Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
16510/18.0T8SNT.L1-7
Relator: CRISTINA COELHO
Descritores: LOCATÁRIOS CÔNJUGES
ACTUALIZAÇÃO DE RENDA
COMUNICAÇÃO
OPOSIÇÃO À RENOVAÇÃO
ABUSO DO DIREITO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/05/2020
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1. Se o local arrendado constituir casa de morada de família, a norma a aplicar é o art. 12º do NRAU, devendo as comunicações relativas a atualização de renda e transição para o NRAU por iniciativa do senhorio ser dirigidas a cada um dos cônjuges, independentemente de o direito do arrendatário se ter, ou não, comunicado ao cônjuge.
2. A comunicação referida tem de ser dirigida separadamente, individualizadamente aos cônjuges (“a cada um”), não bastando uma única comunicação dirigida a ambos, determinando a inobservância da comunicação nos referidos termos a ineficácia da comunicação, ainda que no âmbito da redação dada pela Lei nº 31/2012, de 14.08.
3. Tendo a comunicação sido remetida ao arrendatário “e mulher”, resultando provado que foi esta que a recebeu, iniciando os RR. o pagamento da renda no valor fixado na comunicação, apenas pondo em causa o teor da mesma depois de receberem, cerca 4 anos e meio depois, a carta do senhorio a opor-se à renovação do contrato depois do fim do prazo, e apenas no âmbito da ação invocando a ineficácia da comunicação, atuam em abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO
Em 25.9.2018, A [ João ….. ] intentou contra B [ Carlos …… ] e esposa, C [ Ana ……] , ação declarativa de condenação, com processo comum, pedindo que seja considerada procedente a presente impugnação inexistindo motivo para a realização do depósito atenta a cessação do contrato de arrendamento celebrado entre A. e RR.
A fundamentar o peticionado, alegou, em síntese:
O A. é dono do prédio sito na Rua ..., Vila ..., nºs … a …., em Sintra, cujo r/c foi, pelo anterior proprietário do imóvel, dado de arrendamento ao R. marido, tendo o contrato tido início em 1.4.1978, destinando-se a habitação.
Em 8.7.2013, o A. comunicou aos RR. a transição do contrato para o NRAU e procedeu à atualização da renda do locado para €187,67, nada tendo os RR. dito.
O contrato de arrendamento transitou assim para o NRAU no dia 1.10.2013, por prazo certo e pelo período de 5 anos, e os RR. iniciaram o pagamento da nova renda, no montante de €187,67.
Por carta datada de 23.2.2018, o A. comunicou, nos termos e para os efeitos do art. 1097º do CC, que se opunha à renovação do contrato de arrendamento em causa, e que o locado deveria assim ser entregue no dia 30.9.2018.
Posteriormente, o R. invocou a ineficácia da oposição à renovação, o que é manifestamente infundado.
Nos primeiros dias do mês de setembro de 2018, os RR. dirigiram-se ao escritório do procurador do A., onde procediam ao pagamento da renda durante a vigência do contrato, dizendo que pretendiam proceder ao pagamento da renda referente ao mês de outubro de 2018, tendo sido informados que não era devida qualquer renda uma vez que o contrato cessava a 30 de setembro de 2018.
Em 7.9.2018 o R. comunicou ao A. que, tendo sido recusado o recebimento da renda referente ao mês de outubro de 2018, foi efetuado depósito da mesma junto da CGD.
Não existe motivo justificativo para o depósito da renda referente ao mês de outubro uma vez que o contrato cessa em 30.9.2018.
Citados, os RR. contestaram, por exceção, invocando a ineficácia da comunicação feita em 8.7.2013, e a impossibilidade de oposição à renovação, e por impugnação [1], e terminam pugnando pela procedência das exceções invocadas e absolvição do pedido.
O A. replicou pugnando pela improcedência das exceções invocadas.
Foi proferido saneador/sentença que saneou o processo, não admitiu o pedido reconvencional, e conheceu de mérito, julgando improcedente a presente impugnação do depósito da renda, declarando extinta a obrigação com o depósito, e absolveu os Réus do pedido.
Não se conformando com a decisão, dela apelou o A., tendo no final das respectivas alegações formulado as seguintes conclusões, que se reproduzem:
1 – Ao contrato de arrendamento dos autos, celebrado pelo R. B no estado de solteiro (facto 1), antes da entrada em vigor do RAU, aplica-se o disposto nos arts. 30º e seguintes da Lei 6/2006 de 27/02 (art. 59º nº1 e 27º nº1 e 28º nº1 do mesmo diploma).
2 – A R. C não tem a qualidade de arrendatária uma vez que o art. 1068º do CC que prescreve que “O direito do arrendatário comunica-se ao seu cônjuge, nos termos gerais e de acordo com o regime de bens vigente” apenas entrou em vigor com a Lei 6/2006, não tendo aplicação retroativa (artº 12º CC).
3 – Reportando-se a comunicação em apreço (facto 4) à casa de morada de família, a mesma foi dirigida aos cônjuges: “ B e mulher”.
4 – O que a lei pretende salvaguardar, e neste sentido deve ser interpretado o art. 12º nº1 da lei 6/2006 (cfr. art. 9º CC)) é que a comunicação seja do conhecimento efetivo do outro cônjuge, não arrendatário, o que no caso dos autos sucedeu, uma vez que foi a própria R. (cônjuge do arrendatário) a assinar o aviso de receção (facto 5).
5 – Tendo a R. assinado o aviso de receção de uma carta que também lhe era dirigida, forçoso é concluir que a leu e tomou conhecimento do seu teor.
6 – A comunicação efetuada pelo A. (facto 4) é, pois, ao contrario do decidido, eficaz.
7 – Por outro lado, o A. cumpriu na sua comunicação todos os ónus impostos no art. 30º do diploma em apreço, tendo comunicado o valor da renda, tipo e duração do contrato.
8 – Ao escrever expressamente nos termos e para os efeitos do art. 30º da Lei 31/2012, o A. deu ainda todas as indicações que permitia aos destinatários agir em conformidade, tendo os mesmos optado pelo silêncio, com as consequências daí decorrentes, valendo, no caso concreto, o silêncio como declaração negocial de aceitação (art. 31º nº 6 da Lei 6/2006 com as alterações introduzidas pela Lei 31/2012 e ainda art. 218º do CC).
9 – Por outro lado, e tal como decorre do art. 6º do CC “A ignorância ou má interpretação da lei não justifica a falta do seu cumprimento nem isenta as pessoas das sanções nela estabelecidas”.
