Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
18056/09.9T2SNT.L1-6
Relator: AGUIAR PEREIRA
Descritores: ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO
RESOLUÇÃO
NÃO USO DO ARRENDADO
ARRENDATÁRIO
DOENÇA MENTAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/01/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. O artigo 1083º nº 2 do Código Civil contêm um princípio geral de acordo com o qual o incumprimento do contrato de arrendamento susceptível de fundamentar a resolução do contrato tem que ter gravidade ou consequências sobre a relação locatícia suficientes para tornar objectivamente inexigível a manutenção do contrato;
2. As várias alíneas do citado preceito descrevem situações típicas a que estão habitualmente associados incumprimentos do contrato de arrendamento susceptíveis de, de per si, tornar inexigível a manutenção do contrato e justificar a sua resolução;
3. Não ilide a presunção que resulta da constatação da situação de não uso do locado por mais de um ano a prova de que a arrendatária sofre de doença do foro psiquiátrico que a obriga a prolongados períodos de repouso e a consultas médicas regulares.
( Da Responsabilidade do Relator )
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: EM NOME DO POVO PORTUGUÊS, ACORDAM OS JUÍZES DESEMBARGADORES DA 6ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:

I – RELATÓRIO
a) A , viúva, reformada, residente na Rua (…) Sintra, invocando a sua qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito de B , intentou acção de despejo, sob a forma de processo sumário, contra C , viúva, reformada, residente na Rua (…) Sintra, pedindo fosse declarada a cessação, por resolução, do contrato de arrendamento relativo à casa de habitação sita na Rua (…) Sintra e a condenação da ré a despejar imediatamente o locado e a entregá-lo, livre e devoluto, à autora.
Alega a autora, em síntese, que a casa de habitação sita na Rua (…) foi dada de arrendamento a D , então casado com a ré e entretanto falecido em Junho de 2000 e que, poucos meses após, a ré deixou de fazer do locado a sua residência permanente passando a viver com um companheiro (…) em Mem Martins e deslocando-se esporadicamente ao locado.
b) A ré contestou o pedido formulado pela autora, alegando ser falso que tenha deixado de fazer do locado a sua residência permanente e habitual, já que é ali que passa parte do seu dia a dia, dorme e faz as suas refeições, não possuindo qualquer outra habitação, apesar de desde 2006 manter uma relação de intimidade com uma pessoa que reside na referida Alameda (…), não deixou de habitar na sua casa.
c) A tal articulado respondeu ainda a autora, concluindo como na petição inicial.
d) Foi dispensada a realização da audiência preliminar e proferido despacho saneador, tendo sido seleccionada a matéria de facto relevante, tendo essa selecção sido objecto de reclamação decidida por despacho de fls 116 a 118.
Teve lugar a audiência de julgamento, no âmbito da qual foi decidida a matéria controvertida.
Foi então proferida douta sentença que viria a julgar a acção procedente e, declarando resolvido o contrato de arrendamento em causa ordenou o despejo do locado.
e) Inconformada com tal decisão dela interpôs recurso a ré, o qual foi admitido como de apelação e efeito devolutivo.
São do seguinte teor as conclusões das respectivas alegações:
“1. A recorrente impugna a decisão sobre a matéria de facto, considerando incorrectamente julgadas as respostas aos quesitos 1º, 2º, 3º, 5º, 8º a 11º, 24º e 26º.
2. Impugnando de direito, entende que a sentença recorrida viola o disposto no n.º 2 do artigo 1083º, do Código Civil, com a redacção que lhe foi dada pela Lei 6/2006, de 27/2. Viola ainda os artigos 655º, n.º 1 e 668º, n.º 1 - c), do Código do Processo Civil.
3. Para decidir nos termos em que o fez o Tribunal a quo baseou a sua convicção, essencialmente, nos depoimentos das testemunhas da Autora, que considerou coerentes, rigorosos e isentos. A Apelante entende existirem indícios, sobretudo nos depoimentos das testemunhas … e …, que abalam o rigor que a Meritíssima Juiz lhes confere.
