Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2014/2005-4
Relator: MARIA JOÃO ROMBA
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
IMUNIDADES
ESTADO ESTRANGEIRO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/22/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: REVOGADA
Sumário: A imunidade jurisdicional de Estados estrangeiros é um princípio de direito internacional público, corolário do princípio da igualdade dos estados que visa garantir o respeito pela soberania.
Ainda que se admita que tal imunidade alguma vez teve carácter absoluto, é indiscutível que tem vindo progressivamente a perdê-lo, quer na jurisprudência de diversos países – que distinguindo entre actos de gestão pública (jure imperii) e actos de gestão privada (jure gestionis), limita a imunidade apenas aos primeiros – quer em alguns casos através da adopção de legislação especial.
A teoria restritiva da imunidade judiciária dos Estados é hoje dominante. Mas não é pacífico o critério distintivo entre os actos jure imperii e actos jure gestionis, sendo dominante o critério da natureza do acto.
Merece especial referência na jurisprudência portuguesa o Ac. do STJ de 13.11.2002, www.dgsi, , que relativamente à questão de saber se, num determinado litígio laboral, está em causa um acto de soberania ou um acto de gestão, chama a atenção para a relevância das funções desenvolvidas pelo trabalhador em causa, importando saber se se trata de funções subalternas, ou de funções de direcção na organização do serviço público do Estado demandado, funções de autoridade ou de representação.
No caso, a Autora exercia as funções de secretariado da actividade da Delegação Comercial da embaixada da Áustria, sob as ordens do Sr. Conselheiro Comercial, Assim, o R. ao comunicar á A. a cessação do seu contrato de trabalho, agiu como um qualquer empregador privado, praticando um acto de gestão e não um acto de soberania, pelo que não beneficia, quanto a esse acto, da imunidade judiciária.
Decisão Texto Integral: Acordam na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

(A), cidadã alemã, residente em Lisboa, intentou no Tribunal do Trabalho de Lisboa a presente acção declarativa de condenação na forma comum contra Embaixada da Áustria – Delegação Comercial da Embaixada da Áustria em Lisboa, alegando, em síntese, ter sido admitida ao serviço da R. em 23.02.2000, para exercer as funções de secretária da Delegação Comercial da Embaixada da Áustria em Portugal, por conta e sob a autoridade e direcção desta, mediante retribuição. Em 04 de Março de 2004, a R. despediu a A., sem fundamento legal. Conclui pedindo a condenação da R. no pagamento das retribuições que a A. deixou de auferir desde a data do despedimento até à data da sentença (deduzidas das referentes até 30 dias antes da propositura da acção), retribuições de férias e respectivo subsídio, indemnização pelo não gozo de férias, subsídios de Natal, indemnização por danos patrimoniais resultantes do despedimento, indemnização por danos não patrimoniais (quantificando a totalidade dos créditos já vencidos em € 66 059,84) e ainda na reintegração da A. no posto e local de trabalho que ocupava e, à cautela, se porventura a R. vier a obstar à reintegração e esta venha a ser julgada procedente, no pagamento dos quantitativos compensatórios máximos devidos em substituição da reintegração, legalmente estabelecidos.
Designada data para a audiência de partes e citada a R., veio esta invocar a sua imunidade de jurisdição perante os tribunais portugueses, requerendo, por conseguinte, que seja declarada a incompetência internacional dos tribunais portugueses e a R. seja absolvida da instância, considerando-se sem efeito a data para a realização de audiência de partes.
Na audiência de partes o mandatário da R. declarou que, sem prejuízo da invocação de imunidade jurisdicional, a que não renunciava, a R. declarava manter a proposta de acordo que já anteriormente havia apresentado à A., do pagamento da quantia de € 17 500,00. A A. declarou não aceitar tal proposta de acordo e ainda não prescindir de prazo para se pronunciar sobre a imunidade invocada pela R.
Foi concedido à A. o prazo de 10 dias para se pronunciar sobre a arguição de imunidade de jurisdição, relegando-se para depois da decisão do incidente, decisão sobre a tramitação a seguir.
A  A. veio responder àquela excepção, pugnando pela inexistência da imunidade invocada.
Seguidamente foi proferido o despacho de fls. 142/157, que conhecendo aprofundadamente da referida questão, julgou aquele Tribunal incompetente quanto à nacionalidade, absolvendo a R. da instância.
