Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4213/13.7TBFUN.L1-2
Relator: JORGE LEAL
Descritores: REGISTO AUTOMÓVEL
PRESUNÇÃO DE PROPRIEDADE
QUESTÃO PREJUDICIAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/04/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: Sumário (do relator).

I. A omissão da apreciação de questões prejudicadas pela solução dada a questões prejudiciais não constitui nulidade.

II. Tendo o tribunal a quo, na apreciação dos pressupostos de providência cautelar comum, julgado não verificado o requisito da existência do direito a acautelar, não era indispensável averiguar acerca do preenchimento dos restantes requisitos.

III. A presunção de titularidade da propriedade de automóvel emergente da inscrição registral da sua aquisição cede perante a presunção de titularidade emergente da posse desse automóvel por terceiro, iniciada antes do aludido registo.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO

Por requerimento autuado em 25.10.2013, Cais, Lda instaurou no Tribunal Judicial do Funchal procedimento cautelar comum contra João.

A requerente alegou que enquanto entidade patronal do requerido, que era Diretor de um hotel pertencente à requerente, havia entregue a este um automóvel ligeiro de passageiros, de que este fazia uso para fins pessoais e profissionais. Sucede que em dezembro de 2012 o requerido denunciou o contrato de trabalho que celebrara com  requerente, e pese embora a insistência da requerente, não restituiu a esta o aludido veículo, que esta adquirira no âmbito de um contrato de locação financeira e cuja propriedade se encontra registada a favor da requerente. O veículo não tem seguro de responsabilidade civil válido, carece de ir à inspeção, sendo certo que o respetivo documento único automóvel está na posse da requerente, o seu valor comercial decresce, sem que a requerente dele frua, pode causar acidentes de cujas consequências a requerente poderá ser responsabilizada, pode ser danificado ou ocultado.

A requerente terminou pedindo que, sem audição prévia do requerido, o requerido fosse condenado a restituir à requerente a posse do veículo automóvel supra referido, com todas as suas chaves e elementos, no bom estado de conservação em que se encontrava, e igualmente:

a) Que o requerido fosse condenado numa sanção pecuniária, no valor que o tribunal melhor considerasse, no seu critério, indicando-se a quantia de 150,00 euros, por cada dia de atraso na restituição do veículo automóvel, contados desde a data em que fosse citado com a decisão a proferir, até entrega efetiva do automóvel.

b) Que, nos termos do n.º 4 do artigo 369º do CPC, na decisão que viesse, eventualmente, a decretar a providência, fosse a requerente dispensada do ónus da propositura da ação principal, por se mostrarem reunidos os pressupostos para o efeito.

O tribunal a quo decidiu ordenar a citação do requerido, tendo este apresentado oposição, na qual arguiu a exceção de litispendência do procedimento cautelar com ação declarativa que havia sido proposta pelo ora requerido contra a ora requerente, tendo por objetivo obter o reconhecimento do direito de propriedade do ora requerido sobre o dito automóvel. Por impugnação, o requerido alegou que o dito automóvel fora por si adquirido a 11.02.2008, tendo para esse efeito entregue para retoma um outro veículo a si pertencente, acrescido de € 7 000,00 em dinheiro, e os restantes € 21 000,00, necessários para perfazer o preço do automóvel, no valor de € 39 000,00, sido subscritos pelo requerido por meio de um contrato de leasing celebrado com o Banco A. Atendendo a que o sócio e gerente da requerente à data tinha emprestado ao requerido parte do capital por este utilizado para a entrada inicial do valor do veículo, foi acordado entre ambos que o veículo ficaria registado em nome da requerente, como forma de garantia, passando a titularidade da propriedade para o requerido quando ocorresse o pagamento integral. Entretanto o requerido usaria o veículo. Todas as prestações do contrato de leasing foram pagas pelo requerido, incluindo o valor residual do automóvel. Porém, após os primitivos sócios da requerente terem cedido a outrem as suas quotas na sociedade requerente, a requerente tem-se recusado a formalizar a transmissão da propriedade do automóvel para o requerido.

O requerido terminou pedindo que fosse julgada procedente a exceção de litispendência e por via disso fosse absolvido da instância; subsidiariamente, pediu que o requerido fosse absolvido do pedido; mais pediu que a requerente fosse condenada em multa e indemnização como litigante de má fé.

