Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5407/16.9T8ALM.L1-6
Relator: ANA AZEREDO COELHO
Descritores: PESSOA COLECTIVA DE DIREITO PÚBLICO
DIREITO AO BOM NOME
LIBERDADE DE EXPRESSÃO
DIREITOS FUNDAMENTAIS
COLISÃO DE DIREITOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/20/2020
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I) As pessoas colectivas só têm os direitos compatíveis com a sua natureza, à prossecução dos fins para que exista, os direitos adequados à sua especialidade.
II) A personalidade colectiva de que os municípios gozam permite considerar incluída na sua especialidade, ou, noutra terminologia, na sua natureza, o direito à protecção do bom nome, credibilidade, prestígio e confiança.
III) No caso de uma autarquia, o bom nome e a reputação estão indissoluvelmente ligados ao modo como cumprem com as suas competências e as exercem em prol de todos os munícipes e ao respeito escrupuloso pela ordem jurídca instituída, tendo decidido valor a imparcialidade de actuação, que é característica da administração, por dever próprio, e a ausência de motivações diversas das que resultam do exercício democrático do poder local, tal como desenhado na constituição e na lei.
IV) Em sede de colisão de direitos o primeiro critério a considerar, ou a primeira situação a excluir, é o da prevalência abstracta de um direito sobre outro;
V) Inexistindo prevalência, cumpre atender ao critério da concordância prática, na perspectiva de cedência recíproca, a qual implicando a restrição efectiva dos direitos, tem de operar em sede de ponderação concreta dos modos de exercício e dos valores envolvidos.
VI) Na ponderação deve partir-se do exercício pleno dos direitos em confronto, “experimentando” as necessárias restrições de um e outro, e testando-as à luz dos critérios constitucionais de restrição de direitos.
VII) Na aplicação ao caso concreto das restrições é de particular importância relevar os limites aos limites de direitos fundamentais colocados pela Constituição (dignidade da pessoa humana, proporcionalidade, proibição do excesso, protecção da confiança) e os parâmetros testados ao longo do tempo na resolução do conflito que os critérios jurisprudencialmente construídos consituem.
VIII) Na apreciação das restrições a direitos fundamentais colidentes, é essencial o confronto de conformidade com a jurisprudência do TEDH, nomeadamente visto o disposto no artigo 696.º, alínea f), do CPC, sem prejuízo da apreciação primária do direito interno, desde logo face ao princípio da margem de apreciação que cabe a cada ordenamento jurídico nacional.
IX) A liberdade de expressão, referida a assuntos fundamentais da vida em sociedade e de interesse público central para a democracia, que atinja o bom nome de uma pessoa colectiva pública, por matérias do âmbito da sua actuação nessa qualidade, existindo alguma verosimilhança de alguns dos factos afirmados e sendo outros conhecidos como falsos pelo autor das afirmações, pode ser objecto de restrição limitada à medida necessária à publicitação dessa falsidade, a expensas do Réu.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM na 6ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I) RELATÓRIO
MUNICÍPIO DO ….., veio instaurar acção declarativa de condenação com processo comum contra L…., alegando, em síntese, ter o Réu proferido, em entrevista a um órgão de comunicação social, diversas afirmações que sabia falsas, sobre situações em que o Município teria tido intervenção, imputando aos seus órgãos condutas ilícitas ou ilegais, assim afectando a credibilidade, o prestígio e a confiança devidos ao Autor, causando-lhe danos não patrimoniais para cujo ressarcimento reputa adequado o montante de € 60.000,00. Pediu a condenação do Réu a pagar-lhe tal montante e a suportar o custo de publicação da sentença que assim o condene.
O Réu contestou alegando que a entrevista visava repor aquela que entendia ser a verdade dos factos envolvendo o processo disciplinar que o Autor lhe moveu, que resultou na sua demissão, nunca tendo visado denegrir a imagem do Autor, como não o fez, sendo a entrevista um acto de legítima defesa e de exercício de direito à opinião. Concluiu pela sua absolvição do pedido.
Cumprido o demais legal, houve audiência de julgamento no termo da qual o tribunal proferiu sentença que absolveu o Réu do pedido.
Desta sentença interpôs recurso a Autora, apresentando as seguintes conclusões:
1ª - O Tribunal a quo julgou a acção improcedente e absolveu o R. do pedido por ter entendido que, não obstante o R. ter veiculado factos que não são verdadeiros e que sabia da inverdade de tais factos, os mesmos não são suficientes para consubstanciar a imputação pelo R. ao Município A. da prática de actos ilícitos.
2ª - O Tribunal entendeu que na situação dos autos não se verificam os pressupostos da responsabilidade civil com que o Município A. sustentou a propositura da acção e fundamentou o pedido de indemnização para ressarcimento dos danos não patrimoniais causados pela ofensa ao bom nome, credibilidade, prestígio e confiança que lhe são devidos.
3ª - Salvo o devido respeito, o Município A. discorda da aplicação do direito perfilhada na D. sentença recorrida por entender que, na situação dos presentes autos, os factos praticados pelo R. preenchem os pressupostos da figura da responsabilidade civil e são geradores da obrigação de indemnizar, tendo o Tribunal a quo procedido a uma incorrecta aplicação do direito.
4ª - O presente recurso versa exclusivamente sobre a matéria de direito, pois a Mma. Juíza do Tribunal a quo procedeu a um correcto e exaustivo julgamento da matéria de facto, através de uma análise profunda e detalhada dos meios de prova produzidos.
5ª - Resulta apoditicamente da factualidade comprovada que, na segunda parte da entrevista dada ao órgão de comunicação social local, o R. acusou a autarquia de cumplicidade, conivência e ilegalidade com o propósito de compactuar para a perda do Estádio do Bravo, o campo de jogos do S… Futebol Clube, um clube emblemático do Concelho.
6ª - O R. refere expressamente que “houve aqui um conjunto de ilegalidades graves” com que procurou sustentar a falsa acusação de conluio por parte da autarquia para compactuar com a perda do Estádio do ….. E fê-lo conscientemente e intencionalmente, num órgão de comunicação social, sabendo da falsidade das acusações veiculadas.
7ª - O Tribunal a quo desconsiderou indevidamente a falsa acusação do R. de que a Câmara Municipal do …l lesou o erário público, quando refere que podia ter evitado a venda do Estádio do Bravo (o que é falso) e que estaria em condições de negociar a compra do Estádio até pelo valor de 5 euros (!), acrescentando, de seguida, que não tem “dúvidas nenhumas que, em função do quadro que está estabelecido, a Câmara Municipal do …. vai ficar com o Estádio do Bravo, com todos estes problemas associados (...). A CMS terá de definir os espaços comuns ou terá de negociar com os proprietários e, aqui, mais uma vez, a autarquia vai ter de desembolsar dinheiro para pessoas que, com todo o direito, compraram as parcelas para lucrarem com isso”
8ª - O impacto das palavras do R. é muito relevante, pois o homem médio, cidadão comum e bom pai de família interpretou tais acusações como tendo ocorrido a prática de actos ilícitos por parte da autarquia.
9ª - Passou para a opinião pública a falsa acusação de que a autarquia foi cúmplice e conivente com terceiros na prática de crimes, com os quais compactuou para a perda do Estádio do Bravo. Crimes esses, nas palavras do R., executados através da prática de actos ilegais e que lesaram o erário público.
10ª - Quem acusa outrem de compactuar (com terceiros) para a perda do Estádio do …. e de ter lesado o erário público. Quem diz que esse outrem foi cúmplice e conivente dos mesmos terceiros, praticando ilegalidades graves, é evidente que está a imputar a prática de actos ilícitos. As expressões “cumplicidade”, “conivência” e “compactuar” (v.g. conluio) são próprias do léxico das normas penais e foram intencionalmente usadas peio R.
11ª - Os órgãos das pessoas colectivas públicas têm de actuar de acordo com os princípios da legalidade e do interesse público. O cometimento de ilegalidades graves e a prática de actos lesivos do erário público são punidos por lei e podem gerar responsabilidade sancionatória e reintegratória para os agentes.
12ª - A sentença recorrida faz uma interpretação literal e redutora das falsas imputações que o R. fez ao Município A. A Mma. Juíza do Tribunal a quo entendeu restritivamente que as acusações de cumplicidade, conivência e ilegalidade se circunscreveram à alegada emissão pela Câmara Municipal do …l de declarações em como as construções existentes no perímetro do Estádio do…. eram anteriores a 1951, obviando à necessidade da licença de utilização como condição para a transmissão do direito de propriedade sobre esses imóveis. Contudo, assim não é, pois a alusão pelo R. à emissão daquelas Declarações pela Câmara Municipal é meramente instrumental da verdadeira imputação que o R. fez ao Município A. da prática de actos ilícitos resultantes e consequentes do teor de tais declarações.
13ª - Ao contrário do que resulta da sentença recorrida, é totalmente irrelevante se a entrevista do R. não é clara sobre quem foram os “cúmplices” beneficiados pelas “ilegalidades” cometidas e quem pretendia a Câmara Municipal ….l prejudicar.
14.ª - As conjecturas plasmadas na D. sentença recorrida sobre a indefinição das palavras do R., quer quanto a quem alegadamente foi beneficiado, quer quanto a quem alegadamente foi prejudicado pela Câmara Municipal do.., irrelevam absolutamente.
15ª - Ao contrário do que se refere na D. sentença recorrida, também não é relevante que da entrevista do R. possa não ter resultado o lançamento de dúvidas de forma generalizada sobre o pretenso cometimento de ilegalidades pelos órgãos e serviços municipais. Basta que tenha havido uma dúvida por parte de uma pessoa para ter havido dano ao bom nome do Município A. A generalização da dúvida apenas releva para quantificação do dano, mas não para a sua verificação. Se houve divulgação das falsas acusações do R. ao Município A., ainda que de forma não generalizada, tal não afasta a ocorrência do dano, como sucedeu in casu.
16ª - Ao contrário do julgado pelo Tribunal a quo, os factos que o R. na entrevista imputou ao Município A. são aptos e idóneos a afectar o bom nome da Câmara Municipal …l e a causar danos.
17ª - A conduta consciente e intencional do R. de acusar falsamente a autarquia, num órgão de comunicação social, da prática de actos ilícitos, em cumplicidade e conivência com terceiros, para compactuar com a perda do Estádio do…., através do cometimento de ilegalidades, é, por sua vez, inequivocamente, uma conduta ilícita que violou o direito do Município A. ao seu bom nome e reputação, enquanto pessoa colectiva de direito público. 
18ª - O facto ilícito imputável ao R. causou danos ao Município A. A simples suspeita sobre a veracidade das graves acusações propaladas pelo R. é geradora de danos. Basta que uma pessoa tenha acreditado nas falsas acusações do R. de que a autarquia foi cúmplice e conivente com a prática de actos ilícitos para ter ocorrido um dano ao crédito e ao bom nome da pessoa colectiva de direito público, nos termos previstos no art. 484° do Cód. Civil.
19ª - Como resultou provado, o R. tem notoriedade junto da população em virtude de ter sido Director Financeiro e Notário privativo da Câmara Municipal ….l. Revela-se, assim, contraditório que a Mma. juíza do Tribunal a quo tenha, de seguida, concluído que o R. é inidóneo para causar danos ao bom nome do Município A. (não pode aceitar-se semelhante "imunidade” generosamente concedida ao R. pelo Tribunal a quo).
20ª - O Município A. sofreu efectivamente danos na sua credibilidade e bom nome em resultado das falsidades conscientemente divulgadas publicamente pelo R. num órgão de comunicação social, pelo que é evidente o nexo causal entre a conduta ilícita do R. e o dano não patrimonial causado, cujo ressarcimento é reclamado nesta acção.
21ª - Resulta inequívoco da matéria de facto comprovada nos autos que o R. agiu com culpa. O R. sabia da falsidade das acusações de cumplicidade, conivência e ilegalidade que fez à autarquia, pelo que agiu com dolo directo para obter o resultado pretendido com a entrevista de lesar o crédito e o bom nome do Município A.
22ª - A sentença recorrida procede a incorrecta aplicação do direito aos factos provados. Os factos praticados pelo R. preenchem inequivocamente os pressupostos da figura da responsabilidade civil e são geradores da obrigação de indemnizar o Município A., de harmonia com o disposto nos arts. 483°, 484°, 496° e 562° e segs. do Código Civil, que deveriam ter sido aplicados pelo Tribunal a quo.
23ª - O Tribunal recorrido entendeu justificar a conduta do R. ao abrigo da liberdade de expressão e no âmbito do debate político. Contudo, tratam-se de questões relevantes para juigar a responsabilidade do R. no foro criminal, o que não sucede no presente caso.
24ª - Ao ter julgado como não verificados os pressupostos da responsabilidade civil na situação dos presentes autos, o Tribunal a quo procedeu a incorrecta aplicação do direito aos factos provados.
25ª - Os danos que estão em causa têm natureza não patrimonial e são indemnizáveis porque a sua gravidade justifica a tutela jurídica, de harmonia com o disposto nos arts. 496°, n.° 1 e 562° e segs. do Cód. Civii.
26ª - Pela aplicação conjugada das disposições legais dos arts. 483°, 484°, 496° e 562° e segs. do Código Civil aos factos comprovados nos autos, deve a sentença recorrida absolutória ser revogada e substituída por decisão que julgue verificados os pressupostos da responsabilidade civil e condene o R. no pedido. 
Nestes termos e nos mais de direito, com o D. suprimento de Vossas Excelências, deve ser dado provimento ao presente recurso e ser revogada a sentença recorrida, a qual deve ser substituída por decisão que julgue a acção procedente, por provada, e condene o R. no pedido, tudo com as legais consequências, por ser de Direito e de JUSTIÇA.
O Réu contra-alegou, defendendo o julgado.
O recurso foi recebido como apelação, para subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
Nesta Relação foi considerada a possibilidade de modificação oficiosa da matéria de facto, tendo as partes sido de tal notificadas para se pronunciarem.
O Autor manifestou a sua concordância com a alteração da matéria de facto, enquanto o Réu indicou entender a mesma desnecessária por inexistir obscuridade na decisão recorrida quanto ao ponto indicado.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir já que a tal nada obsta.
II) OBJECTO DO RECURSO
Tendo em atenção as conclusões do Recorrente, sem prejuízo do conhecimento oficioso anunciado quanto à matéria de facto - artigo 635.º, n.º 3, 639.º, nº 1 e 3, com as excepções do artigo 608.º, n.º 2, in fine, ambos do CPC -, cumpre decidir da verificação dos pressupostos de indemnização por danos não patrimoniais e da publicação, a expensas do Recorrido, de eventual decisão condenatória.
III) FUNDAMENTAÇÃO
1. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
1.1. Reapreciação da matéria de facto
Nos termos do artigo 662.º, n.º 1, e 2 alínea c), este a contrario, a Relação pode alterar oficiosamente a decisão proferida sobre a matéria de facto quando a considere ferida de obscuridade e o processo contiver todos os elementos a tal bastantes.
O facto 43 da decisão de facto proferida em primeira instância tem a seguinte redacção:
 O R. sabia da falsidade das acusações de cumplicidade, conivência e ilegalidade que fez aos membros da Câmara Municipal.
Da motivação da decisão quanto a este facto consta o seguinte:
Pontos 39. e 43.: Atendendo a que o R. era o Notário Privativo da CMS, possuindo por isso conhecimentos jurídicos qualificados, o R. não pode deixar de saber que a atribuição de artigos matriciais não constitui uma competência das câmaras municipais.
Acresce que decorre dos termos da defesa vertida pelo R. no processo disciplinar que este sabia que tinha sido apresentado um Modelo 121 nas Finanças, destinado precisamente a proceder à autonomização dos edifícios integrantes do perímetro do Estádio do Bravo, sendo essa apresentação da autoria do próprio SFC.
Ou seja, o R. não podia deixar de saber que não foi a atuação da CMS que viabilizou a penhora e venda dos bens, até porque decorre quer da entrevista, quer da defesa vertida no processo disciplinar, que o R. sabia que tal penhora e venda não tinham sido promovidas pela CMS, nem a CSM tinha intervindo por qualquer forma nesses processos.
O facto dado como provado não esclarece a que realidades se reporta como sendo conhecidas como falsas pelo Réu, nessa medida se reputando obscuro.
No entanto, a motivação explicita essa matéria, uma vez que esclarece o que foi considerado como sendo conhecido pelo Réu como falso nas imputações feitas ao Autor. Ou seja, a afirmação genérica que consta do facto quanto ao conhecimento do Réu é concretizada na motivação como referindo-se à atribuição de artigos matriciais para autonomização dos edifícios e à viabilização da penhora e venda dos bens em execução fiscal.
É consabido que a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele – artigo 236.º, n.º 1, do CC.
O regime é aplicável à interpretação da peça processual que a sentença constitui, por força do disposto no artigo 295.º, do CC.
Em suma, a actividade necessária é a de determinar por interpretação o conteúdo do ponto de facto em causa. Porque a sentença tem natureza formal, a interpretação está limitada à correspondência mínima com o texto escrito, ainda que imperfeitamente expresso – artigo 238.º, n.º 1, do CC.
Nos termos consagrados na lei vigente, a finalidade da interpretação consiste não na exacta determinação da intenção ou vontade das partes a respeito do objecto ou conteúdo do acto[1], na perspectiva subjectivista, mas antes na fixação do sentido objectivo da declaração[2], numa concepção declarativista ou objectivista.
Embora a assimilação do regime do artigo 236.º a esta última concepção, que o Professor Castro Mendes afirma (e com ele parte da doutrina), no capítulo iniciado pela citação feita,  não seja pacífica, a polémica a respeito não influencia a apreciação e decisão do caso vertente, por isso que a declaração tem destinatário[3] e é na circunstância oposta que a questão se coloca com mais acuidade. 
A lei indica genericamente como critério interpretativo, a percepção de um declaratário normal colocado no lugar do declaratário real. Os elementos de interpretação serão assim aqueles de que um declaratário normal poderia dispor[4].
