Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
19/14.4PJSNT-D.L2-9
Relator: ORLANDO NASCIMENTO
Descritores: AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO
DIRECÇÃO EFECTIVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/26/2015
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECLAMAÇÃO PARA O PRESIDENTE DA RELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: A decisão que determina que os esclarecimentos adicionais a uma testemunha, a requerimento do mandatário do reclamante, sejam realizados por intermedio do tribunal, é uma decisão proferida pelo juiz no âmbito dos seus poderes de direção e disciplina da audiência, é uma decisão proferida no cumprimento do seu “dever de gestão processual” e é uma decisão dependente da livre resolução do tribunal, sendo por isso irrecorrível, nos termos do disposto no art.º 400.º, n.º 1, al. b), do C. P. Penal.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: A…, arguido nos autos, reclama, nos termos do disposto no art.º 405.º do C. P. Penal, do despacho proferido pelo Tribunal reclamado em 10/2/2015, o qual não admitiu, por irrecorribilidade da decisão, o recurso por ele interposto da decisão de 6/1/2015, proferida em audiência de julgamento e registada em ata, a qual determinou que os esclarecimentos adicionais a uma testemunha, a requerimento do mandatário do reclamante, fossem realizados por intermedio do tribunal, dizendo que esta decisão, contende com o contraditório e com os direitos do arguido e pedindo que o recurso seja mandado admitir uma vez que não é uma decisão de mero expediente.

O despacho reclamado, proferido em ata, a fls. 29-30, destes autos, não recebeu o recurso com fundamento, em síntese, em que a decisão que não admitiu o contrainterrogatório direto, mas apenas por intermédio do tribunal, a esclarecimentos de uma testemunha, pela defesa do arguido, depois de questionada a instâncias do tribunal, se configura como um ato dependente da livre resolução do tribunal, portanto irrecorrível, nos termos do disposto no art.º 400.º, n.º 1, al. b), do C. P. Penal.

Por sua vez, a decisão de 6/1/2015, de que o reclamante pretende recorrer, indeferiu a arguição de irregularidade/nulidade relativa à decisão que determinou a formulação de novas questões através do tribunal, com fundamento em que o mandatário do reclamante exerceu o direito de contrainterrogar diretamente a testemunha, nos termos do disposto no art.º 348.º, n.º 4, do C. P. Penal e só relativamente a esclarecimentos adicionais o tribunal determinou que fossem feitos através de si próprio, usando da faculdade prevista no n.º 5 do art.º 348.º, do C. P. Penal.

Conhecendo.

O cerne da presente reclamação, tal como resulta do confronto dos seus próprios termos com as várias decisões que a precederam, situa-se em saber se o tradicional instituto processual que consiste em o tribunal de julgamento disciplinar a intervenção dos advogados, tendo em vista o regular desenvolvimento da audiência, determinando-lhes que as perguntas a um interveniente processual sejam feitas através do tribunal/juiz, como medida de disciplina da audiência, depende da livre resolução do tribunal, como decidiu o tribunal reclamado, ou se o mesmo tem outra natureza, e como tal deve obedecer ao principio geral de recorribilidade das decisões judiciais, consagrado no art.º 399.º do C. P. Penal.

Vejamos.                                                          

O vetusto procedimento que consiste em determinar que as perguntas a um interveniente processual, em vez de serem feitas diretamente por advogado, sejam feitas através do juiz, não tem no Código de Processo Penal, nomeadamente no seu art.º 348.º, uma previsão autónoma e direta, como antes acontecia no art.º 437.º do C. P. Penal de1929, o qual dispunha que “O presidente do tribunal obstará a que se façam às testemunhas perguntas sugestivas, capciosas, impertinentes ou vexatórias, advertindo os que as fizerem e, se insistirem, pondo termo ao interrogatório, ou determinando que as perguntas sejam por ele feitas”, mas o mesmo tem consagração expressa no art.º 516.º, n.ºs 3 a 5, do C. P. Civil, que é aplicável ao Processo Penal, por força do disposto no art.º 4.º do C. P. Penal.

Os n.ºs 3 a 5, do art.º 516.º, do C. P. Civil, dispõem que:

“3 — O juiz deve obstar a que os advogados tratem desprimorosamente a testemunha e lhe façam perguntas ou considerações impertinentes, sugestivas, capciosas ou vexatórias.

4 — O interrogatório e as instâncias são feitos pelos mandatários das partes, sem prejuízo dos esclarecimentos pedidos pelo juiz ou de este poder fazer as perguntas que julgue convenientes para o apuramento da verdade.

5 — O juiz avoca o interrogatório quando tal se mostrar necessário para assegurar a tranquilidade da testemunha ou pôr termo a instâncias inconvenientes”.

Em complemento do princípio geral de que as decisões judiciais são recorríveis, consagrado no art.º 399.º do C. P. Penal, o art.º 400.º, do mesmo código enumera, genericamente, algumas das decisões que não admitem recurso (n.º 1, als. a) a f)) e estabelece em norma aberta a possibilidade de serem criadas outras irrecorribilidades (n.º 1, al. g)).

