Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
922/15.4T8VFX.L1-7
Relator: HIGINA CASTELO
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ATIVIDADE PERIGOSA
RESPONSABILIDADE POR OMISSÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/10/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I. As simples omissões apenas dão lugar à obrigação de reparar os danos quando, verificando-se os demais requisitos legais, haja, por força da lei (ou de negócio jurídico, sendo, então, a responsabilidade contratual), o dever de praticar os atos omitidos.

II. «Atividade perigosa» é um conceito indeterminado que a lei não define, nem em geral, nem para os efeitos do disposto no art. 493, n.º 2, do CC, limitando-se a relacionar a perigosidade com a natureza da atividade ou dos meios utilizados; doutrina e jurisprudência têm densificado o conceito através da exemplificação de atividades que, pela sua natureza ou pela natureza dos meios utilizados, envolvem uma probabilidade de causar danos a terceiros mais elevada do que a verificada na generalidade das atividades.

III. O conceito de «atividade perigosa» ínsito no art. 493, n.º 2, do CC pressupõe que a atividade seja perigosa mesmo quando exercida da forma habitual e regular, pois só assim ela será perigosa por natureza ou pela natureza dos meios utilizados; assim não sucede quando o perigo decorre apenas de uma não habitual ou inadequada utilização ou manutenção dos equipamentos.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:


I. RELATÓRIO

“JL”, autor nos autos identificados à margem, em que é ré “ADP, S.A.”, notificado da sentença absolutória proferida no dia 7 de janeiro de 2019 e com ela não se conformando, interpôs o presente recurso.

Foram intervenientes principais nestes autos outras sociedades comerciais, relativamente às quais o recorrente se conforma com a sentença absolutória. Apenas assim não é em relação à ré.

O recorrente termina as suas alegações de recurso, concluindo:

«a) A sentença recorrida é escandalosamente nula, nos termos do art. 615º, nº 1, al. b), do C.P.C., por falta de especificação dos fundamentos de facto que justificam a decisão, consubstanciada na falta de qualquer análise crítica da prova que, expressada na fundamentação quanto à matéria de facto, permita compreender porque julgou provados, ou não provados, os factos que constituíam o objeto do processo.

b) Aquilo que o Tribunal na realidade fez foi justificar a forma como se demitiu de decidir questões jurídicas, confundindo-as com questões de facto, tal qual ocorre quando referindo-se ao depoimento prestado por uma das testemunhas da Ré ADP, narra que esta «Descreveu as razões porque as ditas TRG são consideradas unidades acessórias à atividade da Ré, no caso a produção de adubos, razão porque a central de vapor, central de tratamento de águas, central de ar comprimido e unidades de tratamento de águas, são instrumentais (e absolutamente necessárias) à prossecução do objeto social da Ré, mas não são o objeto social da Ré, que assim não se dedica a qualquer atividade perigosa.».

c) De resto, limita-se a dizer que «A primeira testemunha da Ré ADP, microbiologista, que presta serviços à Ré, a pedido desta, e de longa data, depôs com muita relevância, sobre as formalidades a adotar na  obtenção de amostras ou colheita de amostras que nos dias imediatos ao noticiar do “surto” as autoridades públicas levaram a cabo em várias unidades fabris do concelho e limítrofes, nomeadamente, na Ré ADP; depôs ainda sobre os procedimentos adotados pela Ré ADP, ainda antes da verificação do evento, seguindo manuais de boas práticas e recomendações, que no fundo eram as únicas diretrizes sobre esta matéria, à data; depôs também sobre a existência de licença ambiental e o seu significado, bem como as medidas que a ADP adotava quanto a empresas prestadoras de serviço de controlo, e as análises (de controlo) trimestrais, que eram feitas; de resto explicou a utilização de químicos como o biodispersante e o biocida, e o seu “reflexo” nos valores detetados, bem como a “apontada relevância” do encerramento das TRG e seu novo arranque. Descreveu as razões porque as ditas TRG são consideradas unidades acessórias à atividade da Ré, no caso a produção de adubos, razão porque a central de vapor, central de tratamento de águas, central de ar comprimido e unidades de tratamento de águas, são instrumentais (e absolutamente necessárias) à prossecução do objeto social da Ré, mas não  são o objeto social da Ré, que assim não se dedica a qualquer atividade perigosa.».

d) A fundamentação em causa é portanto uma conclusão sem premissas, porque assenta na identificação da prova e na referência aos temas sobre os quais esta incidiu, sem qualquer referência concreta ao teor dos depoimentos que permita ligá-los aos factos provados e não provados, omitindo portanto qualquer referência à relevância atribuída a cada um dos meios de prova para a decisão de facto.

e) Em face do disposto nos art.ºs 205º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa e 154º do Código de Processo Civil, deve entender-se que, nestas circunstâncias, a falta a fundamentação é total, porque não são inteligíveis as concretas razões de facto e de direito da decisão, em termos tais que não permitem ao destinatário da decisão judicial a perceção das razões que justificam tal decisão, «o porquê» de ter decidido assim, pois  «livre apreciação da prova» (art. 607º, nº 5 do C.P.C.) não corresponde a «arbitrária apreciação da prova».

f) Diga-se de passagem, dá até vontade de rir que um tribunal confunda atividade perigosa, para os fins consagrados no Código Civil, com o objeto social de quem usa torres de refrigeração, para assim descaracterizar o perigo concreto resultante dessa utilização e desresponsabilizar quem o faz pela manutenção desses equipamentos, que são unanimemente consideradas perigosas para a saúde pública, levando a que não haja uma única no sul do país, levado a que o presidente da Associação Portuguesa das Empresas dos Setores Térmico, Energético, Eletrónico e do Ambiente a defender publicamente o "desmantelamento imediato das torres de arrefecimento de água nos edifícios públicos e privados" e o "regresso das auditorias obrigatórias à qualidade do ar interior”, levando a que existam normas da Autoridade Regional de Saúde a proibir as montagens de torres de arrefecimento aos projetistas de ar condicionado (https://www.dn.pt/sociedade/interior/fechem-se-as - torres - de -
arrefecimento-8914391.html).

g) Basicamente o argumento do tribunal é que uma empresa que fabrica adubos não tem uma atividade perigosa, mesmo que porventura utilize equipamentos no processo produtivo que geram particulares perigos para a saúde pública.

h) Nos termos do art.º 493º, n.º 2 do Código Civil, que a sentença recorrida violou, a culpa presume-se “(…) no exercício de uma atividade perigosa pela sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados (…)”, pois quem causar danos a outrem no exercício de uma atividade, perigosa por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, exceto se mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir.

i) Trata-se de uma presunção de culpa, quer de quem tendo a seu cargo algum edifício ou obra e ela vier a originar danos, causados por defeito de construção ou de conservação, quer de quem exerça uma atividade perigosa, e por via dela vier a causar dano.

j) A lei não indica, nem seria recomendável que o fizesse, um elenco de atividades que devam ser qualificadas como perigosas para efeitos da norma e também não fornece um critério em função da qual se deva afirmar a perigosidade da atividade, esclarecendo apenas que, para o efeito, tanto releva a natureza da própria atividade como a natureza dos meios utilizados, sendo perigosas as atividades ou meios de as exercer, que criem para os terceiros um estado de perigo, isto é, a possibilidade de receber dano, uma probabilidade maior do que a normal derivada das outras atividades.

k) No caso dos autos, o exercício da atividade da ADP é a fabricação de adubos, processo produtivo em que a Ré recorre à utilização de torres de arrefecimento, em que a atividade de refrigeração, própria e inerente a tais torres, consiste na circulação e no arrefecimento de água, subsequentemente expelida para a atmosfera, o que gera a necessidade de controlar e prevenir a concentração da Bactéria Legionella, de forma a evitar a sua propagação.

l) Relevante, para a questão, não é que a ADP se dedique à fabricação de adubos, atividade que por si não é “perigosa”, mas sim que recorra, nesse processo de fabrico, às torres de arrefecimento que geram dispersão de gotículas de água para o ar – aerodispersão – que provém das bacias de água tornando essencial que se proceda ao correto tratamento da água e que se assegure que não surgirão problemas provocados por esta.

