Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
12980/22.0T8LSB.L1-2
Relator: HIGINA CASTELO
Descritores: FORMA DE PROCESSO
CUMULAÇÃO DE PEDIDOS
TRIBUNAL COMPETENTE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/11/2023
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADO O DESPACHO
Sumário: I. A forma de processo é aferível em função do pedido formulado pelo autor.
II. Cumulando-se pedidos com forma de processo comum, de valor superior € 50.000 e para os quais é competente o juízo central cível no qual a ação foi proposta, com pedido a que corresponde processo especial da competência do juízo local cível, esta circunstância não conduz (pelo menos, necessariamente) a que o tribunal se julgue incompetente relativamente a todos os pedidos.
III. A um pedido de reconhecimento de direito de compropriedade – sem que se formule um pedido de divisão em substância da coisa comum ou de adjudicação ou venda desta, com repartição do respetivo valor – não corresponde processo especial para divisão de coisa comum.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 12980/22.0T8LSB.L1-2
Secção: 2ª.
Data: 11-5-2023
Relatora: Higina Castelo.
Apelação.
Revogado o despacho.
Unanimidade e maioria quanto às custas.

Descritores:
- Forma de processo.
- Cumulação de pedidos.
- Tribunal competente.

Sumário
I. A forma de processo é aferível em função do pedido formulado pelo autor.
II. Cumulando-se pedidos com forma de processo comum, de valor superior € 50.000 e para os quais é competente o juízo central cível no qual a ação foi proposta, com pedido a que corresponde processo especial da competência do juízo local cível, esta circunstância não conduz (pelo menos, necessariamente) a que o tribunal se julgue incompetente relativamente a todos os pedidos.
III. A um pedido de reconhecimento de direito de compropriedade – sem que se formule um pedido de divisão em substância da coisa comum ou de adjudicação ou venda desta, com repartição do respetivo valor – não corresponde processo especial para divisão de coisa comum.

Acórdão
I. Relatório
“A”, autora neste processo em que são réus “B”, “C” e “D”, notificada do despacho, proferido em 28/11/2022, que decidiu haver erro na forma de processo e que o Juízo Central Cível não seria competente para apreciar a causa, e com esse despacho não se conformando, interpôs o presente recurso.

A compreensão do litígio e do objeto do recurso impõe um pequeno resumo dos autos:
A autora intenta a presente ação declarativa de condenação, com processo comum, contra os três réus alegando, em síntese, que:
i. Viveu em união de facto com o pai dos réus, durante cerca de 40 anos, até o seu decesso, ocorrido em (…)2019;
ii. Durante esse período, em 2001, a autora e o seu falecido companheiro (pai dos réus) compraram, em compropriedade e na proporção de metade para cada um, uma fração autónoma de um prédio situado em Lisboa, cujo valor patrimonial é de €54.292,35;
iii. Em 18/01/2010, a autora e o seu companheiro pediram um empréstimo pessoal a “E”, no montante de € 102.000, que aquele lhes concedeu;
iv. A autora e o seu companheiro contraíram também um empréstimo junto do Banco Santander Totta, estando em dívida na data do óbito a quantia de €18.466,42, quantia essa suportada ao abrigo do seguro vida apólice (…) - Sinistro (…)05;
v. À cautela uma vez que ainda não havia resposta por parte da seguradora, a autora recorreu ao seu filho para minimizar as prestações em incumprimento relativamente ao referido empréstimo, tendo o filho emprestado para esse efeito a quantia global de €2.440;
vi. Após a seguradora ter liquidado os valores correspondentes ao capital seguro na data do óbito, encontra-se na conta bancária (…)01 do Banco Santander Totta, a quantia de €1.600,09 em saldo contabilístico e €-46,58 em saldo disponível;
vii. A autora tem suportado os I.M.I. do imóvel acima referido, importando a quota-parte do seu falecido companheiro no montante global de €305,12;
viii. Em relação ao mesmo imóvel, há uma dívida ao condomínio na quantia de €1.141,80, até março de 2022;
ix. A autora e o seu companheiro haviam adquirido a sociedade “”G” Café e Pastelaria Lda”, entretanto extinta, mas da qual permanece dívida de €4.428, correspondente aos serviços de contabilidade, relativamente aos exercícios de 2012, 2013 e 2014;
x. Foi a A. que custeou integralmente o funeral do companheiro, no montante de €2.019,30, tendo recebido do Instituto da Segurança Social a quantia de €1.307,28;
xi. Foi a autora que suportou os custos com a escritura de habilitação de herdeiros no valor de €217,17 (pese embora a respetiva fatura ter sido emitida em nome da cabeça-de-casal da herança, a ré “B”);
xii. Na sequência, conclui que a autora e seu falecido companheiro, que tem como herdeiros os réus, são contitulares de: a) um ativo no montante de €55.845,86, cabendo à autora a quantia de €27.922,23, que corresponde a metade, e aos réus a mesma quantia e proporção; e, b) um passivo no montante de €111.244,01, cabendo à autora metade, ou seja, €55.622,01 e aos réus idêntica proporção e quantia.
Termina pedindo que a ação seja julgada procedente por provada e, em consequência, os réus condenados a:
a) reconhecerem o ativo na quantia de €55.845,86 (cinquenta e quatro mil, duzentos e noventa e dois euros e trinta e cinco cêntimos), cabendo à autora a quantia de €27.922,23 (vinte e sete mil, novecentos e vinte e dois euros e vinte e três cêntimos) que corresponde na proporção de metade, e aos réus a mesma quantia e na mesma proporção;
b) reconhecerem o passivo na quantia de €111.244,01 (cento e nove mil, duzentos e quarenta e quatro euros e um cêntimo) cabendo á A. a quantia de €55.622,01 (cinquenta e cinco mil seiscentos e vinte e dois euros e um cêntimo) e aos réus na mesma quantia e na mesma proporção.
c) solidariamente, pagarem metade do passivo, na quantia de €55.622,01 (cinquenta e cinco mil, seiscentos e vinte e dois euros e um cêntimo).

