Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6091/03.5TVLSB.L1-6
Relator: TERESA PARDAL
Descritores: FOGO DE ARTIFÍCIO
PRESUNÇÃO DE CULPA
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/07/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: - Na actividade de lançamento de fogo de artifício, no âmbito de um evento organizado por uma Comissão de Festas e em que foram causados danos a terceiro, recai sobre a referida comissão a presunção de culpa prevista no artigo 493º nº2 do CC, que não é ilidida se não provar que, para além do cumprimento das obrigações legais decorrentes do regulamento de utilização de explosivos, empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias da situação concreta para a prevenção dos danos.
- Na fixação dos danos não patrimoniais deverá atender-se às diversas circunstâncias provadas, nomeadamente à culpa dos lesantes, às características das lesões suas extensões, tempo de doença, sequelas e tempo decorrido desde os factos.
(sumário elaborado pela relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO.
MCN… (entretanto falecida e representada pelos herdeiros habilitados CJN…, CMN… e RMN…) intentou acção declarativa com processo ordinário contra AMS… (entretanto falecido e representado pelos herdeiros habilitados AMB… e MMB…), M & F…, Lda, Comissão de Festas… representada pelo seu Presidente, JJ… e (actualmente) Companhia de Seguros…, SA alegando, em síntese, que no dia 6/09/1999, nas festas da Nossa Senhora …, em S…, o 1º réu, ao serviço da 2ª ré, encomendado pela 3ª ré à 2ª ré e segurado pela 4ª ré, procedia ao lançamento de fogo de artifício, altura em que tombou uma caixa de bombas pirotécnicas que explodiram e dispararam na horizontal, junto ao chão, atingindo a autora, que se encontrava a assistir ao espectáculo, no local destinado ao público, atrás das grades de segurança, causando-lhe diversos ferimentos no membro inferior direito que lhe determinaram despesas em tratamentos, consultas, exames médicos, taxas moderadoras e medicação, no valor global de 29 943$00 (1 496,11 euros) e sofrimentos que avalia em 25 000,00 euros, pelos quais são responsáveis os réus nos termos do artigo 493º nº2 do CC.
Concluiu pedindo a condenação solidária dos réus a pagar-lhe a quantia de 26 496,00 euros.
Os réus AMS… e M & F…, Lda contestaram arguindo a excepção de prescrição, impugnando os danos invocados e os valores peticionados e alegando que foram tomados todos os cuidados exigíveis e previsíveis, pois a operação de lançamento de fogo de artifício encontrava-se licenciada pela Comissão de Festas, os contestantes estavam habilitados para a tarefa, foi feita a participação à PSP e à corporação de bombeiros, que estiveram no local, o qual foi isolado com a colocação de um gradeamento a uma distância adequada, a Comissão de Festas celebrou contrato de seguro com a 4ª ré e, por outro lado, as caixas com o material pirotécnico foram colocadas no chão para evitar que pudessem cair e explodir, processando-se o lançamento do fogo directamente das caixas até que, por razão ignorada, mas que se supõe originada pela trepidação do rebentamento de um foguete, uma das caixas tombou para ao lado e um dos foguetes saiu na horizontal dirigindo-se para um sector onde se encontravam pessoas, tendo o réu AMS… imediatamente levantado a caixa impedindo que mais foguetes pudessem ser lançados na direcção do público e tendo a autora sido prontamente assistida no local pelos bombeiros e conduzida ao hospital.
Concluíram pedindo a improcedência da acção e a absolvição do pedido.
A ré Comissão de Festas, representada pelo seu Presidente JJ…, contestou arguindo a ilegitimidade passiva e a prescrição e impugnando a versão da petição inicial e os danos invocados, alegando ainda que foram tomadas todas as cautelas exigíveis, pois foram contratados o 1º réu e a 2ª ré, ambos com larga experiência de actividade pirotécnica, foram erguidas barreiras de protecção metálica à frente do palco e foram convocados os bombeiros e a PSP.
