Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
119-A/2001.L1-2
Relator: EZAGÜY MARTINS
Descritores: EXECUÇÃO
EXTINÇÃO DA EXECUÇÃO
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
IMPOSSIBILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
INSOLVÊNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/04/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Sumário: I - A impossibilidade superveniente da lide verifica-se quando por facto ocorrido na pendência da instância a pretensão do autor/exequente não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objecto do processo, e a inutilidade superveniente quando por via de um tal facto a pretensão do autor encontra satisfação fora do esquema da providência pretendida.
II – A declaração como extinta da execução prejudica o reconhecimento e graduação de créditos para serem pagos pelo produto dos bens penhorados na execução.
III - Tal declaração implica a desafectação daqueles bens da execução, mediante despacho judicial que terá lugar em todos os casos em que ocorra uma causa de extinção da execução diferente do pagamento posterior à venda executiva.
IV - Mas, assim, apenas desde que se trate, tal declaração da execução como extinta por impossibilidade superveniente da lide (no caso) de decisão transitada em julgado.
V - O C.I.R.E. apresenta uma configuração nova, suprimindo a anterior dicotomia recuperação/falência, deixando de ser possível, em face da decisão de declaração de insolvência, saber se os processos executivos podem ou não mais tarde ser reactivados.
VI – Havendo, em todo um leque de situações, a eventual oportunidade de prosseguimento das execuções que suspensas hajam sido, bem como dos incidentes e enxertos declarativos, que se não mostrem prejudicados pelas concretas vicissitudes do processo de insolvência.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª Secção (cível) deste Tribunal da Relação
I – Por apenso aos autos de execução para pagamento de quantia certa que B... move a J. S. & Filho, Lda., reclamaram créditos I..., Lda., o M.º P.º, C..., o Instituto de Segurança Social I.P., e o Banco ..., S.A.
Vindo a ser proferido, a folhas 533 a 534, despacho do seguinte teor:
(…) Aos autos foi junto ofício do processo n.º .... do 2º Juízo do Tribunal do Comércio de Lisboa, do qual resulta que a executada e reclamada foi declarada insolvente por sentença entretanto transitada em julgado.
*
Nos termos do disposto no art.º 88º, n.° 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, a declaração de insolvência obsta à instauração ou ao prosseguimento de qualquer acção executiva contra os insolventes, não havendo outros executados.
Daí que a execução a que estes autos corriam apensos tenha sido declarada extinta por impossibilidade superveniente da lide.
E a presente reclamação torna-se igualmente supervenientemente inútil, porquanto as reclamações de créditos não podem subsistir sem uma acção executiva, e porque o reconhecimento dos créditos nestes autos não dispensaria os reclamantes de os irem reclamar nos autos de insolvência.
Assim, nos termos da referida norma e do disposto no art.º 287º, alínea e) do Código de Processo Civil, julga-se extinta a instância, por impossibilidade e inutilidade superveniente da lide.”.

Inconformado recorreu o Exequente, formulando, nas suas alegações, as seguintes conclusões:
a) Face ao Exposto, o recorrente não se conforma que se decrete finda a reclamação de créditos, nos termos exarados no despacho de extinção;
b) Pretendendo, com o presente recurso, que seja revogada a decisão de decretar findo o apenso de reclamação de créditos e que seja decretada a sua suspensão;
c) Entendendo o Recorrente, com o devido respeito, que a norma aplicada não se encontra correctamente interpretada, uma vez que o artigo 88° do CIRE, determina a suspensão da instância executiva e consequentemente da reclamação de créditos, aplicando-se o regime dos artigos 276° e seguintes do Código de Processo Civil e não a sua extinção por inutilidade da lide, tal como consta do despacho de extinção da instância;
d) Entendendo também que, quando foi proferido o referido despacho, a Meretíssima Juiz não considerou a salvaguarda das garantias sobre imóveis detidas pelo Recorrente, não se pronunciando sobre uma questão que deveria analisar;
e) Sendo, assim, prematura a extinção dos presentes autos nos termos exarados;
f) Não competindo à Meretíssima Juiz da 9ª Vara Cível de Lisboa, no caso concreto, a extinção dos autos principais e consequentemente do presente apenso de reclamação de créditos, mas sim a suspensão dos mesmos;
Q) E, uma vez efectuada a apensação do processo principal e respectivos apensos aos Autos de insolvência em curso e transferida a competência jurisdicional do processo executivo para o Tribunal de Comércio, competirá ao Meretíssimo Juiz do Processo de Insolvência decidir em conformidade, ponderadas as circunstâncias concretas do processo.
h) O Recorrente requer também a revogação da condenação em custas relativamente ao requerimento de reforma do despacho, por ser um legítimo direito que assiste ao Recorrente de ver clarificadas as suas dúvidas interpretativas, sustentado numa decisão jurisprudencial e não um acto supérfulo e desnecessário ou que justifique            qualquer condenação em custas.”.