Pessoal e regularmente citados, nenhum dos réus contestou a ação.

Seguidamente, foi proferido despacho em 17/10/2022, pelo qual o tribunal a quo ordenou a notificação das partes para se pronunciarem sobre o eventual erro na forma de processo.

A autor respondeu que, com a presente ação, pretende impor aos herdeiros uma partilha do ativo e passivo do património construído por si pelo falecido ao longo dos 40 (quarenta) anos de união de facto. Nesse sentido, afigura-se-lhe que a ação de divisão de coisa comum não é o meio adequado e próprio para vir exigir aos herdeiros o pagamento de valores suportados para a aquisição de bens durante a união de facto ou de dívidas do casal unido de facto. E que a ação declarativa com processo comum é a que corresponde à pretensão por si formulada, de serem os réus condenados a reconhecerem o ativo e o passivo, e os respetivos valores, bem como de serem condenados solidariamente ao pagamento de metade do passivo, na quantia de €55.622,01.
Foi, em seguida, proferido o despacho objeto de recurso onde se lê, no essencial:
«Do erro na forma do processo e da incompetência deste Juízo Central Cível:
1 - A primeira questão que cabe resolver ab initio é a adequação da forma de processo utilizada pela Autora.
(…)
Ora, apesar da Autora não pedir a divisão, requer que os Réus reconheçam um activo e que se reconheça que cabe à Autora e aos Réus a proporção de metade desse activo (e também um alegado passivo).
É verdade que os pedidos formulados pela Autora não se reconduzem directamente à acção de divisão de coisa comum, ou seja, para se proceder “à divisão em substância da coisa comum ou à adjudicação ou venda desta, com repartição do respectivo valor, quando a considere indivisível” – artigo 925.º do Código de Processo Civil.
No entanto, resulta dito de outra forma que a Autora pretende que seja considerado que a própria e os Réus são titulares de 50% do activo (que é constituído por um imóvel). Esse pedido de reconhecimento implica que tal ocorra numa acção de divisão de coisa comum, na qual será fixado o quinhão de cada um. Assim, a compropriedade alegada pela Autora constitui, pois, a causa de pedir na presente acção e essa compropriedade é o pressuposto da acção de divisão de coisa comum.
Verifica-se, pois, no caso concreto, um erro na forma do processo.
Como já foi referido, o erro na forma do processo constitui nulidade de conhecimento oficioso que importa a anulação dos actos que não possam ser aproveitados, devendo praticar-se os que forem estritamente necessários para que o processo se aproxime, quanto possível, da forma estabelecida por lei.
Este erro é sanável nos casos em que a petição inicial comporta a identificação do concreto direito a dividir, descreve uma dada situação de comunhão e encerra uma manifestação expressa da vontade de se proceder à divisão de um direito.
É o que se verifica no caso concreto. Assim, a Autora identifica o imóvel, descreve a situação de compropriedade e invoca a sua expressa vontade de pôr termo a comunhão (artigo 4.º da petição inicial).
A circunstância de o articulado em causa não especificar a posição relativa de cada um dos consortes e a medida das respectivas quotas e de nele não se pedir expressamente a adjudicação da coisa a algum dos comproprietários ou a sua venda não passam de omissões perfeitamente sanáveis por via de um eventual e futuro convite ao aperfeiçoamento dirigido à Autora, seguido da concessão aos Réus da possibilidade de exercerem o devido contraditório.
Verifica-se assim na situação sob análise erro na forma de processo, nulidade de conhecimento oficioso, podendo ser aproveitados os actos praticados até ao momento, determinando-se que o processo seja tramitado sob a forma de processo especial (artigo 546.º do Código de Processo Civil), descarregando na 1.ª e carregando na 3.ª espécie, nos termos do disposto nos artigos 211.º e 212.º, ambos do Código de Processo Civil.
2 – Tendo sido determinado que os presentes autos sigam a forma de processo especial, cumpre verificar se este Juízo Central Cível de Lisboa mantém a sua competência.
A competência dos Juízos Centrais Cíveis encontra-se prevista no artigo 117.º da LOSJ, onde não se insere a competência para tramitar e decidir acções especiais.
(…)
Por todo o exposto, declaro este Juízo Central Cível incompetente, em razão da matéria, para tramitar e apreciar a presente acção especial de divisão de coisa comum e, em consequência, absolvo os Réus da instância.
(…)»

