Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
348/12.1JDLSB.L1-5
Relator: VIEIRA LAMIM
Descritores: CORREIO ELECTRÓNICO
LEI DO CIBERCRIME
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/26/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: Com a Lei do Cibercrime (Lei nº109/2009,de 15 de Setembro), Portugal transpôs para a ordem jurídica interna medidas previstas pela Convenção sobre o Cibercrime e a Decisão-Quadro 2005/222/JAI, visando uniformizar legislação reguladora de criminalidade informática e incrementar a cooperação internacional, nos termos de cujos art.ºs.20 a 26, da Lei do Cibercrime, o legislador previu as medidas específicas de cooperação internacional em matéria de obtenção da prova digital e no art.27, prevê ainda as situações de aplicabilidade da lei penal portuguesa a fim de solucionar dificuldades práticas que podem surgir com este tipo de criminalidade.

Numa sociedade moderna, caracterizada pelo virtual e pela desmaterialização, as pessoas (singulares ou colectivas), continuam a ter um local onde concentram e armazenam o seu património e direitos, mesmo aqueles direitos que só se manifestam de forma desmaterializada, o que coincide, sociologicamente, com o local da residência ou da sede.

Num crime de acesso ilegítimo à caixa de correio electrónica de uma pessoa colectiva, o crime deve ter-se como consumado no local onde a ofendida tem a sua sede (Lisboa), apesar do agente ter executado o crime servindo-se da rede de comunicação proporcionada pela internet e quando se encontrava noutra localidade.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa:





1. No processo nº348/12.1JDLSB, da Comarca de Lisboa (Juízo de Instrução Criminal de Lisboa - Juiz 6), procedeu-se a inquérito e, após acusação deduzida pelo Ministério Público, foi requerida instrução pelos arguidos, no decurso da qual o arguido H. , veio arguir a incompetência territorial do tribunal, requerendo a remessa dos autos à Comarca de Coimbra (JIC), por ser esse tribunal o competente, na sequência do que o Mmo Juiz proferiu o seguinte despacho: 
“…

O arguido H. veio arguir a nulidade, nos termos do arr. 119° e) CPP, por incompetência territorial deste Tribunal requerendo que os autos sejam remetidos ao Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra.

Alega que, nos termos do arr. 19° nº 1 CPP, é competente para conhecer de um crime o tribunal em cuja área se tiver verificado a consumação.

E, atento aos factos descritos na acusação, o crime eventualmente por si praticado ter-se-ia consumado no momento em que terá acedido ilegitimamente à caixa de correio eletrónico do assistente, ou seja, na sua residência sita na Urbanização QTD ...  e nas instalações da sociedade comercial "BCG , Lda" sita na Rua PLB …, em Coimbra.

Alega, ainda, que a lesão do bem jurídico em causa, isto é, a segurança do sistema informático ocorre no preciso momento do acesso ilegítimo ao sistema e a ter sido praticado o ilícito de que agora vem acusado, tê-lo-ia sido em Montemor-o-Velho e em Coimbra.

Notificado da suscitada incompetência deste Tribunal, o assistente PR veio alegar que a regra aplicável ao caso em apreço é o disposto no art.27° n°5 da Lei do Cibercrime, uma vez que não coincidem o local onde fisicamente o agente atuou (Coimbra) e o local onde está fisicamente instalado o sistema informático visado com a sua atuação (Lisboa) cabendo a competência ao Tribunal da comarca de Lisboa.

O MP pronunciou-se pela competência deste Tribunal.

Vejamos.

O arguido vem acusado pela prática de um crime de acesso ilegítimo previsto e punido pelo art. 6° n°.s 1, 3 e 4 a) da Lei do Cibercrime.

Prevê o art°. 27° n°.5 da Lei do Cibercrime que, em cado de dúvida quanto ao tribunal territorialmente competente, designadamente por não coincidirem o local onde fisicamente o agente atuou e o local onde fisicamente está instalado o sistema informático visado com a sua atuação, a competência cabe ao tribunal onde primeiro tiver havido a notícia dos factos.

Nos termos da acusação, o arguido terá acedido á caixa de correio eletrónico do Sindicato dos Trabalhadores dos Impostos sito em Lisboa quando se encontrava na sua residência sita em Montemor-o-Velho e, ainda, nas instalações da sua empresa sita em Coimbra.