O primeiro grupo destas decisões irrecorríveis é constituído pelos denominados “despachos de mero expediente” (al. a)) e o segundo grupo é constituído pelas “decisões que ordenam atos dependentes da livre resolução do tribunal”.

O Código de Processo Penal não identifica nem umas nem outras, pelo que na sua delimitação não podemos deixar de nos socorrer do disposto no Código de Processo Civil, aplicável ex vi art.º 4.º, do C. P. Penal.

Nos termos do disposto no art.º 152.º n.º 4, 1.ª parte, do C. P. Civil, os despachos de mero expediente são os que se destinam “…a prover ao andamento regular do processo, sem interferir no conflito de interesses entre as partes”.

Nos termos da 2.ª parte do mesmo preceito, os despachos “…proferidos no uso legal de um poder discricionário…” são “…os despachos que decidam matérias confiadas ao prudente arbítrio do julgador”, que o mesmo é dizer-se ““decisões que ordenam atos dependentes da livre resolução do tribunal” (art.º 400.º, n.º 1, al. b), do C. P. Penal).

Como é pacífico nos autos, a decisão de que o reclamante pretende recorrer não tem a natureza de despacho de mero expediente, pelo que a questão que temos presente consiste, tao só, em saber se essa decisão ordenou ato dependente da livre resolução do tribunal.

O art.º 323.º, do C. P. Penal, sob a epígrafe “Poderes de disciplina e de direcção”, dispõe que:

 “Para disciplina e direção dos trabalhos cabe ao presidente, sem prejuízo de outros poderes e deveres que por lei lhe forem atribuídos:

f) Garantir o contraditório e impedir a formulação de perguntas legalmente inadmissíveis;

g) Dirigir e moderar a discussão, proibindo, em especial, todos os expedientes manifestamente impertinentes ou dilatórios”.

Tal como resulta dos autos, a decisão em causa foi proferida no âmbito dos “Poderes de disciplina e de direção” cometidos ao tribunal, propondo-se “Dirigir … a discussão, proibindo, …os expedientes manifestamente impertinentes ou dilatórios”, como previsto na al. g), do art.º 323.º do C. P. Penal.

Não obstante esta integração da decisão no âmbito dos poderes de disciplina e direção da audiência, cometidos ao tribunal, subsiste a questão de sabermos se o exercício de tais poderes é sindicável pela via de recurso ou se tal não acontece porque esse mesmo exercício se deve compreender no conceito de atos dependentes da livre resolução do tribunal.

Socorrendo-nos, mais uma vez da aplicação subsidiária do C. P. Civil, constatamos que o n.º 2, do art.º 630.º do C. P. Civil, para além dos despachos de mero expediente e dos despachos proferidos no uso legal de um poder discricionário, irrecorríveis nos termos do n.º 1 do mesmo preceito, exclui também da possibilidade de recurso três outros grupos de decisões, o primeiro dos quais é constituído pelas “…decisões de simplificação ou de agilização processual, proferidas nos termos previstos no n.º 1 do artigo 6.º…”, ou seja, pelas decisões proferidas pelo juiz, no cumprimento do seu “dever de gestão processual”, nos termos do qual “Cumpre ao juiz …dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório e, ouvidas as partes, adotando mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável”.

Ora, em face do disposto em tais preceitos, podemos com segurança concluir que a decisão que determina que os esclarecimentos adicionais a uma testemunha, a requerimento do mandatário do reclamante, sejam realizados por intermedio do tribunal, é uma decisão proferida pelo juiz no âmbito dos seus poderes de direção e disciplina da audiência, é uma decisão proferida no cumprimento do seu “dever de gestão processual” e é uma decisão dependente da livre resolução do tribunal, sendo por isso irrecorrível, nos termos do disposto no art.º 400.º, n.º 1, al. b), do C. P. Penal.

Com efeito, apontam neste sentido a ratio legis do instituto e o equilíbrio dos valores em presença.

Ao contrário do expendido pelo reclamante, a formulação de perguntas adicionais através do tribunal não contende com o exercício do contraditório na produção de prova pessoal, com as garantias de defesa do arguido ou com outros valores juridicamente protegidos, antes assegurando a tranquilidade da testemunha, a disciplina da audiência, permitindo a celeridade processual necessária à administração da justiça, configurando um exercício de autoridade por parte do juiz, para a qual o mesmo se encontra tecnicamente preparado.

A recorribilidade de tal decisão, para além, de não corresponder a qualquer valor digno de proteção jurídica, constituiria um grave entrave à disciplina da audiência, à celeridade processual e à autoridade do juiz necessária para assegurar a realização de ambos esses desideratos.

Improcede, pois, a reclamação, nos termos e para os efeitos previstos no art.º 405.º, n.º 4, do C. P. Penal.

 Custas do incidente pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em ½ UC.

Notifique.

Lisboa, 26 de março de 2015.

(Orlando Nascimento – Vice-presidente)