A autora não se conformou e recorreu, concluindo as suas alegações de recurso da seguinte forma:
«A - A Recorrente não se conforma com a douta sentença recorrida por entender que a mesma enferma dos seguintes vícios:
B - Entende a Recorrente ter havido erro na apreciação da forma do processo, e consequente erro na decisão da incompetência deste tribunal.
C - Salvo o devido respeito e sem prejuízo do que antecede, a douta sentença recorrida efectuou uma errada apreciação da petição inicial da Recorrente, porquanto:
D - A Recorrente alega que “F” faleceu em (…) 2019 e deixou como únicos herdeiros os RR., tendo vivido com este em união de facto cerca de 40 anos;
E - Tendo adquirido com o falecido em comum a fracção autónoma designada pela letra “H”, que corresponde ao segundo andar lado esquerdo, do prédio constituído em propriedade horizontal, sito na Rua (…), concelho de Lisboa;
F - Não pretende continuar na situação de compropriedade;
G - A Recorrente e o seu falecido companheiro contraíram os empréstimos referidos.
H - Os I.M.I, o funeral e a escritura de habilitação de herdeiros foram suportados pela Recorrente.
I - E a dívida relativamente aos serviços de contabilidade da extinta sociedade “”G” Café e Pastelaria Lda”, NIPC: (…), extinta,
J - Nesta sequência, alega a Recorrente que: Dado que Recorrente e o falecido “F” compraram em comum o referido imóvel, podemos concluir que ambos são titulares do direito de propriedade, tendo por isso, adquirido em regime de compropriedade, conforme a definição explanada no artigo 1403.º do Código Civil.
K - Assistindo, assim, à Recorrente o direito de recorrer à via judicial para intentar a presente acção declarativa de condenação com processo comum para que aos RR. seja atribuída a responsabilidade por metade do imóvel referido no artigo 3.º da petição inicial, bem como, em 50% do passivo que Recorrente, e o seu falecido companheiro, “F”, haviam contraído;
L - Assim, há em compropriedade, cujos os co-proprietários são a Recorrente. e o seu falecido companheiro “F”, que tem como herdeiros os aqui Réus;
M - A Recorrente Peticiona, a final que: - serem os RR. condenados a reconhecerem o activo na quantia de €55.845,86 (cinquenta e quatro mil, duzentos e noventa e dois euros e trinta e cinco cêntimos), cabendo à Recorrente a quantia de €27.922,23 (vinte e sete mil, novecentos e vinte e dois euros e vinte e três cêntimos) que corresponde na proporção de metade, e aos Réus a mesma quantia e na mesma proporção;
N - Serem os RR. condenados a reconhecerem o passivo na quantia de € 111.244,01 (cento e nove mil, duzentos e quarenta e quatro euros e um cêntimo) cabendo à Recorrente. a quantia de €55.622,01 (cinquenta e cinco mil seiscentos e vinte e dois euros e um cêntimo) e aos Réus na mesma quantia e na mesma proporção.
O - Serem os RR. condenados solidariamente ao pagamento de metade do passivo, na quantia de €55.622,01 (cinquenta e cinco mil, seiscentos e vinte e dois euros e um cêntimo).
P - Existe propriedade em comum, ou compropriedade, quando duas ou mais pessoas são simultaneamente titulares do direito de propriedade sobre a mesma coisa (artigo 1403.°, n.° 1 do Código Civil).
Q - As regras da compropriedade são aplicáveis, com as necessárias adaptações, à comunhão de quaisquer outros direitos, sem prejuízo do disposto especialmente para cada um deles (artigo 1404.° do Código Civil).
R - Dispõe o artigo 1412.°, n.° 1 do Código Civil que nenhum dos comproprietários é obrigado a permanecer na indivisão, salvo quando se houver convencionado que a coisa se conserve indivisa.
S - Assim, nos termos do artigo 925.° do Código de Processo Civil, todo aquele que pretenda pôr termo à indivisão de coisa comum requer, no confronto dos demais consortes, que, fixadas as respectivas quotas, se proceda à divisão em substância da coisa comum ou à Divisão de Coisa Comum, adjudicação ou venda desta, com repartição do respetivo valor, quando a considere indivisível, indicando logo as provas.
T - A causa de pedir na acção de divisão de coisa comum consiste na situação de comunhão de direitos e na vontade de um ou mais consortes pôr termo à respectiva e concreta indivisão, devendo o autor na Petição Inicial identificar o prédio ou a coisa mobiliária a dividir, alegar a compropriedade ou comunhão e especificar a posição relativa de cada consorte e o volume das respectivas quotas (Processos Especiais de Divisão de Coisa Comum e de Prestação de Contas, Luís Filipe Pires de Sousa, 2016, Almedina, página 87/88).
U - O que pretende a A. é impor aos herdeiros de “F” uma partilha do activo e passivo do património do falecido quando, legalmente, não é sua herdeira.
V - Nessa medida entende a Recorrente que a acção de divisão de coisa comum não é o meio adequado e próprio para vir exigir aos herdeiros o pagamento de valores suportados para aquisição de bens durante a união de facto ou de alegadas dívidas do casal (unido de facto).
W - Isto porque “um autor que pretenda o reembolso da sua comparticipação na aquisição de bens adquiridos durante o período em que viveu em união de facto deve intentar uma acção declarativa com processo comum e não o processo especial de divisão de coisa comum”(negrito e sublinhado nosso) (Processos Especiais de Divisão de Coisa Comum e de Prestação de Contas, Luís Filipe Pires de Sousa, 2016, Almedina, página 81).
X - Nesse sentido a Recorrente propôs a acção declarativa com processo comum, que tem uma adequação justa à sua pretensão.
Y - Assim sendo, não incorreu em erro na forma do processo, como o Douto Tribunal recorrido entendeu.
Z - Ademais que, o Tribunal ora recorrido não devia ter determinado que os presentes autos seguissem a forma de processo especial, como tal determinação.
AA - Muito menos, deveria ter determinado o descarregamento do processo em referência da 1.ª espécie e carregando-o na 3.ª espécie, nos termos dos artigos 211º e 212º, ambos do C.P.C.
AB - A decisão levada a cabo pelo Tribunal ora recorrido, em tramitar e apreciar a presente acção como acção especial de divisão de coisa comum, teve como consequência errada ao se declarar incompetente em razão da matéria.
Termos em que, no provimento deste Recurso deve revogar-se a decisão recorrida, decidindo-se pela tramitação do processo como acção declarativa com processo comum, ser declarada a competência do Tribunal recorrido.»