Inconformada, agravou a A., que deduz no final das respectivas alegações, as seguintes conclusões:
1. A recorrente é uma cidadã da nacionalidade Alemã, que há muitos anos se estabeleceu em Portugal, previamente a ter laborado para a recorrida;
2. A recorrente, celebrou um contrato de trabalho com a recorrida, para quem prestava trabalho subordinado, e exercia as funções de secretária, por conta e sob a autoridade e direcção da recorrida, e pelo qual auferia um salário pago pela recorrida;
3. A recorrente secretariava a Delegação Comercial, considerada no seu todo, cujas funções são as que comummente se designam de natureza administrativa, em nada diferentes das desempenhadas ao serviço de uma qualquer empresa privada, e que não directamente ou indirectamente relacionadas com a actividade diplomática, mas antes de natureza informativa comercial;
4. A recorrente laborava para a Delegação Comercial na sua sede, e não tinha quaisquer contactos, directos ou indirectos com a Embaixada da Áustria, esta com sede em local distinto, tampouco teve acesso a quaisquer informações relativas à sua - da Embaixada - actividade;
5. A recorrente, no exercício das funções de secretária, ou fora delas, nunca as desempenhou numa missão diplomática, ao que sabe, ou pelo menos, na acepção que deve ser a adequadamente interpretada, e também por isso, não desempenhou actividades, ainda que conexas, associadas ao exercício da autoridade governamental, de direcção, autoridade ou de representação, mas antes e sempre, funções subalternas e de natureza administrativa comercial;
6. A recorrente nunca foi membro do pessoal administrativo de uma missão diplomática, estes, encontram-se inscritos junto do Ministério dos Negócios Estrangeiros, e lá não consta nem constou a recorrente, ao menos que saiba;
7. A Delegação Comercial, onde a agravante sempre laborou, encontra-se sediada em local distinto do da Embaixada da Áustria, possui um número de beneficiário da Segurança Social Português, também ele distinto, assim como do seu escopo, que se cinge ao fomento do intercâmbio comercial, concretamente o aconselhamento de natureza comercial a quaisquer cidadãos que o solicitem, com vista aquele desígnio, que em nada se confunde com os desígnios e actividade diplomática da sua Embaixada;
8. Foi a recorrente despedida sem fundamento e em clara violação das normas laborais substantivas da República Portuguesa;
9. Para fazer valer os seus direitos, legalmente consagrados, propôs a acção adequada com vista a reposição da legalidade, o que fez em conformidade com as normas adjectivas Portuguesas;
10. Em sede de audiência de partes, a recorrida invocou a imunidade jurisdicional, o que fez ao abrigo da Convenção de Viena;
11. Contudo, não consta dos autos, qualquer documento que legitime a qualidade que se arroga a recorrida, para beneficiar da imunidade, tampouco, documento formal em que o invoque de forma expressa e indubitável e bem assim o seu fundamento, factos, que são de conhecimento oficioso;
12. Ainda assim, a recorrente pronunciou-se sobre a arguida imunidade invocada, pugnando pela inexistência da imunidade invocada, e sustentou a sua tese com respaldo na evolução doutrinal e jurisprudencial a nível internacional, a qual evoluiu de um estádio em que se reconheciam em termos praticamente absolutos a imunidade jurisdicional dos Estados estrangeiros (teoria da Imunidade absoluta), para um outro, o actual, em que se reconhece que tal imunidade não existe quando estão em causa actos qualificados de natureza privada ou de mera gestão - teoria da imunidade relativa - nestes últimos, integram-se as relações contratuais de foro laboral, estabelecidas entre comuns cidadãos, na condição de empregados subordinados, sem poder de autoridade, e os Estados estrangeiros, enquanto empregadores;
13. Mais a recorrente sustentou a sua tese na evolução jurisprudencial no mesmo sentido, vincadas pelos tribunais portugueses, e citou algumas decisões proferidas pelos tribunais (cfr. Ac. STJ, de 11.5.1984; Ac. STJ, de 30.01.1991; Ac. do STJ, 04.02.1997; Ac. TRL, de 13.12.2000; Ac. STJ, de 13.11.2002; Ac. TRL de 26.6.2004;
14. A Convenção Europeia sobre a Imunidade dos Estados (Convenção de Basileia), ratificada e em vigor na Áustria, proíbe a invocação da imunidade perante os tribunais de um outro Estado, se o processo se relacionar com um contrato de trabalho celebrado entre o Estado e uma pessoa singular, se o trabalho dever ser realizado no território do Estado de acolhimento;