Procedeu-se a audiência final, com inquirição de testemunhas, e em 03.02.2014 foi proferida sentença em que, após se ter considerado improcedente a exceção de litispendência arguida pelo requerido e bem assim a invocada litigância de má-fé por parte da requerente, julgou-se o procedimento cautelar improcedente.

A requerente apelou desta decisão, tendo apresentado motivação em que formulou as seguintes conclusões:

I- A matéria de facto contida no artigo 8º dos factos provados, pela sua sistematização e sequência, diz respeito ao contrato de locação financeira celebrado entre a requerente e a locadora BANCO A e, entre outras disposições, à sua forma de pagamento.

II- Do contrato em causa, reproduzido no documento número 13 da requerente, que inclui o anexo denominado “autorização de débito em conta”, consta que a requerente, então com a firma CAMACHO, era titular de uma conta da CGD com o NIB 00. Em lugar algum surge referido no contrato que o pagamento seria feito por “débito automático na conta n.º 00 da Caixa Geral de Depósitos” e bem menos que a mesma era “titulada pelo requerido”.

III- A matéria de facto julgada provada do artigo 8º, na parte que identifica o número da conta foi incorrectamente julgada, devendo a mesma ser substituída pela NIB da conta que figura no contrato de leasing, conforme documento 13 da requerente.

IV- Por outro lado, não tendo o requerido juntado prova, como lhe competia, que a conta com o NIB 00 lhe pertencia e em exclusivo, foi também incorrectamente julgada a parte final do mencionado artigo 8º, onde consta que a identificada conta é “titulada pelo requerido”.

V- O douto tribunal a quo apesar ter revelado “estranheza pelo contornos do negócio” invocado pelo requerido, valorou e credibilizou o depoimento da testemunha LUÍS, mesmo que este tenha afirmado ter juntamente com o requerido participado num alegado engano intencional nas declarações prestadas no contrato de leasing e não tivesse conseguido explicar que vantagens, decorrente de “um favor”, pudessem resultar desse acordo para o requerido.

VI- De igual modo o douto tribunal a quo não sindicou as motivações subjacentes ao negócio, nem questionou a objectividade e interesse da referida testemunha em depor, não obstante ter sido junto aos autos documentos que comprovam, nomeadamente, a qualidade da testemunha como ex-sócio da sociedade requerente e do requerido como ex-trabalhador desta, que coincidem temporalmente na cessão de quotas e cessão de funções, bem como no interesse e ganhos pessoais resultantes do negócio, em prejuízo da sociedade requerente.

VII- Além da falta de credibilidade do depoimento e incoerência de interesses, a invocação da fraude e falsidade não aproveita os participantes do “concilium fraudis”, razão que deveria ter levado o douto tribunal a quo a dar como não provada a matéria do artigo 9º.

VIII- A resposta dada aos artigos 10º e 11º dos factos provados trata de igual forma e com notória confusão o que é “pagamento do preço” com o “pagamento de rendas”.

IX- Os documentos apresentados pelo requerido, putativos extractos bancários, nos quais são alegadamente efectuadas transferências de diversas quantias, não comprovam quaisquer pagamentos do mencionado contrato de leasing ou mesmo qualquer compra do veículo.

X- Sem conceder, a entrega de um valor em nome de um terceiro não torna o eventual cumpridor da obrigação parte no contrato de locação ou de venda, já que a prestação pode ser feita tanto pelo devedor como por terceiro, interessado ou não no cumprimento da obrigação, sem que isso retire àquele a qualidade de contratante (cfr. artigo 767º n.º 1 do Código Civil).

XI- Para prova dos pagamentos que efectuou, no âmbito do mencionado contrato de leasing, a requerente juntou aos autos os documentos 20 e 21, extractos contabilísticos das conta de Leasing e de sócio, bem como as facturas/recibos emitidos em seu nome pela locadora BANCO A.

XII- O douto tribunal a quo não atendeu aos únicos documentos que comprovam o pagamento e quitação do recebimento das rendas do contrato de Leasing, emitidos pela entidade competente, organizados segundo as regras legalmente estabelecidas para as sociedade com contabilidade organizada, como é o caso da requerida, pelo que errou no julgamento da matéria contida nos artigos 10º e 11º dos facto assentes.