O Professor Carvalho Fernandes dá nota dos critérios interpretativos[5] que o artigo 684.º do Código de Seabra indicava, ao estabelecer nulo o contrato sempre que dos seus termos, natureza e circunstâncias, ou do uso, costume ou lei, se não possa depreender qual fosse a intenção ou vontade dos contraentes sobre o objecto principal do mesmo contrato.
E continua o Autor citado: surgem aqui os elementos essenciais da interpretação: a letra do negócio, as circunstâncias de tempo, lugar, e outras, que precederam a sua celebração ou foram contemporâneas desta, bem como as negociações respectivas; a finalidade prática visada pelas partes; o próprio tipo negocial; a lei e os usos e costumes por ela recebidos. Para concluir, deve entender-se que a todos continua a ser possível recorrer, com a ressalva de esta enumeração não ter carácter limitativo (…).
Ainda no plano dos critérios a atender, os Professores Pires de Lima e Antunes Varela ensinam que o sentido decisivo da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um declaratário normal, ou seja, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante[6]. Para acrescentarem que a normalidade do declaratário, que a lei toma como padrão, exprime-se (…) na capacidade para entender o texto ou conteúdo da declaração (…).
Face ao que, no caso dos autos e dada a especificidade do acto jurídico, importa atender ao texto e ao seu contexto, maxime, à motivação da decisão constante da mesma sentença e que acima se transcreveu.
Fazendo-o, dir-se-á que a conjugação da motivação com a indicação genérica constante do ponto de facto 43, determina que seja restringido o alcance do conhecimento do Réu nesse facto enunciado às questões específicas que a motivação enuncia.
Neste contexto, entende-se que o que foi considerado como sendo conhecido pelo Réu como falso foram as acusações de cumplicidade, conivência e ilegalidade que fez aos membros da Câmara Municipal, quanto à atribuição de artigos matriciais para autonomização dos edifícios integrantes do perímetro do Estádio do Bravo e quanto à viabilização da penhora e venda dos bens em execução fiscal.
Assim, nos termos do artigo 662.º, n.º 1, e 2 alínea c), este a contrario, do CPC, altera-se o ponto 43 da decisão de facto, o qual passará a ter a seguinte redacção:
O Réu sabia da falsidade das acusações de cumplicidade, conivência e ilegalidade que fez aos membros da Câmara Municipal, quanto à atribuição de artigos matriciais para autonomização dos edifícios integrantes do perímetro do Estádio do Bravo e quanto à viabilização da penhora e venda dos bens em execução fiscal.
1.2. Fixação dos factos assentes
De acordo com a fixação da matéria de facto em primeira instância e a reapreciação efectuada no ponto anterior, encontram-se assentes nos autos os seguintes factos:
1. O R. foi funcionário do Município A., tendo iniciado funções na Câmara Municipal do …. em 24/03/1986, como contratado além do quadro, e celebrado contrato de prestação eventual de serviços para exercer as funções de Economista Principal.
2. O R. ingressou no quadro de pessoal da Câmara Municipal do … através de concurso externo de ingresso, aberto por aviso publicado no DR III série, n.º 248, de 27/10/1986, tendo sido nomeado por deliberação de Câmara datada de 05/12/1986, conforme aviso publicado no DR III série, n.º 4, de 06/01/1987.
3. O R. foi nomeado Técnico Superior de 1ª classe por Deliberação de Câmara datada de 21/04/1989, conforme Edital n.º 74, de 26/04/1989, mediante aprovação prévia em concurso interno de promoção, aberto por Edital n.º 66, de 03/04/1989. 
4. O R. foi nomeado Técnico Superior Principal por Despacho do Senhor Vereador do Pessoal datado de 09/11/1992, conforme aviso publicado no DR III série, n.º 272, de 24/11/1992, mediante aprovação prévia em concurso interno de promoção, aberto por aviso publicado no DR III série, n.º 123, de 28/05/1992.
5. O R. foi nomeado Técnico Superior Assessor Principal, com efeitos reportados a 24/11/1998, por Despacho do Senhor Presidente da Câmara Municipal datado de 30/08/2002, conforme aviso publicado no DR III série, de 20/09/2002.
6. O R. esteve nomeado, em Comissão de Serviço, no cargo de Diretor do Departamento de Administração Geral e Finanças desde 09/01/1987, com última renovação datada de 14/02/2009, e terminou a comissão de serviço em 31/12/2010.
7. O R. foi nomeado, em regime de substituição, no cargo de Diretor do Departamento do Plano, Orçamento e Gestão Financeira, por Despacho n.º 153-PCM/2011, de 11 de fevereiro, com efeitos reportados a 01/01/2011, tendo cessado a nomeação em 11/03/2011.
8. O R. foi nomeado, em regime de substituição, no cargo de Diretor do Gabinete do …, equiparado a cargo de direção intermédia de 1.º grau, por Despacho n.º 222-PCM/2011, de 11 de março, tendo cessado a nomeação em 01/06/2012.
9. Desde 1994 o R. acumulou as funções de dirigente com o exercício de funções de Notário Privativo do Município do …, tendo a última nomeação ocorrido em 3 de novembro de 2009 e cessado em 1 de junho de 2012.
10. Na Reunião Ordinária da Câmara Municipal do …., realizada em 14 de janeiro de 2016, foi tomada a Deliberação n.º 3/2016, nos termos da qual foi aplicada ao R. a sanção disciplinar de demissão (doc. 1 – fls. 24 a 39).
11. O referido ato administrativo que aplicou a sanção disciplinar ao R. foi por este judicialmente impugnado no processo cautelar de suspensão da eficácia do ato, que corre termos na Unidade Orgânica 1 do Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, como Proc. n.º 245/16.1BEALM, no qual foi proferida Sentença que indeferiu o procedimento cautelar, tendo esta Sentença sido revogada por Acórdão que julgou improcedente o procedimento cautelar, já transitado em julgado (fls. 275 a 313-v).
12. No processo disciplinar instaurado pelo Município A. ao R. e que culminou com a aplicação da sanção de demissão, considerou-se que foram apurados factos que consubstanciam a prática pelo R. de uma conduta dolosa que desrespeitou gravemente e atentou contra a honra e a imagem pública da Câmara Municipal do …., dos seus membros e trabalhadores e que é manifestamente ofensiva da instituição Município do .. (fls. 275 a 313-v).
13. Os factos aludidos em 12. são os que respeitam à entrevista que o R. deu ao Jornal “Comércio do S….”, na edição do dia 15 de abril de 2015 (fls. 275 a 313-v).
14-A. Na edição do dia 15 de abril de 2015 do Jornal “Comércio do ”, foi publicada nas páginas 2, 3 e 5, uma entrevista do R. (doc. 2 – fls. 39-v a 41), da qual consta o seguinte: 
- “(Jornalista) Durante todo este tempo, tem-se mantido em silêncio perante as acusações feitas à sua gestão do SFC. No âmbito de um processo interposto pelo Ministério Público, foi exonerado do cargo de director Financeiro da CMS e do cargo de director do Projecto do Arco Ribeirinho Sul. As suas declarações públicas neste momento são uma forma de «vingança» em relação à forma como foi tratado pela CMS?”
- (R.) Há muitas pessoas que me fazem essa pergunta, porque é que eu mudei a minha atitude, e digo-vos muito claramente, que foi porque entendi que a CMS teve mais do que tempo para tomar a atitude que devia ter tomado e não o fez. Fui director Financeiro da CMS desde Março de 1986 até 15 de Março de 2011. Dessa data até 30 de Maio de 2012, fui director do Projecto do A….l. Em 1 de Junho de 2012 fui exonerado de ambas as funções por A….. Perante tudo isto, afirmo que a CMS foi desonesta, quer política quer pessoalmente. Tudo começou com uma denúncia anónima que deu origem ao processo, feita a 5 de Janeiro de 2003 ao Director da Polícia Judiciária. Nesta era dito o seguinte: «durante os últimos anos e ainda presentemente, têm vindo alguns altos responsáveis da CMS a desviar verbas públicas para pagar despesas de alimentação entre outras do Clube de Futebol do …., das equipas de basket e de «okei» em patins num conhecido restaurante desta zona» e ainda «no que diz respeito às obras públicas, a troco de algum tipo de subornos, têm alguns altos responsáveis da Câmara vindo durante os últimos anos a entregar a realização dessas mesmas obras a determinados empreiteiros antes de abrirem concurso público (…) e estes empreiteiros continuam a realizar obras em casa do próprio presidente e de amigos e familiares do mesmo.» (segundo documento a que o «Comércio» teve acesso). No âmbito deste processo, em 2008 a PJ realizou buscas ao meu escritório e às instalações municipais. Mas a CM..imputou tudo para cima de mim. Basta ver o comunicado que foi feito depois das buscas pela PJ, onde diziam que aquilo era unicamente uma questão particular e que tinha única e exclusivamente a ver com o funcionário L…e nada tinha a ver com a CM… Depois da fase de Acusação, dá-se a fase de Instrução em que o processo é apreciado para verificar se existe alguma razoabilidade para continuar. A CM.. constitui-se assistente no processo, para poder saber o andamento do mesmo e na fase de Instrução pede a minha condenação. Dá-se então a fase do julgamento, e é no final deste que a CM..volta a pedir a minha condenação. 
- “(Jornalista) No entanto, e tendo em conta que a CM..sempre afirmou que não se imiscui nos assuntos das colectividades, e se a acusação era relativa ao SFC, com que base pediu a sua condenação?”
(R.) Essa é que é a questão. A CM.. afirma que não se imiscui mas dava-lhe muito jeito ter um «bode expiatório». E mesmo depois das coisas provadas e do tribunal nos ter ilibado pela totalidade dos crimes de que fomos acusados, a CM.. continuou a não reconhecer a minha inocência, após mais de vinte anos a trabalhar nesta instituição. Por outro lado, a CM..também foi indigna porque não teve a capacidade nem o reconhecimento de todo o trabalho feito por mim na Direcção do SFC.  
- “(Jornalista) Neste momento, qual é a sua relação com a CM…”
(R.) Actualmente sou um técnico superior na CM.., colocado no Departamento de Águas e Saneamento, a fazer estudos pela internet. A CM.. condenou-me, não tendo em conta a presunção de inocência que está constitucionalmente consagrada. Condenou-me retirando-me a Comissão de Serviço, retirando-me as funções de Notariado, com base numa acusação e numa notícia do «Correio da Manhã». E com isto prejudicou-me financeiramente em vinte mil euros por ano. E estou a aguardar para ter uma reunião com os responsáveis para colocar e ver respondidas estas questões: Porque é que pediram a minha condenação por duas vezes, conhecendo como conhecem o processo; porque é que me condenaram ilegalmente retirando-me as funções e o que é que estão a fazer para me ressarcirem dos prejuízos que tive até agora, para além dos incómodos e dos estragos feitos à minha imagem. Vou fazer tudo o que a Lei me permitir para que seja reposta a legalidade em relação a mim relativamente à CMS.
14-B. - “CM do … compactuou para a perda do Estádio do …”.  - “L.. acusa ainda a autarquia de «cumplicidade, conivência e ilegalidade, ao emitir as declarações em como as construções existentes, no perímetro do Estádio do Bravo, sendo instalações de apoio à actividade desportiva, eram anteriores a 1951, quando isso é falso. Todas aquelas construções: Balneários, Posto Médico, Casa do Guarda e Lavandaria, são posteriores a 1951. Os Balneários atrás da baliza, com entrada subterrânea, foram construídos em 1964, o Posto Médico, a Lavandaria e a Casa do Guarda foram construídos na década de 1970 e posteriormente tiveram várias melhorias. A CM.. ao emitir essas declarações, sabia que estava a cometer uma ilegalidade, reconhecendo como propriedades autónomas as parcelas naquele terreno. E sabia perfeitamente que nenhuma das cinco parcelas eram independentes, pois fazem parte das instalações de apoio ao equipamento desportivo e tinham um contador para abastecimento de água e outro para o fornecimento de energia eléctrica, como uma única parcela. Foi autorizada a instalação de um ramal de abastecimento de água independente a uma das parcelas, contrariando os pareceres técnicos, uma vez que a mesma não tem acesso pela via pública. E no Registo Predial, foi efectuada a alteração da morada dessa parcela, o que só era possível com uma declaração da CMS.»”
- “Outro aspecto que L…. sublinha é que «foi adulterada a morada das fracções entretanto criadas, uma vez que situando-se as mesmas no interior do Estádio, não podiam ter a mesma morada que consta nas declarações emitidas pela CM… A Câmara Municipal não pode dar outra morada nem outro «número de polícia» às novas parcelas se não houver uma operação de loteamento.»” 
- “L… não tem dúvidas que «a assunção destas parcelas levou a que fosse possível a penhora do Estádio do …e a subsequente venda. Se a autarquia não tivesse emitido essas declarações, aquando da venda em hasta pública por parte das Finanças, nenhuma destas vendas podia ter sido feita. Mesmo com a penhora, não se podia concretizar a transmissão das parcelas, uma vez que não poderia ter sido feita a transmissão da propriedade, porque faltava um elemento essencial, que neste momento é obrigatório: a licença de utilização. E a CMS estaria em condições de negociar a compra do Estádio no seu todo e, se calhar, até pelo valor de apenas 5 euros, tendo em conta que a base de licitação foi de 1 euro. Como se veio a verificar, quem comprou e registou as fracções distintas, veio a ganhar muito com a sua posterior revenda ao Sport Lisboa e Benfica Futebol SAD e a outras entidades.»”
- “No âmbito deste processo, acusa que «houve aqui um conjunto de ilegalidades graves e hoje, não tenho dúvidas nenhumas que, em função do quadro que está estabelecido, a Câmara Municipal do …. vai ficar com o Estádio do …, com todos estes problemas que estão associados, nomeadamente ter pessoas a morar dentro de um Estádio Municipal, para além dos casos dos proprietários que ainda não venderam as suas partes. A CMS terá de definir os espaços comuns ou terá de negociar com os proprietários e, aqui, mais uma vez, a autarquia vai ter de desembolsar dinheiro para pessoas que, com todo o direito, compraram as parcelas para lucrarem com isso.»”.
15. O R. referia-se na entrevista ao processo comum coletivo que correu termos na Instância Central Criminal da Comarca de Lisboa - Almada, como Proc. n.º 700/05.9JFLSB, no qual lhe era imputada a prática dos crimes de peculato de uso, peculato e participação económica em negócio, e onde a CMS se constituiu Assistente, tendo no mesmo sido proferido Acórdão, a 09.12.2014, transitado em julgado a 21.01.2015, que o absolveu das imputações (fls. 160 a 216).
16. Como resulta da decisão da matéria de facto constante dessa Sentença, não ficaram demonstrados os factos descritos na acusação (fls. 160 a 216).
 17. A cessação de funções do R. como Notário Privativo da Câmara Municipal do .. encontra-se fundamentada no Despacho n.º 260-PCM/2012, de 1 de junho de 2012 (doc. 4 – fls. 71 a 71-v).
18. A cessação da comissão de serviço do R. do cargo de Diretor do Projeto do A… encontra-se fundamentada no Despacho n.º 261-PCM/2012, de 1 de junho de 2012 (doc. 5 – fls. 72 a 72-v).
19. No que respeita à situação dos prédios existentes no perímetro do Estádio do…., a Autoridade Tributária e Aduaneira (Serviço de Finanças de ,… 1) veio informar sobre a tramitação das vendas desses imóveis no âmbito dos processos de execução fiscal instaurados contra o S… Futebol Clube (doc. 6 – fls. 73 a 76). 
20. Trata-se de imóveis que integravam o património do referido clube e que respondiam pelas dívidas perante os credores, nomeadamente as de natureza fiscal, que justificaram a penhora desses bens e a subsequente venda coerciva.
21. A venda dos imóveis nos processos de execução fiscal não dependeu da emissão de licenças de utilização pela Câmara Municipal do … (doc. 6 – fls. 73 a 76).
22. O prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ……, foi adquirido por L….., Lda., por adjudicação em venda por negociação particular, promovida no processo de execução fiscal instaurado pela Autoridade Tributária e Aduaneira contra o S….Futebol Clube, tendo a aquisição sido registada em 18 de agosto de 2009, pela Apresentação n.º 461 (doc. 7 – fls. 76-v a 77).
23. Só após a venda do imóvel naquele processo é que a nova proprietária, LZ INVEST – Sociedade de Investimentos Imobiliários, Lda., veio, em 8 de setembro de 2009, requerer ao Presidente da Câmara Municipal do … que mandasse certificar que a construção, correspondente ao edifício da antiga Lavandaria, é anterior a 1951 (doc. 8 – fls. 77-v).
24. A certidão requerida foi emitida pela Câmara Municipal do … em 30 de setembro de 2009 (doc. 9 – fls. 78).
25. O prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de….., foi adquirido por C…., por adjudicação em processo de execução fiscal instaurado pela Autoridade Tributária e Aduaneira contra o S… Futebol Clube, tendo a aquisição sido registada em 16 de abril de 2010, pela Apresentação n.º 1025 (doc. 10 – fls. 78-v).
26. Só após a venda do imóvel naquele processo é que a nova proprietária, , veio, em 15 de julho de 2014, requerer ao Presidente da Câmara Municipal do ….. que mandasse certificar que a construção, correspondente ao edifício da antiga Casa do Guarda, é anterior a 1951 (doc. 11 – fls. 79).
27. A certidão requerida foi emitida pela Câmara Municipal do .. em 26 de setembro de 2014 (doc. 12 – fls. 79-v).
28. O prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de….., foi adquirido por C…., por negociação particular, em processo de execução fiscal instaurado pela Autoridade Tributária e Aduaneira contra o …Futebol Clube, tendo a aquisição sido registada em 25 de março de 2013, pela Apresentação n.º 2410 (doc. 13 – fls. 80).
