter eminente ou verdadeiramente actual da insolvência do devedor porque o seu núcleo essencial, a fase negocial, decorre informal e exteriormente ao controlo judicial.” Por norma essa questão será analisada, no âmbito do PER, em caso de encerramento do processo sem que se tenha chegado a um acordo, sendo a decisão do juiz necessariamente antecedida de um parecer do administrador judicial provisório, com audição prévia do devedor e dos credores (art.º 17.º-G, n.ºs 3 e 4).
No caso dos autos, a ponderação acerca da viabilidade económica da empresa da devedora foi efetuada pelos credores, extrajudicialmente, sendo certo que nem mesmo aqueles que votaram contra o plano proposto questionaram, pelo menos em juízo, a solvabilidade da devedora. Só agora, em sede de recurso, o credor Banco suscita o problema.
Ora, esta Relação não dispõe de elementos bastantes que a levem a sufragar, sem margem para dúvidas razoáveis, a posição do apelante a este respeito. Se, conforme decorre dos autos, a grande maioria dos credores, titulares da grande maioria dos créditos reclamados, apoia o aludido plano, que acredita na viabilidade da devedora, não pode dar-se como adquirido que a mesma está insolvente. Apenas estará, isso é evidente, em situação de insolvência iminente.
Quanto à situação prevista na alínea a) do n.º 1 do art.º 216.º do CIRE, ou seja, quando o credor “demonstre, em termos plausíveis”, que “a sua situação ao abrigo do plano é previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano.”
Trata-se de efetuar um exercício de prognose, que se traduz em comparar o que se antevê resulte do cumprimento do plano de recuperação, com aquilo que resultaria na ausência dele. In casu, conforme é alegado pelos requerentes e pela devedora, face à difícil situação económica da devedora, a alternativa a ter como termo de comparação é a que resultaria da liquidação do património da devedora em processo de insolvência. Ora, a avaliação a priori do que a massa insolvente pode render no caso de venda universal é, as mais das vezes, uma tarefa de extrema dificuldade (como salientam Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, 2.ª edição, 2013, Quid Juris, pág. 832). Por outro lado, caberá ao requerente demonstrar as suas razões, em termos de “plausibilidade”, isto é, como escreve Santos Júnior (“O plano de insolvência, algumas notas”, in Estudos em memória do Professor Doutor José Dias Marques, Almedina, 2007, página 136), “o que parece estar em causa – em termos de exigência de prova para o juiz negar a homologação – não é a prova stricto sensu, mas uma mera justificação, por isso que o que se exige ao juiz não será a convicção séria e isenta de dúvida da verificação do alegado pelo requerente, mas a conclusão por uma plausibilidade ou verosimilhança, ainda que séria, do que aquele alegue.” O que bem se compreende, pois está-se a lidar com a prova de acontecimentos futuros e, afinal, virtuais.
Quanto às razões apresentadas pela apelante L. S.A.:
O crédito relacionado quanto a esta credora orça em € 7 092 425,15, constando na relação provisória que o crédito está em discussão judicial. Em sede de impugnação à relação provisória de créditos a devedora apenas reconheceu o montante de € 5 743 784,90 (vide fls 1063 dos autos), invocando sentença judicial, sendo € 3 981 203,51 a título de capital. A recorrente afirma que o capital reclamado é de € 3 885 000,00 (n.º 18 da alegação) e a recorrida, em sede de alegações, afirma que a sentença que referira foi confirmada por acórdão da Relação de Lisboa, datado de 19.3.2015, pelo que o crédito da L. S.A. ronda o total de € 5 800 000,00, incluindo juros. O tribunal a quo não chegou a proferir decisão definitiva quanto a esta divergência entre as partes, por ter considerado que a mesma se tornara desnecessária face ao quórum atingido na aprovação do plano de recuperação.
À falta de melhores elementos, iremos levar em consideração o valor total relacionado (€ 7 092 425,15) e, a título de capital, o montante alegado pela apelante (€ 3 885 000,00), que não excede o admitido pela apelada.
Por força do plano de recuperação aprovado, a apelante, credora comum, perde o total dos juros de mora e vê o capital em dívida reduzido em 95%, ou seja, fixar-se em € 194 250,00. Além disso, o pagamento do crédito assim determinado tem de aguardar por um período de carência de cinco anos, contado da data do trânsito em julgado da sentença homologatória do plano, após o que será efetuado em prestações mensais, ao longo de 12 anos. A isto acresce a não aplicação do regime previsto nos artigos 78º a 78.º-D do Código do IVA (CIVA), isto é, a privação da faculdade de o credor, que liquidou IVA em virtude da emissão de faturas respeitantes às transações económicas operadas com a devedora (art.º 8.º do CIVA), deduzir o valor do IVA que não veio a receber desta, procedendo à respetiva regularização a seu favor junto da administração fiscal. Tal “derrogação” desse direito, previsto no plano, visa poupar à devedora o acréscimo de encargos que dessa regularização lhe adviria, pois do seu exercício resultaria, para a devedora, igual aumento de encargos a título de IVA (cfr. artigos 78.º n.ºs 4 e 11, 78.º-B, n.ºs 5 e 9 do CIVA). Ou seja, é vedado à ora apelante a faculdade de reaver, a título de IVA, o montante de € 184 537,50, correspondente à taxa de IVA de 5% (conforme acordo das partes) sobre o valor total faturado e perdoado.
