Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
681/14.8TBOER.L1-6
Relator: TERESA PARDAL
Descritores: BENS COMUNS DO CASAL
PROCURAÇÃO DE UM DOS CÔNJUGES AO OUTRO
PROCURAÇÃO IRREVOGÁVEL
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/20/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1 – Não tendo os réus apelantes e promitentes vendedores de duas fracções autónomas impugnado a decisão da matéria de facto da sentença recorrida e não tendo logrado demonstrar a existência de um princípio de prova documental e de circunstâncias objectivas que justificassem a valorização de prova testemunhal relativamente à divergência entre a vontade declarada e a vontade real dos outorgantes no contrato promessa, não foi ilidida a presunção legal que, nos termos do artigo 376º do CC, confere força probatória a tais declarações,

2 – Não é nula, por violação do princípio da imutabilidade das convenções antenupciais e dos regimes de bens, a procuração outorgada pela cônjuge ora ré ao cônjuge ora réu, conferindo-lhe poderes para vender duas fracções autónomas que constituem bens comuns do casal, podendo o representante praticar os actos necessários para o efeito, com menção de que a procuração é passada no interesse do representante e portanto irrevogável, mas sem menção de que o representante pode celebrar negócio consigo mesmo.

3 – Constando no certificado emitido pelo cartório notarial que, no dia da marcação da escritura do contrato prometido, fixado por iniciativa da compradora, foram juntos os documentos de liquidação do IMT e do imposto de selo sem comprovativo de cobrança e que a escritura de compra e venda das fracções não se realizou por os vendedores terem alegado a falsidade do contrato promessa e ter existido acção de execução específica do contrato promessa considerada desfavorável à parte contrária, há que concluir que a compradora, interessada na celebração do contrato, só não pagou os referidos impostos em virtude da recusa dos vendedores em o outorgar, havendo assim incumprimento definitivo por parte destes.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO.

M… intentou contra A… e AA... acção declarativa com processo comum, alegando, em síntese, que, por contrato promessa de 15 de Abril de 1999, os réus, sendo o réu por si e em representação da ré, prometeram vender a I… que prometeu comprar-lhes, duas fracções autónomas integrantes do mesmo prédio, correspondentes, ao 2º andar dto destinado a habitação e à garagem nº43 sita na cave 1, pelo preço de 10 000 000$00, integralmente pago à data da celebração do contrato e, de acordo com o convencionado, o réu conferiu procuração e substabelecimento da ré à promitente compradora, para esta celebrar o contrato prometido consigo própria, mas a procuração e substabelecimento caducaram antes da outorga do contrato prometido, por falecimento da promitente compradora, de quem a autora é mãe e única sucessora e que, nessa qualidade, notificou os réus para outorgarem a escritura pública do contrato de compra e venda, sob pena de incumprirem definitivamente o contrato promessa, mas, no dia na data fixada para o efeito, o réu compareceu e, por si e em representação da ré, recusou-se a outorgar a escritura, pelo que, de acordo com o convencionado, a autora tem o direito de requerer a execução específica do contrato promessa.    
Concluiu pedindo que seja proferida sentença que produza os efeitos da declaração negocial de venda dos réus, transmitindo-se para a autora a propriedade das fracções prometidas e que ordene a inscrição das mesmas a favor da autora na Conservatória do Registo Predial.
Os réus contestaram, alegando, em síntese, que está pendente uma outra acção idêntica a esta cuja sentença ainda não transitou em julgado, que não foi por motivo imputável aos réus que a escritura não se realizou, tendo sim a autora omitido o pagamento prévio do IMT e do Imposto de Selo, que o contrato promessa é nulo por ser falso, não sendo da autoria dos réus e não correspondendo o respectivo conteúdo à sua vontade, não tendo o réu consciência do seu alcance jurídico, havendo divergência entre a declaração negocial nele descrita e a vontade real dos declarantes, não pretendendo o réu prometer vender nem a falecida outorgante prometer comprar, tendo sido outorgado apenas para salvaguardar os bens propriedade do réu e a habitação da falecida filha da autora, que tinha dificuldades económicas, sendo também falsa a menção de que o preço se encontra pago, pois tal pagamento nunca foi feito, para além de o mesmo contrato padecer de outras irregularidades, como o facto de não conter a morada dos promitentes vendedores e dos bens objecto da promessa de venda, de ter sido celebrado mediante procuração da ré que apenas contemplava a venda e não a promessa de venda, não sendo também os direitos do contrato transmissíveis aos sucessores das partes e, consequentemente, à ora autora, por se basear na relação pessoal existente entre o réu e a falecida filha da autora.