Os réus não contra-alegaram.

Foram colhidos os vistos e nada obsta ao conhecimento do mérito.

Objeto do recurso
Sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, são as conclusões das alegações de recurso que delimitam o âmbito da apelação (art.ºs 635, 637, n.º 2, e 639, n.ºs 1 e 2, do CPC).
Tendo em conta o teor daquelas, colocam-se as seguintes questões:
a) A forma processual escolhida pela autora foi a adequada aos pedidos por si formulados e aos factos por si descritos para os sustentar?
b) O processo foi intentado no tribunal competente para a sua apreciação e decisão?

II. Fundamentação de facto
Os factos a considerar para a apreciação e decisão deste recurso são os que constam do relatório.

III. Apreciação do mérito do recurso
1. Da forma do processo
1.1. A forma de processo e o pedido
Quanto à forma, o processo pode ser comum ou especial. Processos especiais há vários, aplicando-se cada um aos casos expressamente designados na lei. O processo comum é aplicável a todos os casos a que não corresponda processo especial. As normas acabadas de enunciar encontram-se expressas no art.º 546 do CPC.
A autora intentou a presente ação com forma de processo comum. O tribunal a quo entendeu que a forma adequada seria a do processo especial de divisão de coisa comum.
Cabe apreciar e decidir sobre este tema.
A devida forma do processo afere-se pelo pedido formulado pelo autor. Sem prejuízo de, claro está, para a interpretação da pretensão, em caso de menor clareza da mesma, serem relevantes os factos que consubstanciam a causa de pedir.

Neste sentido, pronuncia-se a jurisprudência, de que seguem alguns extratos a título de exemplo.
Do Acórdão do TRL de 22/02/2007, proc. 8592/2006-2:
«I - A forma de processo afere-se em função do tipo de pretensão formulada pelo autor e não em referência à pretensão que devia ser por ele deduzida».
Do Acórdão do TRG de 08/07/2020, proc. 654/19.T8VCT.G1, a mesma norma:
«I- A forma de processo é aferível em função do tipo de pretensão formulada pelo autor e não em referência à pretensão que devia ser por ele deduzida;
II- A inadequação da pretensão deduzida em relação ao fundamento invocado consubstancia uma situação de manifesta improcedência da ação e não de erro na forma do processo».
Ainda, do Acórdão do TRP de 17/05/2022, proc. 2534/15.3T8VNG-C.P1: «I - O erro na forma de processo é aferível pelo pedido formulado pelo autor».
Também eloquente é a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo. A título de exemplo, os acórdãos de 28/05/2014, proc. 01086/13, e de 07/01/2016, proc. 01265/13, nos termos dos quais o erro na forma do processo é uma nulidade decorrente do uso de um meio processual inadequado à pretensão de tutela jurídica formulada em juízo, que se afere pelo pedido e não pela causa de pedir, conquanto esta possa ser utilizada como elemento de interpretação daquele, quando a esse respeito existam dúvidas.
No sentido da citada jurisprudência, v. também Luís Filipe Pires de Sousa, Processos especiais de divisão de coisa comum e de prestação de contas, Almedina, 2016, p. 80: «A forma de processo afere-se em função do tipo de pretensão formulada pelo autor e não em referência à pretensão que devia ser por ele deduzida (aqui trata-se não de uma impropriedade da forma de processo mas de uma situação de eventual manifesta improcedência da ação). O que caracteriza o erro na forma do processo é que, ao pedido formulado, corresponda forma de processo diversa da empregue».

No caso sub judice, a autora formula três pedidos de condenação dos réus a:
a) reconhecerem o ativo na quantia de €55.845,86 (cinquenta e quatro mil, duzentos e noventa e dois euros e trinta e cinco cêntimos), cabendo à autora a quantia de € 27.922,23 (vinte e sete mil, novecentos e vinte e dois euros e vinte e três cêntimos) que corresponde na proporção de metade, e aos réus a mesma quantia e na mesma proporção;
b) reconhecerem o passivo na quantia de €11.244,01 (cento e nove mil, duzentos e quarenta e quatro euros e um cêntimo) cabendo á A. a quantia de € 55.622,01 (cinquenta e cinco mil seiscentos e vinte e dois euros e um cêntimo) e aos réus na mesma quantia e na mesma proporção.
c) solidariamente, pagarem metade do passivo, na quantia de €55.622,01 (cinquenta e cinco mil, seiscentos e vinte e dois euros e um cêntimo).

Diga-se, desde já, que apenas relativamente ao primeiro destes três pedidos se poderia colocar a questão de a forma processual devida ser a do processo especial para divisão de coisa comum que o tribunal a quo entendeu corresponder à relação material dos presentes autos. Vejamos se assim é.