15. O tribunal de 1ª instância, proferiu a sentença que ora se impugna, na qual, a quase totalidade do seu teor, foi ao encontro da posição pugnada pela recorrente;
16. Porém, no que se cingiu à apreciação e subsunção ao caso concreto dos autos, na tarefa que é a ultima ratio da sua competência, o tribunal da 1ª instância deixou-se enredar por uma incorrecta interpretação e avaliação dos factos e do direito, entrou em contradições insanáveis e perdeu-se em afirmações sem qualquer suporte, contrariando a realidade;
17. A agravar, decidiu-se, indevidamente pela procedência da imunidade e absolveu a ora recorrida da instância, com o argumento de que, em caso de dúvida, deve prevalecer a regra geral das imunidades, obrigando a recorrente, ao arrepio de princípios universais, se o pretender, a ter de demandar a recorrida, na Áustria, quando inexistem razões para dúvida;
18. A recorrente não aceita a decisão proferida pelo tribunal a quo, tampouco entende a razão de ser da dúvida, porquanto, a jurisprudência dominante e que vinga a nível Internacional e também no foro interno, tende a negar a imunidade nos casos que reportem a actos praticados pelos Estados, que sejam qualificados como de mera gestão, na qual se integram entre outros, as contratações do foro laboral, mais ainda, quando o trabalhador exerce funções subalternas, como é o caso da recorrente, ou quando no território de outro Estado proceda como se fosse particular, como acontece com a implantação de uma agência de negócios (delegação Comercial) no estrangeiro, em contraposição com as funções de direcção ou representação;
19. Mais entende, à luz da referida jurisprudência e aos princípios universais de protecção dos Direitos fundamentais, estas dúvidas seriam sempre resolvidas a favor da recorrente, e decisão contrária, tal como foi a decisão que ora se recorre, é inadmissível, por atentatória de todos os princípios estruturantes e o âmago de um Estado de Direito como o Português, e claramente violador dos universais Direitos do Homem;
20. É também inadmissível na medida em que é um gravoso atentado aos direitos constitucionais da recorrente, pois que deixa destituídos de defesa os seus direitos, negando-lhe o recurso aos Tribunais portugueses.
21. Ao decidir conforme fez, a decisão recorrida violou o disposto no art. 20.º da Constituição da República Portuguesa, o artigo 10.º do Código do Processo de Trabalho e as disposições sobre competência internacional previstas nos os artigos 61.º e 65.º do Código do Processo Civil; 
22. Mais, feriu por errada aplicação, o disposto nos artigos 101.°, 105.° 494.°, todos também do Código de Processo Civil.
Termos em que se requer seja concedido provimento ao presente agravo e em consequência, revogada a decisão da primeira instância que determinou a procedência da excepção dilatória invocada pela recorrida, a qual importou a absolvição da instância, e substituída, por outra, que determine a competência para que o tribunal recorrido conheça do mérito da causa.
A agravada contra-alegou, pugnando pela confirmação da decisão recorrida.
Subidos os autos, foi emitido pelo M.P. o parecer de fls.214 vº, favorável à procedência do recurso.
Foram colhidos os vistos

            O objecto do recurso cinge-se à reapreciação da competência internacional do Tribunal recorrido, o que passa essencialmente pela questão de saber se o R. e recorrido (Estado Austríaco) goza de imunidade judiciária relativamente ao litígio dos autos.

A questão de direito
A imunidade jurisdicional de Estados estrangeiros é um princípio de direito internacional público, corolário do princípio da igualdade dos Estados, que traduz a velha máxima par in parem non habet iurisdictionem. Visa garantir o respeito pela soberania. De acordo com ele nenhum Estado pode julgar, através dos seus tribunais, os actos de um outro Estado, a não ser com o respectivo consentimento.
Reconhecida, através do Direito Internacional Consuetudinário, discute-se na doutrina se tal imunidade alguma vez teve carácter absoluto[1], isto é, que se considerasse aplicável a qualquer que fosse a actividade do Estado. Ainda que se admita que alguma vez tivesse tido carácter absoluto, é indiscutível que tem vindo progressivamente a perdê-lo, quer na jurisprudência dos diversos países[2] - que, distinguindo entre actos de gestão pública (acta jure imperii) e actos de gestão privada (acta jure gestionis), limita a imunidade apenas aos primeiros – quer, em alguns casos, em países de commun law, através da adopção de  legislação especial (caso da Grã Bretanha[3] e dos Estados Unidos da América[4]).