XIII- O douto tribunal a quo que deu ainda como não provado que o veículo automóvel em causa tenha sido temporariamente cedido pela requerente ao requerido, pelas funções de director hoteleiro, para o exercício destas e ainda para uso pessoal (cfr. artigo 1 da Matéria de Facto Não Provada), não atendeu ao conteúdo da confissão espontânea do requerido contida no documento n.º 23, junto aos autos (fls. 279).

XIV- A confissão do requerido dirigida ao mandatário da requerente, contida no correio electrónico de 20 de Dezembro de 2013, a qual foi aceite por esta em declaração proferida na audiência de 06-01-2014 para jamais ser retirada, tem força probatória plena nos termos das disposições conjugadas dos artigos 352º e 358º n.º 2, do Código Civil.

XV- Em consequência da confissão do requerido a matéria de facto contida nos artigos 9º a 10º e 12º do requerimento inicial, deveria ter sido considerada como provada.

XVI- Na providência cautelar comum o requerente, com a petição, oferece prova sumária do direito ameaçado e justifica o receio da lesão (cfr. artigo 365º n.º 1 do NCPC).

XVII- A requerente no seu requerimento inicial alegou os factos conducentes à identificação e caracterização do direito ameaçado, bem como do receio de lesão concretamente alicerçados no facto do bem em causa se tratar de um veículo automóvel.

XVIII- Deste modo, são requisitos da providência cautelar comum a probabilidade séria da existência do direito invocado; o fundado receio de que outrem, antes de a acção ser proposta ou na pendência dela, cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito (periculum in mora); a adequação da providência à situação de lesão iminente; não ser o prejuízo resultante da providência superior ao dano que com ela se pretende evitar e não existência de providência específica que acautele aquele direito.

XIX- A douta sentença recorrida, nas respostas dadas à matéria de facto, provada e não provada, não se pronunciou sobre toda a matéria factual relevante para a decisão da causa, segundo as diversas soluções do direito, tendo-se confinado à apreciação da matéria atinente ao primeiro dos requisitos, ou seja, da existência do direito invocado, omitindo a resposta a todos os demais.

XX- Porque na douta sentença o Mmo. Juiz a quo não se pronunciou sobre todas as questões que deveria apreciar, analisando criticamente as provas e declarando os factos que julga provados e não provados, com relevo para a decisão da causa, está ferida de nulidade nos termos das disposições conjugadas dos artigos 607º n.º 4 e 615º n.º 1, alínea d), ambos do NCPC).

XXI- Para que a providência cautelar seja decretada é necessário que ocorram duas circunstâncias condicionantes: que haja probabilidade séria da existência do direito e o perigo fundado da sua lesão (cfr. artigo 369º n.º 1 do NCPC).

XXII- Como prova indiciária do direito de propriedade a requerente juntou diversos documentos, entre eles a certidão narrativa do registo automóvel em que o veículo versado nos autos se mostra registado definitivamente a seu favor.

XXIII- O direito de propriedade sobre veículos está sujeito a registo automóvel e beneficia da presunção da titularidade, sendo oponível a terceiros, conforme se mostra previsto no artigo 5º, n.º 1, alínea a), por força do disposto no artigo 29º do Decreto-lei n.º 54/75 e nos artigos 5º e 7º do Código do Registo Predial (Decreto-lei n.º 224/84 de 6 de Julho).

XXIV- Contudo as presunções podem ser ilididas mediante prova em contrário, excepto nos casos em que a lei o proibir (cfr. artigo 350º n.º 2 do Código Civil).

XXV- Para ilisão das presunções legais não basta a simples contraprova exigindo-se para o efeito que seja feita prova do contrário, ou seja, prova irrefutável da existência do facto oposto ao do registo (cfr. artigo 347º do Código Civil).

XXVI- A douta sentença recorrida não afirma que o veículo em causa na acção é propriedade do requerido, formulando um juízo mera dúvida ou incerteza que não é meio idóneo a afastar a presunção decorrente do registo automóvel.

XXVII- Acresce que a natureza do procedimento cautelar e o condicionalismo da prova no processo se bastar de forma sumária ou indiciária não permite que se obtenha uma prova segura e irrefutável do facto em crise.