Requer a revogação da decisão recorrida e condenação em custas com as legais consequências, com o que será feita Justiça.”.

Não houve contra-alegações.

A folhas 556 foi proferido despacho pelo senhor juiz a quo, mantendo a decisão recorrida.

Por despacho do relator, de folhas 560-562 – não impugnado e nada impondo diversamente – decidiu-se não caber “apreciar, neste recurso de agravo, a referida condenação em custas, correlativa do indeferimento de requerimento de aclaração do despacho recorrido, que apresentado haja sido pelo ora Recorrente”, dando-se como certo que não terá sido requerida a reforma “proprio sensu” da decisão recorrida.

II- Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
Face às conclusões de recurso, que como é sabido, e no seu reporte à fundamentação da decisão recorrida, definem o objecto daquele – vd. art.ºs 684º, n.º 3, 690º, n.º 3, 660º, n.º 2 e 713º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil - é questão proposta à resolução deste Tribunal, a de saber não era caso de extinção da instância, nos declarados termos, antes se impondo a sua suspensão.

Com interesse emerge dos autos o que se deixou referenciado em sede de relatório.
E, ainda, que:
Da decisão que declarou extinta a execução respectiva, por ter sido a Executada declarada insolvente, recorreu o Exequente de agravo, tendo o processo subido a esta Relação e sendo distribuído em 13/01/2010.
*
Vejamos:
1. A decisão recorrida equaciona a superveniente inutilidade da “presente reclamação” por ter sido declarada extinta a execução respectiva, não podendo as reclamações de créditos “subsistir sem uma acção executiva, e porque o reconhecimento dos créditos nestes autos não dispensaria os reclamantes de os irem reclamar nos autos de insolvência.”.
Passando a julgar a instância extinta “por impossibilidade e inutilidade superveniente da lide.”.
Sendo que a impossibilidade superveniente se verifica quando por facto ocorrido na pendência da instância a pretensão do autor/exequente não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objecto do processo, e a inutilidade superveniente quando por via de um tal facto a pretensão do autor encontra satisfação fora do esquema da providência pretendida.
Como referem José Lebre de Freitas. João Redinha. Rui Pinto,[1] “Num e noutro caso, a solução do litígio deixa de interessar – além, por impossibilidade de atingir o resultado visado; aqui, por ele já ter sido atingido por outro meio.”.
2. Ora – e certo não caber aqui tomar posição na questão de saber se o art.º 88º, n.º 1, do C.I.R.E., ao definir os efeitos processuais da sentença de declaração de insolvência nas acções executivas, não impõe a extinção da execução, mas apenas a sua suspensão,[2] por se tratar de matéria objecto do recurso de agravo interposto pelo mesmo Recorrente da decisão que declarou extinta a execução respectiva – ponto é que o julgamento de uma execução como extinta, por impossibilidade superveniente da lide, não pode deixar de implicar a impossibilidade superveniente da lide no apenso de reclamação de créditos.
E por isso que extinta a execução…para além de deixar de haver executado, e, logo, requerido/reclamado, também queda prejudicado o objecto da reclamação de créditos, a saber, o reconhecimento e graduação de créditos para serem pagos pelo produto dos bens penhorados na execução, cfr. art.ºs 865º, n.º 1 e 868º, do Código de Processo Civil.
Certo que a sobredita declaração implica a desafectação de tais bens da execução, mediante despacho judicial que, como também assinala Lebre de Freitas,[3] terá lugar em todos os casos em que ocorra uma causa de extinção da execução diferente do pagamento posterior à venda executiva.
3. Mas, assim, como é óbvio, apenas desde que se trate, tal julgamento – melhor, declaração – da execução como extinta por impossibilidade superveniente da lide, de decisão transitada em julgado.
Por, enquanto aquele trânsito não ocorrer, não se formando caso julgado formal, e tendo o recurso interposto efeito suspensivo, não revestir o decidido força obrigatória dentro do processo, cfr. art.ºs 923º, 734º, n.º 1, alínea a), 736º, 740º, n.º 1 e 672º, do Código de Processo Civil.