1.2. Do pedido relativo ao imóvel
Existe compropriedade, ou propriedade em comum, quando duas ou mais pessoas são simultaneamente titulares do direito de propriedade sobre a mesma coisa (art.º 1403 do CC), o que a autora alega suceder a respeito de um imóvel.
Do imóvel em questão eram comproprietários, na mesma proporção, a autora e o seu falecido companheiro (cf. certidão predial junta aos autos que, nos termos do disposto no art.º 7.º do Código do Registo Predial, é suficiente para que se presuma a invocada compropriedade).
A metade de que era comproprietário o seu companheiro pertence agora à sua herança, de que são herdeiros os filhos, réus na ação (cf. certidão de habilitação de herdeiros junta aos autos).
A autora alega, no decurso da p.i., que não deseja permanecer na indivisão, mas os pedidos que formula não se destinam, por si só ou imediatamente, à divisão do imóvel. A autora pede, quanto ao imóvel, apenas que os réus reconhecerem o ativo «na quantia de €55.845,86» (rectius, que tem o valor patrimonial de €55.845,86), «cabendo á A. a quantia de €27.922,23», «que corresponde na proporção de metade, e aos Réus a mesma quantia e na mesma proporção». A autora está bem ciente de que, com o pedido formulado, se vai manter na indivisão, mas deseja que a compropriedade que tinha com o falecido companheiro, e que agora terá com a herança, seja reconhecida pelos herdeiros.
Não se pode dizer que ao pedido formulado pela autora relativo à fração autónoma corresponda o processo especial de divisão de coisa comum e, como vimos, é pelo pedido formulado que se afere a forma do processo.
Saber se, perante a inexistência de dúvida ou discussão acerca do direito da autora enquanto comproprietária do imóvel na proporção de metade, a autora tem interesse em agir, será questão que tribunal a quo poderá colocar e decidir oportunamente, se assim o entender. Certo é que a autora, nos presentes autos, não pede a divisão do imóvel, disso está ciente, e não impende sobre a autora qualquer dever ou ónus de formular tal pedido.

1.3. A coligação de pedidos e a forma de processo
Ainda que assim não fosse, foram vários os pedidos formulados em coligação e, quanto aos demais, sempre teria de ter sido dada a oportunidade à autora de prosseguir com eles, como se passa a expor.
Nos termos do disposto no art.º 555.º, n.º 1, do CPC, o autor pode deduzir cumulativamente contra o mesmo réu, num só processo, vários pedidos que sejam compatíveis, se não se verificarem as circunstâncias que impedem a coligação. Entre as circunstâncias que impedem a cumulação está a de aos pedidos corresponderem formas de processo diferentes (artigo 37.º, n.º 1, do CPC).
Por aplicação do disposto no art.º 38, n.º 1, do CPC, ocorrendo coligação sem que entre os pedidos exista a conexão exigida pelo artigo 36.º, o juiz notifica o autor para, no prazo fixado, indicar qual o pedido que pretende ver apreciado no processo, sob cominação de, não o fazendo, o réu ser absolvido da instância quanto a todos eles. Feita a indicação a que alude o n.º 1, o juiz absolve o réu da instância relativamente aos outros pedidos (n.º 3 do mesmo artigo e diploma).
Neste sentido, pronuncia-se constante jurisprudência, de que seguem alguns extratos a título de exemplo.
Do Acórdão do TRP de 09/02/1993, proc. 9240946:
«I - A incompatibilidade substancial de pedidos conduz à ineptidão e a absolvição da instância.
II - A incompatibilidade processual de pedidos, por lhes corresponderem formas de processo diferentes, tem como consequência a absolvição da instância em relação ao pedido para que é imprópria a forma de processo utilizada.»
Do Acórdão do TRE de 10/02/2010, proc. 2747/08.4TBSTR            :
«1 - O erro na forma de processo é uma excepção dilatória e pode, nos casos de cumulação de pedidos formalmente incompatíveis, conduzir a que fique sem efeito o pedido a que corresponda uma forma incompatível com a forma comum, desde que se verifiquem as mesmas causas e motivos que estão previstos como obstáculos à coligação (art.º 31º n.º 1 e 2)».
Do Acórdão do TRG de 08/07/2020, proc. 654/19.T8VCT.G1:
«III- A cumulação ilegal por desrespeito pela exigência da identidade das formas do processo correspondentes a todos os pedidos (art.º 37º, nº 1, ex vi art.º 555º, nº 1, ambos do CPC) constitui uma exceção dilatória atípica determinante da absolvição parcial da instância, no despacho saneador, relativamente à pretensão que não se enquadre na forma que tenha sido indicada pelo autor na petição inicial».
Do exposto resulta que, mesmo que ao primeiro pedido correspondesse a forma do processo especial de divisão de coisa comum, e entendemos que não corresponde, o desfecho da ação não seria o que o tribunal a quo lhe conferiu.

2.  Da competência do tribunal
Não se aplicando aos pedidos formulados forma de processo especial, e considerando o valor dos mesmos, cabe a apreciação e decisão da causa ao Juízo Central Cível da Comarca de Lisboa (artigo 117, n.º 1, al. a) da Lei da Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto).