29. Só após a venda do imóvel naquele processo é que a nova proprietária, C…, veio, em 15 de julho de 2014, requerer ao Presidente da Câmara Municipal do …. que mandasse certificar que a construção, correspondente ao antigo Posto Médico, é anterior a 1951 (doc. 14 – fls. 80-v).
30. E a Câmara Municipal do …. não emitiu nenhum documento a certificar tal facto (doc. 15 – fls. 81 a 81-v).
31. A emissão das declarações aludidas em 24. e 27. não pressupõe qualquer reconhecimento, por parte da Câmara Municipal, de autonomia de propriedades, porquanto apenas é atestado, por observação, se o processo construtivo coincide ou não com os métodos construtivos daquela data (doc. 15 – fls. 81 a 81-v).
32. No Processo de Obras n.º 77/B/2010, referente ao Edifício da antiga Lavandaria, consta um pedido de ligação de ramal de água, o qual não foi concluído por falta de resposta da requerente, pelo que não existe qualquer autorização para a ligação do ramal de abastecimento de água (doc. 15 – fls. 81 a 81-v).
33. Ainda no mesmo processo de obras foi emitida uma certidão de número de polícia com a toponímia correta para esta construção, mediante pedido da proprietária (doc. 15 – fls. 81 a 81-v).
34. Não é obrigatória a prévia operação de loteamento, para o efeito de atribuição de topónimos e/ou números de polícia (doc. 15 - fls. 81 a 81-v).
35. Não foi emitido pela Câmara Municipal do …. qualquer ato administrativo prévio à venda dos imóveis do S…. Futebol Clube nos processos de execução fiscal, nem tal lhe foi solicitado pelo Serviço de Finanças do ….. onde decorreu o processo da venda dos bens (doc. 6 – fls. 73 a 76).
36. No dia 2 de agosto de 2012 foi celebrada uma escritura de compra e venda (doc. 17 – fls. 82-v a 84-v), da qual consta a venda à “Sport Lisboa e Benfica – Futebol, SAD”, do prédio urbano descrito ………., constando ainda da referida escritura a referência a que foi exibida uma certidão emitida pela Câmara Municipal do …., em 1 de agosto de 2012, nos termos da qual se refere que as edificações existentes no prédio foram construídas anteriormente a 1951, pelo que é dispensada a respetiva licença de habitação.
37. No procedimento disciplinar, o R. alegou que as instalações dentro do perímetro do Estádio do …. eram de apoio ao equipamento desportivo, a saber, recinto desportivo com campo de jogos e bancadas, balneários e aquecimento, casa do guarda, lavandaria e posto médico, que tinham acesso pelo portão do Estádio e não confinavam com a via pública, questionou as declarações emitidas pela Câmara Municipal em como as construções existentes nos imóveis são anteriores a 1951, alegou a existência de instalações elétricas e de água comuns, e questionou a alteração de toponímia dos imóveis (fls. 253 a 269-v).
38. O R. alegou na sua defesa apresentada no processo disciplinar que alguém da Direção do … Futebol Clube, em 2004, promoveu junto do Serviço de Finanças do …. 1 a inscrição matricial, como propriedades autónomas, dos imóveis existentes no perímetro do Estádio do …., e acrescentou que foi com base nessas inscrições matriciais que um solicitador de execução requereu o registo desses prédios na Conservatória do Registo Predial (fls. 253 a 269-v).
39. O R. sabe que não foi da responsabilidade da Câmara Municipal do…. a constituição de propriedades autónomas no perímetro do Estádio do …., que veio a permitir a penhora desses imóveis e a subsequente venda.
40. Nos Modelos 121 dos artigos matriciais dos prédios consta que as construções são posteriores a 1951 (docs. 5 e 6 juntos com a contestação – fls. 118 a 119-v).
42. O R. revelou na sua defesa apresentada no processo disciplinar ser conhecedor dos processos de execução fiscal instaurados contra o … Futebol Clube e dos sucessivos atos de venda e de revenda dos imóveis penhorados, juntando documentos, situação à qual não é alheio o facto do R. ter sido Presidente do …. Futebol Clube (fls. 253 a 269-v).
43. O Réu sabia da falsidade das acusações de cumplicidade, conivência e ilegalidade que fez aos membros da Câmara Municipal quanto à atribuição de artigos matriciais para autonomização dos edifícios integrantes do perímetro do Estádio do Bravo e quanto à viabilização da penhora e venda dos bens em execução fiscal.
44. Em virtude de ter sido Diretor Financeiro e Notário Privativo da Câmara Municipal do …. durante largos anos, o R. tem notoriedade junto da população.
45. O assunto já era abordado nas redes sociais (doc. 18 – fls. 85 a 85-v).
46. Na sequência da publicação da entrevista dada pelo R. ao Jornal, sucederam-se na comunidade local comentários e reações sobre o teor dessas declarações.
48. O assunto foi também objeto de novos comentários no Facebook (doc. 19 – fls. 86 a 88-v).
49. Na reunião ordinária da Câmara Municipal do … de 25.02.2016, o munícipe C… interpelou o Presidente e os Vereadores nos seguintes termos: “Sobre o Estádio do …., incomoda-me ler no facebook os insultos constantes à câmara, tem que haver uma posição, um esclarecimento porque é muita gente a ler aquilo e eu tenho confiança, como sempre tive, nas pessoas eleitas nesta câmara” (doc. 20 – fls. 89 e 270 a 270-v).
50. Consta do despacho nº 261–PCM/2012, de 1 de junho de 2012, que determina a cessação de funções do R. como Diretor do Gabinete do ….o, o seguinte: “(…) Com base na informação recentemente disponibilizada pela Procuradoria–Geral Distrital de Lisboa, foi publicitado que, no âmbito do inquérito nº 700/05.9JFLSB, do .., por despacho final, de Janeiro de 2012, o Ministério Público acusou, pela prática de crimes (1) peculato de uso (artigo 376º, 1 do Cód. Penal), (2) de peculato (artigo 375º do Cód. Penal) e (3) de participação económica em negócio (artigo 377º do Cód. Penal ), o arguido que é trabalhador da Câmara Municipal do …., Director do Gabinete “A….l”, notário privativo da CM… e à data Presidente da “… Futebol Clube”. Considerando o supra exposto, determino o seguinte:
a) De harmonia com o disposto no art. 66º do Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que Exercem Funções Públicas, aprovado pela Lei nº 58/2008, de 9 Setembro, a abertura de um processo de inquérito aos factos constantes do despacho de acusação proferido no inquérito nº 700/05.9JFLSB que correu termos nos serviços do Ministério Público Comarca do …, para o qual será designado o respectivo instrutor; b) Nos termos do nº 4 do art. 27º da Lei nº 2/2004, de 15 de Janeiro, a cessação dos efeitos da designação do Dr. L…. para o Cargo de Director do Gabinete do …..” (doc. 5 junto com a p.i. – fls. 72 a 72-v).
51. A entrevista dada pelo R. foi a pedido do referido Jornal Regional, com visibilidade apenas a esse nível, e com o único propósito de tentar limpar a sua honra, o bom nome e a imagem pessoal e profissional.
52. Tendo-o feito a nível regional apenas porque também era nessa medida que lhe interessava a reposição da verdade e a afirmação da sua inocência, até porque para além de trabalhar na mesma região, é também nela residente.
53. À data da publicação da entrevista o R. não tinha qualquer credibilidade junto dos munícipes do S…, tendo perdido a mesma ao longo de todo o curso do processo crime e exoneração de cargos que o R. exercia na Câmara Municipal do …..
2. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
2.1. Da acção
O Recorrente imputa ao Recorrido a prática de actos que lesam a honra e bom nome da Câmara Municipal do …e dos seus membros e trabalhadores, ofendendo a credibilidade, o prestígio e a confiança devidos ao Município do …, enquanto pessoa colectiva de direito público, imputando-lhes indevida e injustificadamente a prática de condutas ilícitas e ilegais, o que fez através de órgão de comunicação social.
O Recorrido alega não ter tido intenção de ofender, estando ademais legitimada a sua actuação pelo exercício da liberdade de expressão.
Na apreciação da questão sujeita, importa saber da consagração dos mencionados direitos no ordenamento jurídico, da delimitação de um e outro à luz das normas aplicáveis, do enquadramento da factualidade apurada nessa delimitação, da verificação de uma situação de colisão de direitos e, na afirmativa, da solução decorrente, quanto à invocada responsabilidade civil e suas consequências.
2.2. Do sistema jurídico
A Constituição da República Portuguesa (CRP) no artigo 26.º, n.º 1, norma inserida no Título II (Direitos, liberdades e garantias), capítulo I (Direitos, liberdades e garantias pessoais) estabelece que a todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação.
O artigo 37.º, n.º 1, da CRP, sob a epígrafe liberdade de expressão e informação estabelece que todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações.
Por seu turno, no artigo 16.º, n.º 2, da CRP, (âmbito e sentido dos direitos fundamentais) dispõe que os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Declaração Universal dos Direitos Humanos que, no artigo 12.º, afirma que ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação. Contra tais intromissões ou ataques toda a pessoa tem direito a protecção da lei. E no artigo 18.º  refere-se à liberdade de pensamento - toda a pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de convicção, assim como a liberdade de manifestar a religião ou convicção, sozinho ou em comum, tanto em público como em privado, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pelos ritos – e no artigo 19.º à liberdade de expressão - todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão.
Também o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (PIDCP) reserva o artigo 17.º à afirmação de que ninguém será objecto de intervenções arbitrárias ou ilegais na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem de atentados ilegais à sua honra e à sua reputação, mais estabelecendo que toda e qualquer pessoa tem direito à protecção da lei contra tais intervenções ou tais atentados.
E no artigo 18.º dispõe que toda e qualquer pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de ter ou de adoptar uma religião ou uma convicção da sua escolha, bem como a liberdade de manifestar a sua religião ou a sua convicção, individualmente ou conjuntamente com outros, tanto em público como em privado, pelo culto, cumprimento dos ritos, as práticas e o ensino.
A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE) não consagra numa norma específica a protecção do bom nome, embora inclua no seu preâmbulo referência às obrigações que resultam da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais (CEDH) e da jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia e do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos.
De notar, quanto à CDFUE, que o Tratado da União Europeia (TUE - versão consolidada)[7], no artigo 6.º, n.º 1, indica que a União reconhece os direitos, as liberdades e os princípios enunciados na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, de 7 de dezembro de 2000, com as adaptações que lhe foram introduzidas em 12 de dezembro de 2007, em Estrasburgo, e que tem o mesmo valor jurídico que os Tratados, enquanto o n.º 2 da mesma norma consagra a adesão da União à Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, estabelecendo o n.º 3, que do direito da União fazem parte, enquanto princípios gerais, os direitos fundamentais tal como os garante a Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais e tal como resultam das tradições constitucionais comuns aos Estados-Membros.
A Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais (CEDH) não consagra uma norma específica à protecção/delimitação de um direito ao crédito, bom nome e reputação.
Pese embora, estatui no artigo 8.º, n.º 1, que qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência, afigurando-se que a ponderação of the interests of the protection of the reputation or rights of others é afirmada com relevo no confronto entre liberdade de expressão e direito à privacidade, nomeadamente em Axel Springer AG v. Germany, ponto 83 §2.
De todo o modo, a omissão de regulamentação específica não significa, entendemos, desconsideração do direito em causa. Na verdade, a CEDH não se apresenta como um texto exaustivo, excludente de outras normações, antes integra, por exemplo, a da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Assim é que se lê na exposição de motivos do seu prólogo:
Os Governos signatários, Membros do Conselho da Europa,
Considerando a Declaração Universal dos Direitos do Homem proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de Dezembro de 1948,
Considerando que esta Declaração se destina a assegurar o reconhecimento e aplicação universais e efectivos dos direitos nela enunciados,
Considerando que a finalidade do Conselho da Europa é realizar uma união mais estreita entre os seus Membros e que um dos meios de alcançar esta finalidade é a protecção e o desenvolvimento dos direitos do homem e das liberdades fundamentais,
Reafirmando o seu profundo apego a estas liberdades fundamentais, que constituem as verdadeiras bases da justiça e da paz no mundo e cuja preservação repousa essencialmente, por um lado, num regime político verdadeiramente democrático e, por outro, numa concepção comum e no comum respeito dos direitos do homem,
Decididos, enquanto Governos de Estados Europeus animados no mesmo espírito, possuindo um património comum de ideais e tradições políticas, de respeito pela liberdade e pelo primado do direito, a tomar as primeiras providências apropriadas para assegurar a garantia colectiva de certo número de direitos enunciados na Declaração Universal,
Convencionaram o seguinte: (…)
Como se vê, nada mais longe do espírito da CEDH do que a exclusão de um qualquer direito consagrado na DUDH.
Por seu turno, a liberdade de expressão encontra expressa consagração no artigo 10.º, encontrando a liberdade de pensamento o seu lugar no artigo 9.º.
Também a lei infra-constitucional, no caso pertinente, o Código Civil (CC), estatui no artigo 70.º, n.º 1, do CC estatui que a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral.
O artigo 484.º, em sede de responsabilidade extra-contratual, estatui que quem afirmar ou difundir um facto capaz de prejudicar o crédito ou o bom nome de qualquer pessoa, singular ou colectiva, responde pelos danos causados.
De relevar ainda a norma do artigo 483.º, n.º 1, na qual se lê: aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.
Em suma, no ordenamento jurídico que nos rege, ambos os direitos/liberdades invocados encontram assento ao mais elevado nível.
2.3. Do direito à honra e ao bom nome
2.3.1. Delimitando o conceito enquanto bem protegido nas normas da Constituição e do Código Civil refere Filipe de Albuquerque Matos[8] que mesmo sem analisar detalhadamente os conceitos do bom nome e do crédito, podemos reconduzi-los, sem qualquer margem para dúvidas, a uma ideia de reputação ou prestígio desfrutado pela pessoa no meio social onde vive ou exerce a sua actividade profissional.
Para explicitar, mais adiante[9], que para a delimitação deste bem jurídico torna-se fundamental o apelo a um conjunto de referências sociais, nomeadamente às categorias do status e dos papéis sociais. (…) Ora, em relação ao bom nome, está fundamentalmente em causa uma ideia global, formada a partir das convenções sociais vigentes em determinado momento, acerca do perfil ou da posição social de uma pessoa.
Avançando quanto às gradações do bem jurídico proporcionadas pela consideração do crédito a par do bom nome, refere o Autor que vimos citando[10] que já no tocante à caracterização do crédito enquanto bem jurídico tutelado no âmbito do art. 484.º, impõe-se uma particular ligação da ideia de prestígio ao universo dos negócios e da actividade empresarial. (…) Pensamos que o legislador terá querido reportar-se basicamente à capacidade e à vontade do indivíduo para cumprir os seus compromissos obrigacionais.
Também na perspectiva do crédito ensina[11] que para uma correcta compreensão deste bem jurídico pode revelar-se indispensável o conhecimento de um conjunto de regras específicas vigentes no contexto onde se desenvolve a actividade da pessoa atingida no seu crédito.
Para concluir[12], numa dimensão holística do bem jurídico em causa, tendo em conta as directrizes atrás delineadas para tentar alcançar uma noção de bom nome ou reputação com relevância juscivilística podemos integrar as notas caracterizadoras deste bem jurídico na dimensão objectiva da honra mencionada a propósito da perspctiva fáctica, bem como da concepção normativo-social referida no contexto da orientação normativa de honra. Na verdade o bom nome tem necessariamente de ser entendido como uma espécie de um género mais amplo, ou seja, da honra.
(…) Apesar de a honra não ter sido mencionada na letra deste artigo, em nada contende com o reconhecimento de dignidade jurídico-constitucional a este bem jurídico. Com efeito, a doutrina constitucionalista considera a honra incluída no âmbito da protecção do art. 26.º, equiparando sem hesitação o bom nome a este direito.
(…) Aliás, e neste particular contexto, a introdução do n.º 1, do art. 26.º no texto constitucional de um direito ao desenvolvimento da personalidade permite fazer derivar a tutela da honra desta cláusula geral semelhante ao art. 70.º.
Também Capelo de Sousa analisa o conceito sob a denominação “honra” estabelecendo o enquadramento da honra enquanto projecção na consciência social do conjunto dos valores pessoais de cada indivíduo, desde os emergentes da sua mera pertença ao género humano até aqueloutros que cada indivíduo vai adquirindo através do seu esforço pessoal[13].
Para explicitar[14] que a honra, em sentido amplo, inclui também o bom nome e a reputação, enquanto sínteses de apreço social pelas qualidades determinantes da unicidade de cada indivíduo e pelos demais valores pessoais adquiridos pelo indivíduo (…).
Considerando as normas indicadas e os contributos da doutrina, pode concluir-se que o direito ao crédito, bom nome e reputação visa proteger a dimensão da personalidade que reside na consideração da pessoa na sua natureza e em sociedade, designadamente perante as demais com quem se relaciona no seu espaço privado e no espaço público.
Nessa medida as dimensões do bom nome, credibilidade, prestígio e confiança, constituem perspectivas diversas de focar o bem protegido, a saber, a consideração e reputação inerentes à pessoa e por si conquistadas através da construção da sua personalidade em sociedade e da sua actuação nas mais diversas esferas, consigo própria e com aqueles com quem se relaciona no desenvolvimento e actuação da sua específica personalidade.
2.3.2. Claramente definidos tendo como inspiração a pessoa humana e a sua dignidade inalienável, importa avaliar em que medida os direitos consagrados assistem também às pessoas colectivas, como é o caso do Recorrente, sabido que é que também a personalidade colectiva foi construída pelos sistemas jurídicos como o nosso tendo como arquétipo a personalidade singular, embora dela radicalmente distinta.
O artigo 12.º, n.º 2, da CRP regula a matéria ao estatuir que as pessoas colectivas gozam dos direitos e estão sujeitas aos deveres compatíveis com a sua natureza.