Concluíram pedindo a procedência das excepções e a improcedência da acção e, no caso de assim não se entender, em reconvenção, deduziram o pedido de condenação da autora no pagamento do preço do contrato e de despesas efectuadas nas fracções pelos reconvintes.   
A autora replicou opondo-se às excepções e à reconvenção e terminando como na petição inicial.
Teve lugar audiência prévia, na qual o os réus aceitaram que o réu e a falecida I… assinaram o contrato promessa objecto dos autos; foram ainda saneados os autos, não se admitindo a reconvenção, julgando-se improcedente a excepção de litispendência e também de caso julgado (por entretanto ter sido junta aos autos a decisão final do processo em que se fundava a litispendência), foi fixado o objecto do litígio e foram fixados os temas de prova, neles se incluindo os respectivos nºs 2 e 3 com a seguinte redacção: (nº2) “Da intenção das partes na celebração do contrato e da vontade esclarecida das mesmas” e (nº3) “Do pagamento do preço”.
Procedeu-se a julgamento, no decurso do qual a autora requereu que não fosse admitido o depoimento testemunhal à matéria do pagamento do preço do contrato e da intenção das partes na celebração do mesmo, tendo sido proferido despacho que admitiu o depoimento testemunhal sobre os pontos 2 e 3 dos temas de prova, sem prejuízo de, na análise da prova, se vir a ponderar se estes podem ou não ser valorados à luz dos artigos 373º, 393º e 394º do CC, despacho este que foi impugnado por recurso em separado e que veio a ser confirmado por acórdão deste Tribunal da Relação.
Findo o julgamento, foi proferida sentença que julgou a acção procedente e, substituindo a vontade dos réus no contrato de compra e venda prometido, declarou transmitido para a autora, na qualidade de herdeira da promitente compradora, a propriedade plena das fracções autónomas em causa, demonstrado que esteja o cumprimento das obrigações tributárias.
                                                           *
Inconformados, os réus interpuseram recurso e alegaram, formulando conclusões com as seguintes questões:
   - O Tribunal recorrido decidiu não ser de acolher a prova testemunhal oferecida e ouvida em audiência de julgamento quanto à existência de simulação alegada pelos réu, por entender que tal meio de prova seria inadmissível se com ele se visasse, como pretendiam os réus, contradizer o teor de declarações constantes de documento com força probatória plena, nos termos dos artigos 373º a 379º, 393º nº2 e 394º nº2, todos do CC.
- Apesar de acolher a tese doutrinária e jurisprudencial dominante da necessidade de interpretação restritiva do artigo 394º do CC, a sentença recorrida concluiu que no processo não existem elementos documentais, nem circunstâncias objectivas que corporizassem um princípio de prova, o que, segundo tal tese, é necessário para que a prova testemunhal possa ser valorada.
- Errou o tribunal recorrido, pois existem elementos documentais e circunstâncias objectivas que permitiriam a valoração da prova testemunhal, de acordo com a referida tese.
- Face à natureza dos acordos simulatórios, elaborados com o intuito de enganar terceiros, será difícil encontrar-se prova documental inequívoca da intenção simulatória, pelo que bastará que se possam retirar indícios dessa intenção de provas documentais, para que a prova testemunhal possa ser valorada para demonstrar a concretização do acordo simulatório.
- Existem dois documentos nos autos que revelam à saciedade o acordo simulatório: a cláusula 4ª do contrato promessa que menciona a procuração outorgada pela ré como sendo também no interesse da segunda outorgante e o conteúdo da referida procuração no interesse do mandatário ora réu e permitindo-lhe celebrar negócio consigo próprio, os quais constituem um princípio de prova documental que permite a valorização da prova testemunhal na interpretação restritiva do artigo 394º do CC, havendo assim erro de julgamento na sentença recorrida, pois a valorização da prova testemunhal redundaria na procedência da argumentação dos réus, atento o sentido da produção de tal prova, como a própria sentença reconhece.