Concluiu pedindo a procedência das excepções com a absolvição da instância ou do pedido.
A ré seguradora contestou arguindo a excepção de prescrição e ainda o limite do capital seguro, bem como a existência de outros lesados, por conta do que já efectuou pagamentos, com a consequente diminuição do capital seguro disponível.
Concluiu pedindo a procedência da excepção da prescrição ou o julgamento de acordo com a prova a produzir e tendo em conta as excepções fundadas no contrato de seguro.
A autora replicou, opondo-se às excepções.
Saneados os autos, foram julgadas improcedentes as excepções de ilegitimidade e de prescrição; interposto recurso destas decisões por JJ… e admitido o mesmo como agravo, a subir em diferido, não foram apresentadas alegações.
Procedeu-se a julgamento, findo o qual foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e (após rectificação que eliminou a condenação em juros) condenou (a) solidariamente os réus AMB…, MMB…, M & F…, Lda e Comissão de Festas a pagar aos autores a quantia de 25 498,80 euros; (b) a ré Companhia de Seguros… a pagar aos autores, solidariamente com a ré Comissão de Festas, a quantia atrás referida, até ao limite de 4 271,17 euros.

Inconformado, JJ… em representação da Comissão de Festas, interpôs recurso e alegou, formulando conclusões, onde levanta as seguintes questões:
- Devem ser considerados provados os factos dos pontos 50, 51, 52, 53, 56, 57, 60, 61 e 62 do elenco dos factos julgados não provados pela sentença recorrida.
- Deve ser afastada a aplicabilidade do artigo 493º nº2 do CC, por ser aplicável o DL 376/84 de 30/11, diploma que à data dos factos regulava o lançamento e queima de fogos de artifício, nomeadamente no seu artigo 38º nº1.
- O artigo 493º nº2 não se aplica à Comissão de Festas, que é mera organizadora da festividade e não exerceu qualquer actividade perigosa, a qual foi exercida pelo lançador e a empresa contratada para prestar este serviço.
- Mesmo entendendo-se que é aplicável o artigo 493º nº2 à recorrente, terá de se concluir que foi ilidida a presunção de culpa no que lhe diz respeito, face aos factos provados nos nº2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9 dos factos e face aos factos 50, 51, 52, 53, 56, 57, 60, 61 e 62 que deveriam ter sido julgados provados, não sendo exigível à apelante que tivesse tomado mais providências.
- O acidente resultou por falha humana do lançador, que deixou cair uma caixa com bombas pirotécnicas, comportamento a que é alheia a apelante.
- Ainda que se considere que a apelante é responsável, a sua responsabilidade não é do mesmo grau da responsabilidade do fogueteiro e da empresa para a qual ele trabalhava, o que deve ser tomado em conta nos termos do artigo 494º do CC, não podendo a mesma ultrapassar os 15%.
- A indemnização a fixar à autora por danos não patrimoniais não deverá exceder o montante de 12 500,00 euros.
- A responsabilidade da apelante deve ser reduzida ao montante não coberto pelo seguro.

Os autores habilitados contra-alegaram, pugnando pela improcedência do recurso.
O recurso foi admitido como apelação com subida imediata e efeito devolutivo.
As questões a decidir são:
I) Impugnação da matéria de facto
II) Responsabilidade da apelante e sua extensão.
III) Montante da indemnização por danos não patrimoniais.

FACTOS.
São os seguintes os factos que a sentença recorrida considerou considerados provados e não provados:
Provados.
1- No dia 6 de Setembro de 1999, pelas 01h15m, no encerramento das Festas de Nossa Senhora…, que decorriam no largo 5 de Outubro, em S…, houve lançamento de fogo-de-artifício (alínea A) dos factos assentes).
2- E, no local da Festa, encontravam-se ainda agentes da PSP de S… (resposta ao art° 70°) da base instrutória).
3- O local era controlado pela Polícia de Segurança Pública (resposta ao art° 54°) da base instrutória).