4. Não valorou do mesmo modo os depoimentos das testemunhas da Ré, para tanto referindo que não eram visitas da casa desta. Contudo, as testemunhas … e … eram visitas da casa da Apelante, sendo que todas elas, umas por razões de vizinhança (as testemunhas …, …. e ….. ), outra por ter mantido com a Ré uma relação de intimidade (a testemunha ….), mostraram um conhecimento directo dos factos, tendo os seus depoimentos sido objectivos, isentos e credíveis.
5. Em síntese, disseram as testemunhas da Autora que não havia indícios de que a Ré residisse no locado e que não era vista por lá. Divergentemente, disseram as testemunhas da Ré que sempre a viram e contactaram no lugar do locado e que sempre teve lá a sua residência.
6. De tal divergência resulta uma séria e fundada reserva sobre a verdade dos factos que a sentença recorrida deu como provados, respondendo designadamente aos quesitos 1º, 2º, 3º e 5º, em face do que haveria, como há, lugar ao acolhimento do princípio que consagra que, na dúvida, se decida favoravelmente ao Réu. Não foi isso que fez a sentença recorrida.
7. Dos depoimentos das testemunhas (da Ré) …., …, … e …, cotejados com os documentos de fls. 131 – 134 e de fls. 135, deveriam ter sido dados como provados os factos dos quesitos 8º a 11º.
8. O depoimento de …, a única testemunha que se pronunciou sobre a matéria, tendo-o feito em termos claros e precisos, faz prova do facto levado ao quesito 24º e, quanto ao quesito 26º, prova que “a Ré passava horas no locado, deitada”.
9. Existe uma contradição entre a resposta ao quesito 4º, que dá como não provado que a Ré residisse na Alameda (…) e as respostas aos quesitos 1º, 3º e 5º. A Autora arguiu que a Ré deixou de residir no locado (facto que o Tribunal recorrido deu como provado) para passar a residir nessa casa de Mem Martins. Provado que não residiu nem residia aqui, resulta lógica a conclusão de que não terá deixado o locado.
10. Os documentos de fls. 124 e 126, também elementos de suporte da decisão recorrida, apenas provam que, no locado, os consumos de água e de electricidade eram os que constam dos registos presentes em tais documentos. Não provam que a Ré não tivesse aí a sua residência. Dos baixos consumos verificados, facto para o qual a Ré apresentou justificações, não se infere o abandono do locado.
11. No seu depoimento, a testemunha …, filho da Autora, os únicos herdeiros da herança aberta por óbito do marido desta, revelou que no Verão de 2007 propôs à Ré a renegociação da renda, como contrapartida da serem feitas obras de recuperação do telhado do locado. Tal revelação prova que a Ré residia no arrendado e contradiz a versão da Autora, acolhida pela sentença recorrida, de que aquela teria abandonado o locado em finais de 2000.
12. A Ré nunca abandonou o locado e sempre foi nele que teve a sua residência desde o início do arrendamento.
13. Contrariamente ao entendimento da Meritíssima Juiz do Tribunal a quo, pensa a Apelante que não se provou o fundamento invocado pela Autora para a resolução do contrato de arrendamento.
14. A decisão recorrida viola os artigos 655º, n.º 1 e 668, n.º 1 - c), do Código do Processo Civil.
15. A Autora pediu a resolução do contrato de arrendamento e o despejo com fundamento na alínea - d) do n.º 2 do artigo 1083º, do Código Civil.
16. De acordo com o disposto no n.º 2 desse normativo, com a redacção que lhe foi dada pela Lei 6/2006, de 27/02, só é fundamento de resolução contratual, pelo senhorio, o incumprimento que pela sua gravidade ou consequências torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento.
17. Trata-se de uma condição geral que engloba, também a alínea - d) do n.º 2 do citado artigo.
18- Não foi arguida nem a gravidade nem as consequências do alegado não uso do locado e o Tribunal não conheceu, nem podia conhecer, de tal matéria.
19. O Tribunal recorrido deu como provado o não uso do locado e declarou resolvido o contrato, ordenando o despejo, sem o conhecimento da gravidade ou consequências desse não uso.