- A procuração outorgada pela ré é nula por violação do princípio da imutabilidade das convenções antenupciais e dos regimes de bens, consagrado no artigo 1714º do CC, por não ser permitida legalmente a venda de bens entre cônjuges, designadamente quando casados no regime de comunhão de adquiridos, como é o caso dos réus e, de igual modo e por maioria de razão, também não o é a emissão de procuração irrevogável, pois consiste numa disposição definitiva do bem a favor do marido, sendo esta nulidade invocável a todo o tempo por qualquer interessado, devendo ser declarada oficiosamente pelo tribunal, nos termos dos artigos 286 e 289º do CC.
- Não é admissível a redução da procuração ao abrigo do artigo 292º do CC (expurgando-se a concessão de poderes ao mandatário para celebrar negócio consigo mesmo e a sua irrevogabilidade), porquanto esse poder era elemento essencial deste negócio unilateral.
- A procuração da ré a favor do seu marido assim outorgada permitiu a este substabelecer na falecida filha da autora os poderes que lhe tinham sido concedidos e dar-lhe a possibilidade de outorgar escritura definitiva sem intervenção de outro contratante e sem necessidade de comunicações prévias, o que não seria possível se não tivesse o carácter irrevogável.
- Acresce que as razões subjacentes à norma do artigo 1714º do CC, da imutabilidade das convenções antenupciais e dos regimes de bens de casamento por razões de segurança em virtude de se desconhecer as razões subjacentes à procuração e se um dos cônjuges se aproveitou do outro.
- De igual modo não se pode admitir a possibilidade de conversão da procuração num negócio jurídico diverso, por não estarem reunidos os pressupostos do artigo 293º do CC.
- A nulidade da procuração outorgada pela ré torna ineficaz perante a ré a intervenção do réu no contrato promessa em sua representação, nos termos do artigo 268º do CC, bem como o substabelecimento outorgado pelo réu em que transmite os poderes provenientes da referida procuração.
- Não se tendo vinculado um dos proprietários das fracções, a ora ré, à promessa de venda, não pode operar a execução específica poro alegado incumprimento da obrigação contratual.
- A sentença incorreu no vício de omissão de pronúncia a que alude o artigo 615º nº1 d) do CPC, sendo, por isso, nula.
- No quadro da interpretação restritiva do artigo 394º do CC, para além da prova documental já referida, existem circunstâncias objectivas que concedem o princípio de prova permitindo a valoração da prova testemunhal, ao contrário do decidido na sentença recorrida e que consistem no facto provado no ponto 13, de a falecida filha da autora não ter outorgado a escritura pública de compra e venda das fracções objecto do contrato promessa, durante os 12 anos que decorreram entre a celebração deste e o seu falecimento, apesar de supostamente ter o respectivo preço pago, tudo indiciador da existência de não ter sido feita promessa de compra e venda, mas sim um acordo simulatório.
- Errou pois a sentença recorrida, ao não valorizar a prova testemunhal no sentido de que houve simulação, não se compreendendo que tenha concluído que os réus recorreram à prova testemunhal apenas para provar os problemas económicos de I… e o auxílio prestado pelo réu no seu sustento, não concluindo que os depoimentos das testemunhas seriam necessariamente no sentido de que o contrato nunca foi outorgado porque nenhuma real promessa de compra e venda ocorreu, nem nenhum preço foi pago.
- O Tribunal deu como não provado o pagamento pela autora do IMT e do Imposto de Selo, mas, apesar do artigo 49º nº1 do CIMT, não retira dessa situação a consequência de que a promitente compradora não reuniu as condições necessárias para a celebração da escritura, verificando-se contradição entre os fundamentos e a decisão, geradora de nulidade, nos termos do artigo 615º nº1 c) do CPC.
- Face à imperatividade da norma do CMIT indicada, incorre em erro de julgamento a sentença quando não retira tal conclusão e justifica a desconsideração deste facto numa inconveniência para a compradora de pagar os impostos antes de saber primeiro se os pressupostos da escritura estão reunidos.
- O Tribunal alude a uma recusa dos réus em outorgar o contrato, mas tal facto não se provou, apenas se tendo provado, no facto 17, que o notário certificou que a não realização da escritura se deveu a tal circunstância, verificando-se nova oposição entre fundamentos e decisão, geradora de nulidade, nos termos do artigo 615º nº1 c) do CPC. 
- O recurso deve proceder, proferindo-se nova decisão que acolha a fundamentação aqui vertida, com o que se fará Justiça.
                                                        *
A recorrida contra-alegou pugnando pela improcedência do recurso e confirmação da sentença recorrida.