Ora, face a tal programa de recuperação da devedora, a credora L. S.A. é prejudicada, pois se tal plano não existisse e, por exemplo, se avançasse para a liquidação da devedora e a credora, como a devedora alega que sucederia, nada recebesse, a L. S.A. teria direito a auferir, a título de dedução de IVA, o montante de € 194 500,00, sem período de carência de cinco anos acrescido de doze anos de fracionamento em prestações… O que, para uma sociedade como a L. S.A., que se encontra em situação económica difícil, por isso beneficiando de um plano de recuperação, reveste importância nada negligenciável.
Acresce que bem poderia suceder que, contrariamente aos € 3 000 000,00 que, segundo a apelada, renderia a liquidação da devedora, esta rendesse, como aventa a apelante numa perspetiva moderadamente otimista, mas plausível, valor equivalente a 35% do ativo realizável atualmente existente (n.º 23 da matéria de facto). O produto da liquidação orçaria, então, em € 15 707 754,65. Sobre esse valor seriam preferencialmente pagos os créditos privilegiados, que têm o valor relacionado de € 6 546 814,00 (créditos laborais, n.º 5 da matéria de facto) e de € 1 322 706,11 (segurança social, n.º 15 da matéria de facto, sendo certo que quanto a estes haveria que levar em consideração o disposto no art.º 97.º n.º 1 alíneas a) e b) do CIRE), no total de € 7 869 520,00. Atendendo a que o crédito relacionado da L. S.A., no montante de € 7 092 425,15, corresponde a 16,7% dos créditos reclamados, deduzidos dos créditos privilegiados, à L. S.A. caberia, no rateio a efetuar, € 1 308 985,19 (€ 7 838 234,65 x 16,7%), a que acresceria o que houvesse a reaver a título de IVA.
Conclui-se, assim, que o plano de recuperação aprovado prejudica a credora Lisgráfica, face àquilo a que poderia razoavelmente aspirar se tal plano não existisse.
Quanto ao credor Banco (…):
Como credor comum, nos termos do plano (admitindo que no seu crédito não há juros de mora a deduzir), este credor, que tem um crédito reclamado de € 14 410,51, receberia o total de € 720,53, tendo de aguardar cinco anos antes de começar a auferir alguma coisa e ainda assim sujeito a subsequente fracionamento mensal durante doze anos.
Na perspetiva moderadamente otimista da credora L. S.A., supra exposta, este credor, no caso de liquidação do ativo da devedora, receberia € 2 665,00 (€ 7 838 234,65 x 0,034%).
Acresce que este credor, segundo emerge das inscrições constantes do registo automóvel, mantém reserva da propriedade sobre o veículo automóvel a que se reporta o crédito reclamado (art.º 409.º do Código Civil), sendo certo que do registo consta que o credor adquiriu a propriedade do automóvel e depois o transmitiu com reserva de propriedade (vide n.º 12 da matéria de facto), pelo que não se estará perante mero financiamento da compra a outrem (vide, para situação aparentemente idêntica, acórdão desta Relação, de 23.4.2013, processo 1948/11.2TBSXL-E.L1-7). Assim, no âmbito da insolvência, o credor poderia não só obter o cumprimento do contrato por parte do administrador da insolvência como, no caso de recusa, teria direito à devolução do automóvel (art.º 141.º do CIRE) e a exigir, como crédito sobre a insolvência, a diferença, se positiva, entre o valor da coisa na data da recusa e o montante do valor do seu crédito (artigos 102.º n.º 3, 104.º n.º 5 e 105.º n.º 1 alínea b) do CIRE). Sendo certo que a viatura valeria, previsivelmente, bem mais do que € 720,53 (vide n.º 13 da matéria de facto).
É verdade que a apelada acaba por afirmar que o plano de recuperação não é aplicável ao Banco, porque nele não se menciona qualquer medida atinente a crédito comum garantido com reserva de propriedade. Ora, como é sabido, o plano de recuperação aprovado em PER é obrigatório para todos os credores, tenham ou não participado nas negociações (art.º 17.º-F, n.º 6). Por outro lado, o crédito do Banco é um crédito comum, como tal estando relacionado, não se vislumbrando, do teor do plano de revitalização aprovado, que o crédito do Banco esteja excluído das medidas aprovadas. De resto, essa não foi a interpretação feita pelo tribunal a quo na decisão recorrida, apesar de a apelada já a ter aventado em resposta ao requerimento de não homologação do plano que o Banco apresentara.