XXVIII- O douto tribunal a quo ao ter declarado afastada a presunção de propriedade decorrente do registo automóvel a favor da requerente, violou os comandos da normas constantes dos artigos 369º n.º 1, 365º n.º 1, 607º n.º 5, do NCPC, artigos 350º n.º 1 e 2, 344º, 358º n.º 2, 347º, do Código Civil, artigos 1º e 5º n.º 1 alínea a), 29º do Decreto-lei n.º 54/75 de 12 de Fevereiro e artigos 5º e 7º do Decreto-lei n.º 22$/84, de 6 de Julho (Código do Registo Predial).

A apelante terminou pedindo que fosse dado provimento ao presente recurso, alterando-se as respostas dadas à pretendida matéria de facto, declarando-se nula a sentença por defeito de pronúncia sobre as questões que devia apreciar, e de todo o modo declarada não afastada a presunção decorrente do registo automóvel a favor da requerente, com as inerentes consequências legais.

A apelada contra-alegou, tendo rematado com as seguintes conclusões:

A) Respeitosamente, o recurso interposto pela Recorrente carece de fundamento, atendendo que a decisão proferida pelo Tribunal a quo limitou-se a aplicar o Direito em conformidade com a matéria de facto indiciariamente provada nos presentes autos;

B) Contrariamente ao alegado pela Recorrente, os factos 8 a 11 constantes da matéria indiciariamente dada como provada pelo douto Tribunal estão devidamente sustentados em base probatória plena, que incidem mais aprofundadamente para estes factos nos documentos 3, 4, 5 (páginas 5, 6 e 7), 6, 14, 15 e 16;

C) A impugnação do testemunho de Luís viola o disposto no artigo 640º nº 1, alínea b) e nº 2, alínea a) do Código de Processo Civil, pelo que deve ser rejeitada a matéria de facto sobre a qual a Recorrente pretendia versar;

D) Quanto ao facto não provado pelo douto Tribunal que a Recorrente entende que foi incorrectamente julgado, acerca da inexistência de prova que o veículo foi cedido pela recorrente ao Recorrido no âmbito das suas funções, não lhe assiste novamente razão;

E) Contrariamente à prova do Recorrido, a Recorrente não logrou comprovar por qualquer meio como procedeu ao pagamento do veículo automóvel (terá sido por cheques; transferência bancária; em dinheiro; vale postal?), nem demonstrou qualquer cláusula contratual entre ambas as partes sobre a remuneração em espécie que incida sobre o veículo VW Tiguan;

F) Inexiste qualquer confissão extrajudicial do Recorrido no documento número 23 junto pela Recorrente. Desconsidera a Recorrente o requerimento com a referência 15612486 junto aos autos pela plataforma Citius sobre esse documento que interpretado no seu devido contexto corresponde a ironia sobre as pretensões da Recorrente;

G) Por mera hipótese académica, e perante o não entendimento da ironia desse documento nº 23, ressalva o Recorrido que o mesmo nunca poderia ser sindicável como confissão nos termos do artigo 354º, alínea c) do Código Civil, nem muito menos ser “recortado” na parte em que apenas aproveita à Recorrente, tendo necessariamente que ser aceite, se assim entendido em sede de recurso, no seu todo, o que implica a aceitação pela Recorrente como verdadeiros os outros factos, nomeadamente “(…) mas responsabilizou-se pelo seu pagamento integral, incluindo toda e qualquer despesa inerente à mesma, inclusivamente tendo eu prescindido na altura, de um Opel Frontera, dando-o como entrada na compra do VW Tiguan. (…), ao abrigo do disposto no artigo 360º do Código Civil;

H) Para a procedência de um procedimento cautelar, terá necessariamente de ser indiciariamente provado a probabilidade séria da existência do Direito, de fundado receio de lesão grave desseDireito e da lesão dificilmente reparável.

I) Não logrou a Recorrente indiciariamente provar a existência do seu Direito de propriedade, uma vez que a presunção legal do registo automóvel foi devidamente ilidida pelo Recorrido, conforme resulta de toda a prova documental e testemunhal dos autos, nos termos dos artigos 344º/1 e 350º/2 do Código Civil;

J) Não diligenciou, em consequência, a Recorrente à contra-prova subsequente para que pudesse beneficiar do primeiro requisito do procedimento cautelar (fumus boni juris), ficando prejudicada, como de resto bem entendeu o Tribunal a quo, a procedência dos presentes autos.