As questões a decidir, delimitadas pelas conclusões das alegações, são:
I) Valorização da prova testemunhal relativamente à matéria da simulação e do não pagamento do preço no contrato promessa.  
II) Nulidade da procuração outorgada pela ré e nulidade da sentença por omissão de pronúncia.
III) Responsabilidade pela não celebração da escritura do contrato prometido e não pagamento das obrigações tributárias e nulidade da sentença por contradição entre os fundamentos e a decisão.
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FACTOS.
São os seguintes os factos considerados provados e não provados pela sentença recorrida:
Provados.
1. Pela Ré foi assinada a procuração que dos autos faz fls. 50, que aqui se dá por reproduzida, datada de 17-11-1995, onde declarou “conceder ao Réu poderes necessários para, nos termos e condições que entender, vender as fracções autónomas CH, segundo andar esquerdo e GE garagem nº 43, ambas no prédio urbano sito na Rua …, nºs 15 a 19 e Rua …, nºs 25 a 25B, outorgar e assinar as necessárias escrituras bem como requerer, praticar e assinar tudo o mais que for necessário aos indicados fins. Essa procuração é passada no interesse do mandatário, pelo que é irrevogável…”
2. O Réu e I… apuseram a sua assinatura no documento datado de 15 de Abril de 1999, junto a fls. 13 a 16, que se dá como que aqui se dá por reproduzido.
3. Neste, o Réu declarou por si e em representação de sua mulher, ora Ré, remetendo para procuração com poderes para o acto arquivada no 6º Cartório Notarial de Lisboa, como primeiro outorgantes, que eram legítimos proprietários das fracção autónoma designada pelas letras CH, e GE do prédio inscrito na matriz predial urbana sob o artigo … da freguesia de Carnaxide, concelho de Oeiras.
4. O Réu declarou por si e em representação de sua mulher, ora Ré, que prometia vender a I… ou a quem esta indicar e esta declarou prometer comprar àqueles essas fracções autónomas pelo preço total de dez milhões de escudos.
5. Mais ali declararam que a totalidade do preço foi paga.
6. Mais referiram que antes da data da assinatura do contrato promessa a Ré outorgou a favor do Réu procuração irrevogável no interesse daquela para que se possa realizar contratos-promessa de compra e venda a favor de quem entender e outorgar escritura de compra e venda.
7. O Réu declarou que iria substabelecer os poderes de venda que lhe foram conferidos pela Ré e outorgar procuração de venda, ambos a favor de I… ou de quem esta indicar e relativas às fracções autónomas objecto daquele contrato-promessa.
8. Mais ali se dispensou qualquer notificação por qualquer dos outorgantes para a marcação da escritura, podendo esta ser outorgada.
9. Estabeleceu-se na cláusula 6ª do contrato-promessa de compra e venda que nenhuma das partes teria de fazer qualquer notificação para a marcação da necessária escritura, a qual poderia ser outorgada pela referida promitente compradora a partir da data da assinatura daquele contrato.
10. Mais se declarou que no caso de incumprimento por parte dos primeiros outorgantes ficava, desde logo, atribuído à segunda outorgante o direito a recorrer à acção de execução específica daquele contrato-promessa.
11. As assinaturas do contrato-promessa mostram-se reconhecidas notarialmente.
12. Os referidos substabelecimento e procuração foram conferidos pelo Réu marido à referida e identificada promitente compradora, conforme consta do documento que se dá por reproduzido e que dos autos é fls. 52.
13. No dia 25 de Agosto de 2011 e sem que se tivesse celebrado a escritura pública de compra e venda prometida, I… faleceu - fls. 55
14. À referida promitente compradora sucedeu, apenas, a aqui Autora, sua mãe. fls. 55
15. Por meio de notificação judicial avulsa efectuada por Agente de Execução no dia 15 de Janeiro de 2014, a Autora, invocando a qualidade de única herdeira e sucessora de I… notificou os Réus para comparecerem no Cartório Notarial do Dr. J…, sito na Av. …, …, … andar, em Lisboa, no dia 30 de Janeiro de 2014, pelas 10 horas e 30 minutos, a fim de outorgarem na escritura pública de compra e venda - fls. 57
16. Mais se notificaram, ainda, os Réus de que, caso a escritura pública de compra e venda para que estavam a ser convocados se não realizasse no dia e hora agendados por facto que lhes fosse imputável, a Autora consideraria que os Réus incumpriram, definitivamente, o mencionado contrato-promessa de compra e venda.