Conclui-se, assim, que o plano de recuperação aprovado também prejudica o credor Banco, face àquilo a que poderia razoavelmente aspirar se tal plano não existisse.
Quanto à violação da igualdade entre os credores:
Como se viu supra, a igualdade entre os credores constitui princípio basilar a respeitar no plano de insolvência, “sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objectivas” (n.º 1 do art.º 194.º do CIRE).
Razões de diferenciação essas que poderão radicar na diferente natureza dos créditos em presença, seja a sua natureza comum ou privilegiada (art.º 47.º do CIRE), ou o seu caráter indisponível. É o que se passa com os créditos laborais (art.º 333.º do Código do Trabalho) e, no que concerne à indisponibilidade, com os créditos fiscais e da segurança social (vide artigos 30.º e 36.º n.ºs 2 e 3 da Lei Geral Tributária e 190.º n.ºs 1, 2 e 6 do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial da Segurança Social).
É certo que, como se ponderou no acórdão do STJ, de 25.3.2014, processo n.º 6148/12.1TBBRG.G1.S1, tendo o PER “como fim primordial a recuperação da empresa, a derrogação do princípio da igualdade dos credores é legítima num quadro de ponderação de interesses – o interesse individual por contraposição ao colectivo – se este se situar num patamar material e fundadamente superior em função dos direitos que devem ser salvaguardados, atenta a sua relevância pública.
Mas o sacrifício do interesse particular, em favor do interesse coletivo, no âmbito dos objetivos prosseguidos pelo PER, estará sujeito a limites de proporcionalidade, cuja ultrapassagem não ofenda o sentido do razoável e do racionalmente fundamentado.
Ora, não parece razoável que os credores comuns, como tal designados no plano de recuperação, se vejam, por força do plano, despojados de 95% do capital em dívida (para além dos juros, que são perdoados na totalidade), e ainda por cima tenham de esperar cinco anos até começarem a receber os sobrantes 5%, que por sua vez serão divididos em frações pagas ao longo de doze anos… E isto enquanto outros créditos, no plano de recuperação qualificados de privilegiados (sendo certo que os créditos fiscais e a maioria dos da segurança social são, na realidade, créditos comuns, embora estejam protegidos, como se aduziu supra, por um regime legal de quase indisponibilidade), serão pagos na totalidade do capital e beneficiarão de prazos de pagamento bem mais favoráveis (dilação do início de pagamento, quanto aos créditos laborais, de 90 dias após o trânsito em julgado da sentença de homologação do PER, seguido do pagamento ao longo de cinco anos; dilação de início do pagamento, quanto aos créditos fiscais e da segurança social, de 30 dias após o trânsito em julgado da sentença de homologação do PER, seguido do pagamento ao longo de doze anos e meio). Por outro lado os débitos fiscais e da segurança social incluirão 20% dos juros.
Existe, assim, uma disparidade entre os chamados créditos privilegiados e os restantes créditos que atinge níveis chocantes, pois a salvaguarda da totalidade do capital, adicionada com um breve início do pagamento das prestações acordadas contrasta com o desaparecimento de 95% do valor dos créditos comuns (95% do capital e a totalidade dos juros), aditado de um período de carência de cinco anos.
Poderia dizer-se que o sacrifício do crédito do Banco, pelo seu valor relativamente baixo, se justificaria face ao ganho obtido pelo coletivo dos restantes credores e o interesse público na continuidade de uma empresa. Só que esse sacrifício alarga-se também ao terceiro crédito mais elevado, o da apelante L. S.A., cujos interesses são igualmente relevantes, sendo ela também uma empresa em situação económica periclitante e carecida de apoio. Isto para não falar do crédito mais elevado de todos (€ 19 611 577,74), igualmente qualificado como crédito comum, titulado pela Massa falida de E., Lda, que, porém, votou a favor do plano de recuperação, sendo certo que se trata de credor cujo desaparecimento do tecido produtivo está já estabelecido.
Por tudo o exposto, que se sintetiza no desrespeito injustificado do princípio da igualdade entre credores e grave prejuízo dos apelantes face à situação em que se encontrariam se não houvesse plano de recuperação, concede-se provimento às duas apelações.
DECISÃO
Pelo exposto, julga-se as duas apelações procedentes e consequentemente revoga-se a sentença recorrida, decidindo-se não homologar o plano de revitalização sub judice.
As custas das duas apelações são a cargo da apelada, por nelas ter decaído.
Lisboa, 22.10.2015

Jorge Leal
Ondina Carmo Alves
Olindo dos Santos Geraldes