Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3846/19.2JFLSB-B.L1-9
Relator: FILIPA COSTA LOURENÇO
Descritores: ARQUIVAMENTO DO INQUÉRITO PELO MºPº
APREENSÃO DE BENS
DESTINO DOS BENS APREENDIDOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/05/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: I-O  MºPº  em inquérito crime que arquivou, onde se  investigava um crime contra o arguido não pode perpetuar a apreensão do numerário apreendido a este no âmbito deste mesmo inquérito, já arquivado  para o manter “ congelado” e apreendido, logo indisponível para o arguido com o fito de, no futuro esta quantia transitar para um outro processo de natureza contraordenacional, ainda não  instaurado contra o arguido, ou seja inexistente à data de tal decisão;
II-Não pode o numerário apreendido neste inquérito ficar, como dizer, à espera, e “congelado” para ser transferido depois para outro processo com a natureza contraordenacional;
II-Acontece que com tal decisão o Ministério Público faz recair sobre o arguido o ónus de provar a origem desse dinheiro noutro conspecto jurídico ainda incerto e inexistente;
 IV- Ora, além de sobre arguido não recair o ónus de provar o que quer que seja, goza o mesmo da presunção de inocência contida no artº 32º nº 2 da CRP, bem como da presunção ínsita no artigo 1268° do Código Civil.  Entendimento diferente só poderia ser avançado à revelia do artigo 32.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, que visa, naturalmente, a tutela preventiva dos direitos fundamentais diretamente envolvidos na prática de atos suscetíveis de colidir com os direitos fundamentais dos cidadãos entre os quais se insere o direito de propriedade, e não é um despacho judicial posterior proferido devido à acção persistente do arguido que o pode legitimar, por inexistir qualquer base legal para tal “ facere” o qual, só passado algum tempo e num momento em que o direito já foi violado só se mostra apenas viável assegurar a reparação possível daquela acção pretérita levada a cabo pelo MºPº.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM EM CONFERÊNCIA, NA 9ª SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I-RELATÓRIO
Nos autos de inquérito com o nº 3846/19.2JFLSB-B provenientes do Tribunal Central de Instrução criminal TCIC-JUIZ 6, em que é arguido AA, devidamente identificado nos autos veio este interpor recurso de um despacho proferido em sede de inquérito pelo MM JIC, o qual foi proferido a fls. 56 (vide-destes autos), o qual tem o seguinte teor:
"(...). Dando-se por reproduzidos os fundamentos que constam da promoção que antecede, e uma vez que os valores monetários apreendidos foram colocados à ordem do processo contra ordenacional, que corre seus termos, indefere-se a requerida restituição, por falta de fundamento legal.
LX,22.12.2021 (...)"
Esta promoção para qual o despacho recorrido remete, encontra-se a folhas 55 e 55v destes autos.
No entanto esta promoção foi só  proferida após vários requerimentos do arguido no sentido de ver-lhe ser restituido o numerário apreendido na sequência do primogénito arquivamento do inquérito criminal que contra o arguido AA, foi instaurado nestes autos e depois arquivado ( e que inclui até um recurso de um despacho/promoção do MºPº…), despacho de arquivamento esse que, na génese, determinou a fls 23 v. claramente que, e sem existir qualquer processo de qualquer espécie, o numerário apreendido ao arguido, continuasse apreendido sem mais com vista a um futuro processo de contraordenação que viria a ser instaurado.
Então e não se conformando com o despacho recorrido, o arguido AA dele veio recorrer a fls. 2 a 4  motivando e concluindo o seguinte:
- Com o douto despacho de arquivamento todas as medidas de coacção e apreensões nos autos extinguiram-se esgotando o poder jurisdidicional do Tribunal.
-Não existe nenhum suporte legal para a manutenção da apreensão dos valores monetários dos presentes autos quando o Tribunal faz depender essa manutenção da apreensão para um futuro acto a praticar pela AT com a elaboração de pelo menos um auto de noticia- havendo incorrecta aplicação do disposto nos artigos 73º e 108º nº 8 RGIT.