10 – A atuação dos RR., ao optarem por não responder à carta (facto 4) enviada pelo A. e ao procederem como procederam a partir de 1 de outubro de 2013 (facto 6) motivou, pois, a clara e normal convicção por parte do A. de que além da comunicação ter sido recebida, foi compreendida e aceite todo o teor da comunicação.
11 – “A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante (…)” – art. 236º nº1 do CC.
12 – Face aos factos provados 4, 5 e 6 outra convicção não poderia o A. ter criado senão a de que a renda foi atualizada para o valor de €187,67 a partir de 01/10/2013, considerando-se o contrato celebrado com prazo certo, pelo período de 5 anos.
13 – A atuação dos RR. não pode deixar de ser censurada, constituindo um verdadeiro abuso de direito (art. 334º CC) na modalidade de venire contra factum proprium, na medida em que, optaram conscientemente pelo silêncio, procederam ao pagamento da renda atualizada e, só após a comunicação da oposição à renovação do contrato (quase 5 anos depois) vieram invocar a ineficácia da comunicação com base na qual passaram a agir nos termos referidos em 6 dos factos provados.
14 – Pretendendo o A. opor-se à renovação do contrato, procedeu à comunicação descrita no facto 7, considerando-se por isso o contrato validamente cessado com efeitos a partir de 30/09/2018, por aplicação dos arts. 59º, 27º nº 1, 26º nº 1 do NRAU e art. 1097º do CC.
15 – Cessando o contrato em 30/09/2018, não era assim devida qualquer renda referente ao mês de outubro de 2018, razão pela qual existia legítima recusa do A. em recebê-la, devendo consequentemente ser procedente a impugnação do depósito.
16 – A aplicação do direito à matéria de facto provada, nomeadamente 1, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 12, 13, 14, impunha, pois, decisão diversa da recorrida.
17 – A Sentença recorrida efetuou, deste modo, errada interpretação e aplicação das normas dos arts. 12º nº 1, 30º, 31º, nº 6 (conjugado com o art. 218º do CC), 59º, 26º nº 1, 27º nº 1, 28º e 17º nº 1 da Lei 6/2006 com a redação dada pela Lei 31/2012, do art. 1097º do CC, e ainda do art. 6º, art. 236º nº 1 e art. 334º também do CC, que nesta medida violou.
Termina pedindo que o recurso seja considerado procedente por provado.
Não se mostram juntas contra-alegações.
QUESTÕES A DECIDIR
Sendo o objeto do recurso balizado pelas conclusões do recorrente (arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1do CPC) as questões a decidir são:
a) validade da comunicação efetuada em 11.7.2013;
b) atuação dos RR. em abuso de direito;
c) admissibilidade da oposição à renovação do contrato – procedência da ação.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
O tribunal recorrido considerou assentes os seguintes factos:
1. Por documento particular datado de 1 de abril de 1978, Deolinda ……, viúva, na qualidade de “senhoria” e o Réu B, então solteiro, maior, na qualidade de “inquilino”, declararam que “ajustam entre si o arrendamento de uma casa de rés-do-chão do prédio da Avenida ... - Sintra, (…), freguesia de Santa Maria, artigo da matriz nº ..., concelho de Sintra, de que o primeiro é senhor e possuidor, sob as seguintes condições: 
1º Que este arrendamento é pelo prazo de seis meses, que principia no dia 1 de abril de 1978 e finda no último dia do mês de setembro de 1978, supondo-se sucessivamente renovado por igual período e condições, nos termos do art. 1095º do Cód. Civil. 
2º - A renda será da quantia de Escudos 650$00 (seiscentos e cinquenta escudos) por cada mês, devendo ser paga nesta cidade em casa do senhorio ou de quem o representar no primeiro dia útil do mês anterior àquele a que respeita.
(…) 
A parte arrendada é destinada a habitação. (…)”.
2. Pela apresentação nº 17 de 16 de Março de 1994 mostra-se inscrita a aquisição, por sucessão de Deolinda ….. e João …., a favor do Autor A, casado no regime da comunhão de adquiridos com Janine ……, do prédio urbano denominado “Vila …”, composto por casa de rés-do-chão, primeiro andar, águas furtadas e logradouro, sito na Avenida …, nºs …, … e …, descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Sintra sob o nº … da freguesia de Santa Maria e São Miguel e atualmente inscrito na matriz predial urbana sob o artigo … da união das freguesias de Santa Maria, São Miguel, São Martinho e São Pedro de Penaferrim e anteriormente inscrito sob o artigo … da extinta freguesia de Santa Maria e São Miguel.
3. A casa de rés-do-chão aludida em 1. constitui a residência dos Réus, que casaram um com o outro em 23 de julho de 1978.
4. Por carta registada em 11 de julho de 2013, dirigida a “ B e mulher”, para a Avenida …, nº …., rés-do-chão, sob o assunto “transição para o NRAU e atualização de renda, do r/c com entrada pelo nº 124 do prédio sito na Av. …, nºs …., … e …., em Sintra”, o Autor comunicava o seguinte:
Exmos. Senhores, 
Serve a presente para comunicar a V. Exas. que, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 30º da Lei nº 31/2012 de 14 de agosto, a renda mensal do rés-do-chão com entrada pelo nº 124 do prédio sito na Avenida …, nºs …., … e ……, em Sintra, de que V. Ex.as são arrendatário, é atualizada para €187,67, a partir da que se vence no próximo mês de outubro de 2013.
Assim, o correspondente recibo será emitido pelo novo valor.
Informo que o valor do locado, avaliado nos termos dos artigos 38º e seguintes do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), constante da respetiva caderneta predial que se junta, é de €33.780,00.
O valor atualizado da renda corresponde a 1/15 do valor do locado, dividido pelos 12 meses do ano.
Mais comunico a V. Ex.as, nos termos e para os efeitos do referido art.º 30º da Lei nº 31/2012, que o contrato de arrendamento celebrado com V. Exas., considera-se celebrado com prazo certo, pelo período de cinco anos.
(…)”.
5. A carta mencionada em 4. foi recebida pela Ré C.
6. Em 1 de Outubro de 2013, os Réus iniciaram o pagamento da renda no valor de €187,67 (cento e oitenta e sete euros e sessenta e sete euros).