20. Sendo tal conhecimento uma exigência legal e condição para a procedência da resolução contratual, a sentença recorrida violou o disposto no n.º 2 do artigo 1083º, do Código Civil.
21. Mesmo que se admita como provado o não uso do locado, seja, que a Ré não tinha nele a sua residência permanente, o que se suscita sem prescindir, a Ré apresentou factos, que foram dados como provados, que traduzem a não gravidade do seu incumprimento, pelo que sempre seria de indeferir o pedido da Autora.
22. Das provas produzidas nos autos decorre, ainda, que a Autora não necessita do locado e que a resolução contratual comportaria para a Ré, de 62 anos de idade, que vive sozinha, auferindo de uma pensão de € 7.883,68 por ano e que é doente, consequências particularmente nefastas e gravosas o que, em face da mencionada condição geral do n.º 2 do artigo 1083º do C. C., reforça a falta de fundamento para a resolução do contrato”.
Remata a apelante pedindo a revogação da sentença recorrida e a sua absolvição do pedido.
f) A autora/apelada apresentou contra alegações em que pede a improcedência do recurso, concluindo, em síntese, como segue:
“1. Foram correctamente julgadas as respostas aos quesitos 1º, 2º, 3º, 5º, 8º a 11º, 24º e 26º da Base Instrutória.
(…)
2. A Douta Sentença recorrida não viola o disposto no nº 2 do artº 1083º do Código Civil, com a redacção que lhe foi dada pela Lei 6/2006 de 27 de Fevereiro. Nem sequer viola os artigos 655º, nº 1 e 668º, nº 1 – c) do Código do Processo Civil.
(…)
17. As situações previstas nas alíneas a) a e) do nº 2 do artº 1083º do Código Civil pela sua gravidade objectiva dispensam o senhorio de alegar e provar outros factos que integrem a inexigibilidade da manutenção do contrato
18. À Autora basta provar o não uso do locado (como residência permanente) por mais de um ano, não tendo ainda, de arguir a gravidade ou consequências desse não uso.
19. O Tribunal recorrido dando como provado o não uso do locado por mais de um ano, não tinha ainda, de conhecer da gravidade ou consequências desse não uso (…)”.
g) Colhidos os vistos legais dos Exmº Juízes Desembargadores adjuntos, cumpre agora apreciar e decidir.

II – FUNDAMENTAÇÃO
A) OS FACTOS
São os seguintes os factos considerados provados na douta sentença impugnada:
1. Por acordo celebrado por escrito, datado de 31 de Novembro (???) de 1974, D, nessa data casado com a Ré, tomou de arrendamento a …, um anexo do prédio urbano sito em ….., freguesia de Algueirão – Mem Martins, concelho de Sintra – cfr. alínea A) dos Factos Assentes.
2. O anexo em questão foi cedido para habitação permanente de D e respectivo agregado familiar, pelo prazo de 6 meses, prorrogáveis por igual período – cfr. alínea B) dos Factos Assentes.
3. Tendo sido acordada a renda mensal de 450$00 (quatrocentos e cinquenta escudos) – cfr. alínea C) dos Factos Assentes.
4. O anexo, que à data da celebração do acordo se encontrava omisso na matriz, corresponde à casa de rés-do-chão destinada a habitação que integra o artigo urbano 0000 da freguesia de Algueirão – Mem Martins, concelho de Sintra, sito na Rua ….em ... – cfr. alínea D) dos Factos Assentes.
5. E, com o artigo urbano 000º a ele contíguo, faz parte do prédio descrito na Primeira Conservatória do Registo Predial de Sintra sob o nº 0000, sito na Rua da ……freguesia de Algueirão - Mem Martins, concelho de Sintra – cfr. alínea E) dos Factos Assentes.
6. No ano de 2008, o referido prédio 0000, em resultado de alteração camarária no que respeita quer ao nome de Rua, quer aos números de polícia, passou a situar-se, não apenas na Rua da …mas também na Rua da …., nº 00 – cfr. alínea F) dos Factos Assentes.
7. Em 7 de Outubro de 1991, foi celebrado um contrato de compra e venda pelo qual foi adquirido por B , casado sob o regime da comunhão geral com A, ora Autora, o prédio urbano, composto pelos artigos matriciais urbanos 000 e 0000 – cfr. alínea G) dos Factos Assentes.