Sumariando, nos termos do art.º 663, n.º 7, do CPC:
1. A forma de processo é aferível em função do pedido formulado pelo autor.
2. Cumulando-se pedidos com forma de processo comum, de valor superior € 50.000 e para os quais é competente o juízo central cível no qual a ação foi proposta, com pedido a que corresponde processo especial da competência do juízo local cível, esta circunstância não conduz (pelo menos, necessariamente) a que o tribunal se julgue incompetente relativamente a todos os pedidos.
3. A um pedido de reconhecimento de direito de compropriedade – sem que se formule um pedido de divisão em substância da coisa comum ou de adjudicação ou venda desta, com repartição do respetivo valor – não corresponde processo especial para divisão de coisa comum.

IV. Decisão
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente a apelação, revogando o despacho recorrido – por ser adequada a forma do processo e competente para a apreciação e decisão da causa o Juízo Central Cível –, e determinando o prosseguimento dos autos.
Custas conforme se decida a final (a autora, e apelante, venceu o presente recurso intercalar; os réus não contestaram a ação, nem se pronunciaram neste recurso, não tendo o ónus de o fazer; apenas a final saberemos quem deu efetivamente causa aos autos, para os efeitos previstos no art.º 527 do CPC; para extensa fundamentação da decisão sobre custas, remete-se para as últimas páginas do Ac. do TRL de 02/03/2023, proc. 102/22.2T8VLS.L1-2).

Lisboa, 11/05/2023
Higina Castelo
Arlindo Crua
Laurinda Gemas, vencida quanto ao segmento das custas, nos termos da declaração seguinte