7. Por carta registada em 23 de fevereiro de 2018, dirigida a “ B  e mulher 1. Se o local arrendado constituir casa de morada de família, a norma a aplicar é o art. 12º do NRAU, devendo as comunicações relativas a atualização de renda e transição para o NRAU por iniciativa do senhorio ser dirigidas a cada um dos cônjuges, independentemente de o direito do arrendatário se ter, ou não, comunicado ao cônjuge.
2. A comunicação referida tem de ser dirigida separadamente, individualizadamente aos cônjuges (“a cada um”), não bastando uma única comunicação dirigida a ambos, determinando a inobservância da comunicação nos referidos termos a ineficácia da comunicação, ainda que no âmbito da redação dada pela Lei nº 31/2012, de 14.08.
3. Tendo a comunicação sido remetida ao arrendatário “e mulher”, resultando provado que foi esta que a recebeu, iniciando os RR. o pagamento da renda no valor fixado na comunicação, apenas pondo em causa o teor da mesma depois de receberem, cerca 4 anos e meio depois, a carta do senhorio a opor-se à renovação do contrato depois do fim do prazo, e apenas no âmbito da ação invocando a ineficácia da comunicação, atuam em abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium”, para a Avenida …, nº  …, rés-do-chão, sob o assunto “oposição à renovação do contrato de arrendamento, do rés-do-chão com entrada pelo nº …, do prédio sito na Av. …, nºs …, … e …., em Sintra”, o Autor comunicava o seguinte:
Exmos. Senhores, 
Venho pela presente, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 1097 do Código Civil, comunicar-lhes que me oponho à renovação do contrato de arrendamento do rés-do-chão com entrada pelo nº …., do prédio sito na Avenida …, nºs …, …. e …., em Sintra, de que V. Ex.as são arrendatários.
Assim, o arrendado deverá ser entregue, no dia 30 de setembro de 2018, livre e devoluto de pessoas e bens.
(…).
8. A carta mencionada em 7. foi recebida pela Ré C.
9. Por carta datada de 8 de junho de 2018, sob o assunto “oposição à renovação do contrato de arrendamento referente ao prédio sito na Avenida …, nº …, r/c, em Sintra”, o Réu comunicava ao Autor o seguinte:
Exmo. Senhor João Baeta Soares,
(…)
Acusa-se a receção da comunicação de V. Exa. Datada de 23(?) de fevereiro, na qual manifesta a intenção de oposição à renovação do contrato de arrendamento urbano, em assunto melhor identificado.
Todavia, e salvo o melhor respeito por opinião contrária, resulta claramente, do artigo 59º da Lei nº 6/2006 de 27 de Fevereiro, que este diploma legal seria aplicado de imediato a todos os contratos de arrendamento urbano para fins habitacionais, mesmo àqueles que tinham sido celebrados antes da sua entrada em vigor, pese embora relativamente a estes, com todas as especificidades resultantes do regime transitório, constantes nos artigos 26º a 58º da referida lei, atualizada na sua versão pela Lei nº 79/2014 de 19 de Fevereiro.
Note-se que, de igual modo a jurisprudência dos nossos tribunais, tem sufragado que a única interpretação para o artigo 59º na NRAU, será a de considerar aplicação imediata deste artigo, a todas as relações contratuais que tenham subsistido até à data da sua entrada em vigor, logo significando, que aos contratos antigos sem empregam as disposições do NRAU, independentemente da ausência de resposta do arrendatário à comunicação do senhorio que convolaria o anterior o contrato de arrendamento celebrado em Abril de 1978 em contrato sujeito a termo de cinco anos.
Posto isto, conclui-se que em conformidade com a regra geral acima aludida, e tratando-se de um contrato de duração indeterminada, só poderá beneficiar do regime de arrendamento urbano para fins habitacionais expresso nos artigos 1099º e seguintes do Código Civil, decorrendo daí que os contratos de arrendamento habitacionais, anteriores à publicação do NRAU, só poderão cessar por denúncia, deixando de poder extinguir-se por oposição à renovação automática do mesmo.
Ora, deste modo, o contrato de arrendamento urbano, referente ao imóvel em assunto melhor identificado, manter-se-á em vigor, carecendo de eficácia legal a declaração de vontade do senhorio, que pretenderia opor-se à renovação automática do aludido contrato. (…)”.
10. Por carta registada em 18 de junho de 2018, dirigida a “ B e mulher C”, para a Avenida ..., nº …., rés-do-chão, sob o assunto “oposição à renovação do contrato de arrendamento, do rés-do-chão com entrada pelo nº 124, do prédio sito na Av. ..., nºs …, … e …, em Sintra (…)”, o ilustre mandatário do Autor comunicava o seguinte:
Exmos. Senhores,
Pede-me o meu cliente identificado em epígrafe que acuse a receção da vossa carta datada de 08/06/2018, recebida a 11/06/2018 e lhes comunique o seguinte:
Como é do conhecimento de V. Exªs., por carta datada de 08/07/2013, recebida no dia 11/07/2013, foram V. Ex.ªs. notificados, nos termos do artigo 30º da Lei nº 31/2012 de 14 de agosto, que o contrato de arrendamento celebrado com V. Exa.ªs transitou para o NRAU, por prazo certo e pelo período de 5 anos.
Uma vez que a proposta do senhorio foi aceite por V. Ex.ªs, o contrato transitou para o NRAU, nos termos do nº 6 do artigo 31º do referido diploma legal, no da 1 de outubro de 2013 por prazo certo e pelo período de 5 anos.
No dia 1 de outubro de 2013 venceu-se também a nova renda de €187,67, que foi paga por V. Ex.ªs.
Não existe qualquer dúvida que o contrato de arrendamento que atualmente vigora com V. Ex.ªs, é um contrato de arrendamento com prazo certo e pelo prazo certo de 5 anos, com início a 1 de outubro de 2013, prazo esse que termina no dia 30 de setembro de 2018, facto que é do conhecimento de V. Ex.ªs desde julho de 2013.
Nos termos do artigo 1097º do C.C., o senhorio pode opor-se à renovação do referido contrato de arrendamento, com 120 dias de antecedência, o que fez por carta datada de 23 de fevereiro de 2018, recebida a 26/02/2018 (…).
Contrariamente ao afirmado por V. Ex.ªs, não têm um contrato de arrendamento de duração indeterminada, mas sim um contrato de arrendamento com prazo certo e pelo período de 5 anos, o qual termina no dia 30 de setembro de 2018, uma vez que o senhorio se opôs à sua renovação.