8. B faleceu em 24 de Abril de 2004 – cfr. alínea H) dos Factos Assentes.
9. Na sequência do óbito referido em H), a viúva, A , assumiu o cargo de cabeça de casal da herança – cfr. alínea I) dos Factos Assentes.
10. Da herança deixada por óbito de B faz parte o prédio urbano descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Sintra, sob o nº 0000, da freguesia de Mem Martins, concelho de Sintra – cfr. alínea J) dos Factos Assentes.
11. Do prédio referido em 10) – J) – faz parte a casa de rés-do-chão destinada a habitação identificada no artigo urbano 0000, sito na Rua da …., nº 24, objecto do acordo referido em A) – cfr. alínea K) dos Factos Assentes.
12. A renda – em resultado das actualizações legais – cifra-se actualmente em € 7,20 (sete euros e vinte cêntimos) – cfr. alínea L) dos Factos Assentes.
13. Desde o início do acordo referido em A), D e o respectivo cônjuge, C, ora Ré, sempre utilizaram o local, como casal, de forma estável e habitual, como sua residência – cfr. alínea M) dos Factos Assentes.
14. No dia 11 de Junho do ano de 2000, ocorreu o óbito de D – cfr. alínea N) dos Factos Assentes.
15. O pagamento da renda era efectuado na residência da aqui autora, A , que se situa, precisamente ao lado do locado – cfr. alínea O) dos Factos Assentes.
16. Alguns meses após o falecimento de D, a Ré deixou de pernoitar no prédio cedido – cfr. resposta positiva ao quesito 1º da Base Instrutória.
17. E de aí confeccionar e tomar as suas refeições – cfr. resposta positiva ao quesito 2º da Base Instrutória.
18. E deixou de aí receber pessoas das suas relações – cfr. resposta positiva ao quesito 3º da Base Instrutória.
19. A Ré só se desloca ao prédio cedido para pagar a renda – cfr. resposta positiva ao quesito 5º da Base Instrutória.
20. No local cedido o consumo de água é o que resulta do teor do documento de fls. 126 – cfr. resposta ao quesito 6º da Base Instrutória.
21. No local cedido o consumo de luz é o que resulta do teor do documento de fls. 124-125 – cfr. resposta ao quesito 7º da Base Instrutória.
22. A Ré é uma pessoa doente – cfr. resposta positiva ao quesito 12º da Base Instrutória.
23. Desde cerca de 2005, a Ré é portadora da patologia que consta do relatório médico de fls. 121-123 – cfr. resposta ao quesito 13º da Base Instrutória.
24. A Ré sofre de depressão – cfr. resposta positiva ao quesito 14º da Base Instrutória.
25. A sua saúde é afectada por estados de ansiedade – cfr. resposta positiva ao quesito 15º da Base Instrutória.
26. O seu quadro clínico aconselha prolongados períodos de repouso, devendo evitar situações de stress – cfr. resposta positiva ao quesito 16º da Base Instrutória.
27. A Ré é acompanhada no Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa – cfr. resposta positiva ao quesito 17º da Base Instrutória.
28. Recorrendo a consultas regulares – cfr. resposta positiva ao quesito 18º da Base Instrutória.
29. A Ré tem prescrição médica para toma de medicamentos – cfr. resposta ao quesito 19º da Base Instrutória.
30. Com esta patologia a Ré tem alturas que está melhor e outras que está pior – cfr. resposta positiva ao quesito 20º da Base Instrutória.
31. Em finais de 2008, o seu estado depressivo acentuou-se – cfr. resposta positiva ao quesito 21º da Base Instrutória.
32. Como vive sozinha, a Ré tem sido apoiada por …. – cfr. resposta positiva ao quesito 23º da Base Instrutória.
B) O DIREITO
Importa agora apreciar as questões colocadas nas conclusões das alegações de recurso as quais delimitam, em regra e com ressalva das questões de conhecimento oficioso, o objecto do recurso.