m) A documentação junta entretanto aos autos permitiu apurar que no 8º circuito das TRG da Ré ADP foram detetadas concentrações elevadas da dita bactéria, pelo que a este respeito, também causa hilaridade, face ao princípio da aquisição processual, hoje plasmado no art.º 5º do nCPC (e já antes no art.º 264º, nº2, do CPC “antigo”) que da sentença recorrida resulte, textualmente, que «Igualmente apurou-se, mas não foi alegado, logo não ficou provado, que no 8º circuito das TRG da Ré ADP, e apenas neste (e em nenhuma das TRG’s das restantes Rés), foram detetadas concentrações elevadas e relevantes da dita bactéria».

n) Nesta matéria alegou o Autor o que resulta dos art.ºs 62º e 64º da PI, e art.ºs 66 e ss., considerando o Tribunal a quo que o fez «sem se debruçar sobre esta situação em concreto que da prova produzida em julgamento, revelou à saciedade tratar-se de ponto fulcral», ou seja, alegou os “factos principais” que permitiram, depois, apurar os “factos acessórios” de que dependia a procedência da ação, pelo que a este respeito a violação do disposto no art. 5º NCPC, quanto aos poderes de cognição do tribunal, é deliberada.

o) De resto, foi com a “fundamentação” que supra se transcreveu que a sentença recorrida julgou como não provado aquele que é um facto público e notório: A responsabilidade da Ré ADP, traduzida nos factos, errada e incompreensivelmente julgados não provados: C) Segundo a DGS e INS, logo no comunicado conjunto, datado de 21.11.2014, que emitiram, identificaram a fonte emissora do vírus como tratando-se de uma das torres de refrigeração (TRG) da fábrica da ADP, sita na Estrada Nacional 10, em Salgados da Póvoa, Forte da Casa; D) O surto epidémico de Legionella, que afetou além dos demais, o aqui Autor, teve a sua origem numa dessas torres de refrigeração, na fábrica da ADP;

p) Quanto ao primeiro desses factos, o referido comunicado encontra-se publicado no “sítio” da Direção Geral de Saúde: https://www.dgs.pt/a-direccao-geral-dasaude/comunicados-e-despachos-do-director-geral/surto-de-infecao-por-legionella10.aspx; Foi amplamente noticiado, correspondendo portanto a facto público: https://www.jornaldenegocios.pt/economia/saude/detalhe/surto_de_legionella_teve_origem_na_ adubos_de_portugal; https://sicnoticias.pt/especiais/legionella/2014-11-21-Adubos-de-Portugale-a-origem-do-surto-de-legionella; E do referido comunicado, consta textualmente, «Nesse sentido, serão enviados ao Ministério Público, os relatórios até agora produzidos bem como os relatórios da sequenciação do genoma para eventual apuramento de crime ambiental com origem na água de uma das torres de refrigeração da empresa … (ADP).».

q) O facto «D. O surto epidémico de Legionella, que afetou além dos demais, o aqui Autor, teve a sua origem numa dessas torres de refrigeração, na fábrica da ADP;», não pode deixar de ser julgado provados por via dos documentos apresentados pelo Requerente na sua Petição Inicial (na ação principal) e Requerimento Inicial (na providência cautelar): doc 1 junto na Petição Inicial: comunicado conjunto da Direção Geral da Saúde e Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge referindo que foi identificada a fonte emissora do vírus: a fábrica da Ré ADP, sita na Estrada Nacional nº10, Salgados da Póvoa, Alverca do Ribatejo; doc. 2 junto na Petição Inicial: declarações do chefe de divisão de saúde ambiental e ocupacional da Direção-Geral de Saúde (DGS), Dr. Paulo Diegues, que afirmou que “Para que haja um surto de Legionella, as micro gotículas de água [aerossóis] têm de estar contaminadas e fortemente contaminadas”, pelo que “houve condições para se desenvolverem concentrações brutais” desta bactéria; Certidão Judicial, junta aos autos em 26/02/2016, extraída dos autos do processo-crime, nº 619/14.2T9VFX, Tribunal da Comarca de Lisboa Norte, Vila Franca de Xira – DIAP, Secção única, composta pelos seguintes documentos: (i) Relatório nº333626, constante no Apenso DCE 39 dos autos, notificação 177/2014, elaborado pela técnica … do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge I.P, indica que o A, nas analises das amostras recolhidas aos brônquios, revelam a presença de bactérias da Legionella na estirpe ST1905; (iii) Relatório nº 279715, constante nos autos principais, elaborado pela técnica … do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge I.P, indica que a amostra recolhida nas instalações da 1ºRé contém uma forte presença da bactéria da Legionella da estirpe com os elementos identificativos 11,14,16,10,13,2, que vieram a ser catalogados com a denominação de estirpe ST1905; (iii) Relatório Intercalar, constante nas folhas 1047 a 1113 dos autos principais; (iv) Lista de entidades presentes no Workshop sobre a “Prevenção e Controlo de Legionella nos Sistemas de Água”, realizado em 30.01.2013 no Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge, constante nos autos principais, entre os quais estavam presentes os representantes da Ré “ADP”; E ainda, pelo Relatório final elaborado pela Polícia Judiciária, no âmbito do Inquérito Criminal, que corre termos sob o nº 619/14.2T9VFX, no Tribunal da Comarca de Lisboa Norte, Vila Franca de Xira – DIAP, Secção única, cuja certidão o A. juntou aos da providência cautelar apensa aos presentes autos, em 15/11/2016. E ainda, pela Acusação deduzida pelo Ministério Publico, contra a “ADP Fertilizantes, SA” e “GE Power Controls Portugal – Unipessoal Lda.”, em 15.03.2017, pela prática de um crime de infração de regras de construção, dano em instalações e perturbação de serviços, p.p. pelos art. 277º nº 1 alínea a) e nº 3 e art. 285º do CP.

r) Sobre esta prova, e em seu esclarecimento e concretização, o depoimento da testemunha …, inspetora-chefe da PJ, prestado no dia 10/09/2018 (registado no sistema H@bilus Média Studio, ficheiro 20180910105428_5503877_2871260), com particular incidência ao minuto 09:00 a 13.35, que sintetiza com clareza quais as falhas imputadas à Ré ADP e das quais resultou a propagação da bactéria Legionella “alojada” na base das bacias que alimentam as torres de arrefecimento da Ré ADP, aquando do re-arranque que se seguiu a uma paragem prolongada.

s) Aliás, se dúvidas houvessem de que a origem desta contaminação foi – e só pode ter sido -  a fábrica da Ré ADP, bastaria atender ao facto de a testemunha ter deixado claro que «não foi identificada esta bactéria, com esta estirpe, em mais sítio nenhum, senão naquela torre…»: minuto 09.20 a 09.35,

t) Tendo esta testemunha, …, sintetizado no respetivo depoimento, particularmente ao minuto 18.55 e 20:45, as falhas imputadas aos técnicos da ADP e da GE que efetuavam a manutenção das torres de arrefecimento, omitindo negligentemente procedimentos que integram essas boas práticas aquando do momento da reativação das referidas torres de arrefecimento, na sequência aliás do que resulta do Relatório Final elaborado pela Testemunha na qualidade de Inspetora Chefe da Polícia Judiciária, que respalda a inadequada manutenção ou conservação do 8º circuito de arrefecimento, com prejuízo para a manutenção e conservação das suas estruturas/componentes e para a eficiência do seu funcionamento, provocada pela falta de limpeza física completa e adequada daqueles estruturas/componentes e, bem assim, pela falta de realização de desinfeção preventiva, através do uso de produto biodispersante, e da falta de aplicação de choque com produto biocida na água, no período compreendido entre os dias 18.09.2014 e 20.10.2014, que determinou que, aquando do re-arranque do circuito de arrefecimento e durante o seu funcionamento nos dias subsequentes, até ao dia 9.11.2014, a referida bactéria Legionella pneumophila sg 1, estirpe ST1 905, se tenha integrado nas gotículas de água formadas no interior do 8º circuito de arrefecimento, gotículas que lograram passar pelos separadores de gotas ou "drift eliminator" instalados nas torres de arrefecimento do 8º circuito de arrefecimento e foram expelidas, por aerossolização, para a atmosfera. 