Não há, assim, coincidência entre o local de atuação do arguido e o local onde o sistema informático se encontra instalado.

Ora, compulsados os autos, verifica-se que o tribunal onde primeiro houve a notícia dos factos foi o de Lisboa.
Pelo exposto, improcede a arguida incompetência territorial deste Tribunal.
….”.

2. Inconformado, o arguido H.  recorreu, motivando o recurso com as seguintes conclusões:
2.1- A decisão recorrida, proferida pela Mmo Juiz … é ilegal por aplicar erradamente o disposto no art.27, nº5, da Lei do Cibercrime;
2.2- Na tese da acusação, o arguido teria acedido directamente à caixa de correio electrónico … @gmail.com quando se encontrava em Montemor-O-Velho e em Coimbra;
2.3- Na tese da acusação não há qualquer acesso remoto a sistema informático localizado em sítio diverso daquele de onde se acede, mas antes um acesso directo a uma caixa de correio electrónica de terceiro;
2.4- Tendo em conta os supostos factos narrados na acusação, não se encontra preenchida a previsão do art.27, nº5, da Lei do Cibercrime;
2.5- In casu, é de aplicar a regra geral do art.19, nº1, do CPP (ex vi art.288, nº2, do CPP e 27 nº4 da Lei do Cibercrime), fixando-se a competência no Juízo de Instrução de Coimbra por ser este tribunal o competente à luz desta regra geral;
2.6- O douto tribunal a quo deveria, pois, ter aplicado o disposto nos arts.19, nº1 (ex vi art.288, nº2, CPP e 27, nº4, da Lei do Cibercrime), 119, nº1, al.e, e 32 e 33, todos do CPP e, por consequência, declarar-se territorialmente incompetente, declarando a nulidade dos actos praticados após requerimento de abertura de instrução e ordenando a remessa dos autos ao Juízo de Instrução Criminal de Coimbra por ser este o tribunal competente para a presente instrução;
2.7- Deverá, assim, a douta decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que, aplicando o disposto nos arts.19, nº1 (ex vi art.288, nº2 e 27, nº4, da Lei do Cibercrime), 119, nº1, al.e, e 32 e 33, todos do CPP, declare o JIC de Lisboa territorialmente incompetente, declarando ainda a nulidade dos actos praticados após os requerimento de abertura de instrução e ordenando a remessa dos autos ao JIC de Coimbra por ser este o tribunal competente para a instrução.


3. O recurso foi admitido, a subir imediatamente, em separado e com efeito suspensivo, após o que o Ministério Público respondeu, concluindo:
3.1- A Lei do Cibercrime, Lei 109/2009 de 15.09, constitui lei especial em relação ao Código de Processo Penal e nessa medida prevalece sobre esta última (critério da especialidade) excepção se outra for a intenção inequívoca do legislador (diploma aplicável nos termos do art° 70 n° 3 do Civil).
3.2- O art° 27° n° 5 da Lei 109/2009 não é taxativo, apenas definindo que em caso de dúvida quanto ao tribunal competente, a competência cabe ao tribunal que primeiro tiver havido noticia dos factos.
3.3- Estando em causa locais como Lisboa, Montemor - o - Velho e Coimbra e existindo a dúvida relativamente ao local em que os factos se consumaram, o art° 27° n° 5, que aliás percorre o trilho do art° 21 n° 2 do CPP, define como territorialmente competente o tribunal correspondente da zona em que os factos foram, primeiramente noticiados, no caso Lisboa.
3.4- A noção de que o crime constitui um crime de perigo abstracto não invalida o entendimento de que a consumação do crime depende de um efectivo acesso ao sistema;
3.5- E tendo este sido efectuado a partir de Coimbra e Montemor- o Velho e estando o email acedido e o respectivo sistema informático situado em Lisboa, não se pode deixar de entender que a consumação se verifica em Lisboa.
3.6- Pelo que, também por força do estatuído no art° 19° n° 1 do CPP, mas por diferente interpretação da do recorrente, sempre seria Lisboa competente.
3.7- Inexiste, pois, nulidade ou violação de preceito legal.