4- A Comissão de Festas requereu e obteve a licença de lançamento de fogo-de-artifício (resposta ao art° 65°) da base instrutória).
5- Tal comissão contratou com o 1º Réu e com a 2a Ré aquele por ser trabalhador com longos anos de actividade pirotécnica e esta empresa credenciada no mesmo ramo (resposta ao art° 66°) da base instrutória).
6- Foram erguidas barreiras de protecção metálicas, à frente do palco, no Largo 5 de Outubro, em S… (resposta ao art° 67°) da base instrutória).
7- Para que entre o palco e o local de lançamento do fogo, não houvesse público de permeio (resposta ao art° 68°) da base instrutória).
8- O palco tinha uma estrutura metálica revestida na parte superior e no tardoz a chapa galvanizada (resposta ao art° 64°) da base instrutória).
9- No local encontravam-se ainda os Bombeiros Voluntários de S…, com o seu chefe, e diverso material: uma viatura de combate a incêndios e ambulância (resposta ao art° 69°) da base instrutória).
10- O fogo-de-artifício havia sido encomendado pela 3ª Ré Comissão de Festas (resposta ao art° 3°) da base instrutória).
11- Era o 1º Réu quem procedia ao lançamento de fogo-de-artifício (resposta ao art° 1°) da base instrutória).
12- Estando ao serviço da 2ª Ré (resposta ao art° 2°) da base instrutória).
13- As caixas contendo o material pirotécnico foram colocadas no chão (resposta ao art° 55°) da base instrutória).
14- Enquanto o 1º Réu procedia ao lançamento de fogo-de-artifício, uma caixa de bombas pirotécnicas tombou (resposta aos art°s 4°) e 59° da base instrutória).
15- Tendo as mesmas explodido e disparado na horizontal, junto ao chão (resposta ao art° 5°) da base instrutória).
16- Em vez de na vertical e para o ar, como seria normal (resposta ao art° 6°) da base instrutória).
17- Na ocasião, um dos foguetes (bomba pirotécnica), em vez de subir na vertical, saiu disparado para o lado e foi cair no palco, atingindo, entre outros, a Autora (alínea B) dos factos assentes).
18- Algumas dessas bombas, para além da referida em B), foram embater no palco (resposta ao art° 7°) da base instrutória).
19- Outras atingiram a A. no membro inferior direito, abaixo do joelho e no tornozelo (resposta ao art° 9°) da base instrutória).
20- A A. encontrava-se no local destinado ao público, atrás das grades de segurança colocadas para o efeito no local (resposta ao art° 10°) da base instrutória).
21- Assistindo ao fogo-de-artifício (resposta ao art° 11°) da base instrutória).
22- A Autora foi prontamente assistida no local, pelos Bombeiros (resposta ao art° 63°) da base instrutória).
23- Em consequência do sucedido, foi a A. transportada para o Hospital de Curry Cabral (resposta ao art° 12°) da base instrutória).
24- Onde permaneceu desde as 01h28m do dia 06/09/1999, até às 03h53m do mesmo dia (resposta ao art° 13°) da base instrutória).
25- A A. exibia ferimentos múltiplos no membro inferior direito (resposta ao art° 14°) da base instrutória).
26- Em resultado destes ferimentos, a A. foi sujeita a diversas consultas e tratamentos diários ao longo de vários meses (resposta ao art° 15°) da base instrutória).
27- Para drenagem das feridas e colocação de pensos (resposta ao art° 16°) da base instrutória).
28- Ficando ausente do trabalho pelo período de 180 dias (resposta ao art° 17°) da base instrutória).
29- Metade do qual com a perna em absoluto descanso (resposta ao art° 18°) da base instrutória).
30- E no restante, não podendo locomover-se sem ajuda de auxiliares de marcha (resposta ao art° 19°) da base instrutória).
31- Como cozinheira, a A. necessita de permanecer grande parte do dia em pé (resposta ao art° 20°) da base instrutória).