u) Quanto a isso, nada, mas mesmo nada daquilo que foi referido pelas testemunhas … (ficheiro 20181015100937_5503877_2871260), engenheira química, …, encarregado de fábrica, … ( ficheiro 20181015140702_5503877_2871260), microbiologista, e …, engenheiro e diretor fabril da ADP, põe em crise a prova produzida supra referida, sendo que a isenção destas testemunhas, deixa muito a desejar: a primeira das testemunha da Ré ADP, presta serviços à Ré, a pedido desta, e de longa data; A testemunha …, é o encarregado de fábrica;  …, é o diretor fabril da ADP, ali funcionário de longa data; 

v) A testemunha … (que é o Diretor Fabril da Ré que no dia 9.11.2014 decidiu encerrar as instalações e todos os circuitos de arrefecimento), refere a sentença que «descreveu a prestação de serviços com empresa de tratamento de águas a GE Waters, empresa líder de mercado internacional, bem como as (boas) práticas adotadas pela Ré, aquando do surto e antes dele», o que no que respeita à atuação da GE Waters, é incompaginável com os elementos recolhidos no processo-crime, plasmados no Relatório Final da Polícia Judiciária, mas na realidade, nem por isso contraria aquilo que a Testemunha … refere ter ocorrido… Em todos os momentos exceto num: a reativação das torres de arrefecimento após a paragem ocorrida em Outubro de 2014, precisamente, quando ocorreu o surto de Legionella numa estirpe da bactéria que não foi encontrada em qualquer outro local, senão na torre de refrigeração da Ré ADP, pois como particularmente ao minuto 18.55 e 20:45, expressamente refere a testemunha …, foi então que os técnicos da ADP e da GE que efetuavam a manutenção das torres de arrefecimento omitiram negligentemente procedimentos que integram essas boas práticas.

w) E quanto às dúvidas que a testemunha …, contratada pela Ré ADP precisamente após a ocorrência deste surto de Legionella, quanto ao método de recolha das amostras, segundo a qual o resultados das primeiras análises foram viciados pela recolha de amostras em recipientes não esterilizados, ficam as mesmas claramente infirmadas, não só por tudo quanto resulta da prova documental em que se traduz o Relatório nº 279715, elaborado pela técnica … do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge I.P, indica que a amostra recolhida nas instalações da Ré ADP contém uma forte presença da bactéria da Legionella da estirpe catalogada com a denominação ST1905, e pelo Relatório elaborado pela Polícia Judiciária, no âmbito do Inquérito Criminal, que corre termos sob o nº 619/14.2T9VFX, no Tribunal da Comarca de Lisboa Norte, Vila Franca de Xira – DIAP, Secção única, cuja certidão o A. juntou aos da providência cautelar apensa aos presentes autos, em 15/11/2016, como ainda, pelo que resulta do depoimento da Senhora Inspetora …, que ao minuto 21.20, declarou que ao longo da investigação fez-se assessorar por especialistas sem que jamais se tivesse suscitado qualquer questão que pudesse por em causa a credibilidade dos resultados obtidos ou dos métodos de análise utilizados, sendo aliás tal questão sempre irrelevante tendo presente que o único local onde a estirpe ST1905 foi encontrada foi na torre de refrigeração da ADP.

x) Uma nota final para o facto de a Ré ADP ter realizado, no dia 08/11/2014, antes da visita das autoridade de saúde, uma limpeza das torres de refrigeração, com aplicação de biodispersante, conforme aliás também resulta, quer do Relatório final elaborado pela Polícia Judiciária, quer da Acusação do Ministério Público, deduzida 15.03.2017, no âmbito do mesmo inquérito criminal, em que a “ADP Fertilizantes, SA” e a “GE Power Controls Portugal – Unipessoal Lda.” foram acusadas da prática de um crime de infração de regras de construção, dano em instalações e perturbação de serviços, p.p. pelos art. 277º nº 1 alínea a) e nº 3 e art. 285º do Código Penal, o que permite compreender aquilo que a “testemunha … considerou incompreensível: a existência de valores brutais de presença da bactéria em causa nas análises efetuadas pela Direção Geral de Saúde, a que se refere no seu “depoimento”.

y) Em suma, não produziu a ADP qualquer prova que permita ao Tribunal afastar a suficiente indiciação que resulta dos relatórios juntos aos autos emitidos pelas referidas entidades públicas, suscetível de afastar, em termos suficientemente indiciados que estão, a responsabilidade da Requerida “ADP, S.A.”, pelo que tal responsabilidade, que se presume, até está provada à exaustão, naquele que foi o entendimento das autoridades nacionais de saúde pública, sustentado nos elementos de prova juntos aos autos, extraídos do processo-crime do qual resultou a  acusação pública pelo M.º P.º subsequentemente deduzida.

Nestes termos, deverá o presente recurso ser admitido, declarado procedente e por via disso, sendo proferido Acórdão que, revogando a sentença recorrida e declarando procedente a ação, assim se fazendo Sã e Serena JUSTIÇA!»

A recorrida contra-alegou, pugnando pela confirmação da sentença.

Foram colhidos os vistos e nada obsta ao conhecimento do mérito.

OBJETO DO RECURSO

Sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, são as conclusões das alegações de recurso que delimitam o âmbito da apelação (arts. 635, 637, n.º 2, e 639, n.ºs 1 e 2, do CPC).

Tendo em conta o teor daquelas, colocam-se as questões de saber se a sentença enferma de nulidade; se a decisão de facto resultou de uma deficiente apreciação da prova e deve ser alterada; se a ré praticou ato ilícito e culposo do qual resultaram os danos pelos quais o autor pretende ser indemnizado.

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Estão provados os seguintes factos, que correspondem aos adquiridos em 1.ª instância com as alterações justificadas em III.B. (aditamento dos factos 53 e 54):

1. A sociedade ADP, S.A., é uma sociedade que além do mais produz, importa, exporta e comercializa adubos, e a sua principal unidade fabril, localiza-se na Estrada Nacional 10, União de freguesias de Póvoa de Santa Iria e Forte da Casa, concelho de Vila Franca de Xira, cfr. certidão permanente;

2. A sociedade Solvay Portugal – Produtos Químicos, S.A., é uma sociedade que além do mais se dedica à indústria e comércio de produtos químicos e seus derivados, com unidade fabril, em Póvoa de Santa Iria, cfr. certidão permanente;

3. A sociedade SCC – Sociedade Central de Cervejas e Bebidas S.A., é uma sociedade que tem unidade fabril na área de Vialonga, área limítrofe à da Ré ADP, neste concelho de Vila Franca de Xira e se dedica além do mais, à importação, exportação, exploração, produção, preparação, fabrico e comercialização, de malte, cerveja, sidras, vinhos e bebidas espirituosas, refrigerantes, águas minerais, águas de nascente e de mesa e seus derivados, cfr. certidão permanente;

4. Entre os dias 7 e 21 de Novembro de 2014, ocorreu um surto de Legionella com incidência na área geográfica do Município de Vila Franca de Xira e municípios limítrofes;

5. Com data de 21 de Novembro 2014, a Direção Geral da Saúde (DGS) e o Instituto Nacional de Saúde (INS), Dr. Ricardo Jorge, emitiram um comunicado conjunto referindo, além do mais, que o dito surto, já provocara 336 casos de infeção, dos quais 10 deles mortais;

6. Sendo a dita localidade do Forte da Casa, uma das zonas afetadas; 

7. Mais referiu que, “as análises conduzidas pelo Instituto Nacional de Saúde, Dr. Ricardo Jorge, confirmam que o isolamento por cultura, de uma estirpe de Legionella (…) em amostras de água de torres de arrefecimento, apresenta um perfil molecular semelhante ao das estirpes clínicas, obtidas em doentes com pneumonia devida, comprovadamente, à doença dos legionários. Nestes termos foi identificada uma fonte emissora de aerossóis contaminados. Está em curso a sequenciação integral do genoma de estirpes isoladas. Nesse sentido, serão enviados ao Ministério Público, os relatórios até agora produzidos, bem como os relatórios da sequenciação do genoma para eventual apuramento de crime ambiental com origem na água de uma das torres de refrigeração da empresa ADP”, sublinhado nosso, conforme doc. 1 junto com a PI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido; 

8. E "estamos perante resultados que resultam de análises de cultura e uma coincidência com a estirpe clínica" (…) "os trabalhos de investigação realizados permitiram excluir outras fontes potenciais, tais como água de consumo, grandes superfícies comerciais e sistemas de ar condicionado", sic.