Mas, como visto, foi interposto recurso da decisão que declarou extinta a execução por impossibilidade superveniente da lide, e, admitido aquele, subiu o processo já a esta Relação.
Posto o que aquando do julgamento como extinta da instância no apenso de reclamação de créditos não tinha transitado em julgado a decisão que declarou extinta a execução.
Nem havendo de resto notícia de que entretanto haja já sido julgado o recurso de agravo interposto de tal decisão.
Não colhendo pois esta primeira vertente da fundamentação do despacho impugnado.
4. Quanto à inutilidade superveniente da lide, no apenso de reclamação de créditos, decorrente do pretendido inconsequente do reconhecimento dos créditos, por ele não dispensar “os reclamantes de os irem reclamar nos autos de insolvência.”, trata-se, e salvo o devido respeito, de uma falsa questão.
E isto assim, sem deixar de se ter presente que nos termos do art.º 90º do C.I.R.E. os credores da insolvência apenas poderão exercer os seus direitos de conformidade com os preceitos daquele Código, durante o processo de insolvência.
Posto o que, nos termos da conjugação do n.º 1 com o n.º 3, 1ª parte, do art.º 128º, do C.I.R.E. todos os credores da insolvência, qualquer que seja a natureza e fundamento do seu crédito, devem reclamá-lo no processo de insolvência para aí poderem obter satisfação.
Sem dispensa da reclamação – como se corrobora na 2ª parte do citado n.º 3 do art.º 128º, disposição com lugar paralelo no art.º 188º, n.º 3, do CPEREF – dos créditos que tenham sido reconhecidos por decisão definitiva, se os seus titulares pretenderem ser pagos no processo, à custa da massa insolvente.[4]
Na verdade, desde que a decisão que julgou extinta a execução não era ainda transitada em julgado, aquando da prolação do despacho em causa, mantinha-se em aberto a possibilidade de, vindo a julgar-se não ser caso de extinção da execução, o apenso de reclamação de créditos manter utilidade.
Como ler-se pode no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março – diploma que aprovou o C.I.R.E. – “3 - O objectivo precípuo de qualquer processo de insolvência é a satisfação, pela forma mais eficiente possível, dos direitos dos credores. (…)
(…) Sendo a garantia comum dos créditos o património do devedor, é aos credores que cumpre decidir quanto à melhor efectivação dessa garantia, e é por essa via que, seguramente, melhor se satisfaz o interesse público da preservação do bom funcionamento do mercado (…)”.
Nesta linha, o C.I.R.E. apresenta uma configuração nova, suprimindo a anterior dicotomia recuperação/falência, deixando de ser possível, em face da decisão de declaração de insolvência, saber se os processos executivos podem ou não mais tarde ser reactivados.
A declaração de insolvência com carácter pleno implica a liquidação – em sentido amplo, abrangendo medidas recuperativas ou outras constantes de plano de insolvência aprovado – como se mostra acolhido nos artigos 156º e 192º, do C.I.R.E..
Em convergência, de resto, com o sentido também acolhido no art.º 2º, alínea c), do Regulamento (CE) nº 1346/2000 do Conselho, de 29 de Maio de 2000, disposição nos termos da qual “«Processo de liquidação», um processo de insolvência (…) que determine a liquidação dos bens do devedor, incluindo os casos em que o processo for encerrado através de concordata ou de qualquer outra medida que ponha fim à situação de insolvência, ou em virtude de insuficiência do activo (…)”.
Podendo o referido plano da insolvência contemplar ou não a faculdade de os credores executarem créditos após o cumprimento do plano, cfr. art.ºs 1º, 156º n.º 3 e 192º e seguintes, do C.I.R.E.
E prever a não exoneração do devedor da totalidade das dívidas da insolvência remanescentes, com execução, após o cumprimento do plano de insolvência, das dívidas em que não se verificou a exoneração, cfr. art.ºs 197º, alínea c), e 233º, n.º 1, alíneas c) e d), e,  quanto às pessoas singulares, o art.º 235º, todos do C.I.R.E.
