Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
429/17.5SCLSB.L1-9
Relator: CLÁUDIO DE JESUS XIMENES
Descritores: CONSUMO DE ESTUPEFACIENTES
CONSUMO MÉDIO INDIVIDUAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/15/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIMENTO
Sumário: A indicação, na tabela a que se refere o artigo 9º da Portaria nº 94/96, de 26 de março, dos valores correspondentes ao consumo médio de resina de Canabis (0,5 gr. diários) pressupõe um grau de concentração médio de 10% de A9TIIC, não de 100%.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acórdão da 9.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.


Relatório:


I.– A…, recorre da sentença que a condenou, como autora de um crime de detenção de estupefaciente para consumo previsto e punido pelo artigo 40.º, n.º 2 do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à Tabela I-C anexa a este diploma e à Portaria n.º 94/96 de 26/03 na interpretação fixada pelo Acórdão do STJ 8/2008, publicado no Diário da República, 1ª série, de 05.08.2008, na pena de 50 dias de multa à taxa diária de 6,00 euros, a que correspondem 33 dias de prisão subsidiária.

Termina as alegações do recurso com as seguintes conclusões:
1– A douta sentença recorrida violou o n.º 2 do art. 40.º do Decreto, Lei n.º 15/93, de 22/01, o n.º 2, do art. 32.º, da Constituição da República Portuguesa e o art. 9.º e mapa anexo da Portaria 94/96, de 26-03.

2– A Arguida vinha acusada de:
“No dia 12 de Agosto de 2017, pelas 8h, na Rua Cintura do Porto de Lisboa, a arguida foi abordada pela PSP tendo sido encontrados na sua posse vários pedaços de produto suspeito de ser estupefaciente que, submetido a teste rápido se apurou ser haxixe.
Realizado exame laboratorial ao produto apreendido, verificou-se ser Cannabis resina, com peso líquido de 6,832 gramas, com grau de pureza de 16,8%, correspondendo a um total de 24 doses médias diárias.
A arguida detinha o estupefaciente para seu próprio consumo e a quantidade de estupefaciente que detinha excedia a necessária para consumo médio individual de 10 dias.
A arguida conhecia a natureza estupefaciente do produto que tinha consigo, sabendo que a detenção para consumo é proibida e que detinha quantidade que excedia a necessária para consumo médio individual de 10 dias.
Actuou com a vontade livre e consciente e de forma voluntária, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei.”

3– Foi realizada a audiência de discussão e julgamento com observância do formalismo legal, tendo resultado provados os factos constantes da douta acusação, e a Arguida sido condenada pela prática do crime de detenção ilícita de estupefacientes, previsto no art. 40.º, n.º2, do D.L. n.º 15/93, de 22-1, com referência à tabela I-C anexa e à Portaria 94/96, de 26-3, na pena de 50 dias de multa à taxa diária de €6,00, o que perfaz o total de €300,00.

4– Ora, o tribunal a quo ao condenar a Arguida entendeu que a substância apreendida à mesma excedia a quantidade necessária para o consumo médio durante o período de dez dias, o que salvo melhor opinião em contrário, não podia ter dado como provado.

5– Segundo o acórdão de fixação de jurisprudência 3/2008, DR 150, Série I, de 5/8, do STJ “Não obstante a derrogação operada pelo artigo 28.º da Lei 30/2000, de 29/11, o art. 40.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, manteve-se em vigor não só “quanto ao cultivo” como relativamente à aquisição ou detenção, para consumo próprio, de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV, em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.

6– Por sua vez, o art. 2.º da Lei 30/2000, de 29-11, qualifica como contra-ordenação a conduta de quem adquire ou detém para consumo próprio aquelas substâncias em quantidade inferior à necessária para o consumo médio individual durante 10 dias.

7– A sentença recorrida ignorou o grau de pureza da substância submetida a exame pericial no LPC.

8– A percentagem do princípio activo encontrado na substância examinada é de 16,8%, correspondendo a 1,147 gramas de princípio activo existente no produto.

9– O princípio activo da canabis, que é o responsável pela maioria dos seus efeitos psicotrópicos é o tetrahidrocabinol (THC) existente no produto, a que se faz referência nas tabelas anexas, enquanto “droga pura”.

10– Ora, tendo o exame quantificado a percentagem do princípio activo, o tribunal recorrido devia tê-lo em conta para se socorrer dos valores constantes do mapa anexo à Portaria n. º 94/96 e adequá-los ao caso concreto.

11– Só perante a percentagem do princípio activo constante da substância apreendida, só perante um produto “puro”, seja canábis, seja qualquer outra substância, mormente heroína ou cocaína é que podemos avaliar se a quantidade detida é superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.