De acordo com as conclusões apresentadas a apelante questiona a decisão sobre determinados pontos da matéria de facto, que a seguir se indica, e bem assim o mérito da sentença na medida em que a ter havido incumprimento do contrato por parte da ré ele não é suficientemente grave para determinar a resolução do contrato.
1. No que concerne à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, anote-se que a decisão proferida em 1ª instância pode ser alterada pelo Tribunal da Relação, nos termos do artigo 712º do Código de Processo Civil, se, no que ao caso interessa, tendo havido gravação dos depoimentos, a decisão tiver sido impugnada nos termos do artigo 685º/A do Código de Processo Civil, e os elementos fornecidos pelos autos impuserem decisão diversa, não susceptível de ser destruída por qualquer outra prova.
Não se trata, pois, de reavaliar toda a prova produzida na primeira instância, como se da primeira decisão se tratasse, nem de sindicar a convicção então formada pelo julgador, mas de alterar uma decisão anterior, porventura objectivamente errada, mas que foi fundada na livre convicção de quem a proferiu, com a clara vantagem de ter acompanhado e dirigido a produção da prova numa relação de imediação que a audição da gravação sonora não permite. Por isso é que, e como claramente resulta do artigo 712º nº 1 do Código de Processo Civil, só seja de considerar a alteração da matéria de facto se houver elementos que a «imponham muito claramente», não bastando que a apreciação da prova disponível possa sugerir respostas diferentes das que foram dadas.
Quando, como no caso dos autos, o julgamento da matéria de facto tenha por base prova testemunhal, o critério de exigência de ponderação da alteração deve ser idêntico, até porque enquanto na primeira instância o julgador tem uma percepção directa da prova, a reprodução sonora dos depoimentos gravados não permite a percepção de elementos relevantes para a valoração da prova susceptíveis de alicerçar a convicção do julgador.
Como salienta Abrantes Geraldes in Temas da Reforma do Processo Civil, Volume II a página 271, existem “comportamentos ou reacções dos depoentes que apenas podem ser percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá apreciar o modo como o primeiro se formou a convicção dos julgadores”.
O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Março de 2005 (in www.dgsi.pt) sintetiza bem as limitações da reapreciação da matéria de facto nos Tribunais superiores ao dizer que “a plenitude do segundo grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto sofre naturalmente a limitação que a inexistência de imediação necessariamente acarreta, não sendo, por isso, de esperar do tribunal superior mais que a sindicância de erro manifesto na livre apreciação das provas».
No mesmo sentido, salientando as dificuldades inerentes à plena reapreciação da prova, também se pronuncia o Juiz Conselheiro Fernando Pereira Rodrigues em “A prova em direito civil” (Coimbra Editora) a páginas 266/267.
2. Insurge-se a apelante contra ter sido considerada provada a matéria de facto dos artigos primeiro, segundo, terceiro e quinto da base instrutória e de não ter sido considerada provada a matéria de facto dos artigos oitavo, nono, décimo, décimo primeiro, vigésimo quarto e vigésimo sexto.
Nesta instância foi reapreciada a prova através da audição sonora do registo dos depoimentos prestados na audiência de julgamento e da análise dos documentos juntos aos autos em que se fundou a convicção da Mmª Juiz, conforme ficou expresso.
Nos artigos primeiro a terceiro e quinto da base instrutória perguntava-se se alguns meses após o falecimento de D (marido da ré) a ré tinha deixado de pernoitar no prédio locado, de aí confeccionar as suas refeições, de aí receber pessoas das suas relações, só se deslocando ao local para pagar a renda.
Por sua vez nos artigos oitavo a décimo primeiro perguntava-se se a ré saía diariamente do local para tomar café e para ir às compras, pressupondo, portanto, que ali estava todos os dias, se tinha no local as suas roupas e haveres de uso pessoal e ali recebia toda a sua correspondência, sendo que nos artigos vigésimo quarto e vigésimo sexto da base instrutória se inquiria se, por viver sozinha e ser apoiada por M..., a ré permanecia por alguns períodos de tempo em casa deste e ainda se passava horas no locado, deitada ou estendida no sofá com os estores corridos.