9. A sociedade ADP possui as suas instalações industriais, com torres de refrigeração, na proximidade da área onde se propagou o surto, como as possuem as co-Rés; 

10. E em 15 de Dezembro de 2014, por novo comunicado conjunto de várias autoridades legais, foi informado ter sido ainda “detetada a presença” da bactéria Legionella, nalgumas torres de refrigeração das fábricas da Solvay e SCC, tendo estas sido também alvo de investigação para o apuramento da origem do surto de Legionella;

11. Quer a sociedade ADP, quer as sociedades Solvay e SCC, foram alvo de investigação, tendo inclusive visto suspensa a atividade de algumas das suas torres de refrigeração, nas respetivas unidades fabris, como medida de precaução imposta pelas autoridades públicas;

12. Correu termos pelo DIAP de Vila Franca de Xira – Secção única, desta Comarca de Lisboa Norte – Ministério Publico, o processo-crime n.º 619/14.2T9VFX, instaurado contra a sociedade ADP e Outros, que findou, na fase de inquérito, com a prolação de despacho de acusação, deduzido além do mais, contra a Ré ADP, desconhecendo-se se foi ou não, Ré a abertura de instrução por esta e se esta fase (instrução) findou;

13. No decurso da fase do inquérito supra identificado, ao Autor foi permitida a consulta das peças processuais que a si dissessem respeito, e às Rés, só parte das peças processuais e após o levantamento do segredo de justiça; 

14. É usual a presença de bactéria Legionella nas torres de refrigeração das unidades fabris ou industriais, inexistindo à data do surto supra referido, legislação sobre a matéria, quanto aos limites máximos da sua presença ou concentração, nas torres de refrigeração, mas apenas “recomendações” ou “boas práticas”;

15. O Autor tinha 63 anos de idade, quando deu entrada no Centro Hospitalar de Lisboa, Hospital de São José, no dia 9 de Novembro de 2014, com sintomatologia de “insuficiência respiratória aguda”, conforme doc. 3 junto com a PI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido; 

16. E desde o dia 6 de Novembro de 2014, que o Autor começara a sentir-se indisposto, com dores por todo o corpo, dificuldades em respirar e febres altas;

17. Ainda foi observado por Médico particular que lhe diagnosticou uma “pneumonia pulmonar” e lhe prescreveu a medicação habitual para este tipo de doença e sintomatologia;

18. Porém, apesar da toma da medicação prescrita, o Autor não melhorou e no dia 8 de Novembro de 2014, em sua casa, começou a sentir-se desorientado, com dificuldade em articular frases, tendo o filho, …, solicitado a assistência do INEM, que imediatamente o conduziu à urgência, do Hospital de São José, em Lisboa; 

19. No resumo do internamento do Autor no Centro Hospitalar de Lisboa, consta que o paciente que deu entrada no serviço de urgência do Hospital de São José foi transferido, em 27 de Novembro de 2014, para o Serviço de Medicina do mesmo hospital, tendo-lhe sido atribuída alta hospitalar, em 3 de Dezembro de 2014, conforme documentos 3 a 6 juntos com a PI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido; 

20. Quando deu entrada no serviço de urgência, ao Autor foi diagnosticado (principal) choque séptico, pneumonia Legionella, fibrilação articular, e com diagnóstico (secundário) de doença isquémica crónica do coração SOE, doença pulmonar obstrutiva SOE, obesidade mórbida e estridor;

21. A estirpe clínica da pneumonia Legionella, diagnosticada ao Autor, não foi concretamente identificada;

22. Do resumo do internamento, terapêutica e recomendações, consta que “(…)Transferido da UCIP onde esteve internado de 9 a 27.11 por pneumonia grave por Legionella pneumofilia, em contexto de surto epidémico, com insuficiência respiratória e choque, com necessidade de ventilação mecânica invasiva e suporte aminérgico, tendo completado 21 dias de terapêutica dirigida (…) Admitido inicialmente na Unidade de Cuidados Intermédios deste serviço, a salientar durante o mesmo, bacteriémica a S. aureus meticilino-resistente com ponto de partida em cateter venoso central, medicado com vancomicina (…)”; 
 
23. No dia 9 de Novembro de 2014, o Hospital de São José comunicou à esposa do Autor, o diagnóstico de pneumonia, provocado pela bactéria Legionella;

24. Por requerimento de proteção judiciária com data de entrada no ISS datado de 3 de Março de 2015, declarou o Autor ser o seu agregado familiar, constituído exclusivamente pela esposa, ser trabalhador por “conta de outrem”, com a profissão de “moldureiro” e a esposa, no estado de reformada, ambos sem possuírem bens imóveis, conforme doc. de fls. 28 junto com a PI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido; 

25. À data da sua entrada no serviço de urgência do HSJ, o Autor residia e exercia a sua atividade profissional, como “moldureiro”, na localidade do Forte da Casa, Concelho de Vila Franca de Xira;

26. Sendo então proprietário de um pequeno estabelecimento de fabrico, venda e reparação de molduras, instalado num armazém, e com o NIPC 901 094 161;

27. À data, tal estabelecimento era a principal fonte de rendimento do Autor, da esposa e de dois filhos maiores de idade, um deles, estudante universitário, contando ainda com a pensão de reforma da esposa, no valor de cerca de € 297,69 mensais e do vencimento do curso de formação profissional, patrocinado pelo IEFP ao filho do Autor, …, em valor não concretamente apurado, tudo cfr. docs. 7, 8, 9, 10 e 11 juntos com o Requerimento Inicial aperfeiçoado, juntos a fls. 91 e ss. do Apenso A e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;

28. Durante o período do seu internamento, em urgência e depois, em medicina geral, o Autor não suportou quaisquer taxas moderadoras por delas se encontrar isento, em razão de padecer da doença “diabetes”;

29. A mulher e um filho do Autor deslocaram-se, diariamente, durante o período de internamento, ao Hospital de São José, em visitas ao mesmo;

30. Atribuída a alta hospitalar, em 3 de Dezembro de 2014, o Autor reuniu as condições necessárias para regressar à sua atividade profissional, pelo menos em 15 de Janeiro de 2015;

31. Ainda que não da forma como a exercia anteriormente;

32. O período de internamento do Autor correspondeu à época do Natal, altura em que as vendas são mais significativas;

33. O estabelecimento comercial do Autor não chegou a encerrar, ficando assegurado o seu funcionamento e abertura ao público, por familiares e amigos;

34. As vendas não foram significativas, por variados fatores, como a conjuntura económica, mas também o surto epidemiológico que assolou aquela zona geográfica;

35. Todavia, foram-no em valores não concretamente apurados, tendo o Autor e a esposa, declarado fiscalmente, rendimentos anuais líquidos de € 8.840,86, cfr. doc. 12 junto com o Requerimento Inicial aperfeiçoado, junto a fls. 101 e ss. do Apenso A e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;

36. Mesmo após a alta hospitalar, o Autor teve dificuldade em retomar “a sua vida normal”, com dificuldade em movimentar-se, sentindo dores por todo o corpo, principalmente nas costas, bem como por ter os músculos atrofiados, devido ao período de imobilização forçada no hospital;

37. Tais dores impediram-no de se deslocar e de dormir normalmente, como à data da instauração da ação o impediam;

38. E perdeu reflexos musculares, dificultando práticas ou rotinas diárias, como por exemplo, a condução automóvel que exerce, mas em moldes diferentes;

39. O Autor contínua, à data, a sofrer de dificuldades respiratórias;

40. O Autor era uma pessoa ativa e trabalhadora e deixou de o ser;

41. Na sua atividade profissional, o Autor deixou de conseguir efetuar alguns dos trabalhos necessários, como por exemplo, a construção das molduras (por não conseguir estar muito tempo em pé e devido ao pó gerado pelos cortes) e a limagem de madeiras e de metais; mas consegue esticar as telas, terminar os trabalhos de emoldurar, embelezamento e atender o público, fazer vendas e até entregas, desde que com a ajuda de um terceiro, porque ficou com dificuldades no exercício da condução automóvel, embora atualmente já inexistam;

42. O Autor, em meados de 2015, transmitiu gratuitamente o referido estabelecimento comercial para o seu filho, maior, …, continuando porém a “gerir” de facto o negócio na medida das suas capacidades e a acompanhar o filho em todas as referidas atividades;

43. Durante o internamento hospitalar do Autor, a sua mulher e os dois filhos socorreram-se de familiares e amigos, que lhes disponibilizaram, quer alimentos, quer ajuda financeira;

