Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
955/12.2YRLSB-7
Relator: ROQUE NOGUEIRA
Descritores: ARBITRAGEM VOLUNTÁRIA
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/11/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AOELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I – O art.4º, nº2, da Lei nº63/2011, contém uma disposição transitória, que regula a aplicação no tempo da LAV, admitindo-se aí que o novo regime seja aplicável aos processos arbitrais iniciados antes da sua entrada em vigor, desde que «ambas as partes nisso acordem ou se uma delas formular proposta nesse sentido e a outra a tal não se opuser no prazo de 15 dias a contar da respectiva recepção».
II - Quando o citado art.4º, nº2, alude ao acordo de ambas as partes e à proposta feita por uma delas à outra, limita-se a partir do princípio de que, na maior parte dos casos, são duas as partes que se defrontam.
III - O citado art.4º, nº2, não consente outra interpretação que não seja aquela segundo a qual só com a anuência, expressa ou tácita, de todas as partes é possível aplicar o novo regime da LAV ao presente processo arbitral, iniciado antes da sua entrada em vigor.
IV – No caso, inexistindo aceitação por parte de todas as demandadas, não se verifica a anuência de todas as partes no sentido da aplicação do novo regime, exigida pelo citado art.4º, nº2. Consequentemente, o regime a aplicar é o da Lei nº31/86, de 29/8, que se encontrava em vigor quando se iniciou o presente processo arbitral.
V – Não se aplica, pois, ao caso o disposto no art.17º, nº3, da Lei nº63/2011, que estabelece a possibilidade de ser o tribunal estadual, no caso, o Tribunal da Relação de Lisboa (art.59º, nº1, al.d), da Lei nº63/2011), a fixar os honorários ou despesas.
VI – E nem por analogia se aplica tal regime, pois que o recurso à analogia pressupõe a existência de um caso omisso (cfr. o art.10º, do C.Civil), não se vendo que, no caso, este exista, não se tratando, assim, de uma questão de integração de lacuna, mas de uma questão de aplicação da lei no tempo.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

1 – Relatório.
RP…, requereu a redução dos encargos que lhe foram fixados pelo Tribunal Arbitral, em processo em que são demandantes as sociedades AAB e APF, Ld.ª, alegando que, em 3/2/12, foi notificada da instauração de uma acção arbitral contra si e contra as sociedades LLA, S.A., EF, Sociedade Unipessoal, Ld.ª, e LTL.
Mais alega que, na sua carta de resposta a tal notificação, datada de 2/3/12, a requerente, sem prejuízo de considerar que não havia justificação para desencadear a dita acção e que a coligação era inadmissível, propôs que, se o processo arbitral prosseguisse, lhe fosse aplicado o regime constante da Lei da Arbitragem Voluntária, aprovado pela Lei nº63/2011, de 14/12.
Alega, ainda, que as demandantes responderam por carta datada de 4/4/12, negando a aplicação daquela Lei, não obstante não se terem pronunciado no prazo de 15 dias estabelecido no art.4º, nº2, do citado diploma, que aprovou a Lei da Arbitragem Voluntária (LAV), por nisso não terem acordado, ainda que tacitamente, todas as partes.
Alega, também, que, na acta de instalação do Tribunal Arbitral, datada de 24/4/12, este determinou que se aplicariam as normas imperativas decorrentes da Lei da Arbitragem Voluntária de 1986, tendo a requerente, em 30/4/12, pedido que os autos arbitrais fossem declarados extintos em relação a si própria, por inutilidade superveniente da lide, o que foi deferido, por acórdão intercalar de 24/5/12.
Alega, por último, que, em 2/7/12, foi proferido despacho pelo árbitro – presidente, fixando os encargos a suportar pela requerente em € 3.200,00, e que, tendo requerido a redução substancial deles, foi a mesma indeferida por despacho do árbitro – presidente de 7/7/12.
Conclui a requerente, pedindo a este Tribunal da Relação que os aludidos encargos sejam substancialmente reduzidos para montante considerado adequado.
Notificadas as demais partes na arbitragem e os membros do tribunal arbitral para dizerem o que se lhes oferecer, apenas estes responderam, concluindo não ser recorrível para o Tribunal da Relação o referido despacho de 7/7/12 e, de todo o modo, estar fundamentado o montante dos encargos fixado.
2 – Fundamentos.