17. Em 30-1-2014 foi pelo Notário de cartório sito na Av. … em Lisboa certificado que para esse dia a Autora havia agendado escritura de compra e venda faz fracções autónomas CH e GE ambas do prédio urbano sito no Parque residencial de Miraflores e que a escritura não foi realizada “pelos seguintes motivos imputáveis aos vendedores: alegada falsidade do contrato-promessa, ter existido acção de execução especifica do contrato-promessa considerada desfavorável à parte contrária.”
18. No contrato não consta a indicação da morada dos promitentes vendedores.
19. No contrato não consta a indicação da morada dos bens a que se refere.
20. I… nunca executou o contrato.
21. As fracções autónomas designadas pelas letras CH (correspondente ao segundo andar esquerdo destinado a habitação e arrecadação CH sita na cave 2) e GE (correspondente à garagem n.º 43 sita na cave 1), integrantes do prédio urbano sito no Parque …, Rua …, nºs 15, 17 e 19 e Rua …, nºs 25, 25-A e 25-B, em Algés, freguesia de Algés, concelho de Oeiras, estão actualmente descritas na 2ª Conservatória do Registo Predial de Oeiras sob o n.º …/… – freguesia de Algés e anteriormente descrito sob o n.º … da freguesia de Carnaxide) e actualmente inscrito na matriz predial urbana da União das Freguesias de Algés, Linda-a-Velha e Cruz Quebrada-Dafundo sob o artigo … (primeiro, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Carnaxide sob o artigo … e, depois, na matriz predial urbana da freguesia de Algés sob o artigo …2).
Não provados.
 [np]-1.  Que a Autora pagou previamente o IMT e o Imposto de Selo.
[np]-2. Que o Réu não tinha consciência do alcance jurídico do acto que praticou.
[np]-3. Que o Réu outorgou o contrato apenas para salvaguardar os seus bens.
[np]-4. Que a venda foi efectuada por metade do valor porque havia sido comprado cinco anos.
[np]-5.  Que o declarado pelo Réu não foi redigido a escrito.
[np]-6. Que o 1º Réu ao subscrever o documento não pretendia obrigar-se perante Ilda Martins a vender-lhe a fracção autónoma, nem esta pretendeu obrigar-se a comprar-lha, apenas pretendendo ambos assegurar que aquela pudesse, durante a sua vida, habitar na mesma, sem que pudesse ser esse uso atacado por terceiros.
[np]-7. Que os Réus nunca receberam de I… o montante acordado, de 10.000.000$00.
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Ao abrigo dos artigos 607º nº4 e 663º nº2 o CPC, adita-se à matéria de facto os seguintes factos, provados pelo documento de fls 77 e seguintes da Conservatória do Registo Predial de Oeiras e pelo documento de fls 70 e 71 do cartório notarial nele identificado:
22. O registo da aquisição das duas fracções em causa pelo réu, casado no regime de comunhão de adquiridos com a ré, é de 23 de Novembro de 1995, sendo os sujeitos passivos L… e I…, ambos divorciados.
23. No certificado a que se refere o ponto 17 consta que foi entregue a liquidação do IMT e do imposto de selo sem comprovativo de cobrança.
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ENQUADRAMENTO JURÍDICO.
I) Valorização da prova testemunhal relativamente à matéria da simulação e do não pagamento do preço no contrato promessa.
Os apelantes pretendem que o Tribunal valorize a prova testemunhal produzida em audiência, relativamente às questões da simulação na outorga do contrato promessa e do não pagamento do preço do mesmo contrato, de forma a demonstrar que o declarado no referido contrato não corresponde à vontade real das partes, pois, ao contrário do que consta no respectivo documento, não houve intenção de prometer vender e comprar, nem nunca foi pago o preço.
Dir-se-á desde logo que os apelantes não impugnam a decisão da matéria de facto, não cumprindo nenhum dos ónus previstos no artigo 640º do CPC, pelo que não é retirada qualquer conclusão da pretendida valorização da prova, não sendo indicados quais os pontos concretos dos factos que deveriam ser alterados na sequência de tal valorização, em que sentido deveriam ser alterados e quais os depoimentos e segmentos dos depoimentos que justificariam a introdução de alterações.
De qualquer modo, não merece censura a conclusão da sentença recorrida no sentido de não valorizar a prova produzida relativamente a esta matéria.