44. Mesmo após esse momento ainda beneficiaram dessa ajuda, mas de forma mais limitada;

45. O agregado familiar do Autor é atualmente e era à data do surto, constituído além do próprio (Autor) e mulher, …, pelos seus dois filhos maiores de idade, …;

46. A recuperação do Autor foi lenta e dolorosa, nomeadamente, devido ao episódio referido em 20) e 21), de extubação em 22 de Novembro, com “quadro de estirador, imediatamente pós-extubação, pelo que foi reintubado (…) A 26.11 foi novamente extubado, com sucesso, (…)”, bem como, a necessidade de ventilação mecânica invasiva e suporte aminérgico, e 21 dias de antibiótico-terapia;

47. A Ré ADP, e as demais Rés, cumpre e cumpria à data referida em 4), todas as licenças aplicáveis, incluindo, a licença ambiental,

48. Bem como contratara, empresa de gestão de água das torres de refrigeração, especializada e devidamente credenciada, no caso da Ré ADP, inicialmente a Quimiotécnica e a partir de meados de 2014, a GE;

49. E aplicava na manutenção e limpeza dessas TRG’s, produtos devidamente certificados e autorizados pelas autoridades competentes;

50. E efetuava controles regulares, devidamente monitorizados pela Ré e pelas ditas empresas;  

51. Igualmente, o fizeram as demais Rés;

52. A presente ação deu entrada em juízo no dia 4 de Março de 2015.

53. A DGS e o INS, no comunicado conjunto, datado de 21.11.2014, que emitiram, identificaram a fonte emissora da Legionella como tratando-se de uma das torres de refrigeração (TRG) da fábrica da ADP, sita na Estrada Nacional 10, em Salgados da Póvoa, Forte da Casa;

54. O surto epidémico de Legionella, que afetou, além dos demais, o aqui Autor, teve a sua origem numa dessas torres de refrigeração, na fábrica da ADP.

III. APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO

A. Da falta de fundamentação

O autor começa por imputar à sentença o vício da nulidade por falta de fundamentação, de acordo com o disposto no art. 615, n.º 1, al. b), do CPC. Tal falta de fundamentação, segundo o recorrente, consistiria na falta de especificação dos fundamentos de facto que justificam a decisão e na falta de análise crítica da prova que permita compreender as razões pelas quais se julgaram provados ou não provados os factos.

Apreciando.

A nulidade a que a norma se reporta consiste na não especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão. Na sentença dos autos, o tribunal a quo especificou detidamente os factos (descrevendo 52 provados e 12 não provados), justificou-os, argumentando com a sua análise das provas produzidas no curso de 11 páginas da sentença, e, finalmente, efetuou a aplicação do direito aos factos, apreciando as pertinentes normas jurídicas e esclarecendo as razões pelas quais entendia não se verificarem os pressupostos da responsabilidade civil.

O recorrente discorda dos fundamentos de facto e de direito utilizados pelo tribunal de 1.ª instância, mas tal discordância, a verificar-se a razão do autor, não conduz à nulidade da sentença, mas à sua revogação.

Continuemos, portanto, a apreciar os demais fundamentos do recurso.

B. Da impugnação da matéria de facto

O recorrente pode impugnar a decisão sobre a matéria de facto, devendo para tanto observar as regras contidas no art. 640 do CPC.

Segundo elas, e sob pena de rejeição do respetivo recurso, o recorrente deve especificar:
- Os pontos da matéria de facto de que discorda;
- Os meios probatórios que impõem decisão diversa da recorrida;
- A decisão que, em seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

O recorrente – nas suas conclusões o), p) e q) – cumpriu estes ónus ao impugnar os factos não provados A) e B), que requer que se considerem assentes. Nas conclusões o), p) e q) das suas alegações de recurso, designou-os pelas letras «C)» e D)», mas transcreveu os factos não provados A) e B) não havendo qualquer dúvida, pelo conteúdo da reclamação, que é a estes que se reporta.

Conclui o recorrente na al. o) que «A responsabilidade da Ré ADP, traduzida nos factos, errada e incompreensivelmente julgados não provados: C) [A)] Segundo a DGS e INS, logo no comunicado conjunto, datado de 21.11.2014, que emitiram, identificaram a fonte emissora do vírus como tratando-se de uma das torres de refrigeração (TRG) da fábrica da ADP, sita na Estrada Nacional 10, em Salgados da Póvoa, Forte da Casa; D) [B)] O surto epidémico de Legionella, que afetou além dos demais, o aqui Autor, teve a sua origem numa dessas torres de refrigeração, na fábrica da ADP».

O primeiro dos aludidos factos é público; consta do comunicado conjunto da Direção-Geral da Saúde, Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge, Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, Inspeção Geral da Agricultura do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território Agência Portuguesa do Ambiente, de 21/11/2014, disponível em https://www.dgs.pt/comunicados.aspx?v=2cd13c61-6688-46bc-91e9-76d6690f8cfe. Este comunicado foi junto como doc. 1 com a p.i., encontrando-se a fls. 13 dos autos. Lê-se nele, entre o mais: «Nesse sentido, serão enviados ao Ministério Público, os relatórios até agora produzidos bem como os relatórios da sequenciação do genoma para eventual apuramento de crime ambiental com origem na água de uma das torres de refrigeração da empresa … (ADP)».

O segundo facto não pode deixar de se considerar provado após análise crítica e concatenada dos meios de prova disponíveis, com relevo para:
- o comunicado acabado de referir, que foi o culminar de investigação realizada pelos organismos que o emitiram;
- documentos que constam do processo-crime 619/14.2T9VFX, Tribunal da Comarca de Lisboa Norte, Vila Franca de Xira – DIAP, Secção única, constantes de certidões juntas aos autos, com destaque para:
i. auto de colheita nas bacias das torres de refrigeração do 8.º circuito da ré (fls. 392);
ii. relatórios da análise bacteriológica da água (fls. 393-4);
iii. relatório final da PJ (fls. 695 e ss. dos autos, em particular pp. 100 e ss. do relatório, a fls. 806 e ss. dos autos);
iv. acusação e elementos probatórios para que remete (fls. 1059 v.º e ss. dos autos).

Em suma, as análises laboratoriais efetuadas às torres de refrigeração da ré e a outros locais e elementos, identificaram a causa do surto em instalação da ré e excluíram outras proveniências. Apesar de noutras instalações fabris de outras sociedades ter sido detetada Legionella (factos 10 e 11), como é comum (facto 14), o certo é que apenas na bacia de uma das torres da ré foi detetada concentração anormal e de tal forma elevada que foi apta a causar o surto que levou à doença de muitas e até à morte de várias pessoas.

Relativamente ao facto de o surto em questão, com origem numa das torres de refrigeração da ré, ter sido a causa de pneumonia do autor, a sua prova é esmagadora (a probabilidade de praticamente 100%). Está em causa a doença dos legionários, que é uma forma de pneumonia grave causada pela bactéria Legionella pneumophila. A probabilidade de uma pessoa contrair pneumonia graças à Legionella é de 1 em 100.000, sensivelmente. Em Portugal houve de 2004 a 2013, num período de 10 anos, 862 casos confirmados, o que dá por ano uma probabilidade média (considerando 10.000.000 de habitantes), de 1 para 116.009, ou seja, 0,000862%; nessa década, o ano com mais casos foi 2012, com 132 casos, ou seja, para 10.000.000 de habitantes, uma probabilidade de 1 para 75.757, ou seja, 0,0013% - os dados a negrito, a partir dos quais calculámos as percentagens, constam de documento da Direção-Geral de Saúde, disponível em https://www.dgs.pt/documentos-e-publicacoes/vigilancia-em-saude-publica-doenca-dos-legionarios-em-portugal-2004-2013-pdf.aspx, quadro 1, p. 11.

Se considerarmos a coincidência temporal entre a situação clínica do autor infetado com a bactéria rara da Legionella e o surto da mesma bactéria com origem na ré, perceberemos que a probabilidade de o autor, residente na área afetada pelo surto, ter sido infetado com a bactéria Legionella no período do surto, provindo a bactéria de origem diferente é ainda muitíssimo mais baixa, desprezível em termos estatísticos, absolutamente impensável de ser considerada do ponto de vista jurídico. O autor foi, seguramente, infetado por bactérias Legionella provenientes da torre de refrigeração da ré ADP. Não impressiona o facto de a estirpe clínica da pneumonia Legionella diagnosticada ao autor não ter sido concretamente identificada (facto 21). Como se disse, as hipóteses de contrair a doença, já de si inferiores a 0,001%, muitíssimo mais inferiores seriam de adquirir a doença naquela semana sem relação com o surto causado pela ré.