32- Função que, nas actuais circunstâncias, condiciona a sua capacidade de trabalho (resposta ao art° 21°) da base instrutória).
33- O que causa grande transtorno à pequena empresa familiar que possui com o seu marido (resposta ao art° 23°) da base instrutória).
34- A A. sofre dores (resposta ao art° 26°) da base instrutória).
35- A A. ostenta duas cicatrizes no membro inferior direito, uma na região popliteia, medindo aproximadamente 11cm x 5 cm e um complexo cicatricial fibrótico na região posterior da articulação tíbio-társica direita, medindo aproximadamente 7 cm x 8 cm (resposta aos art°s 28°), 29°), 39°), 40° e 41°) da base instrutória).
36- Razão pela qual, desde então, usa somente saias até aos pés (resposta ao art° 30°) da base instrutória).
37- O que lhe causa tristeza (resposta ao art° 31°) da base instrutória).
38- A Autora despendeu 96.000$00/ € 478,85 (quatrocentos e setenta e oito euro e oitenta e cinco cêntimos) em tratamentos (resposta ao art° 32°) da base instrutória).
39- Despendeu valor não concretamente apurado em tratamentos médicos (resposta ao art° 33°) da base instrutória).
40- A A. suportou 4.000$00, que corresponde a € 19,95 de taxas moderadoras hospitalares (resposta ao art° 34°) da base instrutória).
41- Bem como valor não concretamente apurado em medicação (resposta ao art° 35°) da base instrutória).
42- A A. teve dores insuportáveis, pois os foguetes queimaram-lhe a carne nas zonas atingidas (resposta ao art° 37°) da base instrutória).
43- A A. durante os tratamentos teve sempre dores (resposta ao art° 38°) da base instrutória).
44- A Autora deixou de fazer praia em virtude da vergonha que sente (resposta aos art°s 42°) e 43°) da base instrutória).
45- Por contrato de seguro do Ramo Responsabilidade Civil - Outros, celebrado com a Comissão de Festas, titulado pela apólice 30.831, em vigor à data do sinistro, a Companhia de Seguros … assumiu a responsabilidade por danos causados a terceiros em consequência do lançamento de fogo-de-artifício, foguetes e morteiros, nos dias 3 de Junho e 3, 4, 5 e 6 de Setembro de 1999 (alínea C) dos factos assentes).
46- Nos termos da mencionada apólice, foi contratado um capital máximo por sinistro e período do contrato de 2.000.000$00 (€ 9.975,95), ficando a cargo do segurado a franquia de 5.000$00 (€ 24,94) - cf. documento de fls. 63 cujo teor se dá integralmente por reproduzido (alínea D) dos factos assentes).
47- No acidente em causa sofreram também danos pessoais A…, B… e C… (resposta ao art° 45°) da base instrutória).
48- Assim como sofreram danos patrimoniais D… e E… (resposta ao art° 46°) da base instrutória).
49- Por conta de tais danos, a 4ª Ré pagou já 1.143.706$00, que corresponde a € 5.704,78 (resposta ao art° 47°) da base instrutória).
Não provados.
8º) Incendiando-o parcialmente.
22º) Trabalhando dia sim, dia não.
24º) Pois, em consequência da sua impossibilidade de trabalhar assiduamente, o marido da Autora viu-se na contingência de contratar quem a substituísse.
25º) Facto que constitui uma despesa adicional, na ordem dos € 350 mensais.
26º) - parte - A Autora sofre falta de sensibilidade e dormência na perna, abaixo do joelho e no tornozelo.
27º) O que implica o uso permanente de meias de descanso, quer de Verão, quer de Inverno.
44º) Mas também porque a exposição solar é prejudicial às cicatrizes que ostenta.
48º) Em 10 de Agosto de 1999, a 4a Ré pagou a título de indemnização, a F… a quantia de 18.000$00/€ 89,78.
49º) Por processo de sinistro ocorrido em 3 de Junho de 1999, no âmbito da mesma apólice.
50º) O local onde o fogo estava a ser lançado foi isolado.