A matéria encontra-se em vias de codificação internacional.
Impondo-se a exigência de uma solução internacional unívoca sobre as hipóteses em que o exercício da jurisdição seria admissível, o Conselho da Europa, em 16/5/72, em Basileia, abriu à assinatura dos Estados membros e à adesão dos Estados não membros a Convenção Europeia sobre a Imunidade dos Estados, que adopta o critério de enunciar de modo específico (nos art. 1º a 14º) as situações e relações jurídicas relativamente às quais é aplicável a excepção ao princípio da imunidade dos Estados estrangeiros. Assinada por Portugal em 10/5/79, mas ainda não ratificada, esta Convenção foi ratificada por oito Estados (Alemanha, Áustria, Bélgica, Chipre, Luxemburgo, Holanda, Reino Unido e  Suiça).
No seu artigo 5º  dispõe
“1- Um Estado contratante não pode invocar imunidade de jurisdição perante um tribunal de um outro Estado contratante se o processo se relacionar com um contrato de trabalho celebrado entre o Estado e uma pessoa singular, se o trabalho dever ser realizado no território do Estado do foro.
2 – O parágrafo 1 não se aplica :
a) se a pessoa física tiver a nacionalidade do Estado empregador na altura em que o processo foi instaurado;
b) se na altura da celebração do contrato a pessoa singular não tinha a nacionalidade do Estado do foro nem residia habitualmente nesse Estado; ou
c) se as partes do contrato acordaram em sentido contrário, por escrito, a menos que, de acordo com a lei do Estado do foro, os tribunais desse Estado tivessem jurisdição exclusiva em virtude do objecto do processo
3...”.
Apesar de a Áustria ter ratificado a Convenção e se encontrar vinculada por ela, uma vez que Portugal ainda a não ratificou, não podendo por isso ser considerado, enquanto o não fizer, um Estado contratante para efeitos de aplicação da mesma, não estava a R. obrigada, nos termos daquela norma, a não invocar a imunidade de jurisdição perante um tribunal português.
A nível mundial, no âmbito das Nações Unidas, a Comissão de Direito Internacional (CDI) iniciou em 1978 os trabalhos de codificação sobre imunidades jurisdicionais dos Estados de que resultou  a  elaboração de  um projecto sobre imunidades jurisdicionais dos Estados e da sua propriedade (Draft Articles  on Jurisdictional Immunities of States and Their Property), que adoptou também o critério de enunciar, nos art. 10º a 16º, os actos sujeitos a restrição à imunidade, cujo princípio é formulado no art. 5º.
O respectivo art. 11º é do seguinte teor:
“1 – Salvo acordo contrário entre os Estados envolvidos, um Estado não pode invocar imunidade de jurisdição perante o tribunal de outro Estado que de outro modo seria competente para um processo relacionado com um contrato de trabalho entre o Estado e uma pessoa singular para trabalho prestado, no todo ou em parte, no território desse Estado.
2- O parágrafo 1 não se aplica se:
a) O trabalhador foi recrutado para desempenhar funções estreitamente relacionadas com o exercício de autoridade governamental;
b) O objecto do processo é o recrutamento, renovação do contrato ou reintegração de uma pessoa singular;
c) O trabalhador não era nacional nem residente habitual do Estado do foro ao tempo em que o contrato foi celebrado;
d) O trabalhador era nacional do Estado empregador na altura em que o processo foi instaurado; ou
e) O Estado empregador e o trabalhador acordaram, por escrito, em sentido diverso, salvo considerações de ordem pública que confiram aos tribunais do foro jurisdição exclusiva em virtude do assunto objecto do processo”
Como refere Jónatas E. M. Machado[5] “...a CDI decidiu em 7/5/99 criar um grupo de trabalho para retomar a questão das imunidades dos Estados e da sua propriedade. Por seu lado a AG da ONU, na sua resolução 55/150, de 12/12/2000, decidiu estabelecer um comité ad hoc para aprofundar o estudo da questão da imunidade de jurisdição dos Estados e da sua propriedade e o trabalho até agora feito. O seu relatório (A/57/22) foi produzido em 13/2/2002, tendo apresentado algumas alterações aos Draft Articles da CDI da ONU.”