Em conclusão, acrescentamos aos factos provados os que em 1.ª instância foram considerados não provados nas alíneas A) e B), com os seguintes textos:

53. A DGS e o INS, no comunicado conjunto, datado de 21.11.2014, que emitiram, identificaram a fonte emissora da Legionella como tratando-se de uma das torres de refrigeração (TRG) da fábrica da ADP, sita na Estrada Nacional 10, em Salgados da Póvoa, Forte da Casa;

54. O surto epidémico de Legionella, que afetou, além dos demais, o aqui Autor, teve a sua origem numa dessas torres de refrigeração, na fábrica da ADP.

*

O recorrente não impugnou, pelo menos de forma eficaz, nos termos em que a lei exige que a impugnação se faça, quaisquer outros factos não provados, nem quaisquer factos assentes. Entre os factos provados contam-se os n.ºs 14 e 47 a 50, que apresentam o seguinte conteúdo:
«14. É usual a presença de bactéria Legionella nas torres de refrigeração das unidades fabris ou industriais, inexistindo à data do surto supra referido, legislação sobre a matéria, quanto aos limites máximos da sua presença ou concentração, nas torres de refrigeração, mas apenas “recomendações” ou “boas práticas”;
47. A Ré ADP, e as demais Rés, cumpre e cumpria à data referida em 4), todas as licenças aplicáveis, incluindo, a licença ambiental,
48. Bem como contratara empresa de gestão de água das torres de refrigeração, especializada e devidamente credenciada, no caso da Ré ADP, inicialmente a Quimiotécnica e a partir de meados de 2014, a GE;
49. E aplicava na manutenção e limpeza dessas TRG’s produtos devidamente certificados e autorizados pelas autoridades competentes;
50. E efetuava controles regulares, devidamente monitorizados pela Ré e pelas ditas empresas;»

O recorrente não impugnou estes factos, não os infirmou, nem por indicação dos respetivos números, nem explicitando discordância com o seu conteúdo. O mais próximo que o recorrente ficou da impugnação destes factos encontra-se nas suas conclusões r) e t) referentes ao depoimento da Senhora Inspetora-Chefe da Polícia Judiciária, …. Atentamente ouvido este depoimento, e relacionado com o que agora releva, foi dito, primeiro, de forma genérica, que «houve falhas na manutenção e no re-arranque das torres de arrefecimento após uma paragem». Instada para concretizar as «falhas», a testemunha afirmou: «Houve uma paragem do funcionamento das torres em outubro; foi uma situação que obriga à limpeza que era feita anualmente; há uma limpeza que é feita naquelas torres em outubro; foram esvaziadas as bacias, limpos os seus conteúdos, tudo de acordo com o que as regras das boas práticas ditam; na base da bacia ficaram alguns resíduos como ficam sempre; depois havia uma empresa – a GE – que devia ter feito a limpeza da base da bacia e não fez».

Segundo a testemunha, isso foi-lhe transmitido por técnicos da ré e da GE, embora tenha também dito que essas pessoas lhe afirmaram não haver relação entre essa falta de limpeza final da base da bacia e o surto de Legionella.

Pode tudo o afirmado pela testemunha ser certo, mas a verdade é que não se encontram provados nos autos procedimentos obrigatórios. O mais que à data existia era recomendações para prevenção e controlo da Legionella, com procedimentos vagos. Compulsado o documento intitulado «Prevenção e Controlo de Legionella nos Sistemas de Água», do Instituto Português da Qualidade e do Ministério da Economia, junto a fls. 115 e ss., constam as seguintes recomendações de prevenção:
«•  Assegurar uma boa circulação hidráulica, evitando zonas de águas paradas, ou de armazenamento prolongado, nos diferentes sistemas;
•  Acionar mecanismos de combate aos fenómenos de corrosão e incrustação através de uma correta operação e manutenção, adaptados à qualidade da água e às características das instalações;
•  Efetuar o controlo e monitorização da qualidade da água do processo, quanto ao residual de biocida, ao pH, à dureza, à alcalinidade, ao nº de colónias a 22 e 37ºC e à Legionella.» - p. 7.

E de reposição ou correção:

«No caso das torres de arrefecimento há quem considere como nível de alerta na água de arrefecimento valores entre 1000 e 10000 ufc/L de Legionella spp., sendo necessário tomar medidas corretivas, como parar o funcionamento da torre, rever o programa de tratamento da água, efetuar a sua limpeza e desinfeção e avaliar posteriormente a eficácia das medidas tomadas.» - p. 36.

Não consta da lista dos factos, provados ou não provados (nestes autos), que a dita limpeza final tenha sido omitida; assim como não consta, provado ou não provado (nestes autos), que o surto de Legionella, que indubitavelmente teve origem em torre da ré, tenha resultado dessa putativa omissão. Certo é que, algum passo falhou no ideal processo de limpeza da torre para se chegar à elevada concentração da bactéria em causa. Ainda que se pudesse dar por provada uma omissão, a responsabilidade da ré só emergiria se ela fosse ilícita e culposa.

C. Dos pressupostos da responsabilidade civil

O autor gizou a presente ação, e bem, como de responsabilidade civil extracontratual, argumentando com a verificação dos seus vários pressupostos (facto, ilicitude, culpa, dano e nexo de causalidade).

O dano-evento invocado pelo autor – contração pelo autor da doença dos legionários em dado período – nunca foi posto em causa nos autos.

Com a procedência do recurso da matéria de facto torna-se evidente que aquela doença teve origem em bem operado pela ré.

Em discussão permanece se a emissão da bactéria a partir da torre da ré foi causada por ato ilícito (ou omissão ilícita) e culposo da ré.

Para justificar a verificação de ato ilícito, o autor argumentou que uma instalação da fábrica da ré foi a fonte emissora da bactéria porque a ré teria infringido normas de proteção de terceiros constantes do DL 79/2006, de 4 de abril, e da publicação «Prevenção e controlo de Legionella nos sistemas de água».
Para justificar a existência de culpa, socorreu-se da presunção prevista no art. 493, n.º 2, do CC, defendendo que a atividade exercida pela ré é uma atividade perigosa para efeitos do disposto na norma.

Quid juris?

Da violação de norma de proteção de terceiros que impunha comportamento que foi omitido

Nos termos da regra geral estabelecida pelo art. 483, n.º 1, do CC, aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.

No caso dos autos, a ré não incorreu em comportamento ativo gerador do dano, sendo-lhe antes imputada uma omissão (falta de certa limpeza do fundo da bacia de uma torre de refrigeração após ser esvaziada e antes de voltar a entrar em funcionamento). Essa omissão terá levado à enorme concentração da bactéria Legionella e à sua disseminação no ar exterior circundante.

As simples omissões apenas dão lugar à obrigação de reparar os danos quando, independentemente dos outros requisitos legais, haja, por força da lei(ou de negócio jurídico, sendo, então, a responsabilidade contratual), o dever de praticar o ato omitido – assim o determina o art. 486 do CC. Segundo o autor, tal dever decorria para a ré de certas normas jurídicas (veremos em seguida quais), reconduzíveis ao conceito de normas de proteção de terceiros.

A violação de uma norma de proteção de terceiros, que visa tutelar interesses das pessoas em geral, quando seja causadora de lesão dos interesses por ela (norma) tutelados, gera responsabilidade civil e inerente dever de indemnizar – trata-se da segunda modalidade de ilicitude prevista na já citada norma geral do n.º 1 do art. 483 do CC.

Afirma o autor que a ré violou regras constantes do DL 79/2006, de 4 de abril, e da publicação «Prevenção e controlo de Legionella nos sistemas de água», destinadas a proteger interesses alheios, da comunidade em geral, e que lhe impunham ter agido de certa maneira. Pretende o autor que aquele diploma e aquele texto estabeleciam regras para prevenção de surtos de Legionella que impunham que a ré tivesse tido dada conduta, que a ré terá omitido, em violação das ditas regra.

