Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
16955/15.8T8LSB.L2-8
Relator: ILÍDIO SACARRÃO MARTINS
Descritores: DEVER DE GESTÃO PROCESSUAL
DEVER DE COOPERAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: – O dever de gestão processual exposto no artigo 6º do Código de Processo Civil deverá ser satisfeito no contexto do rito processual legal preexistente (na forma legal).

– Contudo, o apelo à cooperação previsto no artigo 7º e à gestão processual do artigo 6º, não obnubilam a existência de normas expressas, algumas preclusivas, que visam salvaguardar práticas processuais consolidadas.

(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa.


I–RELATÓRIO:


VM intentou acção que denominou de “declarativa de condenação sob a forma de processo sumário” contra “Administração do Condomínio do prédio sito na Rua X nºs 15 e 15-A”, pedindo que “deve a Administração do Condomínio sito na Rua X, nº 15-15-A em Lisboa, representada pelo seu administrador ser condenada e o seu actual administrador ser destituído das suas funções por violação culposa dos seus deveres e ter agido com negligência e ter praticado irregularidades no exercício das suas funções”.

Em substância, alegou que é condómino em tal prédio urbano, tendo requerido que fosse realizada uma assembleia extraordinária de condóminos devido a umas obras que se realizaram numa fracção do prédio que causam prejuízos na sua fracção. O condomínio recusou realizar a assembleia.

Assim, a administração do condomínio violou culposamente o disposto no artigo 1436º alíneas a), f) e g), do Código Civil.

A ré contestou, invocando a ineptidão da petição inicial. Por impugnação, alegou que o autor não justificou o agendamento da assembleia de condóminos e ainda que o mesmo nunca foi prejudicado. O autor não habita a fracção em causa, que esteve fechada, sem ocupação de pessoas, com vidros e estores partidos, com janelas abertas, proporcionando a entrada de águas e estragos, assim se degradando.

Pugna pela procedência da excepção e pela absolvição da instância. Caso assim se não entenda, pede a absolvição da ré.

O autor respondeu, pronunciou-se pela não verificação da mencionada excepção dilatória.

Configurando o tribunal a verificação de erro na forma de processo, concedeu-se às partes o uso do contraditório.

O autor veio dizer que na realidade fez dois pedidos diferentes, pelo que a petição inicial não tomou a forma especial, e que caso o entendimento for de erro na forma de processo, deve ser aproveitada a petição inicial, passando para a forma legal e apenas se anularem os actos que não possam ser aproveitados.

A ré veio dizer que atento o disposto no artigo 1056.º, do Código de Processo Civil, verifica-se uma nulidade decorrente de erro na forma de processo, devendo ser declarada tal excepção dilatória, com absolvição da instância.

Por decisão de 19.05.2016, foi considerado que, perante a nulidade da petição, que determina a nulidade todo o processo, impõe-se a absolvição da ré da instância (artigos 186.º, 577.º, alínea b), 578.º, e 278.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil). Em razão do exposto, julgou verificada a excepção dilatória de nulidade de todo o processo e, em consequência, absolveu a ré da instância.

O autor interpôs recurso de tal decisão e a Relação de Lisboa, no seu acórdão de 18.10.2016, absolveu o réu da instância quanto ao primeiro pedido deduzido pelo autor com fundamento na excepção dilatória da ineptidão da petição nesse segmento e julgou parcialmente procedente a apelação, revogando a sentença proferida a 19.05.2016 e ordenou a sua substituição por despacho que ordene o prosseguimento dos autos e com a tramitação prevista no artigo 1056º do Código de Processo Civil, aproveitando-se os actos anteriormente praticados.

Em 11.01.2017 foi proferido o seguinte despacho:
“O requerente peticiona a destituição do actual administrador do condomínio. Na sua petição inicial não o identifica. Da acta que juntou à petição inicial consta a eleição, em 2015, de dois condóminos como administradores, que são as pessoas indicadas na contestação para prestarem declarações de parte.
Assim e antes de mais, convido o requerente a esclarecer em conformidade, em 10 dias, designadamente concretizando quem pretende ver destituído”.