Se bem que o referido processo de codificação internacional ainda não esteja concluído, ele é bem revelador do crescente peso que vem assumindo, tal como na doutrina e na jurisprudência dos diversos países, a concepção restrita da imunidade judiciária dos Estados.
Temos pois como adquirido que a teoria restritiva da imunidade é hoje dominante.      
Com a adopção desta teoria, a questão essencial passa por saber se a actividade a que se refere o litígio é ou não soberana, ou seja, se se é jure imperii ou jure gestionis.
Todavia, não é pacífico o critério distintivo entre actos jure imperii e actos jure gestionis.
Dominante é o critério que atende à natureza do acto, de acordo com o qual  actos jure imperii são, sem dúvida, os actos de autoridade, de poder público, manifestação de soberania e actos jure gestionis, actos de natureza privada, que poderiam ser de igual modo praticados por um particular. É certo que alguns Estados defendem que se dê idêntico valor ao critério do fim, como refere Eduardo Correia Batista na obra “Direito Internacional Público”, Almedina, 2004, II vol, a pag. 144. Na nota 279 refere este autor que o art. 2º nº 1 al. c) do Projecto da Comissão de Direito Internacional   define “transacção comercial” em função da sua natureza e não do fim a que se destina e, mais adiante, acrescenta “depois de uma cuidadosa resenha da jurisprudência interna sobre a questão, o grupo de trabalho da CDI, na sua reapreciação da questão, reconheceu que o critério da natureza era predominante, embora, por vezes, o do fim ainda recebesse algum acolhimento.”
Segundo Jónatas Machado (obra referida, pag. 163) “A imunidade relativa, imposta pelo recurso crescente ao direito privado por parte dos Estados, é considerada por uma parte substancial da doutrina como a mais consentânea com a tendência actual no sentido da responsabilização dos poderes públicos por danos, contratuais ou extra-contratuais, causados aos particulares. Com efeito, tende a considerar-se que a imunidade não pode ser invocada, nomeadamente no caso de transacções comerciais, contratos de trabalho[6], responsabilidade civil por acções ou omissões danosas, questões de propriedade imobiliária, mobiliária ou intelectual, participações sociais, utilização de embarcações para fins não oficiais, sempre que os elementos de conexão relevantes se encontrem localizados no território do Estado do foro.”
Também na jurisprudência portuguesa, designadamente no foro do trabalho, a teoria da imunidade restrita tem vindo, ultimamente, a obter acolhimento mais alargado (cfr. ac. referidos na douta decisão recorrida).
Merece-nos referência especial o ac. do STJ de 13/11/2002, publicado no site do ITIJ, que relativamente à questão de saber se, num determinado litígio laboral, está em causa um acto de soberania ou um acto de gestão, chama a atenção para a relevância das funções desenvolvidas pelo trabalhador em causa, importando saber se se trata de funções subalternas ou, de algum modo, funções de direcção na organização do serviço público do Estado demandado, funções de autoridade ou de representação. “A natureza das actividades a que há que atender são as que integram as funções do trabalhador em causa, interessando apurar se o regime legal aplicável à relação laboral estabelecida é substancialmente diferente do que liga qualquer trabalhador com as mesmas funções a um qualquer particular.” É que, como refere Pingel Lenuzza (obra citada, pag. 134) “um serviço do Estado, investido de uma missão de soberania pode empregar certas pessoas que não participam, de forma alguma, no cumprimento dessa missão”
No caso a A. alega que “secretariava todos os assuntos inerentes à actividade da Delegação Comercial da Embaixada da Áustria (art. 12º) …, concretamente,  processamento de todo o serviço administrativo da Delegação Comercial da Embaixada entre outras, organização de documentação, processamento de salários, contabilidade, conferência de movimentos e extractos bancários, resposta a solicitações que chegavam à Delegação Comercial por telefone, telefax ou correio electrónico, de empresas ou particulares que pretendiam obter informações sobre o estabelecimento de actividades comerciais em Portugal ou na Áustria. (art. 13º), o que desenvolvia, obviamente, em estrita obediência às ordens do seu superior hierárquico, o Senhor Conselheiro Comercial” (art. 14)º.