Para o Professor Jorge Miranda não se trata de uma equiparação. Pelo contrário, trata-se de uma limitação: as pessoas colectivas têm os direitos compatíveis com a sua natureza, ao passo que as pessoas singulares têm todos os direitos, salvo os especificamente concedidos apenas a pessoas colectivas ou a instituições (…). E, como nota o Tribunal Constitucional, tem de reconhecer-se que, ainda quanto a certo direito fundamental seja compatível com essa natureza e, portanto, susceptível de titularidade “colectiva” (hoc sensu) daí não se segue que a sua aplicabilidade nesse domínio se vá operar exactamente nos mesmos termos e com a mesma amplitude com que decorre relativamente às pessoas singulares.
(…)
Finalmente, cada pessoa colectiva somente pode ter os direitos conducentes à prossecução dos fins para que exista, os direitos adequados à sua especialidade – é o princípio geral de Direito (artigo 160.º, n.º 1, do Código Civil) e que a Constituição se dispensa de reproduzir[15].
2.3.3. O município é uma autarquia local (artigo 236.º, n.º 1, da CRP), ou seja, uma pessoa colectiva territorial dotada de órgãos representativos, que visa a prossecução de interesses próprios das populações respectivas (artigo 235.º, n.º 2, da CRP), sendo suas específicas atribuições a promoção e salvaguarda dos interesses próprios das respetivas populações (artigo 2.º do Regime Jurídico das Autarquias Locais aprovado pela Lei 75/2013, de 12 de Setembro – RJAL),  através do exercício pelos respetivos órgãos das competências legalmente previstas (artigo 3.º do RJAL), respeitando os princípios da descentralização administrativa, da subsidiariedade, da complementaridade, da prossecução do interesse público e da proteção dos direitos e interesses dos cidadãos e a intangibilidade das atribuições do Estado (artigo 4.º do RJAL).
A personalidade colectiva de que os municípios gozam, com aquelas indicadas características e finalidades, permite considerar incluída na sua especialidade, ou, noutra terminologia, na sua natureza, o direito à protecção do bom nome, credibilidade, prestígio e confiança que o Autor invoca na presente acção, sem esquecer que tal inclusão tem os limites dessa especialidade, por um lado, e os que decorrem da ineliminável referência à individualidade física e emocional[16] característica das pessoas singulares, por outro.
Tenha-se em atenção que, quanto à imputação de factos susceptíveis de prejudicarem o crédito ou o bom nome, o artigo 484.º do CC expressamente refere as pessoas colectivas como titulares desses direitos. A unidade do sistema tem de considerar que essa titularidade também se encontra abrangida pela protecção concedida pelos artigos 70.º e 483.º do CC, já sem a restrição da previsão do artigo 484.º à imputação de factos e abrangendo por isso os juízos de valores.
2.4. Da liberdade de expressão
2.4.1. Invoca o Réu que agiu em legítima defesa e no exercício de liberdade de expressão.
Não alegou quaisquer factos susceptíveis de integrarem a previsão da norma do artigo 337.º, n.º 1, do CC, afigurando-se mesmo que a invocação não visa convocar a aplicação do instituto jurídico mas apenas contextualizar a concessão da entrevista, na parte relativa ao processo criminal que lhe foi movido (e que não está em causa neste recurso).
De todo o modo, inexistem elementos que permitam considerar verificada uma situação de legítima defesa.
2.4.2. Quanto à liberdade de expressão.
Com assento no direito constitucional Português, no direito internacional, no direito convencional e nas leis infra-constitucionais, como referido, a liberdade de expressão surge como um dos pilares do Estado de Direito fundada na dignidade da pessoa humana cujo respeito é o núcleo central diferenciador dos Estados de Direito.
Desde a sua origem ela tem tido como principal objectivo a procura da verdade e do conhecimento e o respeito devido à consciência individual. Ela assenta no pressuposto de que a liberdade religiosa, política, científica ou moral pode e deve ser encontrada através do livre exame das questões e da livre discussão das ideias, e não através da imposição unilateral e dogmática de afirmações de facto ou de valor indiscutíveis[17].
A liberdade de expressão constitui a face social da fundamental liberdade de pensamento reconhecida à pessoa humana, a manifestação do pensamento na esfera social, no espaço público. Tradicionalmente a liberdade de expressão desdobra-se na liberdade de informar, de se informar e de ser informado.
A liberdade de expressão encontra o seu fundamento legitimante no princípio basilar de qualquer Estado de direito democrático: a dignidade da pessoa humana. Este princípio serve, simultaneamente, de limite ao exercício legítimo deste direito fundamental, o que impõe uma necessidade de permanente fiscalização, atendendo às dificuldades de determinação do sentido ético-jurídico do princípio da dignidade da pessoa humana, resultantes da sua variabilidade em função do concreto contexto espácio-temporal[18].
A liberdade de expressão em sentido amplo – doravante, apenas liberdade de expressão – compreende vários direitos globalmente designados por liberdades da comunicação, onde se integram, nomeadamente, a liberdade de expressão em sentido estrito (denominada por vezes, liberdade de opinião), a liberdade de informação, a liberdade de imprensa, os direitos dos jornalistas, a liberdade de radiodifusão (…), o direito de resposta, os direitos de antena, de resposta e de réplica política, a liberdade de criação cultural e a liberdade de aprender e ensinar. Compreendida de forma ampla, a liberdade de expressão deve ser concebida enquanto direito mãe ou cluster right das liberdades de comunicação[19].
Com a liberdade de expressão e de informação garante-se a liberdade de pensamento na sua vertente de inserção social, ou seja, a autodeterminação de cada um a exprimir e a divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela escrita, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como as autonomias complementares em matéria de cada um poder informar, informar-se e ser informado e ainda de poder responder e rectificar[20].
Conforme refere Albuquerque de Matos, na análise e estudo da liberdade de expressão impõe-se partir das conclusões atrás indicadas: a faculdade de comunicar e o espaço comunitário onde aquela se há-de afirmar constituem dimensões indefectíveis da pessoa humana. Destarte, o enquadramento desta figura, bem como a resolução dos problemas jurídicos em torno dela suscitados, deve nortear-se, quer a partir das mais elementares exigências de autonomia individual, quer levando em linha de conta as necessidades imperiosas de integração comunitária.
(…)
Inquestionável se deve afigurar ainda a possibilidade de cada um, de modo igualmente livre, exprimir, por palavras, pela escrita, pela imagem ou por qualquer outro meio considerado por si idóneo, as suas concepções ou pensamentos. Destarte a liberdade de expressão permite sancionar, no foro externo, uma liberdade que a cada um no foro interno é inegável reconhecer: a liberdade de pensamento[21].
Para concluir, que, numa perspectiva exclusivamente juscivilística, a consagração da liberdade de expressão se acolhe à previsão do preceito do artigo 70.º do CC[22].
A doutrina constitucional reconhece aos direitos fundamentais uma dupla natureza: uma dimensão subjectiva e uma dimensão objectiva. Em moldes sintéticos, na sua dimensão subjectiva, o direito à liberdade de expressão comporta dois tipos de deveres: por um lado um dever do Estado se abster de qualquer interferência no exercício do direito à liberdade de expressão, ressalvadas as situações em que essa ingerência é admitida por estarem preenchidos os exigidos e exigentes requisitos materiais, formais e metódicos; por outro lado, um dever positivo estadual de tutela do direito à liberdade de expressão perante agressões de terceiros[23].
2.4.3. A liberdade de expressão serve ainda, no fulcral respeito pela dignidade humana já referido, a existência de um espaço público de debate, consensualização e oposição de opiniões maximamente informado, em ordem a permitir a formação de uma consciência in/formada e esclarecida que permita a qualidade da participação na vida colectiva e nas suas escolhas democráticas.
A dignidade encerra também a ausência de mordaças como refere o Supremo Tribunal de Justiça no acórdão de 30 de Junho de 2011 proferido no processo 1272/04.7TBBCL.G1.S1  (João Bernardo).
Do que decorre que a liberdade de expressão constitui um princípio fundamental do Estado de Direito.
A liberdade de expressão é um direito fundamental multifuncional, pretendendo garantir uma ampla protecção do discurso individual e colectivo[24] (…) ou seja, o direito à liberdade de expressão é a manifestação mais imediata da personalidade individual e um princípio constitutivo de uma ordem estadual livre e democrática[25].
Enunciando a liberdade de expressão como património indeclinável do tipo do Estado Constitucional, Jónatas Machado[26] refere que a liberdade de expressão surge enquadrada pelos objectivos de promoção de igual dignidade e liberdade de todos os cidadãos e de coexistência pacifica de todos os grupos de cidadãos.
No que respeita à lei civil infra-constitucional, o Código Civil consagra a liberdade de expressão na protecção geral da personalidade estatuída no artigo 70.º, prevendo no artigo 483.º a responsabilidade civil emergente da sua violação.
2.5. Da factualidade assente: o facto danoso
2.5.1. Estabelecido o gozo pelas pessoas colectivas do direito ao bom nome, credibilidade, prestígio e confiança (a que doravante nos referiremos apenas como direito ao bom nome, para maior facilidade e sem obliteração das diversas dimensões e perspectivas enunciadas), com o alcance definido, importa analisar a factualidade apurada quanto à actuação do Réu, na pespectiva da sua idoneidade objectiva para lesar tais direitos.
Como já se indicou, o bom nome, credibilidade, prestígio e confiança constituem direitos de personalidade originariamente pensados com fundamento na dignidade da pessoa humana e no seu direito ao pleno desenvolvimento.
Pese embora, a sua extensão à personalidade colectiva, implica ponderar a específica natureza da pessoa colectiva, definida pela finalidade que permitiu a outorga de tal estatuto. É esse o contexto em que se deve procurar concretizar o âmbito e conteúdo do seu direito ao bom nome, credibilidade, prestígio e confiança.
Considerando que o Autor é uma pessoa colectiva de direito público com existência constitucionalmente prevista e definida pela lei, é esse o contexto em que deve procurar-se a delimitação do que seja aquele universo de direitos de personalidade que lhe cabem.
Cumprindo-lhe defender os interesses das populações e estando adstrito, na sua actuação, ao cumprimento das leis, tem de entender-se que a rectidão, probidade e rigor de conduta dos seus órgãos no cumprimento desses fundamentais deveres, constitui o âmago daqueles seus direitos de personalidade.
Como reverso, a imputação de que esses deveres não são cumpridos, antes se pautando a sua actuação pela instrumentalização dos seus poderes para prosseguir fins contrários aos princípios que lhe cabia defender e que justificam a sua existência, constitui, do ponto de vista objectivo, violação do bom nome, credibilidade, prestígio e confiança.
Neste contexto deve ser considerada a actuação do arguido. As declarações do Recorrido foram proferidas no contexto de uma entrevista que concedeu ao jornal Comércio do …., edição de 15 de Abril de 2015.
Como bem se refere na sentença recorrida, há que distinguir duas situações, aliás tituladas e paginadas separadamente na referida edição do jornal: (i) a parte da entrevista directa, a respeito da situação do Recorrido na Câmara Municipal do …. e no …. Futebol Clube (..) e da actuação da CM..quanto a tal, na perspectiva do Recorrido, e (ii) a parte relativa a uma peça editada pelo jornalista subscritor, que transcreve, nesse contexto, em discurso directo, declarações do Recorrido, enquadrando-as com apreciações conclusivas do jornalista, que titulam.
Os factos encontram-se assentes no ponto 14 supra, que separámos em 14-A e 14-B, correspondendo a parte A à entrevista directa e a parte B à restante peça jornalística. A decisão foi impugnada apenas quanto à apreciação que fez da conduta do Réu na segunda parte, conformando-se o Autor com o demais.
2.5.2. A segunda parte da publicação reporta-se a declarações do Recorrido enquadradas por apreciações do jornalista relativas à venda de “parcelas” do estádio do SFC e à intervenção da CMS nesse processo.
A esse respeito diz o Réu que o Autor:
- emitiu declarações em como as construções existentes, no perímetro do Estádio do …, sendo instalações de apoio à actividade desportiva, eram anteriores a 1951, quando isso é falso.
- ao emitir essas declarações, sabia que estava a cometer uma ilegalidade, reconhecendo como propriedades autónomas as parcelas naquele terreno. E sabia perfeitamente que nenhuma das cinco parcelas eram independentes (…).
- autorizou a instalação de um ramal de abastecimento de água independente a uma das parcelas, contrariando os pareceres técnicos, uma vez que a mesma não tem acesso pela via pública. E no Registo Predial, foi efectuada a alteração da morada dessa parcela, o que só era possível com uma declaração da CMS.
- adulterou a morada das fracções entretanto criadas, uma vez que situando-se as mesmas no interior do Estádio, não podiam ter a mesma morada que consta nas declarações emitidas pela CM… A Câmara Municipal não pode dar outra morada nem outro «número de polícia» às novas parcelas se não houver uma operação de loteamento.
O Réu disse ainda que a referida conduta do Autor – assunção da autonomia das parcelas - levou a que fosse possível a penhora do Estádio do Bravo e a subsequente venda.
Por outro lado, afirmou que se o Autor não tivesse emitido as declarações relativas à antiguidade das construções (anteriores a 1951) nenhuma destas vendas podia ter sido feita. Mesmo com a penhora, não se podia concretizar a transmissão das parcelas, uma vez que não poderia ter sido feita a transmissão da propriedade, porque faltava um elemento essencial, que neste momento é obrigatório: a licença de utilização.
Finalmente, indica o que entende ser a motivação do Autor:
- a CMS estaria em condições de negociar a compra do Estádio no seu todo e, se calhar, até pelo valor de apenas 5 euros, tendo em conta que a base de licitação foi de 1 euro.
- Como se veio a verificar, quem comprou e registou as fracções distintas, veio a ganhar muito com a sua posterior revenda ao Sport Lisboa e Benfica Futebol SAD e a outras entidades.
Por último refere que «houve aqui um conjunto de ilegalidades graves e hoje, não tenho dúvidas nenhumas que, em função do quadro que está estabelecido, a Câmara Municipal do … vai ficar com o Estádio do …, com todos estes problemas que estão associados, nomeadamente ter pessoas a morar dentro de um Estádio Municipal, para além dos casos dos proprietários que ainda não venderam as suas partes. A CM.. terá de definir os espaços comuns ou terá de negociar com os proprietários e, aqui, mais uma vez, a autarquia vai ter de desembolsar dinheiro para pessoas que, com todo o direito, compraram as parcelas para lucrarem com isso».
Ou seja, o Réu imputa ao Autor actos de falsidade na emissão de documentos, actos esses que viabilizaram a penhora e venda de parcelas do estádio de …, possibilitando proventos de particulares e, nomeadamente, de um dos grandes clubes de futebol nacional.
Conforme se referiu anteriormente, do regime jurídico aplicável decorre que o bom nome se confunde com a reputação, a credibilidade e fiabilidade de uma entidade que decorre da sua actuação. No caso de pessoas colectivas tal reputação, credibilidade e fiabilidade tem que ver com o modo como prosseguem as suas atribuições e competências respeitando o sistema jurídico e os objectivos sociais pelo seu curso de acção ao longo do tempo e pela excelência dos resultados obtidos.
Tratando-se, como se trata, de uma pessoa colectiva de direito público, no caso uma autarquia, com as atribuições descritas, o bom nome e a reputação estão indissoluvelmente ligados ao modo como cumprem com as suas competências e as exercem em prol de todos os munícipes e ao respeito escrupuloso pela ordem jurídca instituída. Tem decidido valor a imparcialidade de actuação, que é característica da administração por dever próprio, e a ausência de motivações diversas das que resultam do exercício democrático do poder local, tal como desenhado na constituição e na lei.
Não nos oferece dúvida, com o devido respeito pela opinião contrária, que com tais declarações o Réu atingiu o Autor no cerne da sua personalidade, enquanto pessoa colectiva de direito público vinculada à prossecução do interesse das populações, com respeito pela lei em vigor, com rigor nas decisões tomadas nesse interesse e sem consideração de outros interesses que não aqueles que pela Constituição lhe cumpre prosseguir.
O Recorrido afirmou na segunda parte da entrevista foi que a CM…praticou um conjunto de ilegalidades graves que possibilitou a venda de parcelas por particulares com lucros avultados. Uma vez mais, é no cerne do que é a reputação do Recorrente que se situam aquelas imputações.
Em conclusão, diferentemente da sentença recorrida, entendemos que as afirmações do Recorrido afectam o bom nome, reputação e credibilidade do Recorrente.
Concluímos assim que a actuação do Réu consubstanciada no ponto de facto 14B constituiu uma violação objectiva do bom nome, credibilidade, prestígio e confiança do município Autor.
2.5.3. Revertendo ao caso concreto e à invocação pelo Réu de actuação no âmbito do exercício da liberdade de expressão, não oferece dúvida, até pelo modo de transmissão das afirmações – através de um órgão de comunicação social –, que o contexto é o de afirmação de factos e expressão de opiniões em exercício da sua liberdade de pensamento e no espaço público.
Em suma, temos em confronto o direito ao bom nome do Autor e a liberdade de expressão do Réu, importando apreciar do exercício de ambos.
Do que antecede se conclui que a questão se apresenta como de colisão de direitos fundamentais reconhecidos enquanto tal pela Constituição e reconhecidos também como direitos subjectivos na lei civil.
É a solução da colisão entre esses concretos direitos que ditará a qualificação do facto praticado pelo Réu como ilícito no conjunto do sistema jurídico.
2.6. Da colisão de direitos
2.6.1. Os direitos fundamentais em presença, como aliás todos os direitos fundamentais, não têm carácter absoluto, antes têm limites de entre os quais avultam os que decorrem da necessidade de assegurar aos outros o gozo dos mesmos direitos[27].
A regra geral é de que todos os direitos fundamentais são limitáveis, não há direitos absolutos, no sentido de que todos os direitos, dependendo das circunstâncias concretas do caso e dos valores e bens dignos de protecção que se lhes oponham, podem ter de ceder. Pode dizer-se que essa limitabilidade decorre da própria natureza dos direitos constitucionais. Os direitos fundamentais, todos eles, quando são constitucionalmente consagrados são, por natureza, imanentemente dotados de uma reserva geral de ponderação que tem precisamente aquele sentido: independentemente da forma e força constitucional que lhes é atribuída, eles podem ter de ceder perante a maior força ou peso que apresentem, no caso concreto, os direitos, bens, princípios ou interesses de sentido contrário[28].