51º) ... guardando-se a distância necessária.
52º) ... com gradeamento de segurança apropriado, em ferro.
53º) ... por forma a manter a população que assistia ao espectáculo longe desse local.
56º) Processando-se o lançamento de forma automática a partir das mencionadas caixas.
57º) Sem qualquer intervenção humana.
58º) Quando estava a terminar o lançamento…
60º) ... devido à trepidação motivada pelo rebentamento de um foguete.
61º) O 1° Réu era profissional do ramo há muitos anos.
62º) Pessoa competente e bastante experiente.
*
ENQUADRAMENTO JURÍDICO.
I) Impugnação da matéria de facto.
A apelante pretende que sejam julgados provados os pontos 50, 51, 52, 53, 56, 57, 60, 61 e 62 dos factos não provados.
É a seguinte a redacção destes factos:
50º) O local onde o fogo estava a ser lançado foi isolado.
51º) ... guardando-se a distância necessária.
52º) ... com gradeamento de segurança apropriado, em ferro.
53º) ... por forma a manter a população que assistia ao espectáculo longe desse local.
56º) Processando-se o lançamento de forma automática a partir das mencionadas caixas (resposta ao art° 56°) da base instrutória).
57º) Sem qualquer intervenção humana.
58º) Quando estava a terminar o lançamento (resposta ao art° 58°) da base instrutória).
60º) ... devido à trepidação motivada pelo rebentamento de um foguete.
61º) O 1° Réu era profissional do ramo há muitos anos.
62º) Pessoa competente e bastante experiente.
Sobre esta matéria, prestaram depoimento as testemunhas HC…, AM…, HL… e JF… e prestou declarações de parte JJ…, presidente da apelante Comissão de Festas.
Ouvidos estes depoimentos e declarações, os que se mostraram mais esclarecedores foram os depoimentos das testemunhas HC… e AM…, que assistiram ao lançamento do fogo e descreveram com clareza como os factos ocorreram, ou seja, de que forma eram lançados os foguetes e as circunstâncias em que caiu a caixa de onde partiram aqueles que vieram a atingir o público.
Estas duas testemunhas relataram, de forma convincente, que os foguetes estavam dentro de caixas compartimentadas, contendo um foguete em cada compartimento, com um único rastilho que, acendido, fazia rebentar um foguete de cada vez, passando de um compartimento para o outro, sem possibilidade de parar o processo, que continuava até estarem todos rebentados; mais relataram que o lançamento foi feito com a caixa no chão e que, cada vez que rebentava um foguete, a caixa abanava, até que caiu para o lado, o que fez com que os foguetes continuassem a disparar na horizontal na direcção das pessoas.
Explicou ainda a testemunha AM… que a caixa ia abanando cada vez mais à medida que rebentavam os foguetes até ter tombado, em virtude de ir gradualmente perdendo peso com os sucessivos rebentamentos dos foguetes.
A testemunha HL… pouco ou nada esclareceu, pois limitou-se a descrever como ele próprio veio a ser atingido por um fragmento que não conseguiu identificar, não logrando descrever como é que os foguetes mudaram a sua trajectória.
A testemunha JF…, comandante dos bombeiros à data dos factos, declarou, de forma não convincente, que foram verificadas todas as caixas de forma a assegurar-se que as caixas continham areia nos compartimentos, para fazer peso; contudo, sempre mantendo que a caixa não estava mais leve do que deveria, a testemunha não conseguiu dar uma explicação consistente para o facto de ela ter caído e, perante a evidência da falta de estabilidade da caixa, é forçoso concluir que, ou não foi efectivamente verificada a existência de areia para fazer peso, ou então a existência de areia não era suficiente para estabilizar as caixas, sendo necessárias outras medidas.
Finalmente, as declarações do presidente da apelante também não ajudaram quanto à forma como se deu a queda da caixa, pois afirmou que não assistiu a este factos, encontrando-se na sacristia e só tendo saído ao ouvir o barulho e os gritos.