O apelado terminou pedindo que fosse negado provimento ao presente recurso, confirmando-se a decisão recorrida.

O tribunal a quo pronunciou-se pela inexistência da nulidade assacada à sentença recorrida pela apelante.

O recurso foi admitido, como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo.

Foram colhidos os vistos legais.

FUNDAMENTAÇÃO

As questões a apreciar neste recurso são as seguintes: nulidade da decisão recorrida; impugnação da matéria de facto; verificação dos pressupostos de concessão da providência requerida.

Primeira questão (nulidade da decisão recorrida)

O tribunal a quo deu como indiciariamente provada a seguinte

Matéria de facto

1. A requerente, anteriormente designada Camacha, tem como objecto social a construção de imóveis destinados a fins turísticos e exploração de empreendimentos hoteleiros,

2. Pertencendo-lhe o prédio urbano, destinado a hotelaria, denominado Hotel Apartamentos, sito no Caniço, descrito na Conservatória do Registo Predial de Santa Cruz sob o n.º.

3. No âmbito do seu objecto social, a requerente exerce a exploração de um empreendimento turístico agora denominado “Oliveira”.

4. O requerido exerceu as funções de director do referido hotel até Dezembro de 2012.

5. A propriedade do veículo automóvel Volkswagen Tiguan, matrícula (…), encontra-se registada a favor da requerente.

6. A requerente, quando tinha a designação Camacha, celebrou com o Banco (…) SA um contrato designado “Contrato de Leasing”, tendo como objecto o veículo automóvel supra referido.

7. Em tal contrato foi estabelecido um preço total de 39.000,00 euros, bem como o pagamento em 60 rendas mensais, a primeira no montante de 18.000,00 euros e as restantes no montante de 365,64 euros.

8. Foi ainda estabelecido, como modo de pagamento, o débito automático na conta n.º (…), da Caixa Geral de Depósitos, titulada pelo requerido.

9. O requerido acordou com o sócio gerente da Camacha (à data) que o referido contrato seria efectuado em nome desta, mas que o valor seria integralmente pago por si.

10. Para pagamento do preço, o requerido entregou o veículo automóvel Opel Frontera, matrícula (…).

11. O requerido procedeu ao pagamento de todas as rendas mensais supra referidas.

12. O requerido, quando deixou de exercer funções na requerente, não entregou o veículo automóvel.

O tribunal a quo enunciou também os seguintes

Factos Indiciariamente Não Provados

1. Que o veículo referido nos factos indiciariamente provados tenha sido temporariamente cedido pela requerente ao requerido, pelas funções de director hoteleiro, para o exercício destas e ainda para uso pessoal.

O Direito

A apelante entende que a sentença recorrida enferma da nulidade prevista na alínea d) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC, ou seja, nela o tribunal recorrido não se pronunciou sobre todas as questões que deveria ter apreciado.

Segundo a apelante, na sua petição alegou os factos e ofereceu prova sumária dos dois requisitos da providência cautelar comum, ou seja, do direito ameaçado e do receio da lesão grave e dificilmente reparável do seu direito. Porém, na resposta à matéria de facto o tribunal a quo confinou-se à verificação ou não do primeiro dos requisitos para o decretamento da providência cautelar, tendo omitido todos os demais. Tal situação limita a possibilidade de, em sede de recurso, virem a ser reapreciadas pelo tribunal ad quem todas as questões, tanto as versadas na matéria de facto como a aplicação do direito, que poderiam ser colocadas à sua consideração.

Vejamos.

Na sentença recorrida, constante a fls 350 a 359, o tribunal a quo enumerou os factos que considerou terem-se indiciariamente provado e aqueles que considerou indiciariamente não provados, realçando tratar-se daqueles que, em seu juízo, tinham relevo para a decisão. Seguidamente procedeu à indicação das razões que levaram à decisão de facto proferida e, depois, passou à apreciação do direito. Nesta parte da sentença, o tribunal a quo começou por indicar os requisitos de que dependia a procedência da providência cautelar e, passando a analisar a verificação do primeiro deles (probabilidade séria da existência do direito invocado), concluiu pela sua não demonstração. Daí derivou a desnecessidade de analisar a verificação dos restantes pressupostos, concluindo pela improcedência da providência cautelar.