O autor foi notificado daquele despacho em 11.01.2017 (fls 156), devendo responder ao convite até 25.01.2017.

Em 23.06.2017 foi proferido o seguinte despacho.
“(…) O despacho de convite ao aperfeiçoamento de 11 de Janeiro de 2017 foi proferido ao abrigo de um poder a que o juiz se encontra vinculado previsto conjugadamente nos artigos 6º e 590º do Código de Processo Civil.
E tal despacho foi proferido por o tribunal ter constatado a mesma irregularidade e insuficiência que o autor ora vem indicar e pretender rectificação por se tratar de lapso material. Assim sendo, o autor deveria ter respondido ao indicado convite formulado no prazo que lhe foi fixado de 10 dias.
Tendo decorrido tal prazo sem que o tivesse feito, mostra-se precludido o direito a fazê-lo – artigo 139º nº 3, do Código de Processo Civil, pelo que se indefere o requerido. Notifique. Oportunamente conclua”
Este despacho tem força obrigatória dentro do processo, ou seja, fez caso julgado formal, nos termos do disposto no artigo 620º do Código de Processo Civil.

Foi proferida SENTENÇA que julgou a acção improcedente e absolveu a ré do pedido.

Não se conformando com a sentença, dela recorreu o autor, tendo formulado as seguintes CONCLUSÕES:
1ª– No entendimento do recorrente, foram violados os artigos 5º nº 1 e 6º, 139º nº 3 e 590º, todos do Código de Processo Civil e ainda o artigo 342º do Código Civil.
2ª– Na verdade, o recorrente não respondeu ao convite de aperfeiçoamento por, no caso em questão, não se tratar de convite ao aperfeiçoamento, mas sim na reparação de um erro material.
3ª– As partes foram notificadas electronicamente do mesmo despacho via plataforma “Citius”, com a data de elaboração de 6 de Fevereiro de 2017, de que podia ser proferida decisão final sem necessidade de produção de prova.
4ª– No mesmo dia em que foi notificado do referido despacho, o ora recorrente respondeu que, por manifesto erro material, peticionou a destituição do actual administrador do condomínio, quando queria peticionar a destituição dos administradores e não só de um.
5ª– Assim, e no entendimento do recorrente, por o convite ao aperfeiçoamento não respondido pelo ora recorrente, não ser um aperfeiçoamento, mas sim a reparação de um erro material que se penitenciou, não devia ter sido proferida a decisão final se a necessidade dos meios de prova.
6ª– O condomínio, alegou na sua resposta que não se opunha a que a decisão final fosse proferida sem necessidade de produção de meios de prova.
7ª– Ora, com o devido respeito, convite ao aperfeiçoamento não respondido pelo ora recorrente, foi por não se tratar de um aperfeiçoamento, mas sim de reparação de um erro material, pois tratava-se aqui do pedido de destituição dos dois administradores do condomínio e não só de um.
8ª– Com o devido respeito, mas o recorrente não tinha que responder no prazo de 10 dias ao referido aperfeiçoamento, uma vez que se tratava meramente de um erro material e não de um aperfeiçoamento.
9ª– Na opinião do ora recorrente e tratando-se assim de um erro material, o ora recorrente requereu que o mesmo fosse reparado, pelo que não devia ter sido doutamente decidido a prolação da decisão sem a produção da decisão sem os meios de prova e a consequente improcedência da acção, pois cabia ao recorrente provar os factos necessários para que a sua pretensão fosse julgada procedente por provada.
10ª– Com o devido respeito, mas a douta sentença deve ser alterada e deve ser doutamente ordenada a reparação do referido erro material.
Termina, pedindo que o recurso seja julgado procedente e a sentença seja alterada.

Não houve contra-alegações.

Dispensados os vistos, cumpre decidir.

II–FUNDAMENTAÇÃO.

A)–Fundamentação de facto
A matéria a considerar é a que resulta do antecedente relatório.

B)–Fundamentação de direito

A questão colocada e que este tribunal deve decidir, nos termos dos artigos 663º nº 2, 608º nº 2, 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2 do novo Código de Processo Civil consiste em saber se a sentença aplicou correctamente o direito.
Alega o apelante, em síntese, que “não respondeu ao convite de aperfeiçoamento por, no caso em questão, não se tratar de convite ao aperfeiçoamento, mas sim na reparação de um erro material”.