3. Os factos perguntados em primeiro lugar traduzem a prática de actos em que se consubstancia o desenrolar do quotidiano de qualquer pessoa que faça de um determinado local o centro da sua vida pessoal/familiar e que são habitualmente apreensíveis pela generalidade das pessoas que habitam nas proximidades. Além disso, porque o uso habitual de uma habitação pressupõe – e no caso nada permitia afirmar o contrário – a utilização de equipamentos eléctricos e o uso de água fornecida ao domicílio, também a medida dos consumos de água e electricidade pode dar uma ideia muito aproximada da efectiva frequência da permanência na habitação nos períodos nocturnos ou da confecção de refeições.
No caso dos autos dos depoimentos prestados pelas testemunhas … e …, vizinhos da autora e ré, são perfeitamente esclarecedores no sentido de que após o falecimento do marido da ré esta, contrariamente ao que sucedia anteriormente, passou a ser vistas muito raramente no locado ou nas suas proximidades. Convicção de idêntico sentido se colhe da análise dos depoimentos das testemunhas ... e … à matéria dos artigos oitavo e nono, sendo estes o contraponto daqueles primeiros artigos da base instrutória.
È certo que, no depoimento que prestaram, as testemunhas …, … e …, afirmaram a sua convicção de que a ré continua a residir no locado. Porém, como se salienta na fundamentação da decisão recorrida, nenhuma delas é visita de casa da ré ou com ela mantêm contactos frequentes (apenas a testemunha …., que trabalha próximo, afirmou que nenhuma mudança se registou desde o falecimento do marido da ré, o que não é suportado por prova documental junta aos autos ou por outros depoimentos).
As testemunhas … e …. confirmaram ter havido um relacionamento afectivo entre o primeiro e a ré em data posterior ao falecimento do marido da ré, esclarecendo o primeiro que por vezes pernoitavam numa sua casa e outras vezes no locado.
Na análise crítica da prova que serviu para fundamentar a convicção do tribunal também se referem os documentos de fls 125 e 126, respeitantes aos consumos de água e electricidade no local arrendado e que são manifestamente baixos para revelarem uma utilização dentro de padrões habituais, mesmo considerando apenas um mínimo de equipamentos (uso de água para confeccionar refeições e higiene diária e consumo de um frigorífico e lâmpadas).
4. Da análise da prova feita nesta instância não resulta convicção diferente da que foi expressa na primeira instância.
Daí que nenhuma censura mereça a decisão da matéria de facto no que tange aos artigos primeiro, segundo, terceiro e quinto.
O mesmo se diga em relação aos artigos da base instrutória cuja matéria não foi considerada provada.
Desde logo os artigos oitavo e nono, cujo teor é contrário aos factos considerados provados.
Quanto aos artigos décimo e décimo primeiro, nenhuma prova concludente foi feita de que a ré mantenha as suas roupas e haveres de uso pessoal no local e aí continue a receber a sua correspondência.
A prova produzida à matéria do artigo 24º da base instrutória também não é de forma a poder afirmar que a ré permanecia, por causa do apoio que a testemunha … lhe dava, alguns períodos de tempo em casa deste. Foi a própria testemunha que afirmou que a ré não tinha chave de sua casa e que só lá ia quando ele lá estava.
E nenhuma prova foi feita, para além do depoimento da testemunha … que assegurasse a realidade do facto mencionado no artigo 26º da base instrutória, sendo que esse facto é negado pelo teor do depoimento das testemunhas que, sendo vizinhos da autora e ré, raramente a viam no local.
Diga-se ainda que, contrariamente ao alegado pela apelante, da afirmação da realidade dos factos incluídos nos artigos primeiro a terceiro e quinto da base instrutória, não resulta qualquer contradição com o facto de não ter sido considerada provada a matéria de facto do artigo 4º da base instrutória que se referia à circunstância de a ré ter passado a viver com um companheiro (a testemunha …) num determinado local. Da conjugação de ambos resulta que se desconhece se a ré, tendo deixado de permanecer no locado, passou a viver noutro local com um companheiro.