As normas de direitos fundamentais, quando considerados como um todo, apresentam uma natureza de princípio, estão sujeitos a ponderações entre si, podem prevalecer ou ceder consoante as circunstâncias de caso concreto e peso relativo (a premência ou necessidade de realização) que aí apresentem. O direito à privacidade pode colidir com a liberdade de informação e, nessa altura, ponderamos o peso de um e de outro para decidir qual deve prevalecer; cederá ou um ou outro segundo uma necessária ponderação de caso concreto.
(…) excluindo, dentro de cada direito fundamental, as faculdades ou garantias específicas consagradas já sob forma de regra, todos os direitos fundamentais, considerados como um todo, têm a natureza de princípios, ou seja, são garantias jurídicas fortes, mas sujeitas a ceder perante a maior força ou peso que, no caso concreto, apresentem bens, interesses ou direitos igualmente dignos de protecção[29].
Tais limites decorrem dos valores constitucionalmente prosseguidos que permitem interpretar[30] qual o âmbito de protecção do direito (limites imanentes), das restrições de conteúdo impostas pelas leis infra-constitucionais, nos termos que a Constituição permite, e da sua limitação em situação de conflito do seu exercício com o de outros direitos[31]. Assim se delimita o círculo de actuação restritiva legítima da lei infra-constitucional (cf. artigo 18.º, n.º 3, da CRP).
A delimitação pelos limites imanentes visa procurar a razão de ser da consagração do direito, o valor prosseguido, para definir o seu núcleo duro de protecção. Tal implica restringir o seu âmbito de aplicação ao âmbito significativo, de modo tal que um aparente conflito de direitos possa ser anulado pela delimitação recíproca do âmbito dos direitos em confronto.
Esta metodologia faz intervir a ponderação dos valores ínsitos nos princípios fundamentais e nos direitos consagrados (definitional balancing) como critério de delimitação do seu núcleo indefectível de protecção.
A compatibilização de direitos operada por via de lei é uma metodologia de consagração de normas restritivas de âmbito ou de normas harmonizadoras de exercício: v.g. normas constitucionais concretizadoras dos direitos consagrados como um todo[32], normas infra-constitucionais que instituam causas de exclusão da ilicitude ou que excluem determinadas actuação do âmbito do exercício do direito.
É esse o sentido que assume, por exemplo, a cláusula de restrição e ponderação de direitos constante do artigo 29.º, n.º 2, da DUDH, de particular relevo face à injunção do artigo 16.º, n.º2, da CRP. Diz a referida norma:
No exercício destes direitos e no gozo destas liberdades ninguém está sujeito senão às limitações estabelecidas pela lei com vista exclusivamente a promover o reconhecimento e o respeito dos direitos e liberdades dos outros e a fim de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar numa sociedade democrática (nossos negrito e sublinhado).
Também o PIDCP no artigo 19.º que consagra a liberdade de expressão indica que o seu exercício pode estar sujeito a certas restrições, expressamente previstas na lei, e que sejam necessárias para: a) assegurar o respeito pelos direitos e a reputação de outrem; b) a protecção da segurança nacional, a ordem pública ou a saúde ou a moral públicas.
Em suma, a colisão de direitos implica que a delimitação do núcleo duro dos direitos em causa, a que acima procedemos, a análise de eventuais normas restritivas do âmbito de um dos direitos e, quando a incompatibilidade permaneça, a restrição em concreto dos direitos colidentes de acordo com as normas aplicáveis à colisão de direitos.
Neste ponto impõe-se considerar os critérios de harmonização do exercício dos direitos.
2.6.3. Um primeiro critério a considerar, ou uma primeira situação a excluir é o da prevalência abstracta de um direito sobre outro, já que entre direitos desiguais ou de espécie diferente, prevalece o que deva considerar-se superior – artigo 335.º, n.º 1, do CC.
Os direitos em causa têm igual dignidade constitucional, uma vez que nada existe na Constituição que imponha a prevalência de um sobre o outro, sendo ambos construídos no enquadramento do princípio da dignidade da pessoa humana[33].
Advirta-se que, situando a questão no vértice do ordenamento jurídico Português, não se olvida o que antes se sublinhou: as questões de direitos fundamentais devem ser interpretadas e integradas de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Ora, não se descortina também na DUDH qualquer prevalência abstracta de um ou outro dos direitos em confronto.
Também no direito convencional não se afigura que assim aconteça. Para além das razões antes avançadas quanto à não exclusão pela CEDH da protecção ao direito ao bom nome, a norma do artigo 10.º, n.º 2, não tem a virtualidade de secundarizar este direito face à liberdade de expressão, antes pondera a colisão de um e outro em termos de limites aos limites[34] de restrição da liberdade de expressão, sem prevalência abstracta.
Também o Código Civil não distingue em abstracto nenhum dos direitos como prevalecente.
Ou seja, a questão não se dilucida através da ponderação de um concurso de normas de hierarquia diversa.
2.6.4. Um segundo critério é o da concordância prática, na perspectiva de cedência recíproca dos direitos não prevalecentes de modo a que cada um deles obtenha o maior nível possível de satisfação, para que todos produzam igualmente o seu efeito – cf. artigo 335.º, n.º 1, do CC.
A actuação do princípio, porque implica a restrição efectiva em diversa medida dos direitos, tem de operar em sede de ponderação concreta dos modos de exercício e dos valores envolvidos, a fim de determinar a admissibilidade de restrição e sua medida.
2.6.5. Particularmente adequada à ponderação das restrições é a consideração de uma reserva geral imanente de ponderação[35] dos direitos fundamentais, por isso que permite a apreciação da colisão dos direitos no quadro constitucional da sua consagração e da sua plena defesa como um todo, restringindo um ou outro com respeito pelas normas constitucionais relativas à restrição de direitos fundamentais e na ponderação dos respectivos critérios.
Ao contrário, o apelo à teleologia das normas de consagração para restrição do exercício dos direitos facilita a intervenção de conceptualizações tributárias de uma concepção de vida social de entre as plúrimas que convivem na sociedade, restringindo os direitos fundamentais de modo que a Constituição não autorizou e fazendo valer uma perspectiva dos direitos que pode ser apenas uma entre múltiplas.
Como adverte Jorge Reis Novais tal poderia conduzir à errónea aplicação dos limites aos limites (por exemplo, a proporcionalidade) ao exercício dos direitos, em vez de serem aplicados, sim, à restrição desses direitos fundamentais, e um alinhamento não reflectido segundo o raciocínio tradicional típico, mas improdutivo, da teoria dos limites imanentes dos direitos fundamentais[36]
Na verdade, mesmo questões aparentemente técnicas, como a delimitação do âmbito normativo, do programa normativo ou do âmbito de garantia do direito à liberdade de expressão, longe de se reduzirem a meras operações lógico-dognáticas, são frequentemente transformadas em confrontos ideológicos entre diferentes valores e visões do mundo, sustentadas por campos opostos, fortemente entrincheirados[37].
Jónatas Machado adverte ainda para que a liberdade de expressão ainda se pode ver ameaçada mediante uma constrição não menos ideológica da esfera de discurso público, por via da concessão de uma posição de primazia ou de privilégio epistemológico a uma concepção de racionalidade pública secularizada ou destranscendentalizada[38].
Qualquer restrição a um direito fundamental está sujeita ao princípio da proporcionalidade em sentido amplo, ou proibição do excesso. De acordo com este princípio, as restrições devem prosseguir um fim constitucional ou jurídico-internacionalmente legítimo, e ser adequadas, necessárias e proporcionais, em sentido amplo para a prossecução desse fim. Elas devem limitar-se ao estritamente necessário para a salvaguarda de direitos e interesses ponderosos, dignos da mais elevada protecção constitucional e jusinternacional. Subjacente ao princípio da proporcionalidade encontra-se uma ideia de essencialidade das restrições, ou seja, da sua inevitabilidade ou inescapabilidade. Sendo a liberdade de expressão um dos mais fundamentais direitos reconhecidos numa sociedade aberta, a proporcionalidade da restrição encontra-se sujeita a uma aferição especialmente rigorosa[39].
A metodologia assente na reserva geral imanente de ponderação permite partir do exercício pleno dos direitos em confronto “experimentando” as necessárias restrições de um e outro, testando-as à luz dos critérios constitucionais de restrição de direitos de modo a concluir pelo modo da sua compatibilização ou da prevalência de um sobre o outro (ad hoc balancing).
2.6.6. Na aplicação ao caso concreto e decisão de restrições, a fundamentação das decisões judiciais toma particular importância para a sua racionalização e objectivação, relevando de modo incisivo os limites aos limites de direitos fundamentais colocados pela Constituição (dignidade da pessoa humana, proporcionalidade, proibição do excesso, protecção da confiança) e os parâmetros testados ao longo do tempo na resolução do conflito, a saber o conjunto de critérios jurisprudencialmente construídos.
Teste de admissibilidade da restrição é a verificação se a pretendida cedência do direito se deve ao peso específico que apresenta, face ao direito fundamental, o interesse justificador da restrição ou, pelo contrário, se o que está em causa é, no fundo, a tentativa de sacrifício da liberdade individual ao fim de imposição de particular mundividência a toda a sociedade[40].
Tratando-se de direitos fundamentais, como se trata, pese embora as acusação de Albuquerque de Matos à constitucionalização da questão[41], afigura-se que é, em primeiro lugar nessa sede e não na sede das normas infraconstitucionais que deve avaliar-se qual a ponderação a fazer e qual o direito que prevalece.
2.7. Da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça
Revisitando a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça dos últimos cinco anos publicada[42] (2015 a 2019, ambos inclusive), cremos poderem extrair-se as seguintes linhas de ponderação, no confronto entre o direito ao bom nome e a liberdade de expressão:
1) A afirmação de que ambos os valores têm igual dignidade vem prevalecendo sobre a afirmação da preeminência do direito à honra;
2) Deve ser tida em conta a jurisprudência do TEDH ao invés de assentar na protecção do direito ao bom nome com a verificação ulterior da justificação da agressão que a liberdade de expressão implica; o juízo de ilicitude deve ter em conta o princípio da unidade da ordem jurídica;
3) A colisão de direitos deve ser ponderada em concreto;
4) Deve distinguir-se entre imputação de factos e emissão de juízos de valor, verificando-se a exceptio veritatis apenas no primeiro caso e sendo excepcional a obrigação de indemnizar quanto aos segundos;
5) Deve ter-se em atenção o contexto quanto ao interesse público dos assuntos, ao foco do agente na divulgação de um assunto objectivo ou na humilhação e agressão a uma pessoa, ao conteúdo global da peça jornalística;
6) Não deve ser-se demasiado restritivo na consideração das expressões usadas já que a liberdade de expressão envolve a liberdade de escolher o estilo. Nomeadamente, admite-se o recurso a uma linguagem forte, dura, veemente, provocatória, polémica, metafórica, irónica, cáustica, sarcástica, imoderada e desagradável.
7) A restrição da liberdade de expressão tem requisitos: necessidade social imperiosa e proporcional; análise da relevância dos fundamentos da restrição e da suficiência da medida;
8) A legitimidade da ofensa ao bom nome está sujeita a princípios de necessidade, proporcionalidade e adequação (embora parecendo aplicar por vezes tais princípios ao exercício do direito e não à legitimidade das restrições);
9) A boa fé de quem exerce a liberdade de expressão é relevante e resulta dos seguintes critérios:
a) verosimilhança dos factos;
b) seriedade da investigação;
c) contenção nos limites da necessidade de informar e dos fins ético-sociais do direito de informar;
d) ausência de animosidade pessoal.
10) Distinção entre figuras públicas e pessoas privadas, com menor exigência de protecção quanto às primeiras.
Assim, quanto aos últimos cinco anos, os acórdãos de:
- 5 de Junho de 2018, proferido no processo 517/09.1TBLGS.L2.S1 (Fernanda Isabel Pereira)
Submete-se, assim, a restrição à liberdade de imprensa ao teste da sua “necessidade numa sociedade democrática”. Para esse efeito, entende o TEDH ser necessário averiguar: (i) se a medida corresponde a uma “necessidade social imperiosa”; (ii) se é proporcional – isto é, se a necessidade poderia ser provida por meios menos restritivos e se a medida é adequada à finalidade prosseguida –; (iii) se os fundamentos invocados pelas autoridades nacionais para justificar a medida são “relevantes e suficientes” (Sunday Times (nº 1) contra Reino Unido, 26 de abril de 1979, série A nº 30, p.38, § 62).
A liberdade de expressão constitui, assim, a regra. As limitações consentidas pelo n.º 2 do artigo 10.º da CEDH são restritivamente interpretadas e casuisticamente analisadas de acordo com o conteúdo da peça jornalística em causa.
Note-se que, neste particular, cabe ao lesado provar os factos lesivos do seu bom nome, recaindo sobre o lesante a prova da sua veracidade. A prova da verdade das imputações de facto (exceptio veritas), enquanto causa de exclusão da ilicitude compete ao lesante, tanto no domínio do direito penal, como no do direito civil (artigos 165º nºs 1 e 2 do Código Penal e 342º nºs 1 e 2 do Código Civil).
- 13 de Julho de 2017, proferido no processo 3017/11.6TBSTR.E1.S1 (Lopes do Rego)
Pode, deste modo, considerar-se que a jurisprudência recente deste Supremo vem realizando uma reponderação relativamente à tradicional visão acerca do critério de resolução dos conflitos entre direitos fundamentais individuais e liberdade de imprensa, que conferia aprioristicamente precedência ao direito individual à honra e bom nome – procurando valorar adequadamente as circunstâncias do caso e ponderar a interpretação feita, de modo qualificado, pelo TEDH - órgão que, nos termos da CEDH, está especificamente vocacionado para uma interpretação qualificada e controlo da aplicação dos preceitos de Direito Internacional convencional que a integram e que vinculam o Estado Português; e tendo, por outro lado, também em conta a dimensão objectiva e institucional subjacente à liberdade de imprensa - que não pode deixar de ser considerada, sempre que se determina o âmbito de protecção da norma constitucional que consagra este tipo de liberdade: com efeito, o bem ou valor jurídico que, aqui, é constitucionalmente protegido não é outro senão o da formação de uma opinião pública robusta, sem a qual se não concebe o correcto funcionamento da democracia (cfr. declaração de voto aposta ao Ac. do TC nº292/08).
- 30 de Março de 2017, proferido no processo 1064/12.0TVPRT.L1.S1 (João Trindade)
 No âmbito da violação dos direitos de personalidade, como o direito à honra e ao bom nome, colocam-se não só problemas de colisão com outros direitos fundamentais, como o juízo sobre a ilicitude deve ter em conta o princípio da unidade da ordem jurídica.
(…)
Existindo verdadeiro interesse público em que a comunidade seja informada sobre certas matérias, o dever de informação prevalece sobre a discrição imposta pelos interesses pessoais.
Sempre, no entanto, será de exigir o respeito por um princípio, não apenas de verdade, necessidade e adequação, mas também de proporcionalidade (ou razoabilidade).
A solução dos conflitos entre a liberdade de expressão e informação e o direito à honra passa pela sua harmonização ou pela prevalência a dar a um ou a outro, com recurso aos princípios da proporcionalidade, da necessidade e da adequação às circunstâncias do caso concreto.
O exercício da liberdade de expressão e de informação, eventualmente, limitador de outros direitos de personalidade, deve, porém, obedecer (sempre) à realização de um interesse legítimo que será, por via de regra, um interesse geral ou um “interesse público”, enquanto conceito normativo, e não, meramente, “um interesse do público” só podendo a divulgação justificar a ofensa dos direitos de personalidade fundamentais, na medida em que da mesma sobressaiam aqueles interesses, esbatendo-se a identificação das pessoas envolvidas.
- 16 de Março de 2017, proferido no processo 2178/10.6TVLSB.L1.S1 (Silva Gonçalves)
 Estes especificados direitos, não contendo na sua natureza o dom do absolutismo, pois que não se podem sobrepor um ao outro, obrigam a que se estabeleça o ponto de equilíbrio de cada uma destas prerrogativas; e, analisando cada caso concreto, aferir até que ponto podem ir um e outro e fixar os limites e a sobreposição de cada um deles em confronto.
Fazendo funcionar a lei - art. 335.º do C. Civil, que dispõe que, havendo colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os titulares ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes (n.º 1), sendo que em caso de direitos de espécie diferente prevalece o que se deva considerar superior (n.º 2) - teremos de dizer, logo numa primeira abordagem que desta questão façamos, que o direito à honra e consideração é um inabalável privilégio que, inexoravelmente, tem sempre e em qualquer circunstância de ser respeitado e que, em princípio, a liberdade de expressão terá de soçobrar perante aquele, valendo quanto a este modo de pensar a argumentação que sobressai do regime constitucional a este propósito estatuído na nossa Lei Fundamental e que reconhece expressamente (art.º 37.º) a existência de limites ao exercício do direito de exprimir e divulgar livremente o pensamento - não há conflito entre a liberdade de expressão e o direito ao bom nome em caso de difamação, dado que não está coberto pelo âmbito normativo-constitucional da liberdade de expressão o ”direito à difamação, calúnia ou injúria”.
Aliás, o Tribunal Constitucional tem afirmado uma «clara vontade histórica do legislador constituinte de acompanhar o passo da jurisprudência europeia no desenvolvimento dos direitos fundamentais igualmente previstos na Convenção e na Constituição» (cfr. o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 157/2001, in D.R., Série I, de 10/5/01).
O direito ao bom nome só é violado por actos que se traduzam em imputar falsamente a alguém a pratica de acções ilícitas ou ilegais, ou que consistam em tornar publicas faltas ou defeitos de outrem que, sendo embora verdadeiros, não são publicamente conhecidos - Ac. TC de 24.07.1992; Relator Monteiro Dinis; www.dgsi.pt.