Declaração de voto
Voto vencida apenas quanto ao segmento da decisão “Custas conforme se decida a final”.
Salvo o devido respeito por opinião contrária, entendo que não se pode relegar para final a decisão quanto à responsabilidade pelas custas da apelação, antes considero que se impõe, em todos os recursos, uma decisão imediata e não condicional sobre a responsabilidade tributária.
Seguindo de perto a declaração de voto que elaborei no acórdão desta Relação de 29-09-2022, no proc. n.º 3202/18.0T8PDL-C.L1-2, disponível em www.dgsi.pt, lembro que está consagrada na lei a autonomia do recurso quanto a custas, conforme resulta do disposto no art.º 1.º do Regulamento das Custas Processuais: todos os processos estão sujeitos a custas, nos termos fixados pelo Regulamento e, para efeitos deste, considera-se como processo autónomo cada ação, execução, incidente, procedimento cautelar ou recurso, corram ou não por apenso, desde que o mesmo possa dar origem a uma tributação própria.
Assim, nada decidir quanto à responsabilidade pelas custas do recurso, ou uma condenação no pagamento das custas do recurso que responsabilize a parte vencida a final ou a parte que vier a ser considerada responsável pelas custas da ação, não parece observar essa autonomia, além de poder ser inoperacional (por ex., se a final nenhuma das partes ficar vencida), ou até atentar contra os princípios da causalidade e do proveito consagrados no art.º 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, já que poderá levar a que as custas do recurso tenham de ser suportadas pela parte que não lhe deu causa, nem retirou qualquer proveito do mesmo.
A norma que consagra o recurso ao critério do proveito (“quem do processo tirou proveito”, quando não se possa dizer que houve vencimento da ação) permitirá por aplicação direta ou analógica (no caso de se entender que existe uma lacuna) dar resposta a situações como a dos autos.
Esta problemática mereceu a atenção do Senhor Juiz Conselheiro Salvador da Costa em diferentes comentários (publicados em https://blogippc.blogspot.com), podendo ser transpostas para o caso algumas das considerações que fez a respeito da condenação da “parte vencida a final” no pagamento das custas do recurso, merecendo destaque os seguintes:
- “Brevíssima nota sobre a responsabilidade relativa ao pagamento de custas processuais nos recursos”, publicado a 02-06-2017;
- “Algumas Questões sobre Custas Processuais, Comentário sobre o segmento decisório relativo a custas processuais do acórdão da Relação de Coimbra de 17.10.2017”, comentário publicado a 16-02-2018;
- “A taxa de justiça e as custas em sentido estrito devidas no recurso de apelação cujo efeito seja anulação da decisão recorrida e o prosseguimento do processo no tribunal da 1.ª instância Acórdão da Relação do Porto de 7.10.2019” (Jurisprudência 2019 (196));
- e, por último, “Custas da apelação na proporção do decaimento a apurar a final - Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 23/4/2020 (Jurisprudência 2020 (77))”, em que afirma o seguinte:
«(…) Porventura, a Relação considerou para o efeito o facto de se tratar do recurso de uma decisão que, indeferindo o requerimento probatório do autor, não conheceu do respetivo mérito, ou seja, por se tratar de uma decisão “de forma”.
Todavia, o disposto no artigo 527.º do Código de Processo Civil é aplicável, não só aos recursos de decisões de mérito, como também aos recursos de decisões de forma lato sensu.
No regime de custas de pretérito, para casos como o que aqui está em análise, a que correspondia o recurso de agravo, havia uma isenção subjetiva de custas dos agravados.