12– O produto "puro" apreendido ao arguido corresponde a 1,147 gramas.

13– Corresponde a menos de 2,000 gramas.

14– Como é sabido e nos ensinam as regras da experiência comum, "as drogas" encontram-se adulteradas no mercado, com adicionantes ou misturas para aumentar a quantidade e o correspondente lucro dos traficantes.

15– Dos 6,832 gramas do produto apreendido, apenas 1,147 gramas do produto se referia ao THC, o princípio activo cuja posse é proibida.

16– Os adicionantes ou misturas para aumentar a quantidade do produto não são proibidas por lei.

17– A Portaria n.º 94/96 prevê os limites de quantitativos máximos para cada dose média individual diária das plantas, estipulando para a canábis (resina), incluída na tabela I-C, anexa ao D.L. n.º 15/93, de 22 de Janeiro, a quantidade de 0,5 gramas.

18– Se o tribunal a quo tivesse atendido ao grau de pureza da substância submetida a exame, certamente teria chegado à conclusão de que o produto “puro” apreendido não era minimamente suficiente para ultrapassar o consumo médio individual de 10 dias.

19– Impunha-se que ficasse apurado o consumo médio individual da Arguida, para que se pudesse concluir se excedia ou não a quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.

20– Não ficou apurado o consumo médio individual da Arguida.

21– O conceito de quantidade necessária superior para o consumo médio individual durante o período de 10 dias poderá ser encontrado segundo vários critérios a ponderar em cada caso concreto, como seja o modo de consumo, e o grau de pureza da substância submetida a exame.

22– O princípio activo é a substância de estrutura química responsável por produzir uma alteração no organismo que pode ser de origem vegetal ou animal, no caso dos autos essa substância de estrutura química corresponde a 1,147 gramas, pelo que é imperioso concluir que tal quantidade não é superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.

23– A Arguida foi condenada sem fundamento legal.

24– A sentença recorrida violou o n.º 2 do art. 40.º do Decreto, Lei n.º 15/93, de 22/01, o n.º 2, do art. 32.º, da Constituição da República Portuguesa e o art. 9.º e mapa anexo da Portaria 94/96, de 26-03.

25– Bem como, a sentença recorrida padece do vício de erro notório na apreciação da prova a que alude o art. 410º, nº 2, alínea c) do C.P.P., uma vez que deu como provado algo que notoriamente está errado.

25– Nestes termos e nos melhores de direito, deverão V. Exas., absolver a Arguida do crime de consumo de estupefacientes, constituindo antes o seu comportamento a prática de uma contra-ordenação.

O Ministério Público defende a improcedência do recurso.

II.–   De acordo com as conclusões da motivação do recurso temos que decidir se, perante os factos provados, a recorrente deve ser condenada apenas por uma contraordenação e não pelo crime por que foi condenada.
A recorrente defende que a sentença recorrida "padece do vício de erro notório na apreciação da prova a que alude o art. 410º, nº 2, alínea c) do C.P.P., uma vez que deu como provado algo que notoriamente está errado”, que, perante os factos provados, ela deve ser condenada apenas por uma contraordenação e não pelo crime de detenção de estupefaciente para consumo previsto e punido pelo artigo 40.º, n.º 2 do Decreto-Lei 15/93, e que foi violado o disposto no n.º 2 deste artigo 40.º, no n.º 2 do artigo 32.º da Constituição e no artigo 9.º e no mapa anexo da Portaria 94/96.

Contudo não tem razão.
a)- Sobre o erro notório na apreciação da prova, está escrito no artigo 410.º, n.º 2, alínea c) do CPP:
Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:

c)- Erro notório na apreciação da prova.

A letra dessa disposição não deixa dúvidas de que o erro notório na apreciação da prova nela referido só pode ser aquele que se coloca ao nível da matéria de facto e de que o Tribunal de recurso só pode conhecer desse vício quando ele resulte da decisão recorrida ou da decisão recorrida conjugada com as regras da experiência.

Não encontramos nada na decisão recorrida que sustente a existência de qualquer erro na apreciação da prova, muito menos notória. A recorrente não indica na motivação que pontos concretos da matéria de facto considera incorrectamente julgados nem que provas permitam decisão diversa, como impõe o artigo 412.º, n.º 3, do CPP. Além disso, como consta da acta da audiência de julgamento, a recorrente confessou os factos imputados livre e integralmente e sem reservas, o que levou o Juiz a dispensar a produção da prova quanto a eles (fls. 48 a 51).