Cumpre decidir, antes do mais, a questão de saber se, tendo o presente processo arbitral sido iniciado antes da entrada em vigor da LAV aprovada pela Lei nº63/2011, de 14/12, é ou não aplicável ao caso o novo regime.
A citada Lei aprovou a LAV, publicada em anexo e que dela faz parte integrante (cfr. o seu art.1º, nº1). A mesma entrou em vigor três meses após a data da sua publicação, ou seja, em 14/3/12 (cfr. o seu art.6º). Em princípio, só ficam sujeitos ao novo regime da LAV os processo arbitrais iniciados após aquela data (cfr. o seu art.4º, nº1).
No entanto, nos termos do nº2, do mesmo art.4º, «O novo regime é aplicável aos processos arbitrais iniciados antes da sua entrada em vigor, desde que ambas as partes nisso acordem ou se uma delas formular proposta nesse sentido e a outra a tal não se opuser no prazo de 15 dias a contar da respectiva recepção».
Vejamos, então, o que se passou no caso dos autos.
Conforme alega a própria requerente, o presente processo arbitral iniciou-se em 3/2/12, com a carta de instauração de litígio arbitral da mesma data, dirigida àquela e outras pelas demandantes AAB e APF, Ld.ª.
A requerente respondeu a essa carta, por carta datada de 2/3/12, onde, além de alegar a inexistência de litígio quanto a si, a impossibilidade de coligação de demandados e a não concretização do objecto do litígio, propôs, em qualquer caso, que se aplicasse ao litígio arbitral o regime constante da LAV aprovada pela Lei nº63/2011 (cfr. o documento de fls.11 a 15).
O aviso de recepção dessa carta foi assinado em 5/3/12, tendo as demandantes respondido por carta de 4/4/12, onde, além do mais, referem «No que respeita à aplicação da Lei nº63/2011, de 14 de Dezembro à presente instância arbitral, informo-o de que tal não pode verificar-se, porque nisso não convieram, mesmo tacitamente, todas as partes» (cfr. os documentos de fls.16 e de fls.18 a 21).
Consta da acta de instalação do Tribunal Arbitral, de 24/4/12, além do mais, no que respeita a regras de processo que «Sem prejuízo das normas obrigatórias constantes do modelo de arbitragem necessária descrito na Lei nº62/2011, de 12/12, nomeadamente, da faculdade de recurso da decisão final para o Tribunal da Relação, e de outras normas imperativas decorrentes da Lei da Arbitragem Voluntária (LAV) de 1986, aplicam-se as regras abaixo indicadas» (cfr. fls.31). Mais se consignou, nessa acta, quanto a regras subsidiárias, que «A LAV de 1986 aplica-se, quanto às normas não imperativas, a título subsidiário» (cfr. fls.34).
Por despacho do árbitro – presidente de 12/5/12, foi autorizada a coligação de demandadas, tal como proposta pelas demandantes (cfr. fls. 92 a 105).
Por acórdão intercalar de 24/5/12, o Tribunal Arbitral julgou extinta a instância contra a demandada, ora requerente, determinando que, por ainda não se encontrar estipulado o valor da acção, oportunamente seriam fixados os encargos a suportar por aquela (cfr. fls.58 a 60).
Por despacho do árbitro – presidente de 12/6/12, foi considerado o valor da arbitragem de € 2.500.000,00,o qual foi adoptado para efeitos de honorários e remuneração do secretário (cfr. fls.90 e 91).
Por despacho do árbitro – presidente de 2/7/12, fixaram-se os encargos a suportar pela demandada, ora requerente, em € 3.200,00 (cfr. fls.62 e 63).
Por considerar o montante dos encargos que lhe foi fixado manifestamente excessivo, a demandada requereu ao juiz – árbitro presidente uma redução substancial desses encargos, tendo este indeferido tal requerimento, por despacho de 7/7/12 (cfr. fls.66 a 68).
Notificada desse indeferimento, veio requerer a este Tribunal da Relação, em 12/7/12, a redução dos aludidos encargos.
Segundo a requerente, tendo proposto às demandantes que fosse aplicado o regime constante da LAV aprovada pela Lei nº63/2011 e não tendo aquelas respondido dentro do prazo de 15 dias estabelecido no art.4º, nº2, da citada Lei, é esta a aplicável no caso dos autos.