O contrato promessa em causa, previsto no artigo 410º do CC, foi reduzido a escrito e as respectivas assinaturas mostram-se reconhecidas, pelo que, tratando-se de documento particular, regem os artigos 373º e seguintes do CC.
Não sendo controvertida a sua autoria pois, não só os réus na audiência prévia admitiram a veracidade das assinaturas, como não impugnaram o reconhecimento das assinaturas nos termos do artigo 375º, o documento não é falso.
Questão diferente é a de saber se o conteúdo das declarações são verdadeiras e se correspondem à vontade real das partes, estabelecendo então o artigo 376º que o documento particular, cuja autoria seja reconhecida, faz prova plena quanto às declarações atribuídas aos seus autores, ou seja, será necessário produzir prova para ilidir a presunção legal.
Contudo, a produção de tal prova está condicionada, nos termos dos artigos 393º e 394º do CC.
Tratando-se, no caso em apreço, de declaração negocial que tinha de ser reduzida a escrito por imposição legal (artigo 410º) e estando as declarações plenamente provadas por esse documento, estatui o artigo 393º que não é admissível a prova testemunhal, sem prejuízo da interpretação do documento (que, porém, terá de ter um mínimo de correspondência no texto nos termos do artigo 238º do CC, não havendo, no presente caso, um mínimo de correspondência com o sentido pretendido pelos réus).
Igualmente, estatui o artigo 394º que é inadmissível a prova testemunhal se tiver por objecto convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo do documento, norma esta que se aplica ao acordo simulatório ou ao negócio dissimulado, quando invocados pelos simuladores, mas já não quando invocado por terceiros.
No presente caso, a autora é terceira porque, na sua qualidade de sucessora de uma das partes, não foi outorgante nem parte no acordo simulatório que os réus invocam; já os réus, outorgantes do contrato e partes no alegado acordo simulatório, não poderão, ao invocá-lo, produzir prova testemunhal.
Este regime justifica-se facilmente, pretendendo o legislador que a segurança probatória que resulta do documento não seja completamente inutilizada com a possibilidade de se produzir prova mais frágil, como é o caso da prova testemunhal.
Mas, tal como defendem os apelantes e foi acolhido pela sentença recorrida, a doutrina e jurisprudências dominantes (Vaz Serra, Revista de Leg. e Jur., ano 107, págs 311 e sgts e jurisprudência citada na sentença recorrida, entre outras decisões) têm entendido que este regime poderá ser interpretado restritivamente, para salvaguardar os casos em que a sua aplicação possa levar a situações injustas, permitindo-se a produção de prova testemunhal quando exista um princípio de prova documental ou circunstâncias objectivas que o justifiquem.
Voltando ao caso dos autos, logo à partida se mostra dificultada a tarefa do tribunal na aplicação da restrição aos artigos 393º e 394º porque a versão apresentada na contestação dos réus não explica as circunstâncias em que teria sido celebrado o acordo simulatório e as razões concretas da sua celebração, nem é alegado claramente qual era a real intenção das partes subjacente ao negócio dissimulado, fazendo-se apenas alegações genéricas de que a intenção seria “salvaguardar os bens do réu e a habitação da falecida I…, que tinha dificuldades económicas” e que o réu não teria “consciência do alcance jurídico” da declaração.
Alegam os apelantes que a circunstância, que consta nos factos provados, de que a falecida promitente compradora não celebrou o contrato prometido durante os doze anos que antecederam o seu falecimento, é indiciadora de que as partes não quiseram que o bens lhe fossem transmitidos.
Só que, face à indefinição do que foi alegado na petição inicial e ao que consta na sentença, de que terá sido referido pelas testemunhas que “nada podia ficar em nome de I… porque tinha muitas dificuldades económicas e era ajudada pelo réu” (sendo certo que os apelantes não impugnam ter sido este o conteúdo dos depoimentos, tal como foi consignado na sentença recorrida), o facto de a falecida I… não ter celebrado o contrato prometido durante doze anos poderá ter a simples explicação de que não o desejava fazer porque não queria disponibilizar património para satisfação dos seus credores.
Por outro lado, como resulta do facto do ponto 22, ora aditado à matéria com base na certidão predial dos bens objecto do contrato promessa, estes pertenciam à falecida I…, que os vendeu ao réu aquando da outorga do contrato promessa, o que levanta a dúvida de saber se a protecção concedida pelo réu a I… não terá ocorrido antes, quando lhe comprou os bens, sem que deixasse de ser intenção das partes que os mesmos ficassem no património de I…, através do contrato promessa.