Também podendo ocorrer que, já depois da declaração de insolvência, o processo seja encerrado “A pedido do devedor, quando este deixe de se encontrar em situação de insolvência ou todos os credores prestem o seu consentimento.”, cfr. art.º 230º, n.º 1, alínea c), do C.I.R.E.
Para além disso, o encerramento da liquidação não é prejudicado pelo facto de o devedor exercer actividade geradora de rendimentos que acresceriam à massa, no caso de o processo continuar, vd. art.º 182º, n.º 1, do C.I.R.E.
Podendo um tal património “superveniente” ser oportunamente objecto de execução pelos credores cujos créditos não foram satisfeitos na insolvência e em relação aos quais não houve exoneração.[5]
E havendo, em todas estas situações, a eventual oportunidade de prosseguimento das execuções que suspensas hajam sido…
Bem como, e logo, dos incidentes e enxertos declarativos, que se não mostrem prejudicados pelas concretas vicissitudes do processo de insolvência.
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Isto visto temos que não sendo equacionável – à data da prolação do despacho recorrido – a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide no apenso de reclamação de créditos, outra solução se impõe no tocante à situação daquele.
E sendo que o julgamento do recurso interposto da decisão que julgou extinta a execução irá ser determinante do destino a traçar aos autos de reclamação de créditos – conforme decorre do antecipado supra em II-2. e 3. – configura-se assim fundamento de suspensão da reclamação de créditos, nos quadros do art.º 279º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
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Com prejuízo, assim, da questão da alegada desconsideração, na 1ª instância, da “salvaguarda das garantias sobre imóveis detidas pelo Recorrente”.
Mas certo, em qualquer caso, que a declaração de insolvência não determina a extinção das garantias reais sobre imóveis sujeitos a registo integrantes da massa insolvente, acessórias de créditos sobre a insolvência, já constituídas e já registadas, cfr. art.º 97º, n.º 1, alínea c), do C.I.R.E.
Cabendo porém ao juiz da insolvência, e vindo a ser caso disso, o correspondente julgamento relativamente aos concretos bens imóveis que integrem a massa.
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Devendo pois, revogando-se o despacho recorrido, suspender-se os termos do apenso de reclamação de créditos, até que se mostre ter tido lugar o julgamento definitivo do recurso interposto da decisão que declarou extinta a execução.
Traçando-se então destino a tal apenso, em conformidade como o sentido de tal julgamento.
Isto, naturalmente, se outra circunstância, agora não considerada, se não vier a verificar, impondo solução diversa.
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 Procedendo nesta conformidade as conclusões do Recorrente.
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III- Nestes termos, acordam em conceder provimento ao agravo, e revogam o despacho recorrido, determinando a sustação dos termos do apenso de reclamação de créditos, até que se mostre ter tido lugar o julgamento definitivo do recurso interposto da decisão que declarou extinta a execução respectiva, traçando-se então destino a esse apenso, em conformidade com o sentido do julgado naquele outro recurso.
Sem custas, cfr. art.º 2º, alínea g), do, aqui imperante, Código das Custas Judiciais.
Lisboa, 2010-03-04
(Ezagüy Martins)
(Maria José Mouro)                                           
(Neto Neves)


[1] In “Código de Processo Civil, Anotado”, vol. 1º, Coimbra Editora, 1999, pág. 512.
[2] Nesse sentido podendo ver-se os Acórdãos desta Relação de 21-09-2006, proc. 3352/2006-7 (Caetano Duarte) e de 12/07/2006, processo 3314/2006-8 (Caetano Duarte); da Relação de Coimbra de 03-11-2009, proc. 68/08.1 TBVLF-B.C1 (Teresa Pardal); e da Relação de Guimarães de 05-06-2008, proc. 825/08-1 (Antero Veiga), todos in www.dgsi.pt         
[3] In “A acção executiva”, 2ª ed., Coimbra Editora, 1997, pág. 210.
[4] Assim, Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, Vol. I, Quid Juris, 2005, pág. 452.
[5] Assim, Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, Vol. II, Quid Juris, 2005, pág. 612.