Só uma errada interpretação do artigo 410.º, n.º 1, alínea c), do CPP leva a recorrente a dizer que a sentença recorrida sofre de erro notório na apreciação da prova.

b)- Sobre a infracção cometida pela recorrente, está provado, por confissão integral, voluntária e sem reservas que no dia 12 de Agosto de 2017 a recorrente tinha na sua posse, para seu consumo, haxixe com o peso líquido de 6,832 gramas e o grau de pureza de 16,8%, que dava para 24 doses médias diárias, quantidade que excedia a necessária para o consumo médio individual de 10 dias, voluntária e livremente e  sabendo que a sua conduta era proibida por lei.

Diz o artigo 40.º do Decreto-Lei 15/93:
1- Quem consumir ou, para o seu consumo, cultivar, adquirir ou detiver plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 30 dias.
2- Se a quantidade de plantas, substâncias ou preparações cultivada, detida ou adquirida pelo agente exceder a necessária para o consumo médio individual durante o período de 3 dias, a pena é de prisão até 1 ano ou de multa até 120 dias.
Segundo o artigo 2.º da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, o consumo, a aquisição e a detenção para consumo próprio de plantas, substâncias e preparações constantes das tabelas I a IV anexas ao Decreto-Lei n.º 15/93 constitui contraordenação desde que em quantidade não superior à necessária para o consumo médio individual durante 10 dias.

Está escrito no nº 9.º da Portaria 94/96:
Os limites quantitativos máximos para cada dose média individual diária das plantas, substâncias ou preparações constantes das tabelas I a IV anexas ao Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, de consumo mais frequente, são os referidos no mapa anexo à presente portaria, da qual faz parte integrante.
Contra o que seria aconselhável pela facilidade da compreensão de qualquer mensagem escrita, o mapa anexo a essa portaria está apresentada numa forma que dificulta a compreensão do que aí se quer dizer.
Mas, depois de algum esforço de decifração, ficamos a saber que alguns dos números e letras que se encontram entre parênteses num mapa que contém siglas ou abreviaturas de componentes químicos [PCP, LSD, MDMA, A9TIIC – mais correctamente Δ9THC (tetrahidrocanabinol), que é o princípio activo da canabis], não são fórmulas químicas (ou matemáticas) mas notas de remissão para o que está escrito mais abaixo.
Vemos então, de acordo com as notas (1) e (3 - c) e e) do mapa anexo a que se refere o nº 9.º da Portaria 94/96, que a quantidade máxima diária da canabis resina prevista é de 0,5 gramas, que a quantidade de canabis resina indicada se refere à média diária com base na variação do conteúdo médio do tetraidrocanabinol (THC ou Δ9THC) existente nos produtos da canabis, e numa concentração média de 10% de tetraidrocanabinol (THC ou Δ9THC). Ou seja, os valores correspondentes ao consumo médio da canabis resina indicados nessa tabela partem de uma concentração média de 10%, e não de 100%, de tetraidrocanabinol, que é o princípio activo da canabis.
O Tribunal da Relação do Porto no acórdão de 02.10.2013 no processo 2465/11.6TAMTS.P1 também entendeu que os valores correspondentes ao consumo médio de estupefacientes indicados na tabela a que se refere o artigo 9º da Portaria 94/96 pressupõe um grau de concentração médio de 10% de tetraidrocanabinol, não de 100%.  Entendeu também que valores indicados nessa tabela podem ser afastados se se provar que são diferentes as necessidades de consumo habitual do arguido.
No caso sob recurso está provado que a canabis resina na posse do recorrente tinha a pureza de 16,8% (superior ao indicado na portaria 94/96) e a sua quantidade correspondia a 24 doses médias diárias e excedia a necessária para o consumo médio individual de 10 dias.
Portanto, a conduta do recorrente não integra apenas a contraordenação prevista no artigo 2.º da Lei n.º 30/2000 mas, sim, o crime previsto no artigo 40.º, n.º 2, do Decreto-Lei 15/93 pelo qual foi condenada.
II.– Por decair totalmente no recurso, a recorrente (arguida) deve suportar as custas do processo, com a taxa de justiça fixada em 6 UCs, tendo em conta a complexidade do caso e os limites fixados na tabela III, nos termos dos artigos 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e 513.º, n.º 1, do CPP.

IV.–  Pelo exposto, deliberamos, por unanimidade,
a)- Julgar improcedente o recurso interposto por A…,; e
b)- Condenar a requerente nas custas, fixando a taxa de justiça em 6 UCs.

Lisboa, 15 de Fevereiro de 2018

Cláudio de Jesus Ximenes
Manuel Almeida Cabral