- 31 de Janeiro de 2017, proferido no processo 1454/09.5TVLSB.L1.S1 (Roque Nogueira)
Como já resulta do atrás exposto, a liberdade de expressão e a honra conformam dois direitos fundamentais, que, dada a sua relevância, mereceram a consagração constitucional.
(…)
Porém, uma vez que estamos perante uma colisão de direitos fundamentais, o conflito não é passível de ser resolvido pelo princípio do igual tratamento, antes havendo que proceder a uma ponderação dos interesses em causa para se determinar qual é o que carece de maior protecção no caso concreto.
Assim, quando são imputados factos ou formulados juízos de valor ofensivos da honra de uma figura pública, pode estar a ser legitimamente exercida a liberdade de expressão.
Sendo que, em matéria de formulação de juízos de valor, o exercício do direito à liberdade de expressão tem uma apetência justificativa mais ampla, dada até a natureza excepcional da obrigação de indemnizar por juízos de valor.
O que não obsta a que se mantenha a preocupação de se atribuir uma equilibrada solução jurídico-concreta ao conflito entre a liberdade de expressão e a honra das figuras públicas.
O que não podem é ser submetidos a quaisquer pré-juízos de preferência abstracta por qualquer um deles, já que conformam dois direitos fundamentais constitucionalmente consagrados e que ocupam a mesma hierarquia.
- 10 de Dezembro de 2019, proferido no processo 16687/16.0T8PRT.L1.S1 (Ilidio Sacarrão Martins)
No conflito entre o direito de liberdade de expressão e/ou informação e o direito à honra e ao bom nome, não obstante ambos merecerem dignidade constitucional, tem-se entendido que o primeiro, devido às restrições e limites a que está sujeito, não poderá atentar contra o bom nome e reputação de outrem, salvo se estiver em causa um relevante interesse público que se sobreponha àqueles, devendo, neste caso, a informação veiculada se cingir à estrita verdade dos factos.
- 18 de Maio de 2016, proferido no processo 202/13.0TRPRT.S1 (Pires da Graça)
Os limites de justificação do exercício de um direito estarão na barreira instransponível da pura crítica caluniosa, que a juridicidade alemã apelida de Scmähkritik.
Quer dizer, o conteúdo da entrevista concedida pelo arguido ao jornal Regional, não se destinou, a um ataque doloso à honra e consideração, pessoal e profissional, da Exma Assistente, mas, a apresentar, em discussão objectiva, as razões (subjectivas) explicativas, da convicção do arguido, na concretização do exercício do seu direito de defesa naqueles autos, com vista à ineficácia jurídico-criminal da materialidade factual constante da imputação feita, sendo que esse exercício do seu direito de defesa se circunscreve no âmbito do objecto do processo.
Não é a vontade de difamar a Exma Assistente que subjaz à dita entrevista mas apenas o propósito de explicitação dos motivos que na convicção do arguido, integram o seu direito de defesa de forma a retirar credibilidade à imputação.
- 29 de Janeiro de 2015, proferido no processo 24412/02.6TVLLSB.L1.S1 (Távora Victor)
Do cotejo das normas em causa resulta que a liberdade de expressão de pensamento é um dado adquirido entre nós; mas também e porque há outros valores de natureza pública ou privada a salvaguardar, impõe-se encontrar o ponto de equilíbrio entre a liberdade de expressão de pensamento e os outros não menos relevantes direitos em presença. Tal objectivo, que terá sempre que ser encontrado in concreto, pode ser alcançado das mais variadas formas inclusive a da compressão de um dos direitos colidentes em ordem a permitir a sua coexistência na ordem jurídica.
Podendo a expressão do pensamento ser passível de responsabilidade civil extracontratual, haverá, para tanto, que aquilatar se os respectivos pressupostos se encontram preenchidos.
(…)
O aquilatar do preenchimento dos requisitos da responsabilidade em matéria de liberdade de imprensa terá que fazer-se casuisticamente, considerando o circunstancialismo em que decorreram os factos, bem como a qualidade dos intervenientes na qualidade dos visados.
(…)
No entanto não pode esquecer-se, como referimos, que se perfilam no seio do ordenamento jurídico dois direitos com igual relevo constitucional - havendo pois que os conciliar tanto quanto possível, ainda que por vezes tal passe, de harmonia com as circunstâncias do caso concreto, em valorizar um deles em detrimento do outro - com o fito de encontrar a solução justa. É bem certo que ao emitente ou está vedada a divulgação imponderada de factos ou ainda aventurar-se por aqueles cuja veracidade não pode razoavelmente comprovar, sob pena de se favorecerem toda a espécie de atropelos a uma séria informação. Contudo, no exercício do seu direito, desde que o emitente tome as providências razoáveis na análise do conteúdo e fonte dos factos que pretende transmitir, sendo razoável a aceitação da sua verosimilhança, dela estando convencido, e não extrapole da mesma com comentários inapropriados e abusivos, não poderá ser passível de censura e incorrer em responsabilidade civil.
Vejam-se ainda os acórdãos de:
- 30 de Junho de 2011, proferido no processo 1272/04.7TBBCL.G1.S1 (Bernardo Domingos)
Decerto que, tutelando a Constituição ambos, hão-de ser exercidos até onde não interfiram um com o outro. Se interferirem, há-de se procurar ainda a redução em ordem a cada um deles poder ser exercido de modo mais amplo. Mas se se atingir o patamar da incompatibilidade, não temos elementos para retirar a solução do texto constitucional. Nem o já falado artigo 16.º, n.º2, que impõe uma interpretação conforme à Declaração Universal dos Direitos do Homem, faz luz neste domínio porque, se nesta se tutela a honra, se tutela também em plano de igualdade, a “liberdade de opinião e de expressão”.
- 14-02-2012, proferido no processo 5817/07.2TBOER.L1.S1 (Helder Roque)
A distinção entre afirmações de facto e juízos de valor, entendidos estes últimos, em sentido amplo, de modo a abranger opiniões, crenças e convicções pessoais, incluindo sobre situações de facto, embora seja meramente tendencial, na medida em que, do ponto de vista teorético-cognitivo, as primeiras podem conter elementos subjectivos e os segundos são susceptíveis de se basear em realidades objectivas[35], permite registar que os juízos de valor resultam de uma apreciação subjectiva incontornável, de um elemento de tomada de posição ideológica ou emocional, enquanto que as afirmações de facto ou são verdadeiras ou falsas, pressupondo a indispensabilidade da sua prova, ao contrário do que sucede com os juízos de valor, em que já não haverá, em princípio, lugar à averiguação da sua verdade ou falsidade, ou do seu escoramento emocional ou racional, desde que a génese subjectiva do juízo de valor seja, imediatamente, perceptível junto dos destinatários.
2.8. Do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos
É conhecida a relevância da jurisprudência do TEDH enquanto intérprete do direito convencional, aliás repetidamente afirmada pelo Supremo Tribunal de Justiça, como referido no ponto anterior.
Nesse sentido tem sido sublinhada a necessidade de proceder a um teste de conformidade das soluções do direito interno face aos critérios estabelecidos pelo TEDH de interpretação dos direitos conferido pela CEDH, num crescente diálogo jurisdicional na terminologia utilizada por Henriques Gaspar[43]:
Mais do que os estímulos intelectuais, as conveniências de metodologia ou a necessidade de superar vazios ou descontinuidades normativas suscitadas pelos desafios e pelo desenho de novas controvérsias desencadeadas pelo avanço das tecnologias, foi a expansão do domínio dos direitos fundamentais e a vontade de lhes transmitir efectividade em decisões concretas que tem contribuído para a maior procura e aceitação do diálogo judicial. Os direitos fundamentais transportam em si uma partilha de sentido universal de valores comuns, como se traduzissem uma linguagem comum de vocação universal. Para ser efectiva, não podem subsistir recusas de partilha do sentido dos valores.
(…)
O TEDH teve influência decisiva na criação, construção e sedimentação de um acervo de valores que constituem hoje património comum de uma «sociedade europeia de tribunais» — e de uma comunidade de cidadãos, mulheres e homens livres em sociedades abertas e democráticas. A protecção dos direitos fundamentais na Europa, e a impregnação dos vários sectores do direito pelos direitos fundamentais foi obra dos juízes. E, em particular, dos juízes do TEDH, paulatina, mas firmemente e, de modo intenso e decisivo, ultrapassado o «caminho crítico» de meados dos anos 90 do século passado, quando a ampliação do direito de recurso individual permitiu dispor de uma base de casos suficientemente diversificada pela origem e pelas matérias. O diálogo e a cooperação entre juízes foram, pois, certamente iniciados, mas sobretudo muito influenciados pelo TEDH através do desenvolvimento criativo, da interpretação evolutiva e da aplicação irradiante da CEDH aos vários campos do direito.
Veja-se ainda, quanto à relevância da jurisprudência do TEDH, a Recomendação do Conselho Consultivo dos Juízes Europeus[44] a respeito do papel do juiz nacional na aplicação do direito convencional e da União, sobretudo em matéria de direitos fundamentais.
Sendo sem dúvida essencial proceder a esse teste de conformidade, até por consideração do disposto no artigo 696.º, alínea f), do CPC, afigura-se que a apreciação primária do direito interno é essencial.
Tal decorre desde logo do princípio, afirmado múltiplas vezes pelo TEDH[45], da margem de apreciação que cabe a cada ordenamento jurídico nacional para a determinação da necessidade das restrições, margem de apreciação que envolve não apenas uma apreciação de facto mas também uma visão das restrições admissíveis face ao direito interno.
Só assim se alcança o desejável diálogo jurisdicional, cuja importância é também sublinhada por Jorge Reis Novais[46] quanto aos tribunais constitucionais, mas que deles não é exclusiva num sistema difuso de apreciação jurisdicional da constitucionalidade como é o nosso.
Por isso que, como referido pelo Supremo Tribunal de Justiça no acórdão 1454/09.5TVLSB.L1.S1, antes identificado, a consideração pela jurisprudência do TEDH não é uma aceitação por imposição, antes constitui um imperativo intelectual, a implicar análise e ponderação, de onde poderá resultar aceitação mas, também, divergência. Na verdade, os juízes julgam apenas segundo a Constituição e a lei, não tendo vinculações de qualquer natureza, excepto o dever de acatamento pelos tribunais inferiores das decisões proferidas, em via de recurso, pelos tribunais superiores.
É já numerosa a jurisprudência do TEDH[47] [48], nomeadamente quanto a queixas contra Portugal, valendo a pena, na perspectiva indicada, enunciar os pontos fortes de afirmação de critérios[49]
1) A liberdade de expressão é um pilar da sociedade democrática e do Estado de Direito;
2) As limitações à liberdade de expressão devem estar previstas na lei, prosseguirem um fim legitimo e serem necessárias numa sociedade democrática;
3) As restrições à liberdade de expressão são menos admissíveis quando estejam em causa matérias de interesse público (o que é diferente de matérias de interesse do público);
4) As figuras públicas, aqueles que intervêm na política ou em cargos superiores da administração estão particularmente sujeitos a crítica pública legítima;
5) Deve distinguir-se na procura dos limites da liberdade de expressão a afirmação de juízos de valor da imputação de factos, assumindo particular relevância o conhecimento da falsidade dos factos ou a intenção de injuriar;
6) No exercício da liberdade de expressão é permitido o recurso a uma certa dose de exagero, provocação ou mesmo o uso de linguagem desagradável.
Vejam-se quanto a tal alguns acórdãos proferidos em processos contra Portugal e, ainda, o caso Axel Springer AG v. Germany que, entre muitos, enuncia os critérios de ponderação dos direitos em conflito[50].
AXEL SPRINGER AG v. GERMANY[51], enuncia os seguintes critérios: contribuição para debate de um assunto de interesse público, ponderação da intervenção da pessoa atingida no espaço público e seu anterior comportamento a tal respeito, veracidade da informação e método da sua obtenção, conteúdo, forma e consequências da publicação e severidade da sanção imposta.
PAIS PIRES DE LIMA v. PORTUGAL[52], em que se pondera a necessidade da ingerência na liberdade de expressão na perspectiva da medida da sanção aplicada.
TAVARES DE ALMEIDA FERNANDES e ALMEIDA FERNANDES v. PORTUGAL[53], considerando determinante a natureza do assunto e o interesse público na sua discussão, mas apontando a necessidade de apreciar da base factual das afirmações para a necessidade da ingerência, sendo certo que se refere especificamente à liberdade de imprensa.
PINTO PINHEIRO MARQUES c. PORTUGAL[54], estabelecendo a distinção entre juízos de valor e afirmações de facto (na matéria o acórdão refere-se a juízos de valor, o que não é o caso vertente).
DO CARMO DE PORTUGAL E CASTRO CÂMARA v. PORTUGAL[55], afirmando o carácter essencial da liberdade de expressão numa sociedade democrática e a tolerância com linguagem menos respeitadora, sublinhando que a necessidade da restrição deve decorrer de uma imperativa necessidade social.
MEDIPRESS-SOCIEDADE JORNALÍSTICA, LDA v. PORTUGAL[56], referindo os critérios de legitimidade da norma de restrição, da finalidade prosseguida e da necessidade numa sociedade democrática.
SOARES v. PORTUGAL[57], referindo-se especificamente à ponderação que a colisão de direitos implica.
PINTO COELHO v. PORTUGAL[58], sublinhando que cabe ao TEDH apreciar se a ingerência corresponde a uma necessidade social imperiosa e se é proporcionada aos fins prosseguidos.
SOUSA GOUCHA c. PORTUGAL[59], em que se refere expressamente que o direito à protecção da reputação é acolhido pela CEDH.
ALMEIDA LEITÃO BENTO FERNANDES v. PORTUGAL[60], afirmando a legitimidade da restrição da liberdade de expressão para salvaguarda da reputação, indicando ainda que essa restrição tem de revestir-se da característica de necessidade.
PINTO PINHEIRO MARQUES c. PORTUGAL[61], afirma a maior admissibilidade da crítica face a instituições públicas.
AMORIM GIESTAS e JESUS COSTA BORDALO v. PORTUGAL[62], afirmando o carácter essencial da liberdade de expressão numa sociedade democrática e a tolerância com linguagem menos respeitadora, bem como a necessidade da restrição.
SAMPAIO E PAIVA DE MELO v. PORTUGAL[63], afirmando a diferença entre os intervenientes na vida pública e os particulares no que respeita à admissibilidade da da sujeição a crítica.
BARGÃO e DOMINGOS CORREIA v. PORTUGAL[64], afirmando o papel do TEDH na apreciação da proporcionalidade da restrição.
BARATA MONTEIRO DA COSTA NOGUEIRA e PATRÍCIO PEREIRA v. PORTUGAL[65], sobre a ponderação da veracidade da factualidade afirmada.
PÚBLICO - COMUNICACÃO SOCIAL, S.A., e OUTROS v. PORTUGAL[66], afirmando a necessidade de ponderação do relevo do assunto para o debate público.
WOMEN ON WAVES e OUTROS v. PORTUGAL[67], sobre os requisitos da restrição, nomeadamente sob a perspectiva da finalidade e da necessidade.
CAMPOS DÂMASO v. PORTUGAL[68], sobre a apreciação da proporcionalidade da restrição sob a perspectiva da medida da sanção.
COLAÇO MESTRE e SIC - SOCIEDADE INDEPENDENTE DE COMUNICACÃO, S.A. v. PORTUGAL[69], sobre a liberdade de expressão como um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrática, sobre a tolerância com linguagem menos respeitadora e a necessidade da restrição.
ROSEIRO BENTO v. PORTUGAL[70], sublinhando especificamente a proporcionalidade da restrição.
URBINO RODRIGUES v. PORTUGAL[71], sublinhando que a necessidade da restrição deve decorrer de uma imperativa necessidade social, beneficiando as autoridades nacionais de uma margem de apreciação dessa necessidade, sem prejuízo do controle do TEDH.
LOPES GOMES DA SILVA v. PORTUGAL[72], típico exemplo da tolerância com o estilo da linguagem utilizada.
2.9. Da factualidade assente: a ilicitude
2.9.1. Em cada caso em que a liberdade de expressão entre em colisão com um outro bem jurídico é extremamente importante saber com exactidão quem disse o quê, em que contexto, de que forma, porque meios e com que intenção, sem esquecer que o discurso chocante, perturbador e ofensivo não deixa, por esse facto, de estar protegido. Na ponderação de bens, o juiz deve analisar em que medida é que o exercício de um direito fundamental efectivamente põe em causa as possibilidades efectivas de exercício de outro direito ou a salvaguarda de um bem constitucionalmente protegido da comunidade ou do Estado. Ele deve averiguar até que ponto é que a restrição de um direito é essencial à salvaguarda de outros direitos e bens constitucionalmente protegidos[73].
Importa efectuar então a ponderação dos direitos em jogo, no caso concreto, para o que se organizarão os critérios expendidos na classificação proposta por Capelo de Sousa[74] que, embora referindo-se à predominância de um direito sobre o outro, tem em vista a predominância concreta decorrente da concreta ponderação de que ambos e o seu exercício se revestem:
Esta predominância afere-se, nos termos já referidos anteriormente sobre a ponderação dos interesses em jogo, atendendo sobretudo a três tipos de critérios (…) acumulação de interesses (além da autonomia individual, os demais interesses envolvidos no seu exercício), intensidade de interesses (avaliada comparativamente no caso concreto) e radicação de interesses (fundamento específico do exercício).
2.9.2. Na perspectiva da intensidade dos interesses em confronto no exercício da liberdade de expressão é de relevância a natureza de pessoa colectiva pública do Autor, que necessariamente “vive” no espaço público, num clima marcado pela controvérsia acesa própria das sociedades democráticas plurais, controvérsia que incide, nomeadamente na crítica do modo como os seus órgãos exercem as suas funções.