Assim requer-se a vossas excelências que só o douto suprimento de vossas excelências concedam provimento ao recurso e em consequência disso sejam restituidos os valores monetários apreendidos nos presentes autos ao recorrente.
O recurso foi admitido através de despacho judicial .
O Ministério Público veio então apresentar a sua resposta a fls.  5 e seguintes, concluindo dever ser julgado improcedente o recurso interposto por no seu entender a decisão decorrer necessáriamente das normas constantes constantes dos artigos  108º nº 6, 28º nº 2 e 73º nº 1 todos do RGIT e artº 38º nº 1 e 3 do RGCO ex vi artº 3º al b) do RGIT devendo manter-se  o despacho recorrido nos seus termos.
O processo subiu para o Tribunal da Relação de Lisboa.
O digno Procurador Geral adjunto proferiu parecer, pugnando pela improcedencia do recurso e dizendo:
 PARECER (art 416º,1, CPP)
AA, arguido no inquérito 3846/19.2JFLSB, recorre do douto Despacho do Mmº JI, que acolheu a decisão do MºPº de manter a apreensão de montante a si encontrado, no Aeroporto de Lisboa, no montante de 251.850,00€, com a concomitante determinação de que esse valor fosse transferido para o processo contra-ordenacional aduaneiro, instaurado com base em oportuna certidão extraída daqueles autos criminais, ou seja, passou a ficar à ordem do novo processo a cargo da AT.
Entende a tese recursória que, findo o processo-crime, foi extinto o seu estatuto (de arguido) e, assim, quaisquer limitações conexas com essa (ex) qualidade , numa decorrência lógica, cremos ser essa a sua sustentação, do que se dispõe nos arts 57º,2, “a contrario”, 214º,1,a) e 186º,1, CPP.
Naqueles autos de Inquérito o aí (ex) arguido, agora recorrente, foi investigado por eventual prática dos crimes de fraude fiscal agravada e de branqueamento (arts 103º/104º, RGIT, e 368-A, 1 e 2, CP, respectivamente), além de hipotética contra-ordenação aduaneira (art 108º,6, RGIT) culminando com o encerramento desses autos, por arquivamento da vertente criminal (art 277º,2, CPP), antecedido, porém, por segmento decisório que acautelou o indiciado preenchimento daquele remanescente ilícito contra-ordenacional aduaneiro (art 108º,6, RGIT), mantendo a “cativação processual” daquele quantitativo, como meio de prova, nessoutra sede, e pela previsibilidade do seu perdimento a final (arts 73º,1 e 28º,2 e 3, RGIT).
Dito doutro modo, como esclarecidamente evidencia o Exmº PR respondente, “ad nauseam” diríamos, e de forma tão exuberante quanto fundamentada, tendo cessado, embora, os pressupostos para o procedimento conjunto, conexo, criminal e contra-ordenacional, da responsabilidade da Autoridade Judiciária (art 38º,1, RGCO, aplicável, “ex vi” do art 3º,b), RGIT), mantém-se a responsabilidade sobrante, contra-ordenacional, pelo que, nos exactos termos do dispositivo legal, “… o MºPº remeterá o processo à autoridade administrativa competente” (art 38º,3, RGCO).
Significa que não se trata dum processo novo, a iniciar, mas do mesmo, a ser liderado ou titulado pela entidade administrativa.
É, pois, inquestionável a irrepreensibilidade procedimental seguida pelo MºPº, validada judicialmente, pois que doutro modo constituiria denegação de justiça, da autoria do Sr Magistrado titular do Inquérito (art 369º, CP), o que foi pertinentemente prevenido, com absoluta lisura e suporte legal, imerecendo a douta Decisão recorrida, que lhe deu cobertura, quaisquer críticas.