Deste modo e face aos depoimentos das referidas testemunhas HC… e AM…, a resposta aos pontos 56, 57 e 60 deverá ser alterada e ficará com a seguinte redacção conjunta:
56, 57 e 60- Os foguetes estavam dentro de caixas e o lançamento era feito com as caixas no chão, sendo as caixas compartimentadas, contendo um foguete em cada compartimento, com um único rastilho que, acendido, fazia rebentar um foguete de cada vez, passando de um compartimento para o outro, sem possibilidade de parar o processo e, à medida que rebentavam os foguetes, a caixa em causa ia abanando cada vez mais, por ir perdendo peso, até que tombou para o lado com a trepidação de um dos foguetes.
O ponto 58 deverá continuar não provado, pois não houve sintonia entre as testemunhas sobre se o incidente ocorreu logo no princípio ou mais a meio do espectáculo.
Quanto aos pontos 50, 51, 52 e 53 e ao isolamento do local e a distância a que foram mantidas as pessoas, nada mais se apurou para além do que consta nos pontos 6 e 7 da matéria de facto provada. Na verdade, para além da colocação de barreiras metálicas de grades de forma a afastar as pessoas do local de lançamento, não se provaram mais factos, nomeadamente não se provou a distância (as testemunhas tiveram todas dificuldade em quantificar, nem sequer ficando demonstrado os escassos e insuficientes metros que resultam do desenho de fls 184, verificando-se, das fotografias de fls 188 a 190, que o espaço em causa não era um espaço livre e desimpedido, mas sim o adro da capela), nem se provou que as barreiras estavam todas colocadas a toda a volta do perímetro (do depoimento da testemunha HC… resultou que havia locais onde as barreiras não estava colocadas) e muito menos se provou que a distância era a “necessária” e que o gradeamento era o “apropriado”, palavras que expressam apenas conclusões (sendo certo que a grades metálicas poderiam afastar as pessoas, mas não evitariam a passagem dos foguetes, caso estes viessem na horizontal e próximo do chão e se estivessem colocadas muito próximas do local do lançamento).
Quanto aos pontos 61 e 62 e à experiência do primeiro réu, não se apurou mais do que o que já está provado no ponto 5 dos factos, ou seja, que este tinha muitos anos de experiência pirotécnica, declarando apenas as testemunhas que já haviam assistido a espectáculos desta natureza de anos anteriores, que era sempre ele que fazia este trabalho – AM…, HL… e JF… e ainda o declarante JJ….
Procede apenas parcialmente a alteração da matéria de facto, nos termos acima descritos, com a resposta ora consignada aos pontos 56, 57 e 60, improcedendo no restante.

II) Responsabilidade da apelante e sua extensão.
Fixados os factos provados, resulta dos mesmos que a ré Comissão de Festas, ora apelante, no âmbito das festas que organizou, promoveu o lançamento de fogo de artifício.
Para proceder ao lançamento do fogo de artifício, a apelante Comissão de Festas contratou a 2ª ré, empresa credenciada no ramo da actividade pirotécnica, bem como o 1º réu, que seria a pessoa a realizar os lançamentos e que também tinha experiência nessa actividade.
Celebrou ainda a Comissão de Festas um contrato de seguro com a seguradora 4ª ré, bem como requereu as necessárias licenças à PSP e ao Governo Civil, que lhe foram concedidas.
Realizado o fogo de artifício, do respectivo lançamento resultaram ferimentos e danos para terceiros, entre os quais a autora.
Haverá então que apreciar se a apelante Comissão de Festas é responsável civil e está obrigada a indemnizar estes danos.
A sentença recorrida considerou a apelante – tal como a empresa e o trabalhador encarregues de proceder ao lançamento do fogo de artifício – responsável pelos danos causados à autora, ao abrigo do artigo 493º nº 2 do CC, por força do qual “quem causar danos a outrem no exercício de uma actividade, perigosa por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, excepto se mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir”.