As alegações que V. Ex.ªs fazem na vossa carta datada de 11/06/2018, não tem qualquer fundamento legal, nem se consegue alcançar qual a pretensão de V. Ex.ªs, quando muito bem sabem que o vosso contrato termina no próximo dia 30 de setembro de 2018, data em que deverão entregar ao senhorio o arrendado livre e devoluto de pessoas e bens. (…)”.
11. Por carta datada de 13 de julho de 2018, o Réu respondeu à carta aludida em 10., reiterando a posição vertida na sua carta de 08.06.2018 e, por sua vez, o Autor, através do seu mandatário, respondeu a essa missiva por nova carta datada de 20 de julho de 2018, reiterando a posição vertida na sua carta de 18.06.2018.
12. Nos primeiros dias do mês de setembro de 2018, os Réus dirigiram-se ao escritório do procurador do Autor, onde procediam ao pagamento da renda durante a vigência do contrato, dizendo que pretendiam proceder ao pagamento da renda referente ao mês de outubro de 2018.
13. Na ocasião aludida em 12., os Réus foram informados que não era devida qualquer renda, uma vez que o contrato cessava em 30 de setembro de 2018.
14. Em 5 de setembro de 2018, na Caixa Geral de Depósitos, o Réu efetuou o depósito da renda referente ao mês de outubro de 2018, no valor de €187,67, fazendo constar no respetivo impresso que se tratava de depósito condicional, ao abrigo do artigo 18º do NRAU (primeiro depósito).
15. Em 7 de setembro de 2018, o Autor recebeu a seguinte comunicação dos Réus, datada de 6 de setembro de 2018: “(…) no seguimento da recusa no recebimento da renda referente ao mês de outubro venho deste modo apresentar o comprovativo do depósito do valor da renda na conta nº 0786072317750 sediada na Caixa Geral de Depósitos. Em anexo: comprovativo depósito renda (…)”.
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
A presente ação é de impugnação de depósito de renda (art. 21º da Lei nº 6/2006, de 27.02), importando aquilatar se os RR./apelados tinham fundamento para proceder ao referido depósito (art. 17º do mesmo diploma legal), o que passa pela apreciação da invocada cessação (ou não) do contrato de arrendamento por força da comunicação de não renovação do respetivo prazo, que assenta, a montante, na transição para o NRAU efetuada mediante comunicação do senhorio.
Ou seja, e tal como fez o tribunal recorrido, o que importa apreciar é:
- se foi eficaz a comunicação do A./senhorio de 11.07.2013 (ponto 4. da fundamentação de facto) - o que implicará o aumento da renda, a transição do contrato para o NRAU, com novo prazo até 5 anos;
- se foi eficaz a comunicação do A./senhorio de 23.2.2018 (ponto 7. da fundamentação de facto) – o que implicará considerar cessado o contrato de arrendamento em 30.9.2018;
- se tem ou não fundamento o depósito da renda efetuado pelos RR. – o que implicará a improcedência ou procedência da ação.
Com a aprovação do NRAU pela L. 6/2006, de 27.2, introduziram-se profundas alterações no regime de arrendamento urbano, visando “alcançar objetivos considerados essenciais ao saudável desenvolvimento do mercado habitacional português, através da previsão de regras que, simultaneamente, promovam o mercado de arrendamento para habitação, serviços e comércio, facilitem a mobilidade dos cidadãos, criem condições atrativas para o investimento privado no sector imobiliário, devolvendo confiança aos agentes económicos, promovam a reabilitação urbana, a modernização do comércio, a qualidade habitacional e uma racional alocação de recursos públicos e privados” (Exposição de Motivos da Proposta de Lei do Arrendamento Urbano).
Nos termos do nº 1 do art. 59º da Lei nº 6/2006, de 27.2, o NRAU aplica-se aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias relativas aos contratos mais antigos (celebrados durante a vigência do RAU, ou antes deste), previstas nos arts. 26º a 58º.
O contrato de arrendamento em apreço foi celebrado em 1.4.1978, antes, pois, da vigência do RAU (aprovado pelo DL. nº 321-B/90, de 15.10), regendo-se, em matéria de normas transitórias, pelo previsto no art. 28º (art. 27º do NRAU).
A Lei nº 6/2006, de 27.2, tem sofrido diversas alterações ao longo destes anos, devendo ter-se em atenção as normas em apreço com a redação vigente à data dos factos.
Assim, e relativamente à comunicação do A./senhorio de 11.07.2013, importa ter presente as alterações introduzidas pela Lei nº 31/2012, de 14.8.
Estabelece o referido art. 28º na redação introduzida pela L. nº 31/2012, de 14.8 que “1 - Aos contratos a que se refere o artigo anterior aplica-se, com as necessárias adaptações, o disposto no artigo 26º, com as especificações constantes dos números seguintes e dos artigos 30º a 37º e 50º a 54º. 2 – Aos contratos referidos no número anterior não se aplica o disposto na alínea c) do artigo 1101º do Código Civil. …”.
Ou seja, nestes contratos de arrendamento não se admite a denúncia imotivada do contrato pelo senhorio por mera comunicação com antecedência não inferior a dois anos, apenas se admitindo a denúncia por necessidade de habitação pelo senhorio (ou pelos seus descendentes em 1º grau), ou para demolição ou obras de remodelação ou restauro [2].
Mas a lei admite que o contrato (antigo) transite para o NRAU, passando a ter prazo certo, com atualização da renda, por iniciativa do senhorio – arts. 30º e 31º do NRAU.
E transitando para o NRAU, passa a ser-lhe aplicável o regime dos contratos com prazo certo, que admitem oposição à renovação pelo senhorio – arts. 1095º a 1097º do CC.
Assim sendo, e contrariamente ao sustentado pelos RR./apelantes na contestação, o A./senhorio podia opor-se à renovação do contrato de arrendamento, desde que o mesmo tivesse transitado para o NRAU.
Cumpre, então, apreciar se tal ocorreu por força da carta referida no ponto 4. da fundamentação de facto.
Dispõe o art. 30º do NRAU (redação da L. 31/2012, de 14.8) que “A transição para o NRAU e a atualização da renda dependem da iniciativa do senhorio, que deve comunicar a sua intenção ao arrendatário, indicando: a) O valor da renda, o tipo e a duração do contrato proposto; b) O valor do locado, avaliado nos termos dos artigos 38º e seguintes do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), constante da caderneta predial urbana; c) Cópia da caderneta predial urbana” (sublinhado nosso).