A eventual restituição, a ocorrer, competirá na nova sede investigatória, para onde se realizou a transferência daquele meio de prova (pecuniário), não aqui, esgotada a intervenção da Autoridade Judiciária (MºPº), com o encerramento ordenado, a final.
Propugna-se, desta sorte, pela homologação do judiciosamente decidido pelo Mmº JI.
(…)
Foi cumprido o artº 417º nº 2 do CPP.
O arguido silenciou.
Efectuado o exame preliminar, determinou-se que o presente recurso fosse julgado em conferência.
Colhidos os vistos legais foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º 3, alínea c) do mesmo diploma, cumprindo agora apreciar e decidir.
Poderes de cognição do tribunal “ad quem” e delimitação do objecto do recurso.
FUNDAMENTAÇÃO
De acordo com o disposto no artigo 412° do Código de Processo Penal e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de Outubro de 1995, o objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
Por outro lado, e como é sobejamente conhecido, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões da respectiva motivação (art. 412.º, n.º 1 do CPP).
Então o objecto do recurso apresentado pelo arguido, o qual é delimitado pelo teor das suas conclusões, suscita o conhecimento da seguinte questão:
-Com o douto despacho de arquivamento todas as medidas de coacção e apreensões nos autos extinguiram-se esgotando o poder jurisdicional do Tribunal. Não existe nenhum suporte legal para a manutenção da apreensão dos valores monetários dos presentes autos quando o Tribunal faz depender essa manutenção da apreensão para um futuro acto a praticar pela AT com a elaboração de pelo menos um auto de noticia- havendo incorrecta aplicação do disposto nos artigos 73º e 108º nº 8 RGIT.
Conhecendo-se dir-se-á:
- No mais diremos e focando-nos no invocado pela recorrente:
Vejamos:
Antes de mais no processo penal, o Juiz de Instrução Criminal, intervém como verdadeiro garante dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
Nessa medida, na fase de inquérito, cuja direção cabe ao Ministério Público, o Juiz de Instrução tem competência exclusiva para a prática de determinados atos e para ordenar ou autorizar a prática de outros, nos termos previstos, respetivamente, nos artigos 268º, nº. 1 e 269º, nº. 1, ambos do Código de Processo Penal, intervindo, ainda, noutras situações não especificadas nas als. a) a e) dos enunciados normativos, como decorre do disposto na respetiva al. f) e do artigo 17º do C.P.P.
Para além da competência para os actos especificamente previstos da lei, entendemos que o juiz de instrução criminal tem competência para se pronunciar e decidir sobre a generalidade das matérias que contendam com os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, direta ou indiretamente envolvidos no processo, que é exactamente o caso dos autos.
Nestes termos, relativamente à questão “sub judice” o que temos verdadeiramente aqui é uma escalada de situações processuais que se foram desenvolvendo ao longo dos autos e que terão forçosamente de ser aqui esmiuçadas, sendo que estas constituem de forma simples o desenvolvimento dos autos e que culminaram no despacho recorrido, o qual por si já carrega um pretérito processual “sui generis” podendo marcar-se o seu inicio com o despacho de arquivamento do inquérito ( vide fls. 23 e seguintes), no qual o MºPº determinou que a quantia de €251 850,00 ( ficasse em rigor fora da disponibilidade do arguido após o arquivamento do processo crime) e a extração de certidões para instauração de um processo contraordenacional, e logo, que tal quantia passe a estar apreendida à ordem do processo contraordenacional que venha a ser instaurado.
Ou seja e com as devidas cautelas, afirma-se que tal quantia apreendida ao arguido ficou ou continuou “apreendida” após o arquivamento do inquérito, em despacho prévio, note-se, para ser catapultada no futuro para outro processo que era inexistente à data de tal decisão.
Será que tal limbo é exequível? Será tal salto para o futuro, uma verdadeira queda num precipício dizemos nós, legalmente consentida e respaldada por normas que o conformem e consintam?