Não se conformando a apelante com este entendimento, desde logo não lhe assiste razão quando defende que este artigo 493º nº2 não é aplicável, por a situação cair dentro da previsão especial do DL 376/84 de 30/11, que contém o regulamento sobre fabrico, armazenagem, comércio e emprego de produtos explosivos.
O referido regulamento, com a redacção do DL 474/88 de 22/12, contém efectivamente as regras sobre a utilização de produtos explosivos, prevendo, no seu artigo 38º, a obrigatoriedade de o lançamento de foguetes ou a queima de quaisquer outros fogos de artifício ser feito por pessoas tecnicamente habilitadas indicadas pelos técnicos responsáveis das fábricas ou oficinas de pirotecnia, mediante licença concedida ela autoridade policial à entidade interessada e o prévio conhecimento dos bombeiro para tomada de medidas de segurança para prevenção de incêndios.
O regulamento sobre a utilização de explosivos justifica-se precisamente pela natureza especialmente perigosa desta actividade, razão pela qual quem causar danos a terceiros no exercício da mesma é responsável se não tiver tomado, não só estas precauções impostas por lei, mas também todas as que, em cada situação, sejam necessárias para assegurar a segurança de terceiros.
É por isso que, se forem tomadas as precauções previstas na lei e mesmo assim forem causados danos a terceiros, não deixa de haver responsabilidade nos termos do artigo 493º nº2, a não ser que seja ilidida a respectiva presunção de culpa, demonstrando-se que foram empregues “todas as providências exigidas pelas circunstâncias” com o fim de prevenir os danos.
Sendo aplicável a presunção do artigo 493º nº2 à actividade perigosa de utilização de fogo de artifício, mesmo assim entende a apelante que a mesma só será aplicável aos 1º e 2ª ré, responsáveis pelo manuseamento e lançamento dos explosivos, mas não à Comissão de Festas, que entregou essa tarefa aos profissionais habilitados para o efeito, nada mais lhe sendo exigível.
Mas mais uma vez não lhe assiste razão. É certo que não há uma relação de dependência laboral entre os 1º réu e 2ª ré e a ré Comissão de Festas que caracterizaria a relação de comitente/comissário prevista no artigo 500º do CC (P. Lima e A. Varela, CC anotado, volume I, 4ª edição, página 508).
Contudo, a actividade de lançamento de fogo de artifício foi organizada pela ré Comissão de Festas, tendo sido esta ré que requereu e obteve a licença para o efeito, o que, nos termos da lei, pressupôs a presença dos bombeiros (artigo 38º do DL 376/84) e tendo ainda a Comissão de Festas celebrado contrato de seguros com a 4ª ré.
Foi, portanto, a ré apelante que, ao obter as licenças e apoios referidos, assumiu o compromisso de garantir a segurança de terceiros que assistissem ao evento, não deixando de exercer uma actividade perigosa para os termos do artigo 493º nº2 pelo facto de, no cumprimento da lei, ter contratado quem estava habilitado para o manuseamento dos explosivos e, consequentemente, não deixando de estar obrigada a tomar todas as cautelas necessárias à prevenção de danos exigidas pelas circunstâncias concretas.
Não estamos assim, perante uma relação tradicional de empreitada (artigo 1207º do CC), em que o dono da obra não responde pelos danos causados pela actividade perigosa que o empreiteiro tenha de desenvolver na prossecução dos fins do contrato, constituindo, pelo contrário, o próprio serviço encomendado a actividade com natureza perigosa que se pretende desenvolver.
Deste modo, ao contratar a prestação de serviços em causa (artigo 1154º do CC), a apelante não deixou de estar vinculada aos necessários cuidados de prevenção de danos a terceiros, na sua qualidade de organizadora do evento, em quem o público em geral confiou a sua segurança (neste sentido acs STJ 13/02/2014, p.131/10 e 5/07/2012, p.1451/07, ambos em www.dgsi.pt).