Ora, na elaboração da sentença “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras” (n.º 2 do art.º 608.º do CPC). A omissão da apreciação de questões prejudicadas pela solução dada a questões prejudiciais não constitui, pois, nulidade. Neste caso, se tiver sido interposto recurso, “se o tribunal recorrido tiver deixado de conhecer certas questões, designadamente por as considerar prejudicadas pela solução dada ao litígio, a Relação, se entender que a apelação procede e nada obsta à apreciação daquelas, delas conhece no mesmo acórdão em que revogar a decisão recorrida, sempre que disponha dos elementos necessários” (n.º 2 do art.º 665.º do CPC).

Diga-se, de resto, que a apelante não concretizou sequer quais os factos por si alegados que, no seu entender, o tribunal a quo terá desconsiderado.

Improcede, pois, a supracitada arguição de nulidade.

Segunda questão (impugnação da matéria de facto)

Nos termos do n.º 1 do art.º 662.º do CPC “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”

Pretendendo o recorrente impugnar a decisão relativa à matéria de facto, deverá, nos termos do art.º 640.º do CPC, sob pena de rejeição, especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes (n.º 2 alínea a) do art.º 640.º do CPC).

A apelante insurge-se contra os factos dados como provados nos n.ºs 8 (parte final), 9, 10 e 11 da matéria de facto, e ainda entende que se deve dar como provada a matéria que o tribunal a quo considerou não provada (n.º 1).

Vejamos.

Quanto ao n.º 8 da matéria de facto, o tribunal considerou indiciariamente provado que “Foi ainda estabelecido, como modo de pagamento, o débito automático na conta n.º (…), da Caixa Geral de Depósitos, titulada pelo requerido”.

A apelante entende que não ficou provado que o débito seria na conta aqui referida, nem que a conta onde o débito ocorreria era titulada pelo requerido. Para tal, segundo a apelante, aponta o teor do documento n.º 13 junto pela requerente sob o n.º 13, fls 222, no qual consta um anexo que é uma denominada autorização de pagamento em que figura como “titular da conta: Camacho [anterior denominação da requerente] Banco: CGD NIB (…)”.

Ora, a verdade é que nesse mesmo documento que a apelante refere, e que é o contrato de locação financeira celebrado entre a requerente e o Banco (…), na alínea g) do ponto 2 das cláusulas particulares, consta o seguinte: “Modalidade de pagamento: Débito automático na conta bancária do Locatário N.º Conta (…) Banco CGD Balcão Funchal”. Essa conta tem o requerido como seu titular, conforme decorre dos extratos bancários e comunicações escritas da CGD juntas aos autos pelo requerido, acompanhando a oposição, como documento n.º 6 (fls 149 e seguintes). E desta última documentação consta igualmente que o NIB supra referido se reporta à dita conta do requerido.

Não vemos, assim, razões para alterar o aqui dado como provado.

Quanto aos pontos 9 e 11 da matéria de facto, foi dado como provado o seguinte:

9. O requerido acordou com o sócio gerente da Camacha  (à data) que o referido contrato seria efectuado em nome desta, mas que o valor seria integralmente pago por si.”

11. O requerido procedeu ao pagamento de todas as rendas mensais supra referidas.”

A existência do referido acordo foi, segundo a decisão recorrida, corroborada em audiência pela testemunha Luís, que era à data dos factos sócio-gerente da requerente. Ora, a apelante não impugnou esse depoimento, pelo menos da forma legalmente exigida, com a identificação das passagens da gravação do depoimento que no seu entender mereceriam a fiscalização desta Relação. Por outro lado, os aludidos pagamentos das rendas a partir da conta do requerido estão comprovados nos extratos e declarações bancárias emitidos pela CGD, supra referidos, onde expressamente consta a identificação da autorização de débito em conta a que se referem, que é a igualmente constante no contrato de locação financeira, autorização n.º (…). A documentação contabilística emitida pela requerente não menciona, que se saiba, as contas bancárias ou a titularidade dos meios financeiros usados para pagar as aludidas rendas, pelo que não contraria relevantemente os elementos probatórios supra referido.