Em matéria de comunicações, dispõe o art. 9º do NRAU que “salvo disposição da lei em contrário, as comunicações legalmente exigíveis entre as partes, relativas a cessação do contrato de arrendamento, atualização de renda e obras, são realizadas mediante escrito assinado pelo declarante e remetido por carta registada com aviso de receção”.
As comunicações relativas a atualização de renda devem ser dirigidas a todos os arrendatários, sendo vários (art. 11º do NRAU).
O tribunal recorrido entendeu (tal como sustenta o apelante em sede de recurso) que, no caso, arrendatário era apenas o R. Carlos, por o art. 1068º do CC (introduzido pela L. nº 6/2006, de 27.2), não se aplicar aos arrendamentos celebrados antes da entrada em vigor da referida Lei.
Não é uniforme a jurisprudência neste sentido [3], como resulta do Ac. do STJ de 1.3.2018, P. 4685/14.2T8FNC.L1.S1  (Rosa Ribeiro Coelho), em www.dgsi.pt, no qual, contrariando a jurisprudência citada na sentença recorrida, se sumariou que “… IV – Com a publicação da Lei nº 6/2006, que aditou ao Código Civil o art. 1068º, instituiu-se a regra da comunicabilidade para todos os arrendamentos de prédios urbanos. V – Do art. 59º do NRAU resulta a aplicação do art. 1068º a contratos anteriores, que subsistam, e não apenas aos constituídos após a sua entrada em vigor. VI – Não se trata de uma aplicação retroativa, antes sendo uma aplicação imediata da lei nos termos previstos no art. 12º, nº 1 e 2, 2ª parte do CC, pressupondo a vigência da relação jurídica em causa. …”.
Independentemente da posição que se tome nesta matéria, o que é um facto é que, se o local arrendado constituir casa de morada de família, a norma a aplicar é o art. 12º do NRAU, cujo nº 1 determina que as comunicações relativas a atualização de renda e transição para o NRAU por iniciativa do senhorio devem ser dirigidas a cada um dos cônjuges.
Não está em causa a comunicabilidade do arrendamento ao cônjuge, prevista no art. 1068º do CC, mas a proteção da casa de morada de família.
Quer o direito do arrendatário se comunique ao cônjuge, quer não se comunique, o senhorio que tome a iniciativa de comunicar a atualização de renda e transição para o NRAU tem de dirigir tal comunicação a cada um dos cônjuges, se o local arrendado constituir casa de morada de família [4].
Atente-se que a lei não diz que o senhorio tem de dirigir a comunicação a ambos os cônjuges, mas antes que tem de a dirigir a cada um deles, havendo uma exigência acrescida em relação ao que se dispõe no art. 11º.
Não tem dúvidas a doutrina em sustentar que a comunicação tem de ser dirigida separadamente, individualizadamente aos cônjuges (“a cada um”), não bastando uma única comunicação dirigida a ambos (ver autores referidos na sentença recorrida [5]), determinando a inobservância da comunicação nos referidos termos a ineficácia da comunicação [6], o que, aliás, veio a ser expressamente consagrado com a alteração introduzida ao referido art. 12º pela Lei nº 43/2017, de 14.6.
Na jurisprudência vão no mesmo sentido o Ac. da RG de 4.10.2017 referido na sentença recorrida [7], e o Ac. da RP de 10.7.2019, P. 568/18.5T8VLG.P1 (José Igreja Matos), em www.dgsi.pt.
Em ambos os acórdãos se refere que o texto da lei (“a cada um”)  é inequívoco [8].
Assim se nos afigura também.
O art. 12º, nº 1 na redação dada pela Lei nº 31/2012, de 14.8, não previa a sanção para a comunicação efetuada em violação do determinado.
Contudo, afigura-se-nos que a inobservância do estipulado tem de conduzir, necessariamente, à ineficácia da comunicação por não preencher os requisitos legais.
O facto de a carta ter sido endereçada ao arrendatário “e mulher” e de ter sido esta a recebê-la (pontos 4 e 5 da fundamentação de facto), não tem o condão de reverter a ineficácia da comunicação remetida pelo apelante, uma vez que a comunicação padece de um vício essencial, estrutural, quanto a um dos requisitos (formais) constitutivos de que a lei faz depender a respetiva eficácia.
E sendo ineficaz, não têm aplicação as consequências que a lei tira do silêncio do arrendatário (art. 31º, nº 6 do NRAU, na redação da Lei nº 31/2012, de 14.8), como pretende fazer o apelante.
Dispõe o referido preceito legal que “A falta de resposta do arrendatário vale como aceitação da renda, bem como do tipo e da duração do contrato propostos pelo senhorio, ficando o contrato submetido ao NRAU a partir do 1º dia do 2º mês seguinte ao termo do prazo previsto nos nºs 1 e 2 [9]”.
As consequências que a lei tira do comportamento do arrendatário pressupõem, naturalmente, que a comunicação tenha observado todos os requisitos (substanciais e formais) exigidos pela lei [10].
Sustenta, porém, o apelante que da factualidade provada resulta estarem os apelados a atuar em abuso de direito, na medida em que iniciaram o pagamento da renda atualizada através da referida comunicação, o que motivou no apelante a convicção de que a tinham recebido, compreendido e aceite, e que o contrato tinha transitado para o NRAU, e pelo prazo de 5 anos, aguardando aqueles pela oposição à renovação do contrato, 5 anos depois, para invocarem a ineficácia da comunicação.
Estatui o art. 334º do CC que “é abusivo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Há abuso de direito quando, embora exercendo um direito, o titular exorbita o exercício do mesmo, quando o excesso cometido seja manifesto, quando haja uma clamorosa ofensa do sentimento jurídico-socialmente dominante.
O legislador sufragou a conceção objetivista do abuso de direito (que proclama que não é preciso que o agente tenha consciência da contrariedade do seu ato à boa fé, aos bons costumes ou ao fim social ou económico), o que não significa “que ao conceito de abuso do direito consagrado no art. 334º sejam alheios fatores subjetivos, como, por exemplo, a intenção com que o titular tenha agido” - cfr. Pires de Lima – Antunes Varela, in CCAnotado, Vol. I – 2ª ed., pág. 277 [11].
 A figura do abuso de direito surge como uma forma de adaptação do direito à evolução da vida, serve como válvula de escape a situações que os limites apertados da lei não contemplam por forma considerada justa pela consciência social vigorante em determinada época, evitando que, observada a estrutura formal do poder que a lei confere, se excedam manifestamente os limites que se devem observar tendo em conta a boa fé e o sentimento de justiça em si mesmo.