A sentença recorrida, proferida em 27.20.2017, decidiu nos seguintes termos:

VM intenta acção especial de exoneração de administrador na propriedade horizontal contra “Administração do Condomínio do prédio sito na Rua Xnºs 15 e 15-A”, pedindo que o actual administrador do condomínio seja destituído das suas funções por violação culposa dos seus deveres e ter agido com negligência e ter praticado irregularidades no exercício das funções.
A Administração do Condomínio contestou a acção no sentido da improcedência da mesma, mais pedindo a condenação do Autor como litigante de má-fé.
Uma vez que o Autor peticionou a destituição do actual administrador do condomínio e na sua petição inicial não o identificou, o Tribunal convidou-o, nos termos do despacho de fls. 155, a concretizar e identificar quem pretendia ver destituído.
O Autor não respondeu ao convite. Perante tal facto e configurando-se que poderia ser proferida decisão final sem necessidade produção de meios de prova, foram as partes notificadas para, querendo, se pronunciarem.
O Autor veio requerer a existência de erro material na petição e requerer a respectiva correcção, não devendo ser proferida decisão final sem produção de meios de prova.
A Ré veio pronunciar-se no sentido de não se opor à prolação de decisão final sem produção de meios de prova.
Foi proferida decisão, transitada em julgado, a indeferir o requerido pelo Autor.
Conforme resulta da petição inicial o Autor peticionou a destituição do actual administrador do condomínio, não o identificando na sua petição inicial, alegando, designadamente nos artigos 11.º e 12.º da mesma, “o Administrador”.
Da acta junta à petição inicial, consta a eleição de dois condóminos como administradores.
Tal alegação e formulação do pedido motivaram a prolação do indicado despacho de convite à concretização e identificação de quem o Autor pretende ver destituído.
Nos termos do artigo 5.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções invocadas.
De acordo com o disposto no artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil, àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado.
Em suma, um autor deve alegar a factualidade constitutiva do direito que alega.
A causa de pedir é assim configurada pela alegação dos factos constitutivos do direito alegado.
No caso concreto, e perante uma causa de pedir imperfeita resultante da indicada falta de indicação e de concretização do Administrador que pretende ver destituído, o Autor não respondeu ao citado convite ao aperfeiçoamento.
E ao mesmo cabia a referida concreta alegação.
Segundo ABRANTES GERALDES (Temas da Reforma do Processo Civil, I Volume, 2.ª Edição Revista e Ampliada, página 209) “Quando a causa de pedir é indicada, em resultado da articulação do núcleo essencial dos factos constitutivos do direito invocado, mas falta a alegação de algum facto necessário para que a pretensão possa ser julgada procedente consideramos que deve qualificar-se como inviável a petição.”.
Desta forma e faltando a alegação dos referidos elementos factuais necessários, é de concluir desde já pela improcedência da acção.
Pelo exposto julgo a acção manifestamente improcedente e, em consequência, absolva a Ré do pedido.
Mais condeno o Autor no pagamento das custas, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário que lhe foi concedido. Fixo o valor da causa em €30.000,01”.

Argumenta o autor, ora apelante, que foram violados os artigos 5º nº 1 e 6º, 139º nº 3 e 590º, todos do Código de Processo Civil e ainda o artigo 342º do Código Civil.
Com o convite contido no despacho de 11.01.2017, o juiz fez o uso dos deveres de gestão processual previstos no nº 1do artigo 6º do Código de Processo Civil e actuou ainda de acordo com o princípio da cooperação previsto no artigo 7º nºs 1 e 2 do mesmo código.


O dever de gestão processual previsto no artigo 6º do Código de Processo Civil
O artigo 6º (Dever de gestão processual) do Código de Processo Civil preceitua no seu nº 1 o seguinte:
“1– Cumpre ao juiz, sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes, dirigir activamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da acção, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório e, ouvidas as partes, adoptando mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável”.
Segundo o apelante o tribunal violou aquele dever, sem contudo apresentar justificação plausível para tal violação.