Relida a publicação citada pelo autor, a que já antes nos referimos, «Prevenção e controlo de Legionella nos sistemas de água», dela não resultam obrigações nem deveres de agir, apenas recomendações mais ou menos vagas. No que respeita ao DL 79/2006, os edifícios industriais destinados a atividades de produção estão isentos dos requisitos do regulamento aprovado pelo diploma em causa (art. 2.º, n.º 2, al. c). As suas normas dirigem-se aos projetos de sistemas de climatização, aos limites de consumo de energia, às condições de manutenção dos sistemas de climatização, às condições de monitorização e de auditoria de funcionamento dos edifícios em termos dos consumos de energia e da qualidade do ar interior, e à formação profissional dos técnicos responsáveis pelo projeto, instalação e manutenção dos sistemas de climatização. O âmbito de proteção das suas normas é o da saúde e bem-estar dos ocupantes dos edifícios. Sempre que a atmosfera exterior é referida, é apenas no sentido de garantir que a poluição externa não afeta a qualidade do ar interior. Apenas a qualidade do ar interior (QAI) é objeto de normas destinadas a garanti-la, nomeadamente, as que impõem auditorias. A área de proteção das normas deste diploma respeita ao bem-estar das pessoas que habitam ou trabalham nos imóveis por ele abrangidos.

O DL 79/2006 foi revogado pelo DL 118/2013, de 20 de agosto. O diploma de 2013, vigente à data dos factos,  aprovou o Sistema de Certificação Energética dos Edifícios, o Regulamento de Desempenho Energético dos Edifícios de Habitação e o Regulamento de Desempenho Energético dos Edifícios de Comércio e Serviços, e transpôs a Diretiva n.º 2010/31/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 19 de maio de 2010, relativa ao desempenho energético dos edifícios. O seu objeto, de acordo com o art. 1.º, consistia em assegurar e promover a melhoria do desempenho energético dos edifícios através do Sistema Certificação Energética dos Edifícios (SCE), que integra o Regulamento de Desempenho Energético dos Edifícios de Habitação (REH), e o Regulamento de Desempenho Energético dos Edifícios de Comércio e Serviços (RECS). O diploma não continha qualquer disposição dirigida ao controlo da Legionella.

Apenas com a Lei 52/2018, de 20 de agosto, se estabeleceu um regime de prevenção e controlo da doença dos legionários, aplicando-se em todos os setores de atividade, e se introduziram alterações no DL 118/2013, com o mesmo propósito.

No caso dos autos, a ré não incorreu em comportamento ativo gerador do dano. Poderíamos, quanto muito, concluir que por certo foi omitida a limpeza necessária a que não se gerasse a concentração de bactérias que se gerou. Porém, não havia norma que impusesse a limpeza com determinados requisitos. A possível omissão apenas daria lugar à obrigação de reparar os danos se, para além da verificação dos outros requisitos legais, houvesse, por força da lei, o dever de praticar o ato omitido (art. 486 do CC). No caso, ao tempo, não havia tal disposição legal.

Está, assim, afastada a responsabilidade por violação de disposição legal destinada a proteger interesses alheios (por inexistência, à data, de disposição legal destinada à prevenção de emissões de Legionella para a atmosfera a partir de edifícios industriais).

Da perigosidade da atividade

O recorrente argumentou, ainda, que a atividade da ADP, ao utilizar no seu processo produtivo torres de arrefecimento – em que a atividade de refrigeração própria de tais torres consiste na circulação e no arrefecimento de água, subsequentemente expelida para a atmosfera –, seria uma atividade perigosa por poder gerar elevada concentração da bactéria Legionella. Nos termos do disposto no art. 493, n.º 2, do CC, quem causar danos a outrem no exercício de uma atividade, perigosa por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, exceto se mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir.

Objeto da prova liberatória referida no art. 493, n.º 2, do CC

A norma expressa no art. 493, n.º 2, do CC exceciona a regra geral da responsabilidade extracontratual segundo a qual incumbe ao lesado provar a culpa do autor da lesão (art. 487, n.º 1, do CC), estabelecendo a presunção legal de culpa do lesante no desenvolvimento de atividade perigosa. Mas será apenas isso? Contemplará a norma apenas um caso de presunção de culpa? A ser assim, o lesado teria de demonstrar não apenas o exercício de atividade qualificável como perigosa, mas também a ilicitude de determinado ato ou omissão, gerador do dano, durante esse exercício. Ou seja, teria de demonstrar o ato (ou omissão) ilícito ou a violação ilícita de disposição de proteção de terceiros (o que já vimos não ter demonstrado).

A dogmática da norma não é fácil. Desde logo, ao contrário do que sucede com outros casos de presunção de culpa (v. art. 350, n.º 2, do CC), não basta ao lesante provar que não teve culpa, sendo necessário provar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de prevenir os danos. Assim, não poderá exonerar-se com a alegação e prova de que os danos se teriam verificado por outra causa, mesmo que o lesante tivesse tomado todas as providências exigíveis para prevenir o dano. Quis o mentor do Código, na esteira do Codice italiano, que quem exerce atividades perigosas, por sua natureza ou pela natureza dos meios adotados, use de todas as cautelas apropriadas pera evitar o dano que essas atividades podem causar. «O caráter perigoso delas impõe um especial dever de diligência. Além de se presumir a culpa do agente, pelas mesmas razões, aqui agravadas ainda, por que se propõe a presunção de culpa no caso de danos causados por coisas à guarda de alguém»[1].

Cremos que a maioria dos Autores explicam a norma como excecionando apenas a regra de que ao lesante incumbe a prova da culpa do lesado, ainda que reconhecendo que a presunção de culpa é mais forte aqui do que noutras normas do sistema que também estabelecem presunções de culpa[2]. Entre estes, Rui Ataíde, que na sua tese de doutoramento, da presente década, dedica extensas páginas à explicação da norma; a sua posição pode sintetizar-se na passagem em que afirma que a unidade do sistema impõe que «a determinação do conteúdo da prova liberatória tem de obedecer em simultâneo a dois parâmetros fundamentais que só aparentemente são contraditórios: contê-la dentro dos limites do princípio da culpa, expurgando-a da obstrução literal criada pelo artigo 493.º/2 e acatar a intencionalidade legislativa, materialmente justificada, de criar um regime de responsabilidade mais severo para o exercício das atividades perigosas»[3]. Distintamente, Menezes Cordeiro atribui à norma presunção mista de culpa e ilicitude (semelhante à faute francesa), por violação de deveres do tráfego (de prevenção e de cuidado), que sempre recaem sobre quem exerce e beneficia de uma atividade perigosa[4].

Para a decisão deste recurso não será necessário que esta formação tome posição sobre se o art. 493, n.º 2, do CC contém uma mera presunção de culpa, ainda que forte, ou se, mais do que isso, contém uma presunção de ilicitude (presunção de violação de deveres do tráfego). E não será necessário porque, para que a norma operasse seria imprescindível que a atividade que esteve na origem do surto de Legionella se reconduzisse ao conceito de atividade perigosa e, como passamos a justificar, não se reconduz.

Conceito de atividade perigosa

«Atividade perigosa» é um conceito indeterminado que a lei não define, nem em geral, nem para os efeitos do disposto na norma, limitando-se a relacionar a perigosidade com a natureza da atividade ou dos meios utilizados.

Quer a doutrina quer a jurisprudência densificam o conceito através da exemplificação de casos. Nas atividades por natureza perigosas, v.g., «fabrico de explosivos, confeção de peças pirotécnicas, navegação aérea», na perigosidade dos meios utilizados, v.g. «tratamento médico com ondas curtas ou com raios X, corte de papel com guilhotina mecânica, tratamento dentário com broca, transporte de combustível» - os exemplos são de Antunes Varela[5]. 