Mais alega que, nesse momento, ainda não tinha sido decidida a questão da coligação, tendo esta sido autorizada quando a requerente já tinha apresentado o seu requerimento de inutilidade superveniente da lide.
Alega, ainda, que, a entender-se que a Lei nº63/2011 não é aplicável directamente, sempre deveria aplicar-se, analogicamente, o regime dos arts.17º, nº3 e 59º, daquela Lei.
Entendem os árbitros que não foi obtida a anuência de todas as intervenientes para a aplicação da Lei Nova e, ainda, que não se poderá ancorar, à sombra da analogia, a integração da lei para a «criação» de um recurso que não estava previsto na lei antiga.
Vejamos.
Tudo tem a ver com o disposto no citado art.4º, nº2, da Lei nº63/2011, atrás transcrito. Trata-se de uma disposição transitória, que regula a aplicação no tempo da LAV. Assim, o nº1, do mesmo artigo, estabelece o princípio de que ficam sujeitos ao novo regime da LAV os processos arbitrais que se iniciem após a sua entrada em vigor. Aquele nº1, no entanto, ressalva o disposto nos números seguintes, designadamente, pois, o disposto no nº2, onde se admite que o novo regime seja aplicável aos processos arbitrais iniciados antes da sua entrada em vigor. Para o efeito, porém, exige-se que «ambas as partes nisso acordem ou se uma delas formular proposta nesse sentido e a outra a tal não se opuser no prazo de 15 dias a contar da respectiva recepção».
No caso dos autos, dúvidas não restam que o processo arbitral se iniciou antes da entrada em vigor da Lei nº63/2011. Não obstante, entende a requerente –demandada que se aplica o novo regime, já que, tendo formulado proposta nesse sentido às demandantes, estas não se opuseram no prazo de 15 dias a contar da recepção daquela proposta.
É certo que as demandantes não se opuseram no aludido prazo, uma vez que, tendo recebido a proposta em 5/3/12, apenas responderam em 4/4/12, embora referindo que não pode aplicar-se a Lei nº63/2011 «porque nisso não convieram, mesmo tacitamente, todas as partes».
Todavia, no caso dos autos, além das duas demandantes e da demandada, ora requerente, há mais três demandadas, como resulta do relatório do presente acórdão. Ora, quando o citado art.4º, nº2, alude ao acordo de ambas as partes e à proposta feita por uma delas à outra, limita-se a partir do princípio de que, na maior parte dos casos, são duas as partes que se defrontam. Ou seja, a regra no processo é a da dualidade das partes (demandante – demandada; requerente – requerida). No entanto, como é sabido, muitas vezes, em lugar de um só demandante e de um só demandado, o processo tem vários demandantes ou é proposto contra dois ou mais demandados.
Nestes casos, em vez da dualidade das partes, temos a pluralidade das partes, quer do lado activo (pluralidade activa), quer do lado passivo (pluralidade passiva), quer de ambos os lados (pluralidade mista). A pluralidade das partes, quanto à sua fonte, pode ser voluntária (casos de coligação ou litisconsórcio da iniciativa das partes), legal (se imposta por lei) ou provocada (quando o interveniente é chamado por alguma das partes).
No caso sub judice estamos, assim, perante uma pluralidade mista, já que a acção arbitral foi instaurada por duas demandantes contra quatro demandadas, entre as quais a ora requerente.
Deste modo, a circunstância de o citado art.4º, nº2, aludir apenas a duas partes não significa que não pretenda abranger todas as partes intervenientes no processo, como nos parece evidente. Só uma interpretação puramente literal e que não tenha, minimamente, em consideração o pensamento legislativo é que poderá justificar entendimento contrário (cfr. o art.9º, do C.Civil). Na verdade, que sentido teria, num processo com pluralidade de partes, exigir apenas o acordo, expresso ou tácito, de duas delas, para o efeito de aplicação do novo regime da LAV? Então e relativamente às partes que não dessem o seu acordo, expresso ou tácito, por não terem sido ouvidas sobre tal questão? Impunha-se-lhes esse regime, apesar de o não terem aceitado, ao arrepio do previsto na lei? Ou aplicar-se-iam no mesmo processo regimes diferentes, consoante as partes em causa?
É manifesto, pois, que o citado art.4º, nº2, não consente outra interpretação que não seja aquela segundo a qual só com a anuência, expressa ou tácita, de todas as partes é possível aplicar o novo regime da LAV ao presente processo arbitral, iniciado antes da sua entrada em vigor.