Encontrando-se a Comissão de Festas sujeita à presunção do artigo 493º nº2 do CC (e podendo ser demandada nos termos do artigo 6º b) do CPC à data da propositura da acção, a que corresponde o actual artigo 12º do NCPC), conclui-se forçosamente que não ilidiu a referida presunção.
Como acima se expôs, o facto de a Comissão de Festas ter cumprido as obrigações legais, ao requerer e obter a licença para o evento, ao dar conhecimento aos bombeiros e ao contratar quem tinha habilitações para a tarefa, não é suficiente para se considerar que tomou todos os restantes cuidados exigidos pelas circunstâncias concretas da situação.
Como resulta dos factos, não ficaram provadas as condições exactas em que foi feito o isolamento do local e o afastamento das pessoas (distâncias, vedação de todo o perímetro, etc).
Por outro lado, provou-se (resposta aos pontos 56, 57 e 60 ora alterada) que as caixas de explosivos não estavam estabilizadas no solo, circunstância que deu causa à queda de uma delas e aos danos que daí decorreram, não constituindo esta falta de cuidado uma imperícia pessoal do lançador dos foguetes que a apelante não pudesse controlar e prever, mas sim uma omissão de cautela controlável, sendo previsível que uma caixa não estabilizada no chão pudesse virar-se com a força da projecção do foguete.
Não estando ilidida a presunção do artigo 493º nº2 do CC, pretende ainda a apelante que, ao abrigo do artigo 494º do mesmo código, sejam repartidos os graus de culpa dos diversos responsáveis, fixando-se a sua em menor grau, não superior a 15%, face ao facto de, ao contrário dos outros responsáveis, não estar habilitado com os conhecimentos técnicos para a tarefa.
Porém, nesta situação concreta, apesar da diferença de preparação técnica entre os vários responsáveis, a necessidade de estabilização das caixas não é um cuidado que apenas fosse do conhecimento dos técnicos, sendo uma cautela de senso comum, não sendo os factos suficientes para fixar um diferente grau de culpa.
Finalmente, alega a apelante que não deve ser condenada em montante superior ao valor que excede o capital seguro.
Mas esta limitação da sua responsabilidade só releva nas relações internas entre os responsáveis e eventuais direitos de regresso, pois, perante a lesada, a responsabilidade é solidária, nos termos do artigo 497º do CC.
Deverá, então, manter-se a responsabilidade solidária de todos os responsáveis por igual, como foi fixada pela sentença recorrida (com a limitação do capital seguro relativamente à 4ª ré), improcedendo as alegações de recurso nesta parte.

III) Montante da indemnização por danos não patrimoniais.
Alega a apelante que é excessivo o valor de 25 000,00 euros fixado pela sentença recorrida para a indemnização por danos não patrimoniais, não devendo o mesmo ser superior a 12 500,00 euros.
As lesões sofridas pela autora e o sofrimento que as mesmas lhe causaram merecem sem sombra de dúvida a tutela do direito nos termos do artigo 496º do CC e, no montante a fixar equitativamente, deverá atender-se à culpa dos lesantes acima analisada, ao susto enorme que a autora necessariamente sofreu, à dores intensas que sentiu na altura, resultantes das queimaduras e àquelas que foi sempre sentindo, quer nos tratamentos, quer posteriormente, aos tratamentos a que foi sujeita diariamente com drenagem das feridas e colocação de pensos, à impossibilidade de trabalhar durante seis meses, metade deste período com a perna imobilizada e no restante com ajuda de auxiliares de marcha, às cicatrizes com que ficou, que condicionaram a sua forma de vestir e as suas actividades de lazer e lhe causaram tristeza.
Estas circunstâncias e ainda o tempo decorrido desde os factos, levam a concluir que o montante fixado, de 25 000,00 euros, não é excessivo, improcedendo, também nesta parte, as alegações da apelante.

DECISÃO.
Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação e confirma-se a sentença recorrida.

Custas pela apelante.

2016-07-07


Maria Teresa Pardal

Carlos Marinho

Anabela Calafate