É certo que o nosso regime legal pode em certas situações suprimir e comprimir os direitos, liberdades e garantias de um arguido (mas cremos que não quando colocado nesta situação inusitada), nomeadamente do seu direito à propriedade privada, pelo menos ao suprimir o direito de este poder vir a recorrer judicialmente da decisão que tiver sido proferida nesta sede, que ficaria vedada, nesta situação. Efectivamente após o despacho de arquivamento, é patente que este não poderia recorrer para um Tribunal superior e eximimo-nos de esmiuçar tal conspecto por ser por demais evidente.
Poderia tão só sim reclamar hierarquicamente.
Face a tal quadro, o arguido veio atravessando vários requerimentos nos autos  com vista a anular tal decisão ( até com a dedução de um recurso vide fls. 43, de uma promoção/ despacho do MºPº), o que veio enfim, então a obrigar o MºPº através da promoção de folhas 55 e 55v. de submeter tal “confisco” à apreciação do poder Judicial. Esse despacho judicial manuscrito remeteu para a promoção e deferiu o requerido. É deste despacho que o arguido vem recorrer.
No entanto despiciendo não será de enfatizar que entretanto o tempo passou…
Ou seja, aquando da data do arquivamento do inquérito não havia processo nenhum que possibilitasse a transferência do dinheiro apreendido, enquanto que pelo inexorável decurso do tempo, parece que à data da promoção de folhas 55 e 55 v. já existiria um processo contraordenacional instaurado contra o arguido AA à ordem do qual passou a estar apreendida ou transferida a quantia de € 251 850,00 proveniente do inquérito crime arquivado ( sem se beliscar aqui o artº 38º do RGCO, o qual inequívoco na sua interpretação é realmente omisso quanto ao tema sub judice / e já referido).
Desconhecemos por completo a natureza de tal processo salvo o teor de fls 44,45 e 46, ou seja o nº de processo e a transferência do numerário para o mesmo, como bem se pode constatar a folhas  49, a qual foi feita em 29/11/2021.
Mas circunscrevendo-nos ao que interessa, pois a questão vem do passado, é que o despacho do MºPº a determinar o trânsito do numerário apreendido para um processo que na altura não existia, tem a data de 21/09/2021.
O despacho recorrido é datado de 22/12/2021 (e a promoção para o qual remete tem aposta a data de 20.12.2021).
Ou seja durante cerca de dois meses o numerário apreendido neste inquérito ficou, como dizer, em fila de espera, ou melhor “imutavelmente congelado” para ser transferido depois para outro processo com a natureza contraordenacional, como atrás se fez referência.
Acontece que com tal decisão o Ministério Público faz recair sobre o arguido o ónus de provar a origem desse dinheiro noutro conspecto jurídico. Ora, além de sobre arguido não recair o ónus de provar o que quer que seja, goza o mesmo da presunção de inocência bem como da presunção ínsita no artigo 1268° do Código Civil. O artigo 1286° do Código Civil estabelece uma presunção de titularidade do direito fundada na posse, presunção que só cede quando existir registo anterior ao início da posse. Considerando que era sobre a esfera de disponibilidade fática do arguido que o dinheiro apreendido se encontrava, oculto no seu vestuário/casaco quando pretendia embarcar a bordo de uma aeronave, presume-se que esse dinheiro lhe pertence. Neste sentido vide o Ac do  TRP de 5-11-2014 “Tratando-se de bens móveis não sujeitos a registo cuja proveniência ilícita não ficou demonstrada devem ser restituídos a quem foram apreendidos como seu possuidor não existindo nenhum impedimento à eficácia da presunção da titularidade do direito por parte do seu possuidor, prevista 170 art° 1268° CC.”
Então para uma melhor compreensão da problemática da apreensão de bens versus a desnecessidade dessa mesma apreensão e consequente restituição, podemos afirmar que, em nosso entender, prima facie, existem no processo três momentos diferentes e oportunos do ponto de vista processual, que justificam e impõem uma apreciação dessa situação jurídica dos bens apreendidos: na acusação, na decisão instrutória e na sentença.