Como refere Jorge Coutinho de Abreu, em Do Abuso de Direito, pág. 43, “Há abuso de direito quando um comportamento, aparentando ser exercício de um direito, se traduz na realização dos interesses pessoais de que esse direito é instrumento e na negação de interesses sensíveis de outrem”.
Para Pires de Lima e Antunes Varela, no CC Anotado, Vol. I, 4ª ed., pág. 300, “A nota típica do abuso do direito reside ... na utilização do poder contido na estrutura do direito para a prossecução de um interesse que exorbita do fim próprio do direito ou do contexto em que ele deve ser exercido”.
E Cunha de Sá, em Abuso do Direito, pág. 101, escreve que “abusa-se do direito quando se vai para além dos limites do normal, do legítimo: exerce-se o direito próprio em termos que não eram de esperar, ultrapassa-se o razoável, chega-se mais longe do que seria de prever”. E, mais adiante (pág. 103), analisando a noção legal de abuso de direito, refere que o mesmo se traduz “num ato ilegítimo, consistindo a sua ilegitimidade precisamente num excesso de exercício de um certo e determinado direito subjetivo: hão-de ultrapassar-se os limites que ao mesmo direito são impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo próprio fim social ou económico do direito exercido”.
O abuso de direito pode revestir várias modalidades [12], entre elas, a invocada pelo apelante - venire contra factum proprium -, que se traduz no exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente pelo exercente [13].
Como se sumariou no Ac. da RL de 20.03.2013, P. 1199/11.6TVLSB.L1-8 (Carla Mendes), em /www.dgsi.pt, “1 – O abuso de direito pressupõe a existência desse direito (direito subjetivo ou mero poder legal), embora o titular se exceda no exercício dos seus poderes. 2 – Agir de boa-fé é ter uma conduta honesta e conscienciosa, uma linha de correção e probidade, a fim de não prejudicar os legítimos interesses da contraparte, e não proceder de modo a alcançar resultados opostos aos que uma consciência razoável poderia tolerar. 3 – A violação do princípio da confiança, revela normalmente um comportamento com que, razoavelmente, não se contava face à conduta anteriormente assumida e às legítimas expectativas que gerou – venire contra factum proprium – que se reconduz à expressão “manifesto excesso”. …”.
Para Baptista Machado, Tutela da confiança e “venire contra factum proprium”, em Obra Dispersa, vol. I, pág. 345 e ss., “o princípio da confiança é um princípio ético-jurídico fundamentalíssimo … poder confiar é uma condição básica de toda a convivência pacífica e da cooperação entre os homens”.
Carneiro da Frada, em Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil, 2007, pág. 404, escreve que “O venire envolve uma contraditoriedade entre dois comportamentos do sujeito que temporalmente se sucedem. … No venire, o que importa explicitar é a razão material pela qual não há-de ser consentido agora a um sujeito tomar uma conduta quando adotou outra em determinado momento anterior”, concretizando a págs. 410/411 que “Somente o comportamento posterior do sujeito consuma o venire. Embora este não se absorva naquele. De facto, per se tomada, a conduta ulterior do sujeito apresenta-se necessariamente como lícita e conforme com a ordem jurídica. Caso contrário, ela apenas traduziria uma situação vulgar de falta de direito ou de desrespeito de uma vinculação que comprimia a esfera de liberdade do sujeito. Nenhum papel restaria então ao venire. Por outro lado – e concomitantemente -, a relevância do venire também não se resume exclusivamente à do comportamento primeiro. … É, pois, a relação de incompatibilidade de dois modos de agir que individualiza o venire … Por isso mesmo ele não é suscetível de ser compreendido pelo carácter isoladamente ilícito do ato antecedente ou subsequente. Pensamos que a razão de ser material da relevância da contraditoriedade da atuação radica essencialmente na eficácia geradora de confiança no comportamento do sujeito”.
Como referido na sentença recorrida, Menezes Cordeiro, em Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo IV, 2007, p. 292, escreve que “na concretização da confiança, podemos trabalhar com um modelo de quatro proposições, válido em geral. São elas: 1º Uma situação de confiança conforme com o sistema e traduzida na boa fé subjetiva e ética, própria da pessoa que, sem violar os deveres de cuidado que ao caso caibam, ignore estar a lesar posições alheias; 2º Uma justificação para essa confiança, expressa na presença de elementos objetivos capazes de, em abstrato, provocarem uma crença plausível; 3º Um investimento de confiança consistente em, da parte do sujeito, ter havido um assentar efetivo de atividades jurídicas sobre a crença consubstanciada; 4º A imputação da situação de confiança criada à pessoa que vai ser atingida pela proteção dada ao confiante: tal pessoa, por ação ou omissão, terá dado lugar à entrega do confiante em causa ou ao fator objetivo que a tanto conduziu”.
É ponderando estas proposições (que podem não se verificar todas [14]) que a jurisprudência vem aquilatando da verificação de atuação em abuso de direito na modalidade em causa.
No caso em apreço, em 11.7.2013, o apelante remeteu aos apelados a carta referida no ponto 4. da fundamentação de facto.
Essa carta era dirigida a “ B e mulher”, e quem recebeu a carta foi a R. C .
Ao contrário do que entendeu o tribunal recorrido, afigura-se-nos ser de concluir que, não obstante não ter sido cumprida a formalidade exigida pela lei (cartas individualizadas), uma vez que a carta foi endereçada também à R. (por ser a “mulher” do R.), embora sem o seu nome, esta terá tido conhecimento do seu conteúdo, lendo-a, uma vez que era uma das destinatárias da mesma.
E, a partir de 1.10.2013, os RR. iniciaram o pagamento da renda fixada na carta, apenas pondo em causa o teor da mesma depois de receberem a carta do A., datada de 23.2.2018, a opor-se à renovação do contrato depois de 30.9.2018 (fim do prazo de 5 anos), bem como só no âmbito da presente ação vieram invocar a ineficácia da comunicação de 11.7.2013 por não ter sido remetida à R.