Estas dúvidas não permitem considerar que a prova documental indicada pelos réus constitui um princípio de prova para a valorização da prova testemunhal no sentido que pretendem, pois o facto de a ré ter outorgado procuração irrevogável a favor do réu marido no interesse deste (mas não para celebrar contrato consigo mesmo, como os apelantes alegam) e no interesse de I… e o facto de o réu ter substabelecido na promitente compradora, outorgando a esta procuração sua, ambos para que esta pudesse celebrar o contrato prometido (ela sim) consigo mesma, poderão ter a mesma explicação simples de que os promitentes vendedores consideravam que os bens eram património da promitente compradora, ou, mais simplesmente ainda, face ao conteúdo das declarações prestadas no contrato promessa, de, por o preço já estar pago, não necessitarem de efectuar qualquer outra diligência para que se concretizasse a compra e venda.
Conclui-se, portanto, que, de forma alguma, foi ilidida pelos réus a presunção legal prevista no artigo 376º do CC, relativa às declarações dos outorgantes do contrato promessa, improcedendo as alegações de recurso nesta parte.
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II) Nulidade da procuração outorgada pela ré e nulidade da sentença por omissão de pronúncia.
Alegam os apelantes que a procuração outorgada pela ré ao réu, seu marido, é nula, nos termos dos artigos 1714º e 280º do CC, por violar a proibição legal de alteração das convenções antenupciais e dos regimes de bens.
Invocam também os apelantes a nulidade da sentença nos termos do artigo 615º nº1 d) do CPC, por omissão de pronúncia, ao não o ter apreciado e declarado.
A nulidade da procuração outorgada pela ré, com este fundamento, nunca foi alegada pelos réus ao longo do processo, sendo nesta sede de recurso a primeira vez que colocam esta questão.
Como é sabido, os recursos não podem apreciar questões que não tenham sido alegadas e julgadas pela 1ª instância, com excepção de questões de conhecimento oficioso, pelo que, tratando-se de uma arguição de nulidade, que, nos termos do artigo 286º do CC, é de conhecimento oficioso, passar-se-á a apreciá-la de seguida.
A procuração outorgada pela ré foi lavrada num cartório notarial e aí arquivada, como resulta do respectivo texto e do carimbo aposto nas assinaturas do contrato promessa (documento de fls 49 a 51 e ponto 1 dos factos provados e documento de fls 13 a 16 e ponto 2 dos factos) e como impõe o artigo 116º do Código do Notariado. Aí a outorgante declara que constitui o seu marido procurador, com faculdade de substabelecer, para vender nas condições que entender, as duas fracções autónomas em discussão, podendo praticar tudo o necessário para o efeito, sendo a procuração passada no interesse do mandatário e, como tal, irrevogável, nos termos dos artigos 265º e 1175º do CC.
Por sua vez, o artigo 1714º do CC, que consagra o princípio da imutabilidade das convenções antenupciais e do regime de bens resultantes da lei, proíbe alteração destes depois do casamento, considerando abrangidos pela proibição os contratos de compra e venda entre os cônjuges, protegendo assim quer a relação entre os cônjuges e o perigo de um deles e apoderar dos bens comuns ou próprios do outro, quer as expectativas de terceiros nas relações patrimoniais mantidas com o casal.
Da certidão predial das fracções (ponto 22 dos factos) resulta que os réus são casados no regime de comunhão de adquiridos, pelo que os imóveis passaram a constituir bens comuns do casal quando foram adquiridos pelo réu (artigo 1724º b) do CC).
Todavia, analisando o conteúdo da procuração outorgada pela ré ao réu, não se descortina violação ao artigo 1714º do CC.
É certo que o artigo 261º do mesmo código estabelece que é anulável o negócio celebrado pelo representante consigo mesmo, a não ser que o representado tenha especificadamente consentido na celebração e que, no caso de procuração passada entre cônjuges, o negócio celebrado consigo mesmo permitiria que o cônjuge representado comprasse bens comuns ou próprios do cônjuge representado, em violação do artigo 1714º.
Mas na procuração em análise, ao contrário do que vem alegado pelos apelantes, não consta que o réu estava autorizado a celebrar o negócio consigo mesmo.