4. Neste Tribunal, o Exmo Sr. Procurador-geral Adjunto aderiu à resposta do Ministério Público em 1ª instância.

5. Como consta do despacho de fls.1028, o recurso foi admitido a subir imediatamente, em separado e com efeito suspensivo.

Apesar disso, a fls.1042, a Mma Juiz ordenou a subida dos autos a este tribunal, como se o recurso tivesse sido admitido a subir nos próprios autos.

A reparação desse erro, com a devolução do processo à 1ª instância, para organizar apenso para o recurso subir depois em separado, porém, só iria retardar o conhecimento do recurso, sem qualquer benefício útil para o andamento do processo, razão por que nada se determina.

Colhidos os vistos legais, procedeu-se a conferência.

6. O objecto do recurso, tal como se mostra delimitado pelas respectivas conclusões, reconduz-se à apreciação da questão de saber se a Comarca de Lisboa (JIC) é territorialmente competente para os presentes autos.

IIº

1. Acusado de crime de acesso ilegítimo, p.p., pelo art.6, da Lei do Cibercrime (por, alegadamente, ter acedido à caixa de correio electrónica do Sindicato dos Trabalhadores dos Impostos sito em Lisboa, quando se encontrava na sua residência sita em Montemor-o-Velho e, ainda, nas instalações da sua empresa em Coimbra), o recorrente suscitou a excepção de incompetência territorial para a instrução do tribunal recorrido (Juízo de Instrução Criminal de Lisboa).

O tribunal recorrido, invocando o disposto no art.27, nº5, da Lei do Cibercrime e considerando não haver coincidência entre o local de actuação do arguido e o local onde se encontra o sistema informático, conclui pela sua competência por ter sido em Lisboa onde primeiro houve notícia dos factos.

Com a Lei do Cibercrime (Lei nº109/2009,de 15 de Setembro), Portugal transpôs para a ordem jurídica interna medidas previstas pela Convenção sobre o Cibercrime e a Decisão-Quadro 2005/222/JAI, visando uniformizar legislação reguladora de criminalidade informática e incrementar a cooperação internacional.

Nos arts.20 a 26, da Lei do Cibercrime, o legislador previu as medidas específicas de cooperação internacional em matéria de obtenção da prova digital e no art.27, prevê ainda as situações de aplicabilidade da lei penal portuguesa a fim de solucionar dificuldades práticas que podem surgir com este tipo de criminalidade.

No caso, tudo se passando dentro das nossas fronteiras, sem quaisquer dúvidas sobre a competência dos nossos tribunais, não há razão para apelar ao que dispõe aquele art.27 que não teve em vista a competência territorial dos nossos tribunais, que deverá ser determinada pelas normas do CPP.

Também não justifica qualquer referência ao art.7, do Código Penal, onde se consagra a chamada solução plurilateral ou da ubiquidade, em termos particularmente amplos de acordo com a ideia da plenitude da soberania portuguesa sobre o território nacional pois, repete-se, não se questiona a aplicabilidade da nossa lei penal ao caso.

O que se questiona é, apenas, a competência territorial, ou seja a distribuição do trabalho entre os diversos tribunais de 1ª instância, em relação ao que o legislador parte do pressuposto que todos os tribunais dão idênticas garantias, optando por um critério de locus delicti por aí ser mais fácil a recolha de provas e causar menor perturbação a instrução e julgamento a todos aqueles que são obrigados a deslocar-se ao tribunal[1].

A questão deve, assim, ser decidida com recurso ao que dispõe o CPP no art.19 e segs., de onde emerge a regra geral “É competente para conhecer de um crime o tribunal em cuja área se tiver verificado a consumação” (nº1, do citado art.19).

Alega o recorrente que não está em causa qualquer acesso ou intrusão remotos a equipamento informático localizado em sítio diverso daquele de onde se acede, o que é imputado ao arguido é o pretenso acesso directo a uma caixa de correio electrónico, bastando para tal ter um equipamento informático, ligação à internet e as coordenadas de acesso.

De facto, numa sociedade moderna marcada pelo “virtual” e pela “desmaterialização”, pode não ser valorado um local real como de consumação de determinado crime, quando de palpável mais não se vê que a actuação do agente, como acontece em relação a certo tipo de crimes surgidos com a criminalidade de natureza informática.