Assim, a acusação – ou arquivamento -, será o primeiro momento em que deverá ser feita a triagem, pelo Ministério Público – autoridade judiciária titular da investigação e do inquérito -, dos bens apreendidos, qualificando-os de origem ilícita ou lícita ou uns de ilícita e outros de lícita.
Os de origem ilícita são aqueles que constituem ou deverão constituir, o objecto da acusação.
Os de origem lícita são aqueles em relação aos quais não se verificam ou deixaram de se verificar os pressupostos ou necessidade da apreensão nos autos em questão e, consequentemente, deverão ser restituídos a quem de direito, “status quo” que não se verificou em qualquer fase destes autos mesmo quando precisou da intervenção do JIC.
No entanto tal estado de coisas não tem razão de ser, é falho de suporte e pressupostos legais, e atenta de forma grave contra os direitos liberdades e garantias de qualquer cidadão, neste caso o arguido  AA.
Concretamente as normas invocadas pelo Ministério Público na sua resposta ao recurso são completamente incipientes por não conferirem cobertura à acção levada a cabo pelo MºPº e objecto do presente recurso, ou seja, primeiro a retenção por tempo indeterminado do dinheiro apreendido e depois o seu trânsito para ficar apreendido à ordem de outro processo.
Efectivamente cotejadas as normas legais que serviriam de suporte legal e invocadas pelo MºPº, ou seja, os artigos 108º nº 6, 28º nº 2 e 73º nº 1 todos do RGIT e artº 38º nº 1 e 3 do RGCO ex vi artº 3º al b) do RGIT, deles nada óbviamente retiramos qualquer suporte legal para “tal facere” nas duas fases, quer antes, quer depois do despacho recorrido.
Por conseguinte, merece censura o despacho recorrido, ao chancelar a promoção que o antecedeu, que permitiu a não entrega do numerário apreendido ao AA e note-se até em despacho prévio ao arquivamento do inquérito (mas inserido no mesmo despacho sequencialmente….), até porque atente-se a mera detenção não equivale à prova da propriedade legítima, muito menos a ser debatida e julgada noutro processo, postergando-se desta forma simplista e anacrónica o principio da presunção da inocência artº 32º nº 2 da CRP.
Inexiste qualquer legitimidade ao MºPº para perpetuar a apreensão do numerário apreendido (pois não se trata de uma caução económica nem um arresto preventivo…).
As características da apreensão enquanto garantia patrimonial da perda das vantagens do crime – ou seja, a sua desformalização, a dispensa de um juízo indiciário e a atribuição da competência para a sua determinação à entidade acusatória potenciam, deste modo, uma maior desconsideração das garantias e direitos de defesa. Asserção cujo acerto é confirmado pela realidade judiciária, onde abundam os casos de eternização de apreensões decididas sem a formulação de um juízo sólido de indiciação da responsabilidade criminal e/ou de receio de dissipação dos bens.
Aliás continua a ser o tópico da competência para a prática do ato de apreensão enquanto garantia patrimonial que, suscita os mais profundos e dificilmente ultrapassáveis problemas de conformidade constitucional e que no caso dos autos se pretende perpetuar e fazer transitar para outro processo, os quais dizemos já não são legalmente permitidos por falhos estarem de qualquer suporte legal pelo menos que tivessem sido invocados para legitimar a continuação em branco da apreensão e depois o seu destino/trânsito para outro processo e ao que parece com outras características que não as do processo crime.
Entendimento diferente só poderia ser avançado à revelia do artigo 32.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, que visa, naturalmente, a tutela preventiva dos direitos fundamentais diretamente envolvidos na prática de atos susceptiveis de colidir com os direitos fundamentais dos cidadãos entre os quais se insere o direito de propriedade. Propósito que nunca será cabalmente assegurado com uma intervenção do juiz de instrução subsequente ao ato. Um momento em que o direito já foi violado e em que sobra apenas viável assegurar a reparação possível.