Tal menção só aparece no substabelecimento e na procuração passados pelo réu a I…, aí se prevendo a possibilidade de esta celebrar o negócio consigo mesmo, ou seja permitindo que I… comprasse as fracções, finalidade que já vinha prevista no contrato promessa e que em nada contraria o conteúdo da procuração outorgada pela ré, não autorizando a compra das fracções pelo réu.
O instrumento de procuração em apreço não constitui uma venda (ou possibilidade de venda) de bem comum do casal ao cônjuge réu, mas sim apenas uma autorização para o réu vender a terceiros um bem comum (artigo 1682-A do CC), o que não significa que o produto da venda não viesse a integrar o património comum de ambos, pois nada consta em contrário no texto da procuração.
O facto de a procuração ser passada no interesse do representante marido e, como tal, irrevogável nos termos dos artigos 265º e 1175º do CC também não significa que a venda não fosse também no interesse da representada, sendo certo que, nos termos da primeira disposição referida, a procuração não deixa de ser revogável se houver justa causa, pelo que não há uma decisão definitiva e sem possibilidade de retorno por parte do cônjuge representado e, consequentemente, nenhuma violação do artigo 1714º do CC.
A procuração é, portanto, válida, improcedendo a respectiva arguição de nulidade, ficando prejudicadas as questões de redução e conversão do negócio jurídico e sendo manifestamente improcedente a arguição de nulidade da sentença por omissão de pronúncia, já que a questão não havia sido invocada antes e, inexistindo nulidade da procuração nos termos expostos, a sentença não tinha de a conhecer.
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III) Responsabilidade pela não celebração da escritura do contrato prometido e não pagamento das obrigações tributárias e nulidade da sentença por contradição entre os fundamentos e a decisão.
Finalmente alegam ainda os apelantes que, apesar de ter dado como não provado que a autora pagou previamente o IMT e o imposto de selo, a sentença recorrida errou o julgamento ao não retirar conclusões deste facto não provado, concluindo, pelo contrário, que foram os réus que recusaram a outorga da escritura do contrato prometido, quando este facto não está provado, padecendo também a sentença de nulidade por contradição entre os fundamentos e a decisão, nos termos do artigo 615º nº1 d) do CPC.
A sentença recorrida entendeu haver lugar à execução específica do contrato promessa ao abrigo do artigo 830º do CC, permitida face às clausulas do contrato e face ao incumprimento definitivo dos réus, por estes se terem recusado a outorgar a escritura do contrato definitivo no cartório notarial e na data fixada para o efeito.
Dos factos provados resulta que foi a autora quem marcou a escritura (ponto 14 dos factos provados) e que na data marcada para o efeito o notário certificou que a escritura não se realizou “pelos seguintes motivos imputáveis aos vendedores: alegada falsidade do contrato promessa, ter existido acção de execução específica considerada desfavorável à parte contrária” (ponto 17 dos factos provados).
Ficou ainda provado que no dia da escritura foi entregue no cartório notarial a liquidação do IMT e do imposto de selo sem comprovativo de cobrança (ponto 23 aditado aos factos provados).
É certo que, como alegam os apelantes, o artigo 49º do CMIT (Código Municipal do Imposto sobre Transacções, aprovado pelo DL 287/2003 de 12/11) não permite a celebração de escrituras de transmissão de imóveis sem o comprovativo de cobrança das obrigações fiscais.
Contudo, face à declaração constante no certificado emitido por um notário, no sentido de que foi a recusa dos vendedores que impediu a realização da escritura e ao facto de a promitente compradora ter interesse na outorga do contrato, não pode deixar de se acompanhar a conclusão da sentença recorrida no sentido de que a compradora só não procedeu ao pagamento em falta devido à recusa dos vendedores, sendo esta recusa uma circunstância que não podia controlar, ao contrário do pagamento dos impostos que poderia ter feito no acto, caso os vendedores se tivessem disponibilizado a outorgar a escritura.  
Inexiste, assim, qualquer contradição entre os fundamentos e a decisão, não sendo nula a sentença como defendem os apelantes.
Não merece, pois, censura a sentença ao considerar haver incumprimento definitivo dos promitentes vendedores, improcedendo, na totalidade, as alegações de recurso.
                                                       *
DECISÃO.
Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e confirma-se a sentença recorrida.  
                                                       *
Custas pelos apelantes. 
                                                       *
2018-09-20

Maria Teresa Pardal

Carlos Marinho 

Anabela Calafate