É nosso entendimento que o processo civil cada vez menos deve ser encarado com o primado da forma em detrimento da substância.

Além do mais, importa ainda mencionar que o espírito e a filosofia que estão subjacentes ao Código de Processo Civil também apontam para a conveniência de interpretar a petição inicial de modo a que a acção possa ser aproveitada, evitando a absolvição da instância por razões meramente formais e sem que tal justificação se vislumbre como efectivamente necessária.

De facto, a filosofia subjacente ao Código de Processo Civil – concretizada por diversos modos em várias disposições legais – visa assegurar, sempre que possível, a prevalência do fundo sobre a forma, pretendendo que o processo e a respectiva tramitação possam ter a maleabilidade necessária para que possa funcionar como um instrumento (e não como um obstáculo) para alcançar a verdade material e a concretização dos direitos das partes, como claramente se evidencia no preâmbulo do Dec-Lei nº 329-A/95 de 12/12 (note-se que toda essa filosofia foi reafirmada e até reforçada no CPC actualmente vigente), quando ali se diz que as linhas mestras do processo assentam, designadamente na “Garantia de prevalência do fundo sobre a forma, através da previsão de um poder mais interventor do juiz…”; quando ali se refere que “visa, deste modo, a presente revisão do Código de Processo Civil torná-lo moderno, verdadeiramente instrumental no que toca à perseguição da verdade material, em que nitidamente se aponta para uma leal e sã cooperação de todos os operadores judiciários, manifestamente simplificado nos seus incidentes, providências, intervenção de terceiros e processos especiais, não sendo, numa palavra, nem mais nem menos do que uma ferramenta posta à disposição dos seus destinatários para alcançarem a rápida, mas segura, concretização dos seus direitos”; quando se alude ao “…objectivo de ser conseguida uma tramitação maleável, capaz de se adequar a uma realidade em constante mutação…” e quando se afirma que o processo civil terá que ser perspectivado “…como um modelo de simplicidade e de concisão, apto a funcionar como um instrumento, como um meio de ser alcançada a verdade material pela aplicação do direito substantivo, e não como um estereótipo autista que a si próprio se contempla e impede que seja perseguida a justiça, afinal o que os cidadãos apenas pretendem quando vão a juízo”.

Voltando ao dever de gestão processual contido na disposição do artigo 6º, diremos que aqueles deveres ali expostos deverão ser satisfeitos no contexto do rito processual legal preexistente (na forma legal).

Contudo, o apelo à cooperação previsto no artigo 7º e à gestão processual não obnubilam a existência de normas expressas, algumas preclusivas, que visam salvaguardar práticas processuais consolidadas.

Apesar do supra mencionado espírito e filosofia do Código de Processo Civil, as normas processuais preservam elementares regras de segurança jurídica. Não comportam os meandros pelos quais o autor pretende que o tribunal enverede e que conduziriam à violação pura e simples de lei expressa.

Note-se que o autor nem se dignou responder, em tempo, ao convite ao aperfeiçoamento formulado pelo juiz, argumentando agora que se trata de reparação de um erro material.

Por isso, bem decidiu o juiz no despacho proferido em 23.06.2017, e que acima se deixou transcrito. Foram ainda aquelas elementares regras de segurança jurídica que levaram o juiz, além da prolação do despacho de 23.06.2017, a proferir com acerto a sentença recorrida.

Nesta conformidade e sem necessidade de maiores considerações, improcedem as conclusões das alegações do apelante.

CONCLUSÃO
– O dever de gestão processual exposto no artigo 6º do Código de Processo Civil deverá ser satisfeito no contexto do rito processual legal preexistente (na forma legal).

– Contudo, o apelo à cooperação previsto no artigo 7º e à gestão processual do artigo 6º, não obnubilam a existência de normas expressas, algumas preclusivas, que visam salvaguardar práticas processuais consolidadas.



III–DECISÃO
Atento o exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pelo apelante.



Lisboa, 08-02-2018



Ilídio Sacarrão Martins
Teresa Prazeres Pais 
Isoleta de Almeida Costa