Sob o n.º 10 da matéria de facto foi dado como provado que “Para pagamento do preço, o requerido entregou o veículo automóvel Opel Frontera, matrícula (…)”.

Tal facto assentou na declaração junta a fls 125 pela empresa que retomou essa viatura. O tribunal também relevou o depoimento da testemunha Marco, vendedor de automóveis. Este depoimento não foi impugnado pela apelante pela forma legal, com indicação das passagens da respetiva gravação que deveriam ser avaliadas pelo tribunal ad quem, pelo que não vê esta Relação fundamento para nesta parte alterar a decisão recorrida.

Finalmente, a apelante entende que não deveria ter sido dada como não provada a asserção de que “o veículo referido nos factos indiciariamente provados tenha sido temporariamente cedido pela requerente ao requerido, pelas funções de director hoteleiro, para o exercício destas e ainda para uso pessoal.”

Ora, como se viu, a prova desse facto foi contrariada, segundo o tribunal recorrido, pelo depoimento da testemunha Luís, sócio-gerente da requerente à data dos factos. De resto, a versão do requerido mostra-se corroborada pelo facto de ter sido ele a suportar na realidade as rendas devidas pelo contrato de locação financeira da viatura, assim como as despesas de seguro, inspeção, imposto único de circulação, conforme resulta dos documentos juntos com a oposição sob os n.ºs 14 a 16. Tal é ainda corroborado pelas declarações de cedência da posição de locatária subscrita pela requerente, através do seu então sócio-gerente, em 30.11.2012 (doc. 7 da oposição).

Segundo a apelante, o requerido teria confessado o facto ora dado como não provado no e-mail que enviou à requerente em 20.12.2013, junto pela requerente aos autos como doc. n.º 23 (fls 279 dos autos).

O aludido e-mail tem o seguinte teor:

Sou a solicitar a V. Exa. o envio do documento das finanças para pagamento do IUC da viatura Tiguan, de matrícula (…), que se encontra registada na empresa Oliveira(…).

Como V. Exa sabe, a empresa em fevereiro de 2008 cedeu-me uma viatura para utilização como director do Hotel, mas responsabilizou-me pelo seu pagamento integral, incluindo toda e qualquer despesa inerente à mesma, inclusivamente tendo eu prescindido na altura, de um Opel Frontera, dando-o como entrada na compra do VW Tiguan.

Por isso, sinto-me responsável pelo pagamento do IUC do Tiguan, pelo que vos solicito o referido documento para pagamento.

Muito grato pela vossa atenção, aproveito para vos desejar um Feliz Natal.”

O aludido e-mail foi enviado um ano depois de o seu subscritor ter feito cessar o contrato de trabalho que o ligava à sua destinatária e de ter, consequentemente, deixado de exercer as funções que alegadamente justificavam a utilização da aludida viatura. Como se explica, então, que decorrido um ano o requerido continuasse a utilizar a aludida viatura e se sentisse responsável pelo pagamento do respetivo IUC? É evidente que o requerido nesse e-mail não reconhece a natureza transitória da entrega da viatura, referindo-se à suposta cedência do automóvel “para utilização como director do Hotel” de uma forma irónica, como decorre da descrição das “responsabilidades” que, contraditoriamente com essa suposta cedência funcional, lhe caberiam. Na ocasião do envio desse mail já as partes se encontravam em litígio, tendo a requerente, através da sua atual administração, conhecimento de que o requerido se considerava proprietário do veículo, recusando que este lhe tivesse sido cedido temporariamente, como contrapartida do exercício das funções de Diretor do hotel da requerente, conforme decorre, claramente, do teor da carta registada com aviso de receção enviada pelo requerido à requerente, em 14.7.2013, em que a notificava para comparecer no dia 30.7.2013 num cartório notarial a fim de que a requerente assinasse os documentos necessários à formalização do registo da viatura em nome do requerido. Pelo exposto, a declaração supra referida não poderia, para um declaratário medianamente avisado, que se encontrasse na situação da requerente, ter o sentido confessório que a apelante ora lhe imputa (art.º 236.º n.º 1 do Código Civil).

Face ao supra exposto, julga-se improcedente a impugnação da matéria de facto.