O juiz de instrução, em sede de inquérito, apresenta-se “como entidade exclusivamente competente para praticar, ordenar ou autorizar certos atos processuais singulares que, na sua pura objetividade externa, se traduzem em ataques a direitos, liberdades e garantias das pessoas constitucionalmente protegidos” (FIGUEIREDO DIAS, “Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal”, Centro de Estudos Judiciários, 1988, página 16).
Estamos perante uma ingerência claramente gravosa no direito de propriedade, que, sem limite temporal definido, priva o proprietário não só do direito de disposição, antes inviabiliza, identicamente, o uso e fruição do bem. Tudo a contribuir, como tal, para a consideração de que a apreensão para eventual garantia patrimonial futura noutra órbita jurídica surge, efetivamente, como norma restritiva de direitos.
O recorrente, a quem o dinheiro foi apreendido e sem que outrem se tenha arrogado a titularidade do mesmo e sem que o MºPº tenha concluído que a sua proveniência seja ilícita e criminalmente punível, pois até arquivou o inquérito, e tendo em conta o disposto no artº 1268º do C.Civil que dispõe que “O possuidor goza da presunção da titularidade do direito excepto se existir, a favor de outrem, presunção fundado em registo anterior ao início da posse.”Ora não tendo ficado demonstrada nos presentes autos a proveniência ilícita da quantia  em dinheiro, estamos perante bens móveis não sujeitos a registo, e que o mesmo era detido pelo arguido, não se vêem razões que afastem o funcionamento da presunção legal, pois que, quem tem as coisas na sua esfera de disponibilidade fáctica desfruta das qualidades e utilidades que elas lhe proporcionam e, portanto, exerce sobre elas uma actividade correspondente ao conteúdo de um direito real e, como tal, tem a posse dessas coisas.
E segundo os Prof. Pires de Lima e Antunes Varela, “O valor teórico e prático destas presunções resulta do disposto no artº 350º nº1: «quem tem a seu favor a presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz» tem no campo da posse uma relevância prática muito grande, pois é, em regra, bastante difícil, quando não impossível (o que acontece normalmente em relação às coisas móveis), a prova directa da propriedade.” É certo que o processamento da restituição de bens segue ainda as regras do processo penal, no qual inexistem ónus de prova.
Nestes termos e face ao atrás exposto o despacho recorrido terá de ser revogado e concomitantemente restituído o numerário apreendido nestes autos no alor de  €251.850,00 ao ora recorrente.
Tendo em conta o atrás explanado revoga-se o despacho recorrido ordenando-se a restituição do numerário apreendido no montante de €251.850,00 ao arguido AA, e mesmo que esteja agora apreendido à ordem de outro processo (vide contraordenação 015059221 vide a folhas 45/46- contraordenação 0150592/21), devendo neste caso o Tribunal “a quo” encetar as diligências necessárias para a restituição do numerário ao arguido, face à revogação do despacho recorrido.
Julga-se assim provido na integra o recurso interposto pelo arguido.

DISPOSITIVO
Nestes termos e pelo exposto, acordam as Juízas deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar provido o recurso interposto pelo recorrente AA e consequentemente revoga-se o despacho recorrido, ordenando-se que seja restituído ao arguido a quantia em numerário que lhe foi apreendida nestes autos no valor de €251 850,00 ( duzentos e cinquenta e um mil e oitocentos e cinquenta e um euros) mesmo que esteja agora apreendido à ordem de outro processo, devendo neste caso o Tribunal “a quo” encetar as diligências necessárias para a restituição do numerário ao arguido, face à revogação do despacho recorrido nestes autos.
Não é devida tributação
Notifique-se e D.N.

Lisboa, 5 de Maio de 2022
Filipa Costa Lourenço
Cristina Santana