 Ainda que seja de admitir que a Delegação Comercial da Embaixada da Áustria desenvolva actividade no sentido da promoção e desenvolvimento das relações comerciais entre aquele país e o nosso e que essa actividade se insira no âmbito das funções que, de acordo com o art. 3º da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, aprovada pelo DL 48295 de 27/3/68, cabem a uma missão diplomática e embora se considere que a A. fosse membro do pessoal administrativo e técnico da missão, porque não consta que as funções por ela desenvolvidas fossem de responsabilidade na direcção do serviço público, mas meramente subalternas, não cremos que deva considerar-se como abrangida pelo jus imperii a actividade desenvolvida pela A., nem, consequentemente, o despedimento de que terá sido alvo. Como refere Michel Menjuck, em anotação a um acórdão da Cour de Cassation francesa de 10/11/98[7], “unicamente as pessoas que tenham uma função de direcção agem no interesse do serviço público estrangeiro e podem ver ser-lhes oposta a imunidade do Estado estrangeiro que pratica um acto de soberania ao demiti-las”
O R., ao comunicar à A a cessação do contrato de trabalho agiu como um qualquer empregador privado, praticando um acto de gestão e não um acto de soberania, pelo que, salvo o devido respeito, não beneficia, quanto a esse acto, da imunidade judiciária.
Além do mais importa atentar que, sendo a A. uma trabalhadora por conta de outrem, dependente para a sua subsistência, do rendimento do trabalho e que, embora não seja cidadã portuguesa, residia em Portugal já antes de passar a trabalhar para a R., é de presumir que a propositura da acção de impugnação do despedimento perante a jurisdição austríaca constitua  para ela uma dificuldade apreciável, o que, para além de os factos que  constituem a causa de pedir (a relação de trabalho e despedimento) terem tido lugar em Portugal (art. 10º do CPT), determina, nos termos do art. 65º nº 1 al. d) do CPC, a competência internacional da jurisdição portuguesa.
Consequentemente, tem o Tribunal do Trabalho de Lisboa competência internacional para conhecer do litígio, razão porque, em nossa opinião, deve revogar-se a decisão recorrida e ordenar o prosseguimento dos autos.

Decisão
Pelo que antecede se acorda em revogar a decisão recorrida, ordenando o prosseguimento dos autos.
Custas pelo R.

Lisboa, 22 de Junho de 2005

Maria João Romba
Paula Sá Fernandes
José Feteira

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[1] Isabelle Pingel-Lenuzza na sua obra “Les Imunités des États en Droit International”, Editions Bruylant, Bruxelles, 1997,  afirma, pag. 135 que “por falta de uma aplicação suficientemente constante e uniforme, a regra de jurisdição absoluta do Estado estrangeiro, contrariamente ao que por vezes é afirmado, nunca pode tornar-se um princípio costumeiro de direito internacional”. Na nota 3 dessa página cita Ogiso, relator do “Projecto de Artigos sobre as Imunidades Jurisdicionais dos Estados e dos seus Bens” no âmbito da Comissão de Direito Internacional da ONU, segundo o qual “já não existe, em direito internacional costumeiro, regra exigindo automaticamente que um Estado conceda, em quaisquer circunstâncias, imunidade de jurisdição aos outros Estados”.
[2] Como é referido por Nguyen Quoc Dinh, Patrick Daillier  e Alain Pellet, in Direito Internacional Público, Fundação Calouste Gulbenkian, 1999, pag. 408 “As jurisprudências nacionais já não confirmam o sistema das imunidades absolutas dos Estados, que tinha o inconveniente de remeter para as administrações dos Negócios Estrangeiros a solução dos problemas  suscitados  aos particulares pela recusa de julgar dos tribunais internos.”
[3] State Immunity Act, de 1978. Segundo vem referido por Malcom N. Show, in International Law, Cambridge University Press, 4th edition,  pag. 511 “As secções 4-11 do State Immunity Act do Reino Unido especificam o resto das muito abrangentes áreas de não imunidade e incluem contratos de trabalho feitos no Reino Unido, ou em que o trabalho deva ser realizado no todo ou em parte do Reino Unido...”
[4] US Foreign Sovereign Immunities Act, 1976.
[5] Direito Internacional  - Do Paradigma Clássico ao pós 11 de Setembro, Coimbra Editora, 2003, pag. 162, nota 82.
[6] Sublinhado da nossa responsabilidade.
[7] In Recueil Dalloz, 1999, pag. 157/158, cfr. citação referenciada no ac. do STJ mencionado.