É verdade, como alega o recorrente, que em qualquer sítio, dispondo de equipamento informático, ligação à internet e coordenadas de acesso, se pode aceder à caixa de correio electrónico de outra pessoa (crime de Acesso ilegítimo – art.6, da Lei do Cibercrime).

Contudo, a realidade da vida não é susceptível de se reduzir na totalidade ao mundo virtual. Aquela pessoa (singular ou colectiva) que criou e usa uma determinada caixa de correio electrónico não é, seguramente, uma entidade virtual e não pode ser esquecida na definição do objecto do processo que abrange, não apenas o sujeito activo (agente do crime), mas também o sujeito passivo (vítima), que na respectiva esfera jurídica sofre o impacto da acção daquele, vendo atingidos bens jurídicos da sua titularidade, no caso em apreço relacionados com a segurança e confidencialidade da sua correspondência.

Ao contrário da lei penal que, como vimos, adoptou um critério amplo (solução plurilateral ou da ubiquidade), a lei processual adoptou a teoria do resultado.

Ora, tendo presente o caso em apreço, o crime de acesso ilegítimo só se consumou com a violação da segurança e confidencialidade da correspondência constante caixa de correio electrónica do Sindicato dos Trabalhadores dos Impostos.

Esta pessoa colectiva, embora tenha optado pela desmaterialização da sua correspondência ou informação (pelo menos em parte), em legítimo aproveitando dos avanços tecnológicos dos tempos modernos, não passou a ser uma entidade virtual, antes devendo entender-se que continua a ter um local onde concentra e armazena o seu património e direitos (no que se inclui o que apenas se manifesta de forma desmaterializada), o que coincide, sociologicamente, com o local da sede (em caso de pessoa colectiva) ou de residência (em caso de pessoa singular).

Ao contrário do alegado pelo recorrente, entendemos que para a consumação do crime em causa não basta equipamento informático, ligação à internet e coordenadas de acesso é, ainda, necessário que o ofendido tenha criado uma caixa de correio electrónico. Aqueles elementos integram a estrutura técnica necessária à execução do crime, que tem a particularidade de poder ser praticado à distância, mas o crime só se consuma quando são atingidos interesses legítimos de um ofendido concreto.

No caso, tendo o crime em investigação se consumado com o acesso pelo arguido à caixa de correio electrónica do Sindicato dos Trabalhadores dos Impostos, na qual se encontravam direitos do mesmo que se devem considerar como localizados na sua sede (Lisboa), deve esse local ser tido como o da consumação do crime.

A aceitação da tese do recorrente, levando às últimas consequências a ideia do virtual, além de ignorar o ofendido, aquele que afinal sofreu ofensa de direitos protegidos, não é compatível com as razões já referidas como justificação da opção do legislador pelo locus delicti na definição da competência territorial dos tribunais portugueses, a que acresce o facto de ser nesse local que mais é reclamada a resposta do tribunal destinada a uma adequada protecção dos bens jurídicos.

Assim, embora com fundamentos diferentes dos do despacho recorrido, reconhece-se a competência do Juízo de Instrução Criminal de Lisboa para a instrução requerida nos presentes autos.

Concluindo:
Numa sociedade moderna, caracterizada pelo virtual e pela desmaterialização, as pessoas (singulares ou colectivas), continuam a ter um local onde concentram e armazenam o seu património e direitos, mesmo aqueles direitos que só se manifestam de forma desmaterializada, o que coincide, sociologicamente, com o local da residência ou da sede.

Num crime de acesso ilegítimo à caixa de correio electrónica de uma pessoa colectiva, o crime deve ter-se como consumado no local onde a ofendida tem a sua sede (Lisboa), apesar do agente ter executado o crime servindo-se da rede de comunicação proporcionada pela internet e quando se encontrava noutra localidade.
*     *     *


IIIºDECISÃO:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação de Lisboa, em conferência, em negar provimento ao recurso do arguido H. , confirmando o despacho recorrido.
Condena-se o recorrente em três UCs de taxa de justiça.



Lisboa, 26.03.2019



(Relator: Vieira Lamim)
(Adjunto: Ricardo Cardoso)



[1]Maia Gonçalves, Código de Processo Penal anotado e comentado, 15ª edição, pág.99