Ora, ainda que relativamente às demandantes se deva entender que, não tendo respondido à proposta da demandada – requerente no prazo de 15 dias a contar da respectiva recepção, ocorreu aceitação, valendo o silêncio como meio declarativo, já que esse valor lhe foi atribuído por lei (cfr. o art.218º, do C.Civil), relativamente às demais demandadas nada se sabe, uma vez que não consta que lhes tenha sido formulada qualquer proposta nesse sentido.
Logo, inexistindo aceitação por parte dessas demandadas, não se verifica a anuência de todas as partes no sentido da aplicação do novo regime, exigida pelo citado art.4º, nº2. Consequentemente, o regime a aplicar é o da Lei nº31/86, de 29/8, que se encontrava em vigor quando se iniciou o presente processo arbitral. Aliás, consta da acta de instalação do Tribunal Arbitral, de 24/4/12, que, no que respeita a regras do processo, se aplicam, além do mais, normas imperativas decorrentes da LAV de 1986, e que, quanto a regras subsidiárias, também se aplica aquela Lei.
E não se alegue que a questão da coligação ainda não tinha sido decidida, o que só veio a acontecer no momento em que a demandada já tinha apresentado o seu requerimento de inutilidade superveniente da lide. Na verdade, tendo a acção arbitral sido proposta contra as quatro demandadas, estas só deixariam de ser partes no processo se dele fossem excluídas. O que, aliás, não veio a acontecer. Antes pelo contrário, já que, por despacho de 12/5/12, foi autorizada a coligação de demandadas, tal como proposta pelas demandantes.
Assim sendo, não tem aplicação ao caso o disposto no art.17º, da Lei nº63/2011, designadamente o seu nº3, que prevê, no caso de caber aos árbitros a fixação do montante dos seus honorários e despesas, bem como a determinação do pagamento pelas partes de preparos por conta daqueles, que qualquer das partes possa requerer ao tribunal estadual competente a redução do montante de uns e de outros.
Talvez por isso, a requerente, quando foi notificada do despacho do árbitro – presidente, de 2/7/12, que fixou os encargos a suportar por ela em € 3.200,00, requereu àquele árbitro a redução substancial desses encargos, por considerar o respectivo montante manifestamente excessivo. Só que, tendo esse requerimento sido indeferido, por despacho de 7/7/12, veio a mesma demandada requerer a este Tribunal da Relação a referida redução, invocando o disposto nos citados arts.4º, nº2 e 17º, nº3, da Lei nº63/2011.
Porém, como já vimos, este último artigo, que estabelece a possibilidade de ser o tribunal estadual, no caso, o Tribunal da Relação de Lisboa (art.59º, nº1, al.d), da Lei nº63/2011), a fixar os honorários ou despesas, não se aplica ao presente processo, porque iniciado antes da entrada em vigor daquela Lei e atento o disposto no seu art.4º, nº2.
E não se diga que devia aplicar-se, analogicamente, o regime do citado art.17º, nº3. É que o recurso à analogia pressupõe a existência de um caso omisso (cfr. o art.10º, do C.Civil), não se vendo que este exista, nem, aliás, a requerente o aponta. Sendo que, como referem Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil, Anotado, vol.1º, 2ª ed., pág.47, o caso omisso é realidade diferente do simples caso não regulado. Ou seja, não é pela circunstância de a nova lei prever que seja o Tribunal da Relação a fixar os honorários ou despesas, na medida em que pode reduzir o respectivo montante fixado pelos árbitros, quando idêntica intervenção não se encontrava prevista na lei anterior, que se poderá concluir que estamos perante um caso omisso.
A questão que ora se coloca não tem a ver, pois, com a integração de qualquer lacuna da lei. Do que se trata, manifestamente, é de uma questão de aplicação da lei no tempo, expressamente regulada no citado art.4º, nº2, que deve ser interpretada no sentido atrás referido.
Haverá, deste modo, que concluir que não é este Tribunal da Relação competente para decidir sobre a redução do montante dos honorários ou despesas fixado pelos árbitros.
3 – Decisão.
Pelo exposto, indefere-se o requerido, condenando-se a requerente nas custas.
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Lisboa, 11.06.2013
Roque Nogueira
Pimentel Marcos
Tomé Gomes