Terceira questão (verificação dos pressupostos de concessão da providência requerida)

A providência sub judice foi accionada ao abrigo do disposto no artigo 379.º do Código de Processo Civil, no qual se preceitua que “ao possuidor que seja esbulhado ou perturbado no exercício do seu direito, sem que ocorram as circunstâncias previstas no artigo 377.º, é facultado, nos termos gerais, o procedimento cautelar comum.” Aliás, já no direito substantivo se consigna que “o possuidor que for perturbado ou esbulhado pode recorrer ao tribunal para que este lhe mantenha ou restitua a posse” (artigo 1277.º do Código Civil).

O art° 362.°, n.° 1, do Código de Processo Civil, atinente às providências cautelares não especificadas, dispõe que «sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado».

O n.° 1 do art° 368.° explicita que «a providência é decretada desde que haja probabilidade séria da existência do direito e se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão».

A decretação da providência pressupõe, pois, que se verifique a “probabilidade séria da existência do direito invocado” e “fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito”.

O tribunal recorrido indeferiu a providência por considerar não demonstrada a existência do primeiro dos requisitos supra referidos.

Está em causa, nesta providência comum, a defesa de um direito que se concretiza na alegada titularidade da posse de um determinado bem, reportada ao direito de propriedade sobre esse bem.

Para tal a requerente invoca a presunção da titularidade do bem decorrente da inscrição, a seu favor, existente no registo automóvel.

Como se sabe, embora obrigatório, o registo automóvel não é constitutivo de direitos (artigos 5.º e 1.º do Dec.-Lei n.º 54/75, de 24.02, com a redacção introduzida pelo Dec.-Lei n.º 178-A/2005, de 28.10).

Porém, a inscrição da titularidade de um direito no registo confere a presunção da existência desse direito, nos termos do registo (artigos 29.º do Dec.-Lei n.º 54/75 e 7.º do Código de Registo Predial).

Tal presunção é ilidível (art.º 350.º n.º 2 do Código Civil).

A presunção conferida pelo registo cede perante a presunção decorrente da posse de outrem iniciada antes do registo. Efetivamente, o art.º 1268.º n.º 1 do Código Civil estipula que “o possuidor goza da presunção da titularidade do direito, excepto se existir, a favor de outrem, presunção fundada em registo anterior ao início da posse.”

A posse consiste no poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real (artigo 1251º do Código Civil).

A requerente alegou que celebrara um contrato de locação financeira tendo por objeto um veículo automóvel que cedera temporariamente ao requerido em virtude das funções que este exercia, veículo esse cuja propriedade a requerente, locatária financeira, veio a adquirir, no final do contrato de locação, tendo registado em seu nome essa aquisição.

Ora, a verdade é que não só não se provou que a aludida viatura fora entregue ao requerido a título precário como se provou que o aludido veículo foi entregue a este a título definitivo, no âmbito de um acordo entre o requerido e o então representante legal da requerente, nos termos do qual o veículo seria pago pelo requerido e, no final do contrato de locação, a viatura seria registada em nome do requerido. Resulta dos factos provados e dos autos que efetivamente o requerido pagou as rendas da locação, suportou as despesas de seguro, de inspeção e de IUC do automóvel, e inclusivamente pagou ao locador o seu valor residual, em 09.01.2013 (fls 184, 186 e 187). Ou seja, o requerido agiu como se proprietário fosse da aludida viatura, desde o início da sua detenção, que principiou em 2008, assumindo a posse da viatura, que, de resto, se presumiria nos termos do art.º 1252.º n.º 1 do Código Civil. Ora, a inscrição registral invocada pela requerente data de 01.10.2013 (fls 97, doc. n.º 7 junto com o requerimento inicial), ou seja, é posterior ao início da posse do automóvel pelo requerido, pelo que cede perante a presunção de titularidade da propriedade do automóvel de que goza o requerido em virtude da sua posse.

Tanto basta para se concordar com a improcedência da providência cautelar, confirmando-se, consequentemente, a sentença recorrida.

DECISÃO

Pelo exposto, julga-se a apelação improcedente e consequentemente mantém-se a decisão recorrida.

Lisboa, 04.12.2014

Jorge Manuel Leitão Leal

Ondina Carmo Alves

Eduardo José Oliveira Azevedo