Ou seja, os seus direitos ao bom nome e credibilidade têm de conviver no espaço público com a crítica acerba e com a discordância opinativa.
Estes aspectos atribuem prevalência à liberdade de expressão.
Certo é que a crítica pode revestir-se de elegância, mas a exigência de elegância constitui ainda ela uma restrição à liberdade de pensamento e de expressão, restrição que não se vê necessária no contexto descrito[75], que antes convoca outra dimensão da maior relevância, a da verdade dos factos afirmados.
2.9.3. Na perspectiva do específico modo do exercício da liberdade de expressão e do cuidado do Réu quanto às afirmações produzidas, o que se refere à segunda parte da entrevista em causa neste recurso, é da maior relevância ter em conta que parte dos factos afirmados pelo Réu era falsa, e, sobretudo, que ao afirmá-los ele sabia que o eram.
Ou seja, segundo o critério do cuidado na afirmação da base factual, a compressão da liberdade de expressão do Réu pode considerar-se autorizada quando por ela se pretende expressamente veicular factos falsos conhecidos como tal.
Na verdade, a liberdade de expressão nunca foi entendida como o direito de qualquer um dizer o que quer que seja, quando e como bem lhe aprouver[76] e a potencialidade corrosiva da democracia, da qualidade da participação dos cidadãos e do debate público, das agora denominadas fake news, é um bom exemplo de como a tradicional exceptio veritatis se reveste de relevância.
Este conhecimento da falsidade de parte considerável dos factos afirmados reveste-se de grande desvalor na consideração do modo de exercício da liberdade do Autor e sufraga a preferencial protecção do direito ao bom nome e a legitimidade de restrições à liberdade de expressão.
2.9.4. Vejamos os factos em maior detalhe.
Para além dos factos falsos veiculados nas declarações do Réu e que são genericamente referidos no ponto 43, existe um conjunto de factos relativamente aos quais não se apurou da sua verdade ou falsidade, quais sejam os relacionados com a indicação da data das construções, sendo certo que essa indicação é relevante quanto à exigência de licença de utilização para a venda e revenda das fracções e foi relevante como consta do ponto 36.
Não se apurou qual a data das construções, mas sabe-se que, quanto a parte delas, foram indicadas pelos donos datas de construção posteriores a 1951 (ponto 40), e que a CM…emitiu certidões de que consta que as construções são anteriores a 1951. Nada se provou que o Réu assim declarou sabendo que outras eram as declarações dos donos ou, sequer, se as construções eram ou não de data anterior a 1951.
Sabe-se que a revenda ulterior, nomeadamente ao Sport Lisboa e Benfica, foi possibilitada sem licença de utilização, por virtude dessa declaração de antiguidade de construção da autoria da CM…
Ou seja, há um conjunto de factos que não se provou serem verdadeiros ou falsos ou saber o Réu de uma ou outra coisa.
Mas vejam-se ainda os pontos de facto 19, 20 e 21, dos quais resulta que a CMS nenhuma intervenção teve na apreensão e venda para satisfação de dívidas fiscais, o que o Réu bem sabia, mas também os pontos de facto 23 e 24 com referência ao 22, 26 e 27 com referência ao 25, dos quais resulta que a indicação pela CM… de datas de construção anteriores a 1951 a pedido dos proprietários que adquiriram em execução fiscal. Mas também há que atentar no ponto 30 com referência a 28 e 29, dos quais resulta que nessa situação a CM.. não emitiu declaração.
De notar ainda o ponto 36 já referid,o do qual resulta a aquisição de parte dos edifícios e terrenos pelo Sport Lisboa e Benfica com dispensa de licença de utilização por a CMS ter emitido declaração de anterioridade a 1951 das construções.
Em suma, o conjunto de factos afirmados é uma mistura de factos verdadeiros com factos falsos e com factos cuja verdade ou falsidade se não apurou.
O Recorrido conhecia a falsidade de alguns dos factos falsos afirmados, como decorre do ponto 43 da matéria de facto assente: o Réu sabia da falsidade das acusações de cumplicidade, conivência e ilegalidade que fez aos membros da Câmara Municipal, quanto à atribuição de artigos matriciais para autonomização dos edifícios integrantes do perímetro do Estádio do …o e quanto à viabilização da penhora e venda dos bens em execução fiscal.
Ou seja, dos factos afirmados como praticados pela CM.., o Recorrido sabia que (i) a atribuição de artigos matriciais não era competência das câmaras municipais, (ii) a apresentação do Modelo 121 nas Finanças, para autonomização dos edifícios integrantes do perímetro do Estádio do …, era da autoria do SFC e não da CM.., e (iii) a viabilização da penhora e venda dos bens em execução fiscal não decorria de actuação da CMS.
Da amálgama de factos indicados pelo Recorrido, decorre a conclusão/qualificação de que se verificou um conjunto de ilegalidades graves que possibilitou que quem comprou e registou as fracções distintas, veio a ganhar muito com a sua posterior revenda ao Sport Lisboa e Benfica Futebol SAD e a outras entidades (quanto a tal vejam-se os factos 14-B, penúltimo parágrafo e 36).
2.9.5. Na perspectiva dos interesses envolvidos no exercício dos direitos deve ter-se em atenção que a matéria a que as declarações se referem é de suma importância e que o seu debate e a narração pública de factos com ela relacionada é essencial numa sociedade democrática em geral e, sobretudo, é essencial nesta época e em Portugal, quando as questões de corrupção envolvendo negócios relacionados com imobiliário, especulação com o seu valor e clubes de futebol é notícia diária.
A confiança dos cidadãos nas instituições atingida pela afirmação de factos que em parte são falsos é também um interesse a prosseguir numa democracia. E nessa medida estabelece a necessidade da restrição pela imperativa necessidade social referida em Do Carmo de Portugal e Castro Câmara v. Portugal.
Sem esquecer que esse respeito melhor se alcança pela livre expressão de todas as opiniões no espaço público do que por uma supressão dessa expressão.
O que indica a exigência de um mínimo de restrição quanto à liberdade de expressão neste domínio, unicamente legitimada pelo conhecimento da falsidade de parte dos factos.
Dito de outro modo, sendo tratados factos que podem ser verdadeiros e que geram dificuldades de prova, que não foram sequer superadas neste processo judicial, não se afigura que a prova de que parte dos factos não é verdadeira determine total restrução da liberdade de o Réu expor a situação publicamente, possibilitando o debate, o conhecimento e a investigação ulterior.
De alguma maneira, a compressão que de tal resulta do direito fundamental ao bom nome é a contrapartida necessária de facilitar a divulgação no espaço público de factores indiciários de actividades em desacordo com a lei em aspectos de suma importância para a vida colectiva.
Dada a relevância do assunto, mesmo considerando a afirmação de factos falsos, permanece valioso o exercício da liberdade de expressão face à afirmação de outros factos não necessariamente falsos e ao interesse da matéria.
2.9.6. Ponderados os pesos respectivos dos direitos em causa temos como determinante que o exercício da liberdade de expressão se exprima maioritariamente na afirmação de factos falsos, conhecidos como tal pelo Réu.
Tal determina a legitimidade de restrição da liberdade de expressão, restrição que surge como necessária numa sociedade democrática, no confronto com o direito colidente ao bom nome.
A restrição da liberdade de expressão decorre, em consequência, da norma dos artigos 335.º e 484.º, do CC, estatuindo este que quem afirmar ou difundir um facto capaz de prejudicar o crédito ou o bom nome de qualquer pessoa, singular ou colectiva, responde pelos danos causados.
A restrição do artigo 484.º à liberdade de expressão, no caso vertente e nos termos concretamente apreciados, visando a protecção do direito ao bom nome, é inteiramente legítima porque respeitadora do regime de restrição de direitos fundamentais estabelecido pelo artigo 18.º, n.º 2 e 3, da CRP.
Concluindo pela ilicitude, importa apreciar da medida dessa restrição, que é uma questão de culpa e indemnização.
2.10. Da factualidade assente: a imputação a título de culpa e a indemnização
2.10.1. Estabelecida a ocorrência de facto ilícito e danoso, decorre dos factos assentes que o mesmo é imputável ao Réu a título de culpa, na medida em que sabia da falsidade de alguns dos factos que afirmou na entrevista e de que os mesmos colocavam em causa o bom nome do Autor.
Neste conspecto, dos artigos 484.º, 494.º, 496.º e 562.º, todos do CC, resulta que a fixação da indemnização deve atender aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, sendo que a indemnização é fixada equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção a culpa, devendo reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.
A gravidade do bem jurídico atingido decorre desde logo da sua consagração constitucional como direito fundamental.
A indemnização a fixar, restringindo o direito fundamental da liberdade de expressão, deve conter-se dentro do estritamente necessário numa sociedade democrática (veja-se Pedersen and Baadsgaard v. Denmark e Jokitaipale and Others v. Finland).
2.10.2. Tendo em atenção que a restrição decorre e tem como fundamento a afirmação de factos cuja falsidade era conhecida do Réu, a reposição e satisfação do direito do Autor deve restringir-se à publicitação de que foram afirmados factos falsos na mencionada entrevista.
Na verdade, a medida da necessidade da restrição coincide com a afirmação de que parte dos factos afirmados era falsa e de que o Réu conhecia essa falsidade, afirmação que deve ocorrer pelo mesmo meio utilizado para os divulgar. Em suma, mediante a publicação no mesmo órgão de comunicação social e com o mesmo destaque, a expensas do Réu. Ademais, a publicação assim feita, não só garante satisfação ao direito do Autor ao bom nome, como os interesses prosseguidos pela liberdade de expressão.
A identidade de destaque deve ter em atenção a página de localização, os títulos, as fontes e o pitch, entre o mais.
O mais que é pedido em sede de divulgação não se reveste ainda daquelas características de necessidade e proporcionalidade.
2.10.3. Tendo em atenção as finalidades e os critérios de necessidade e proporção, entende-se que o excerto a publicar deve ser o seguinte:
Na edição do dia 15 de abril de 2015 do Jornal “Comércio do …”, foi publicada nas páginas 2, 3 e 5, uma entrevista de L…., constando, para além do mais, o título “CM do… compactuou para a perda do Estádio do …”.
O MUNICÍPIO DO …. instaurou um processo civil contra o Réu por entender que o Réu tinha proferido, nessa entrevista, diversas afirmações que sabia falsas.
No referido processo o Réu … foi condenado a suportar a presente publicação por se ter provado que ao dar a entrevista sabia da falsidade das acusações de cumplicidade, conivência e ilegalidade que fez aos membros da Câmara Municipal, quanto à atribuição de artigos matriciais para autonomização dos edifícios integrantes do perímetro do Estádio do… e quanto à viabilização da penhora e venda dos bens em execução fiscal.
 2.10.4. O Autor pediu ainda a condenação em indemnização expressa em pecúnia.
Considerada a suficiência da restrição que a mencionada publicação constitui, improcede a atribuição de indemnização pecuniária.
2.10.5. Em conclusão, estabelece-se a seguinte norma de aplicação concreta[77]: a liberdade de expressão, referida a assuntos fundamentais da vida em sociedade e de interesse público central para a democracia, que atinja o bom nome de uma pessoa colectiva pública, por matérias do âmbito da sua actuação nessa qualidade, existindo alguma verosimilhança de alguns dos factos afirmados e sendo outros conhecidos como falsos pelo autor das afirmações, pode ser objecto de restrição limitada à medida necessária à publicitação dessa falsidade, a expensas do Réu.
2.11. Da responsabilidade por custas
Nos termos do artigo 527.º, n.º 1 e 2, do CPC, é responsável pelo pagamento das custas a parte vencida, na medida em que o for.
No caso, o Autor é vencido quanto à condenação em indemnização pecuniária e publicação que exorbite a decidida e o Réu é vencido quanto à condenação por responsabilidade civil a suportar o custo de publicação de excerto da decisão.
Apenas o vencimento quanto ao montante da indemnização se encontra quantificado. No entanto, entende-se que a distribuição global do vencimento é idêntica para uma e outra parte, devendo sê-lo também a medida da responsabilidade pelo pagamento de custas.
IV) DECISÃO
Pelo exposto, ACORDAM em julgar o recurso parcialmente procedente e, em consequência:
1) Condenar o Réu a suportar a despesa da publicação no Jornal Comércio do …, com idêntico destaque ao da entrevista referida no ponto 14-B, do seguinte texto:
Na edição do dia 15 de abril de 2015 do Jornal “Comércio do …..”, foi publicada nas páginas 2, 3 e 5, uma entrevista de L…., constando, para além do mais, o título “CM do …. compactuou para a perda do Estádio do ….”.
O MUNICÍPIO DO… instaurou um processo civil contra o Réu … por entender que o Réu tinha proferido, nessa entrevista, diversas afirmações que sabia falsas.
No referido processo o Réu … foi condenado a suportar a presente publicação por se ter provado que ao dar a entrevista sabia da falsidade das acusações de cumplicidade, conivência e ilegalidade que fez aos membros da Câmara Municipal, quanto à atribuição de artigos matriciais para autonomização dos edifícios integrantes do perímetro do Estádio do …. e quanto à viabilização da penhora e venda dos bens em execução fiscal.
2) Absolver o Réu do mais pedido.  
Custas pelo Recorrente e pelo Recorrido em partes iguais – artigo 527.º, n.º 2, do CPC.
*
Lisboa, 20 de Fevereiro de 2020
Ana de Azeredo Coelho
Eduardo Petersen Silva
Cristina Neves - Vencida nos termos da declaração que segue:

DECLARAÇÃO DE VOTO
Manteria a decisão recorrida por entender que estando em causa uma questão de inegável interesse público, envolvendo uma entidade pública, prevalece sempre como direito maior para os efeitos do artº 10 da CEDH, a liberdade de expressão, sendo meramente residual a tutela da honra do visado. No caso em apreço, do teor desta entrevista, que envolve a imputação de factos e juízos de valor sobre os mesmos, não decorre, a meu ver, ultrapassados os limites que têm sido definidos pela jurisprudência do TEDH e citados quer na decisão recorrida, quer neste acórdão.
_______________________________________________________
[1] Cf. José Tavares in Noções Fundamentais, vol. II, p. 444.
[2] Cf. Professor Castro Mendes in Teoria Geral do Direito Civil, vol. II, AAFDL, 1979, p. 247.
[3] Sobre o tema se pronuncia desenvolvidamente o Professor Carvalho Fernandes in Teoria Geral do Direito Civil, vol. II, Universidade Católica Portuguesa, 5.ª edição, p. 447 e ss.
[4] Assim, Professor Carvalho Fernandes op. cit. p. 450.
[5] Sobre os critérios interpretativos na pré-codificação e no Código de Seabra, veja-se Professor Menezes Cordeiro in Tratado de Direito Civil, vol. II, Almedina, 2017, 4.ª edição, p. 707 e ss.
[6] In Código Civil Anotado, vol. I, Coimbra Editora, 1987, 4.ª edição, p. 223.
[7] In JOUE de 7 de Junho de 2016.
[8] In Responsabilidade civil por ofensa ao crédito ou ao bom nome, Almedina, Teses, 2011, p. 114.
[9] P. 115-116
[10] Idem.
[11] P. 118.
[12] P. 137-139.
[13] In, O direito geral de personalidade, Coimbra Editora, 1995, p. 301.
[14] P. 304.
[15] Jorge Miranda e Rui Medeiros in Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, Coimbra Editora, 2005, p. 113-114.
[16] Filipe de Albuquerque Matos, op. cit. p. 367.
[17] Jónatas Machado, op. cit. p. 129.
[18] Iolanda Rodrigues de Brito in Liberdade de Expressão e Honra das Figuras Públicas, Coimbra Editora, 2010, p. 25-26.
[19] Op. cit. p. 27-28.
[20] Capelo de Sousa, in O direito geral de personalidade, Coimbra Editora, 1995, p. 272-273.
[21] Op. cit. p. 13 e 15.
[22] Op. cit. p. 24.
[23] Iolanda Rodrigues de Brito, op. cit. p. 34.
[24] Jónatas Machado, op. cit. p. 132.
[25] Idem, p. 133.
[26] In A liberdade de expressão: entre o naturalismo e a religião, Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra, 2008, vol. LXXXIV, p. 90.
[27] José Carlos Vieira de Andrade, in Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Almedina, 2009, p. 265.
[28] Jorge Reis Novais in Direitos fundamentais: trunfos contra a maioria, Coimbra Editora, 2006, p. 49-50.
[29] In Princípios estruturantes de Estado de Direito, Almedina, 2019, p. 14-15 e 16.
[30] Quanto aos níveis da interpretação, veja-se Gomes Canotilho, in Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, 2002, 6.ª edição, p. 1268, V – Visão metódica do procedimento jurídico-constitucional de restrição de direitos.
[31] Seguimos Vieira de Andrade, op. cit. p. 268.
[32] Jorge Reis Novais, in Direitos Fundamentais: trunfos contra a maioria, Coimbra Editora, 2006, p. 50.
[33] Entre outros, Iolanda de Brito, op. cit. p. 54.
[34] No sentido dado por Jorge Reis Novais nas obras citadas e na transcrição supra.
[35] Jorge Reis Novais, in Direitos Fundamentais: trunfos contra a maioria, Coimbra Editora, 2006, p. 50.
[36] In Sistema Português …, P. 123.
[37] Jónatas Machado in A liberdade de expressão: entre o naturalismo e a religião, Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra, 2008, vol. LXXXIV, p. 102.
[38] Op. et loc. cit.
[39] Jónatas Machado, op. cit. p. 171.
[40] Jorge Reis Novais, Os direitos fundamentais …, p. 63.
[41] Cf. A colisão entre a liberdade de informação e o direito à honra e ao bom nome, Cadernos de Direito Privado, n.º 62, p. 41 e ss.
[42] In www.dgsi.pt.
[43] In A influência da CEDH no diálogo interjurisdicional | A perspectiva nacional ou o outro lado do espelho, Julgar, n.º 7, 2009, p. 37-38.