Entre os casos que a jurisprudência tem identificado como atividades perigosas: o lançamento e queima do fogo de artifício (Ac. STJ de 19/01/2017, proc. 167/07.7TBVNC.G1.S1, Ac. STJ de 07/03/2017, proc. 6091/03.5TVLSB.L1.S1, Ac. TRG de 20/09/2018, proc. 6101/15.3T8BRG.G1),  a distribuição de energia elétrica (Ac. TRG de 26/04/2018, proc. 3702/16.6T8BRG.G1) – ambas atividades cujo exercício está sujeito a regras especiais, tendentes a diminuir a sua perigosidade –, abertura de valas extensas e profundas para instalação de condutas, ( Ac. TRC de 19/06/2013, proc. 2219/09.0TJCBR.C1), utilização de uma retroescavadora, adaptada com equipamento de elevação e transporte de cargas (grua), na construção de uma conduta de águas pluviais e de saneamento, através da execução, numa vala, de uma caixa de visita em manilhas de cimento (Ac. STJ de 17/05/2017, proc. 1506/11.1TBOAZ.P1.S1), transporte de uma grua, através de engate da lança do veículo de reboque na frente da grua-automóvel, ficando esta apenas com as rodas traseiras a rodar no asfalto (Ac. STJ de 07/04/2016, proc. 7895/05.0TBSTB.E1.S1). Outros exemplos de casos narrados na jurisprudência nacional são: escorregas, piscinas e pistas em parques aquáticos, corridas de karting, armazenamento e manuseamento de resinas naturais e outros materiais inflamáveis, movimentação de carga pesada em construção civil, motos de água, rally, içamento de embarcação com grua[6].

Estão sempre em causa atividades que, pela sua natureza ou pela natureza dos meios utilizados, envolvem uma probabilidade de causar danos a terceiros mais elevada do que a verificada na generalidade das atividades. Trata-se de atividades que implicam por si, ou pelos meios que empregam, situações de acentuado risco de gerarem danos.

A doença dos legionários, que o autor contraiu, que é uma forma de pneumonia grave causada pela bactéria Legionella pneumophila. A probabilidade de uma pessoa contrair uma pneumonia causada por esta bactéria é de 1 em 100.000, sensivelmente. Já acima o referimos, em Portugal, no período de 10 anos que decorreram de 2004 a 2013, houve 862 casos confirmados, uma média anual de 86,2 casos – os números constam de documento da Direção-Geral de Saúde, disponível em https://www.dgs.pt/documentos-e-publicacoes/vigilancia-em-saude-publica-doenca-dos-legionarios-em-portugal-2004-2013-pdf.aspx, quadro 1, p. 11.

Considerando que Portugal tem cerca de 10.000.000 de habitantes, houve por ano naquela década 1 caso em cada 116.009 habitantes.  Tanto significa que a probabilidade (média anual) de contrair a doença é de 0,000862%.

Naquela década, o ano com mais casos foi 2012, com 132 casos (para 10.000.000 de habitantes), ou seja, houve 1 caso em cada 75.757 habitantes. Se fosse todos os anos como naquele pior ano de 2012, a probabilidade de contrair a doença seria de 0,0013%.

A probabilidade que avançámos de 1 para 100.000, e que justificámos com dados estatísticos portugueses encontra-se noutros países. Segundo dados da Organização Mundial de Saúde, na Europa, na Austrália em nos Estados Unidos (onde os casos são adequadamente diagnosticados e contabilizados), há 10 a 15 por milhão de habitantes por ano, ou seja, entre 1 e 1,5 por 100.000 habitantes.

Assim se lê na página eletrónica da referida instituição, https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/legionellosis: «Since many countries lack appropriate methods of diagnosing the infection or sufficient surveillance systems, the rate of occurrence is unknown. In Europe, Australia and the USA there are about 10–15 cases detected per million population per year.»

Sendo a doença tão rara como é, dificilmente se poderá entender que uma das atividades potencialmente geradoras de concentrações elevadas de bactéria – o funcionamento e manutenção de torres de arrefecimento – seja uma atividade perigosa.

Este, porém, não é o único nem o principal argumento para afastar a qualificação da manutenção de uma torre de arrefecimento como atividade perigosa.

O conceito de atividade perigosa é dinâmico e evolutivo, variável em função de circunstâncias externas ao agente, como a evolução científica e tecnológica dos meios utilizados. Para dar um exemplo, os atuais aparelhos de radiologia emitem muito menos radiação que os primitivos.

A norma, ao presumir a culpa do agente, tem subjacente a ideia de que quem exerce uma atividade perigosa deve desenvolvê-la com especial cuidado, presumindo-se que ele não existiu se da atividade sobrevier um dano. O agente só ilidirá a presunção de culpa se mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de prevenir os danos. O nível de diligência exigida a quem desenvolve atividade perigosa é mais elevado que o exigido para as atividades em geral.

Isto exige que a perigosidade da atividade, ou dos meios empregados no seu desenvolvimento, seja evidente, pelo menos, para as pessoas que normalmente a exercem e que devem, dela, estar conscientes. À data em que o caso ocorreu nada indica que houvesse consciência, quer na sociedade em geral, quer na ré de que ter e manter uma torre de arrefecimento fosse uma atividade perigosa. Ainda hoje assim é. O que está em causa não é a perigosidade da atividade (quer seja esta a atividade industrial da ré que usa torres de arrefecimento, quer seja a atividade de manutenção das torres), mas o perigo que pode decorrer de uma deficiente utilização ou manutenção dos equipamentos. O perigo advirá da prática de um ilícito por omissão e não da atividade em si. Caímos, então, na questão do ato ilícito, remetendo para o que supra se disse sobre a inexistência de norma de proteção de interesses alheios, cujo âmbito de proteção fosse a saúde das populações residentes nas áreas envolventes de torres de arrefecimento.

Ao não jurista, pode ser difícil de explicar. Não está em causa que o autor sofreu dano, grave, com origem numa instalação da ré e que muito provavelmente não teria sido sofrido se a ré tivesse atuado de certa forma. Não havia, porém, norma à data que impusesse atuação diferente com vista à proteção de populações circundantes. E se a lei não precavia, ainda, a situação, muito menos se pode pensar que a ré tivesse consciência de que o seu comportamento podia gerar o dano que gerou.

Em conclusão, não se provaram nos autos factos correspondentes aos pressupostos elementares da responsabilidade civil extracontratual (ato, ou omissão, voluntário, ilícito e culposo), pelo que o efeito nefasto decorrente da consumação do dano (que foi grave, existiu e teve causa em atividade da ré) tem de permanecer na esfera jurídica do lesado.

IV. DECISÃO

Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando, ainda que com diferente fundamentação, a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficie.

Lisboa, 10/09/2019

[1] Adriano Paes da Silva Vaz Serra, «Responsabilidade pelos danos causados por coisas ou atividades», Boletim do Ministério da Justiça, 85 (abril de 1959) pp. 361 a 380 (378-9).
[2] V.g., João de Matos Antunes Varela, Das obrigações em geral, I, 10.ª ed., Almedina, 2003, pp. 593-5. O Autor trata o tema sob alínea intitulada «C) Danos causados por coisas ou animais ou por atividades perigosas» integrada em número com o título «170. Prova da culpa. Presunções de culpa.». Mais adiante, ao reconhecer o peso da razões que explicam o fenómeno da socialização do risco, defende os argumentos a favor da responsabilidade subjetiva, que o Código Civil acolheu, e enumera os casos de responsabilidade objetiva no CC – danos causados por comissário, órgãos, agentes ou representantes do Estado ou outras pessoas coletivas públicas, por animais, por veículos e por instalações de energia elétrica ou de gás – omitindo atividades perigosas em geral (pp. 635-6). V. ainda, também exemplificativamente, Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das obrigações, I, 10.ª ed., Almedina, 2013, p. 294-5; Ana Prata, Código Civil Anotado, I, 2.ª ed., Almedina, 2019, p. 675.
[3] Rui Paulo Coutinho de Mascarenhas Ataíde, Responsabilidade civil por violação de deveres no tráfego, Almedina, 2015, pp. 463-532. A frase transcrita é da p. 527.
[4]Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, II, Direito das obrigações, tomo III, Almedina, 2010, p. 587: «havendo uma atividade perigosa, a pessoa que dela se sirva ou que a desencadeie tem deveres de prevenção e de cuidado, a seu cargo: os deveres do tráfego. Tais deveres têm o conteúdo de, nas condições existentes e de acordo com as (boas) técnicas aplicáveis, prevenirem danos, pessoais ou materiais. Quando a atividade seja perigosa e dela decorra danos, é ao beneficiário que cumpre provar o efetivo cumprimento de tais deveres: tal é o concreto sentido que, aqui, assume a presunção de culpa».
[5] Ob. cit., p. 595.
[6] Ver lista de acórdãos com estes e outros casos na citada obra de Menezes Cordeiro, pp. 585-7.

Higina Castelo
José Capacete
Carlos Oliveira