Com efeito, o normativo da alínea g) do n.º 1 do Código das Custas Judiciais estabelecia, em relação aos agravados, que não tendo dado causa ou expressamente aderido às decisões recorridas, as não acompanhassem, beneficiavam, nos recursos de agravo, de isenção de custas.
Acontece que no regime atual do recurso de apelação inexiste norma desse tipo.
A matriz da responsabilidade das partes pelo pagamento das custas em sentido estrito relativas às ações e aos recursos consta no artigo 527.º do mencionado Código, que se baseia nos critérios da causalidade e do proveito.
É manifesto que o referido artigo não comporta o segmento relativo à responsabilidade pelo pagamento das custas que constitui o objeto do acórdão da Relação ora em análise.
Aliás, se o nosso sistema de custas permitisse esse tipo de definição da responsabilidade pelo pagamento das custas do recurso, teríamos a anómala situação de condenação atual de uma entidade a determinar no futuro, em manifesto quadro de incerteza sobre essa determinação.
Em suma, a condenação pela Relação no pagamento de custas do recurso na proporção do decaimento a apurar a final não tem fundamento legal, antes contraria o que a propósito resulta da lei aplicável.»
A jurisprudência encontra-se dividida, mas abundam decisões no sentido ora sufragado, algumas com formulação menos precisa (por ex. “Sem custas, por não serem devidas”, mas, na prática, com idêntico resultado, considerando que a restituição de taxa de justiça não tem lugar, a menos que expressamente determinada). Com interesse para o caso, veja-se o acórdão da Relação de Coimbra de 17-10-2018, no proc. n.º 128/15.2T9CDN.C2, o acórdão da Relação de Lisboa de 11-02-2021, no proc. n.º 1194/14.3TVLSB.L2-2, o acórdão da Relação de Coimbra de 10-05-2022, no proc. n.º 1295/16.3T8GRD-A.C1, e, merecendo especial destaque, o acórdão do STJ de 06-10-2021, proferido no proc. n.º 1391/18.2T8CSC.L1.S1, em cujo sumário se afirma que: “Para efeitos de custas, cada recurso passou, pelo RCP (art.º 1.º/2), a ser considerado como um "processo autónomo", pelo que, quando é proferido acórdão, tem, em função do que no recurso ocorreu, que ser decidida, em definitivo, a responsabilidade pelo pagamento das respetivas custas, ou seja, tem que se proceder à definitiva aplicação do art.º 527.º do CPC e proceder - aplicando o princípio da causalidade ou o princípio do proveito - à condenação respeitante às custas do recurso (e não relegá-la para final).”
Assim, no presente recurso, entendo que a Autora-Apelante deve ser considerada responsável pelas custas do recurso, pelo proveito que do mesmo retira, tendo logrado obter o prosseguimento da ação que intentou.
Porém, não pode ser condenada no respetivo pagamento, atento o apoio judiciário de que beneficia (pelo que não pagou a taxa de justiça pelo impulso processual, sendo certo que nem seria nunca caso para a sua condenação no pagamento de custas em sentido estrito - custas de parte e/ou encargos, que aqui não existem) - cf. artigos 1.º e 16.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de julho, e artigos 20.º, 26.º e 29.º do RCP.
Portanto, em face da tramitação do processo e do que foi decidido, incluindo quanto à concessão do apoio judiciário, não há que condenar nenhuma das partes no pagamento das custas (em qualquer uma das suas vertentes).
Em suma: no presente recurso, dada a respetiva dinâmica, considerando que não há parte(s) vencida(s) e só a Autora-Apelante do mesmo retira proveito ou vantagem, entendo que deveria ser decidido que era a responsável pelas custas do recurso, não sendo condenada no respetivo pagamento, atento o apoio judiciário de que beneficia, na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo.
Laurinda Gemas