Na carta de remetida a 11.7.2013, o Autor comunicava aos RR. que a mesma servia “para comunicar a V. Exas. que, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 30º da Lei nº 31/2012 de 14 de agosto, a renda mensal do rés-do-chão com entrada pelo nº 124 do prédio sito na Avenida ..., nºs 122, 124 e 126, em Sintra, de que V. Ex.as são arrendatário, é atualizada para €187,67, a partir da que se vence no próximo mês de outubro de 2013. Assim, o correspondente recibo será emitido pelo novo valor. Informo que o valor do locado, avaliado nos termos dos artigos 38º e seguintes do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), constante da respetiva caderneta predial que se junta, é de €33.780,00. O valor atualizado da renda corresponde a 1/15 do valor do locado, dividido pelos 12 meses do ano. Mais comunico a V. Ex.as, nos termos e para os efeitos do referido art.º 30º da Lei nº 31/2012, que o contrato de arrendamento celebrado com V. Exas., considera-se celebrado com prazo certo, pelo período de cinco anos” (sublinhados nossos).
E logo no cabeçalho da carta constava “ASSUNTO: transição para o NRAU e atualização de renda, do r/c com entrada pelo nº …. do prédio sito na Av. ..., nºs …, … e …., em Sintra” (ver documento junto a fls. 10).
Como já reproduzido, o art. 30º do NRAU (na redação da L. 31/2012, de 14.8), sob a epígrafe “Iniciativa do senhorio”, pressupõe que a transição para o NRAU e a atualização da renda dependam da iniciativa do senhorio, exigindo que a comunicação nesse sentido indique o valor da renda, o tipo e a duração do contrato proposto, e o valor do locado, avaliado nos termos dos artigos 38º e seguintes do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), constante da caderneta predial urbana, e seja acompanhada de cópia da caderneta predial urbana.
Na comunicação de 8.7.2013, o apelante indicou o valor da renda, o tipo e a duração do contrato que pretendia, e o valor do locado, avaliado nos termos dos artigos 38º e seguintes do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), constante da caderneta predial urbana, e remeteu cópia da caderneta predial urbana.
É certo que os termos da carta não indiciavam tratar-se de uma “proposta”, antes assumindo o carácter de comunicação de uma decisão.
Conduto, não deixa a carta de alertar/sublinhar, por 2 vezes, que a comunicação é feita “nos termos e para os efeitos do disposto no art. 30º da Lei nº 31/2012, de 14 de agosto”.
E é clara no sentido de que o contrato de arrendamento celebrado com os apelados passa a ser considerado celebrado com prazo certo, pelo período de cinco anos, logo no “assunto” referindo que o mesmo é de “atualização de renda”, mas também de “transição para o NRAU”.
Salvo melhor opinião, atento o teor da carta em questão, não se pode concluir, como concluiu o tribunal recorrido, que “… da conduta dos Réus apenas se poderia extrair a anuência do Réu arrendatário quanto ao novo valor da renda que lhe foi comunicado (e não proposto, conforme previa a alínea a) do art. 30.º do NRAU), mas dessa conduta não se pode extrapolar para a aceitação tácita do restante teor daquela comunicação (v.g. quanto à transição para o NRAU, o novo tipo e duração do contrato aí indicado)”.
Perante os termos da carta enviada pelo apelante, podiam os RR., com a diligência que lhes era exigível, ter-se informado junto de profissional do verdadeiro alcance da mesma e da posição a tomar, tendo, porém, optado por aceitá-la, atuando em conformidade com o seu teor, iniciando o pagamento da renda fixada a partir da data indicada, exteriorizando um comportamento de aceitação do teor da carta recebida, nada indiciando ser tal aceitação apenas parcial.
E uma tal conduta criou no apelante a convicção de que a carta tinha sido aceite e que o contrato passava a ser a prazo, por 5 anos, permitindo-lhe opor-se à sua renovação no fim do mesmo, como veio a fazer.
A conduta dos RR., que se prolongou no tempo, criou no apelante a convicção de que o contrato em causa tinha passado a ser um contrato a prazo possível de terminar por oposição à renovação no fim deste, nos termos legais (arts. 1096º e 1097º do CC), criando confiança no apelante que a carta tinha sido aceite na totalidade dos seus termos [15], projetando a sua atuação futura em consonância.
Ao invocarem em 18.6.2018 e em resposta à comunicação do apelante de 23.2.2018, que consideravam que o contrato de arrendamento se mantinha de duração indeterminada (ponto 9. da fundamentação de facto), e ao pretenderem proceder, e procedendo, ao depósito da renda referente ao mês de Outubro de 2018 (pontos 12. a 15), os RR. passaram a agir de forma incompatível com a que exteriorizaram anteriormente de aceitação do teor da carta remetida pelo apelante em 11.7.2013, (e que tiveram como boa para efeitos de liquidação do novo valor da renda), cuja ineficácia apenas invocaram na presente ação [16].
Assim, e ao contrário do que entendeu o tribunal recorrido, afigura-se-nos atuarem os RR. em abuso de direito, na modalidade indicada, a determinar a paralisação do direito destes de invocar a ineficácia da comunicação de 11.7.2013, que se deve considerar eficaz, produzindo os consequentes efeitos, nomeadamente de transição do contrato de arrendamento em causa para contrato a prazo certo, pelo período de 5 anos.
Nesta conformidade, e de acordo com a normas suprarreferidas é legal e eficaz a comunicação do A./senhorio de 23.2.2018 (ponto 7. da fundamentação de facto), tendo o contrato de arrendamento cessado em 30.9.2018.
Assim sendo, o depósito da renda efetuado pelos RR. (ponto 14. da fundamentação de facto) carece de fundamento, procedendo a ação.
Em conclusão, procede a apelação, devendo revogar-se a sentença recorrida e substituir-se por outra a julgar procedente a ação.
As custas do recurso são a cargo dos apelados, por terem ficado vencidos (art. 527º, nºs 1 e 2 do CPC).
DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação, revogando-se a sentença recorrida, que se substitui por outra a julgar procedente a ação, julgando injustificado o depósito da renda efetuado.
Custas pelos apelados.
*
Lisboa, 2020.05.05
Cristina Coelho
Carla Câmara
Luís Filipe Pires de Sousa – vencido conforme voto que segue.

DE VENCIDO
Discordo da fundamentação e da decisão porquanto, a haver abuso de direito por parte dos inquilinos, o mesmo será na modalidade de venire contra factum proprium. Porém, um dos requisitos desta modalidade é a existência de um investimento de confiança por parte do confiante, traduzido «no facto de ter havido por parte do confiante o desenvolvimento de uma atividade na base do “factum proprium”, de tal modo que a destruição dessa atividade (pelo “venire”) e o regresso à situação anterior se traduzam numa injustiça clara» (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3.1.2007, Borges Soeiro, 06A4571). Indicando a necessidade de tal requisito, vejam-se, ainda, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 11.12.2012, Fernandes do Vale, 116/07 e de 25.11.2014, Gabriel Catarino, 3220/07). Ora, não estão alegados nem demonstrados factos dos quais decorra que o senhorio, com base na confiança, tenha tomado concretas disposições patrimoniais, razão pela qual não estão preenchidos todos os requisitos do venire contra factum proprium.