[44] Consultado in https://rm.coe.int/16807476ad: 26. For all national judges, the case law of the European Court of Human Rights and, where appropriate the Court of Justice of the European Communities serves as a reference in the process of developing a body of European law.
27. The dialogue between national and European judicial institutions is necessary and already occurs in practice; the evolution of it must be supported through appropriate actions.
[45] Veja-se por todos Pais Pires de Lima v. Portugal e Axel Springer AG v. Germany. Deste: The Court reiterates that, under Article 10 of the Convention, the Contracting States enjoy a certain margin of appreciation in assessing whether and to what extent an interference with the freedom of expression guaranteed under that provision is necessary.
[46] In Sistema Português de fiscalização da constitucionalidade, AAFDL, 2017, P. 115.
[47] A jurisprudência do TEDH foi consultada em https://hudoc.echr.coe.int.
[48] Casos contra Portugal no TEDH relativos ao artigo 10.º da CEDH: PAIS PIRES DE LIMA v. PORTUGAL; TAVARES DE ALMEIDA FERNANDES AND ALMEIDA FERNANDES v. PORTUGAL; DO CARMO DE PORTUGAL E CASTRO CÂMARA v. PORTUGAL; MEDIPRESS-SOCIEDADE JORNALÍSTICA, LDA v. PORTUGAL CASE OF SOARES v. PORTUGAL; PINTO COELHO v. PORTUGAL; SOUSA GOUCHA c. PORTUGAL; ALMEIDA LEITÃO BENTO FERNANDES v. PORTUGAL; PINTO PINHEIRO MARQUES c. PORTUGAL; AMORIM GIESTAS AND JESUS COSTA BORDALO v. PORTUGAL; WELSH AND SILVA CANHA v. PORTUGAL; SAMPAIO E PAIVA DE MELO v. PORTUGAL; BARGAO AND DOMINGOS CORREIA v. PORTUGAL; BARATA MONTEIRO DA COSTA NOGUEIRA ET PATRICIO PEREIRA c. PORTUGAL; PUBLICO - COMUNICACAO SOCIAL, S.A. AND OTHERS v. PORTUGAL; ALVES DA SILVA v. PORTUGAL; WOMEN ON WAVES ET AUTRES c. PORTUGAL; CAMPOS DAMASO v. PORTUGAL; COLACO MESTRE ET SCI - SOCIEDADE INDEPENDENTE DE COMUNICACAO, S.A. c. PORTUGAL; ROSEIRO BENTO v. PORTUGAL; URBINO RODRIGUES v. PORTUGAL; LOPES GOMES DA SILVA c. PORTUGAL.
[49] Enunciação que tem como referência o acórdão citado, 1454/09.5TVLSB.L1.S1.
[50] Ver também Bédat v. Switzerland e Pentikäinen v. Finland.
[51] However, Article 10 § 2 of the Convention states that freedom of expression carries with it “duties and responsibilities”, which also apply to the media even with respect to matters of serious public concern. These duties and responsibilities are liable to assume significance when there is a question of attacking the reputation of a named individual and infringing the “rights of others”. Thus, special grounds are required before the media can be dispensed from their ordinary obligation to verify factual statements that are defamatory of private individuals.
(…)
(iv) Criteria relevant for the balancing exercise
(α) Contribution to a debate of general interest
(β) How well known is the person concerned and what is the subject of the report?
(γ) Prior conduct of the person concerned
(δ) Method of obtaining the information and its veracity
(ε) Content, form and consequences of the publication
(ζ) Severity of the sanction imposed
[52]Il reste donc à déterminer si cette ingérence était «nécessaire dans une société démocratique».
Elle doit notamment déterminer si l’ingérence en question était « proportionnée aux buts légitimes poursuivis » et si les motifs invoqués par les autorités nationales pour la justifier apparaissent comme « pertinents et suffisants ». Ce faisant, elle doit être convaincue que les autorités nationales ont appliqué des normes respectant les principes énoncés à l’article 10 de la Convention et qu’elles se sont en outre fondées sur une évaluation acceptable des faits pertinents il convient de faire une distinction entre les déclarations de faits et les jugements de valeur. Si la matérialité des premières peut se prouver, les secondes ne se prêtent pas à une démonstration de leur exactitude. Toutefois, même en présence de jugements de valeur, la proportionnalité de l’ingérence dépend de l’existence d’une base factuelle pour la déclaration incriminée puisque même un jugement de valeur totalement dépourvu de base factuelle peut se révéler excessif au égard aux observations susmentionnées, la Cour estime que les dommages-intérêts accordés en l’espèce étaient disproportionnés au but légitime poursuivi. L’ingérence dans la liberté d’expression du requérant n’était donc pas « nécessaire dans une société démocratique».
[53] As regards the level of protection, there is little scope under Article 10 § 2 of the Convention for restrictions on political speech or on debate on matters of public interest.
However, where a statement amounts to a value judgment, the proportionality of an interference may depend on whether there exists a sufficient “factual basis” for the impugned statement: if there does not, that value judgment may prove excessive.
The Court further reiterates that the safeguard afforded by Article 10 to journalists in relation to reporting on issues of general interest is subject to the proviso that they are acting in good faith in order to provide accurate and reliable information in accordance with the ethics of journalism.
[54] Il convient de faire une distinction entre les déclarations de faits et les jugements de valeur. Si la matérialité des premières peut se prouver, les secondes ne se prêtent pas à une démonstration de leur exactitude. Toutefois, même en présence de jugements de valeur, la proportionnalité de l’ingérence dépend de l’existence d’une base factuelle pour la déclaration incriminée puisque même un jugement de valeur totalement dépourvu de base factuelle peut se révéler excessif.
[55] (i) Freedom of expression constitutes one of the essential foundations of a democratic society and one of the basic conditions for its progress and for each individual’s self-fulfilment. Subject to paragraph 2 of Article 10, it is applicable not only to ‘information’ or ‘ideas’ that are favourably received or regarded as inoffensive or as a matter of indifference, but also to those that offend, shock or disturb. Such are the demands of pluralism, tolerance and broadmindedness without which there is no ‘democratic society’. As set forth in Article 10, this freedom is subject to exceptions, which ... must, however, be construed strictly, and the need for any restrictions must be established convincingly ...
(ii) The adjective ‘necessary’ within the meaning of Article 10 § 2, implies the existence of a ‘pressing social need’. The Contracting States have a certain margin of appreciation in assessing whether such a need exists, but it goes hand in hand with European supervision, embracing both the legislation and the decisions applying it, even those given by an independent court. The Court is therefore empowered to give the final ruling on whether a ‘restriction’ is reconcilable with freedom of expression as protected by Article 10.
(iii) The Court’s task, in exercising its supervisory jurisdiction, is not to take the place of the competent national authorities but rather to review under Article 10 the decisions they delivered pursuant to their power of appreciation. This does not mean that the supervision is limited to ascertaining whether the respondent State exercised its discretion reasonably, carefully and in good faith; what the Court has to do is to look at the interference complained of in the light of the case as a whole and determine whether it was ‘proportionate to the legitimate aim pursued’ and whether the reasons adduced by the national authorities to justify it are ‘relevant and sufficient’... In doing so, the Court has to satisfy itself that the national authorities applied standards which were in conformity with the principles embodied in Article 10 and, moreover, that they relied on an acceptable assessment of the relevant facts ...
[56] Une ingérence est contraire à la Convention si elle ne respecte pas les exigences prévues au paragraphe 2 de l’article 10. Il y a donc lieu de déterminer si la présente ingérence était « prévue par la loi », si elle visait un ou plusieurs des buts légitimes énoncés dans ce paragraphe et si elle était « nécessaire dans une société démocratique » pour atteindre ce ou ces buts.
i. Prévue par la loi
31. En l’espèce, la Cour constate que l’ingérence était prévue par les articles 70 et 484 du code civil.
ii. But légitime
32. La Cour note que l’ingérence visait un but légitime, à savoir la protection de la réputation ou des droits d’autrui au sens de l’article 10 § 2 de la Convention, ce qui peut englober, selon la jurisprudence de la Cour, le droit des personnes concernées au respect de leur vie privée protégé par l’article 8 de la Convention (Chauvy et autres c. France, no 64915/01, § 70, CEDH 2004VI, Pfeifer c. Autriche, no 12556/03, § 35, 15 novembre 2007, et Almeida Leitão Bento Fernandes c. Portugal, no 25790/11, § 45, 12 mars 2015).
33. La question qui se pose est donc celle de savoir si l’ingérence était « nécessaire, dans une société démocratique ». Il s’agit plus particulièrement d’examiner si les autorités ont ménagé un juste équilibre entre le droit de la requérante à la liberté d’expression et le droit de l’homme politique visé par l’article de presse au respect de sa vie privée.
iii. Nécessaire dans une société démocratique
[57] The Court also reiterates that when it is called upon to rule on a conflict between two rights that are equally protected by the Convention, it must weight up the interests at stake. The State is called upon to guarantee both rights and if the protection of one leads to an interference with the other, to choose adequate means to make this interference proportionate to the aim pursued.
[58] La Cour rappelle enfin qu’il lui revient de déterminer si l’ingérence litigieuse correspondait à un « besoin social impérieux », si elle était proportionnée aux buts légitimes poursuivis et si les motifs invoqués par les autorités nationales pour la justifier apparaissent « pertinents et suffisants ».
[59] The Court reiterates that the right to protection of reputation is a right protected by Article 8 of the Convention as part of the right to respect for private life (see Axel Springer AG, § 83, and A. v. Norway, § 64, both cited above). The Court has also already held that a person’s reputation, even if he or she was criticised in the context of a public debate, forms part of his or her personal identity and psychological integrity (see Pfeifer v. Austria, no. 12556/03, § 35, 15 November 2007).
[60] La Cour note que l’ingérence visait un but légitime, à savoir la protection de la réputation ou des droits d’autrui, au sens de l’article 10 § 2 de la Convention, ce qui peut englober, selon la jurisprudence de la Cour (Chauvy et autres c. France, no 64915/01, § 52, CEDH 2004VI ; et Pfeifer c. Autriche, no 12556/03, § 35, 15 novembre 2007), le droit des personnes concernées au respect de leur vie privée, au sens de l’article 8 de la Convention.
46. La question qui se pose est donc celle de savoir si l’ingérence était « nécessaire, dans une société démocratique ». Il s’agit plus particulièrement d’examiner si les autorités ont ménagé un juste équilibre entre le droit de la requérante à la liberté d’expression et le droit des membres de sa bellefamille au respect de leur vie privée.
[61] En outre, la Cour souligne que les limites de la critique admissible sont plus larges à l’égard d’une institution publique que d’un simple particulier ou même d’un homme politique, notamment lorsque celle-ci est dotée, comme dans le cas d’espèce, d’un pouvoir exécutif. Dans un système démocratique, en effet, ses actions ou omissions doivent se trouver placées sous le contrôle attentif non seulement des pouvoirs législatif et judiciaire, mais aussi de la presse et de l’opinion publique.
[62] La Cour rappelle que, selon sa jurisprudence bien établie, la liberté d’expression constitue l’un des fondements essentiels de toute société démocratique, l’une des conditions primordiales de son progrès et de l’épanouissement de chacun. Sous réserve du paragraphe 2 de l’article 10, elle vaut non seulement pour les « informations » ou « idées » accueillies avec faveur ou considérées comme inoffensives ou indifférentes, mais aussi pour celles qui heurtent, choquent ou inquiètent. Ainsi le veulent le pluralisme, la tolérance et l’esprit d’ouverture, sans lesquels il n’est pas de « société démocratique ». Telle qu’elle se trouve consacrée par l’article 10 de la Convention, cette liberté est soumise à des exceptions, qu’il convient toutefois d’interpréter strictement, la nécessité de toute restriction devant être établie de manière convaincante. La condition de « nécessité dans une société démocratique » commande à la Cour de déterminer si l’ingérence litigieuse correspondait à un « besoin social impérieux ». Les États contractants jouissent d’une certaine marge d’appréciation pour juger de l’existence d’un tel besoin, mais cette marge va de pair avec un contrôle européen portant à la fois sur la loi et sur les décisions qui l’appliquent, même quand elles émanent d’une juridiction indépendante.
[63] La Cour rappelle en outre que l’article 10 § 2 ne laisse guère de place pour des restrictions à la liberté d’expression dans le domaine du discours et du débat politique – dans lequel la liberté d’expression revêt la plus haute importance – ou des questions d’intérêt général. Les limites de la critique admissible sont plus larges à l’égard d’un homme politique, visé en cette qualité, que d’un simple particulier : à la différence du second, le premier s’expose inévitablement et consciemment à un contrôle attentif de ses faits et gestes tant par les journalistes que par la masse des citoyens ; il doit, par conséquent, montrer une plus grande tolérance.
[64] Dans l’exercice de son pouvoir de contrôle, la Cour doit examiner l’ingérence critiquée à la lumière de l’ensemble de l’affaire, y compris la teneur des remarques reprochées au requérant et le contexte dans lequel elles ont été formulées. En particulier, il incombe à la Cour de déterminer si l’ingérence en question était « proportionnée aux buts légitimes poursuivis » et si les motifs invoqués par les autorités nationales pour la justifier sont « pertinents et suffisants ». Ce faisant, la Cour doit se convaincre que les autorités nationales ont appliqué des règles conformes aux principes consacrés à l’article 10 et ce, de surcroît, en se fondant sur une appréciation acceptable des faits pertinents.
[65] En l'espèce, la Cour relève que les allégations des requérants étaient d'une extrême gravité. Or plus l'allégation est sérieuse, plus la base factuelle doit être solide.
[66] Se penchant sur les circonstances de l'espèce, la Cour souligne d'abord que l'article litigieux relevait manifestement de l'intérêt général. En effet, l'éventuel non-respect des obligations fiscales de certains contribuables – surtout s'ils sont, comme en l'espèce, des associations reconnues d'utilité publique – est un sujet d'intérêt général pour la collectivité, sur lequel la presse doit pouvoir communiquer des informations.
[67] Reste à déterminer si une telle ingérence était « prévue par la loi », inspirée par un ou plusieurs buts légitimes au regard du paragraphe 2 des dispositions en question et « nécessaire dans une société démocratique ».
[68] En ce qui concerne enfin la nature et la lourdeur de la peine infligée, éléments à prendre en considération lorsqu’il s’agit de mesurer la proportionnalité de l’ingérence, la Cour relève que le montant de l’amende, pour modéré qu’il ait été en l’espèce, n’enlève en rien l’effet dissuasif de la condamnation quant à l’exercice de la liberté d’expression, étant donné la gravité de la sanction encourue.
[69] O Tribunal lembra que, de acordo com a sua jurisprudência constante, a liberdade de expressão constitui um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrática e das condições primordiais do seu progresso e do desenvolvimento de cada um. Sob reserva do n.º 2 do artigo 10.º, é válida não só para as «informações» ou «ideias» acolhidas ou consideradas inofensivas ou indiferentes, mas também para aquelas que ferem, chocam ou ofendem. Assim o querem o pluralismo, a tolerância e o espírito de abertura sem os quais não há «sociedade democrática».
Tal como estabelece o artigo 10.º da Convenção, o exercício desta liberdade está sujeito a excepções que devem interpretar-se estritamente, devendo a sua necessidade ser estabelecida de forma convincente. A condição do carácter «necessário numa sociedade democrática» impõe ao Tribunal averiguar se a ingerência litigiosa correspondia a uma «necessidade social imperiosa».
[70] Dans l’exercice de son pouvoir de contrôle, la Cour doit examiner l’ingérence litigieuse à la lumière de l’ensemble de l’affaire, y compris la teneur des propos reprochés au requérant et le contexte dans lequel celui-ci les a tenus. En particulier, il lui incombe de déterminer si la restriction apportée à la liberté d’expression des requérants était « proportionnée au but légitime poursuivi » et si les motifs invoqués par les juridictions portugaises pour la justifier étaient « pertinents et suffisants ».
[71] La vérification du caractère « nécessaire dans une société démocratique » de l’ingérence litigieuse impose à la Cour de rechercher si celle-ci correspondait à un « besoin social impérieux », si elle était proportionnée au but légitime poursuivi et si les motifs fournis par les autorités nationales pour la justifier sont pertinents et suffisants (arrêt Sunday Times c. Royaume-Uni (no 1) du 26 avril 1979, série A no 30, p. 38, § 62). Pour déterminer s’il existe pareil « besoin » et quelles mesures doivent être adoptées pour y répondre, les autorités nationales jouissent d’une certaine marge d’appréciation. Celle-ci n’est toutefois pas illimitée mais va de pair avec un contrôle européen exercé par la Cour, qui doit dire en dernier ressort si une restriction se concilie avec la liberté d’expression telle que la protège l’article 10 (voir, parmi beaucoup d’autres, l’arrêt Nilsen et Johnsen précité, § 43). La Cour n’a point pour tâche, lorsqu’elle exerce cette fonction, de se substituer aux juridictions nationales : il s’agit pour elle de contrôler, sous l’angle de l’article 10 et à la lumière de l’ensemble de l’affaire, les décisions rendues par celles-ci en vertu de leur pouvoir d’appréciation (ibidem).
[72] Lastly, it should be reiterated that journalistic freedom also covers possible recourse to a degree of exaggeration, or even provocation.
[73] Jónastas Machado, op. cit. p. 183.
[74] In Conflito entre a liberdade de imprensa e a vida privada, Ab vno ad omnes, Coimbra Editora, 1998, p. 1138-1139.
[75] Distinção que se afigura da maior relevância em tempos que já são os da contenção da liberdade de expressão decorrente da inadmissibilidade de crítica em determinadas matérias ou à proscrição do uso de linguagem politicamente correcta.
[76] Jónatas Machado, op. cit. p. 104.
[77] Jorge Reis Novais in Direitos Fundamentais…, p. 61: as decisões judiciais fundadas em ponderação de bens só são adequadas quando se puderem sustentar na formulação de uma norma constituída a partir da decisão do caso concreto (…).