Em segundo lugar, existe no nosso ordenamento jurídico uma tutela transversal reforçada da casa de morada de família, de que são exemplos os Artigos 10º da Lei nº 83/2019, de 3.9, 1793º do Código Civil, 629º, nº3, al. a), 751º, nº4 e 864º do Código de Processo Civil, bem como Artigo 5º da Lei nº 7/2001, de 1.5. Em conformidade, as normas que impõem determinados formalismos na prática de atos que podem bulir com a casa de morada de família – de que são precisamente exemplo os Artigos 9º, nº1, 10º, nº2 e 12º, nº1 da Lei nº 6/2006, de 17.2 – devem ser objeto de uma interpretação estrita, sendo que aqui ressalta a observância da forma acrescida como meio de tutela de um direito essencial. Se o senhorio não cumpriu a forma exigida por lei, sibi imputet.
Luís Filipe Sousa
_______________________________________________________
[1] Bem como deduziram reconvenção que não foi admitida.
[2] Dispõe o art. 1101º do CC, na redação dada pela L. nº 31/20912, de 14.8: “O senhorio pode denunciar o contrato de duração indeterminada nos casos seguintes: a) Necessidade de habitação pelo próprio ou pelos seus descendentes em 1.º grau; b) Para demolição ou realização de obra de remodelação ou restauro profundos que obriguem à desocupação do locado; c) Mediante comunicação ao arrendatário com antecedência não inferior a dois anos sobre a data em que pretenda a cessação”.
[3] Nem a doutrina. Com interesse ver Maria Olinda Garcia, O Arrendatário Invisível – A Comunicabilidade do Direito ao Cônjuge do Arrendatário no Arrendamento para Habitação, em Scientia Jvridica, Tomo LXV, nº 342, setembro/dezembro de 2016, pág. 403 e ss., e Jorge Pinto Furtado, Comentário ao Regime do Arrendamento Urbano, 2019, págs. 293 a 295.
[4] E seja qual for o regime de bens. Neste sentido cfr. Jorge Pinto Furtado, na ob. cit., págs. 296/297.
[5] Francisco de Castro Fraga (em Leis do Arrendamento Urbano Anotadas, AAVV, coord. António Menezes Cordeiro, junho de 2014, Almedina, p. 483), e Maria Olinda Garcia (em Nova Disciplina do Arrendamento Urbano, Coimbra Editora, 2.ª edição, pág. 97).
[6] Como escreve Francisco de Castro Fraga na ob. cit., pág. 483/484, “A razão da complexidade do processo de atualização das rendas nos contratos anteriores a 1990 prende-se com o facto de, por um lado, não se tratar de um mero aumento da renda, pois que em causa está também a negociação de um novo contrato integrado num verdadeiro processo negocial obrigatório, e, por outro lado, com a necessária e articulada conjugação entre o mercado do arrendamento e a avaliação fiscal do património a tributar. (…) A falta dos requisitos materiais previstos no citado artigo 50.° ou o não cumprimento das regras relativas à forma e destinatário da comunicação tem como consequência a ineficácia da comunicação, tudo se passando como se ela não tivesse sido feita.” (sublinhados nossos).
[7] Também se nos afigurando que o Ac. da RP de 15.2.2016 referido na sentença recorrida assenta em circunstancialismo distinto, embora se entenda que o tribunal recorrido recorreu ao mesmo para dar ênfase à necessidade de a comunicação efetuada pelo senhorio observar todos os requisitos legais, nomeadamente os formais, para ser eficaz.
[8] Não deixa lugar a dúvidas, nos dizeres do Ac. da RG, não admite discussões, nos dizeres do Ac. da RP.
[9] Ou seja, a partir do 1º dia do 2º mês seguinte ao termo do prazo de resposta.
[10] Tal como afirma o Ac. da RP a que se faz referência na nota 7.
[11] A consideração dos fatores subjetivos pode interessar, quer para determinar se houve ofensa da boa fé ou dos bons costumes, quer para decidir se se exorbitou do fim social ou económico do direito - Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 2ª ed., págs. 423/424.
[12] Menezes Cordeiro, em Da Boa Fé no Direito Civil, pág. 719 e ss., faz referência ao “venire contra factum proprium”, à “inalegabilidade de nulidades formais”, à “suppressio”, à “surrectio”, ao “tu quoque” e ao “desequilíbrio no exercício jurídico”.
[13] Com interesse sobre esta matéria, cfr. o Ac. da RL de 24.4.2008, P. 2889/2008-6 (Pereira Rodrigues), em www.dgsi.pt, onde  se enumeram figuras integradoras de comportamentos típicos de abuso de direito, exemplificando com jurisprudência pertinente nesta matéria.
[14] Menezes Cordeiro, em Litigância de Má Fé, Abuso de Direito de Ação e Culpa “In Agendo”, 2006, pág. 52, escreve que “Estas quatro proposições devem ser entendidas dentro da lógica de um sistema móvel. Ou seja: não há, entre elas, uma hierarquia e o modelo funciona mesmo na falta de alguma (ou algumas) delas: desde que a intensidade assumida pelas restantes seja tão impressiva que permita, valorativamente, compensar a falha”.
[15] Fazendo supor, também, que não iam invocar qualquer questão relativa à ineficácia da comunicação.
[16] O senhorio, em 23 de fevereiro de 2018, comunicou a oposição à renovação do contrato, por carta dirigida ao arrendatário e mulher, Ana Caetano, carta recebida igualmente por esta (factos 7 e 8), a que o arrendatário Carlos Caetano respondeu, sem invocar qualquer ineficácia da comunicação anteriormente recebida (em julho de 2013), como se constata do facto 9. De igual modo, os RR., tendo recebido a comunicação do A. referida em 10., onde referem, além do mais, «Como é do conhecimento de V. Exªs., por carta datada de 08/07/2013, recebida no dia 11/07/2013, foram V. Ex.ªs. notificados, nos termos do artigo 30º da Lei nº 31/2012 de 14 de agosto, que o contrato de arrendamento celebrado com V. Exa.ªs transitou para o NRAU, por prazo certo e pelo período de 5 anos.» não invocaram qualquer ineficácia da comunicação para o NRAU.