5. Em conclusão, a decisão sobre a matéria de facto está bem fundamentada na análise da prova produzida na audiência e na prova documental existente nos autos, não merecendo qualquer censura a resposta dada aos artigos primeiro, segundo, terceiro e quinto, oitavo a décimo primeiro, vigésimo quatro e vigésimo sexto, não ocorrendo violação do artigo 655º do Código de Processo Civil ou nulidade da sentença por alegada contradição entre os fundamentos e a decisão propriamente dita.
Improcedem, em conformidade, as conclusões primeira a décima quarta.
6. A apelante questiona também a decisão que decretou a resolução do contrato de arrendamento por não terem sido consideradas a gravidade e/ou consequências do incumprimento de modo a concluir-se pela inexigibilidade da manutenção do arrendamento. Só nessas circunstâncias, alega, seria de decretar a resolução do contrato de arrendamento.
Vejamos.
7. O pedido formulado na presente acção – de resolução do contrato de arrendamento celebrado entre … e D e de que são actualmente titulares a autora e ré – baseia-se no não uso do locado pela actual locatária durante mais de um ano.
Tal fundamento legal consta do artigo 1083º nº 1 e 2 alínea d) do Código Civil, de acordo com a redacção introduzida pela Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro e cujo teor é o seguinte:
“1. Qualquer das partes pode resolver o contrato, nos termos gerais de direito, com base em incumprimento pela outra parte.
2. É fundamento de resolução o incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento, designadamente, quanto à resolução pelo senhorio:
(…)
d) O não uso do locado por mais de um ano, salvo nos casos previstos no nº 2 do artigo 1072º;”
O artigo 1072º nº 2 do Código Civil, por sua vez, estabelece os casos em que o não uso do locado pelo arrendatário é lícito.
“a) Em caso de força maior ou de doença;
b) Se a ausência, não perdurando há mais de dois anos, for devida ao cumprimento de deveres militares ou profissionais do próprio, do cônjuge ou de quem viva com o arrendatário em união de facto;
c) Se a utilização for mantida por quem, tendo direito a usar o locado, o fizesse há mais de um ano”.
8. No regime introduzido pela Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro (NRAU) o artigo 1083º nº 2 do Código Civil parece enunciar, numa primeira leitura, um princípio geral, de acordo com o qual não basta a existência de um qualquer incumprimento do contrato de arrendamento para que seja facultado à outra parte a resolução do contrato; torna-se necessário que, pela sua gravidade ou pelas consequências que faça operar, o incumprimento torne inexigível a manutenção do contrato.
Porém, o mesmo preceito, enumera nas suas várias alíneas diversas situações típicas, e entre elas o não uso do locado por mais de um ano, cuja verificação poderá parecer ser causa resolutiva bastante, isto é, independentemente da avaliação da sua gravidade e/ou consequências. Mas não é assim.
Tudo está em saber se o artigo 1083º nº 2 do Código Civil, ao enunciar cinco situações típicas de resolução após o advérbio “designadamente” consagrou cinco fundamentos de resolução que não têm que passar pelo crivo do juízo de inexigibilidade da manutenção da relação locatícia ou se consagrou apenas exemplos de situações em que ocorrem presunções ilidíveis dessa inexigibilidade, cuja deverá ser, de qualquer modo, aferida em cada caso.
Como se salienta no Acórdão deste Tribunal e Secção, de 9 de Dezembro de 2008, disponível em www.dgsi.pt (relatora a Exmª Juíza Desembargadora Dr.ª Márcia Portela), que passamos a transcrever, se “aparentemente, o legislador pretendeu erigir estes factos típicos em verdadeiros fundamentos de resolução, tanto mais que as situações elencadas revestem normalmente particular gravidade em termos de violação contratual (…), existindo uma cláusula geral, afigura-se mais curial entender estas situações como meras presunções ilidíveis, sempre sujeitas ao juízo valorativo da inexigibilidade, sob pena de o legislador ter consagrado uma solução híbrida.
Fosse essa a sua intenção, e melhor seria ter dito que as situações elencadas no nº 2 do artigo 1083º Código Cicil constituem fundamento de resolução (numa formulação semelhante à do artigo 64º RAU), e acrescentar que constitui ainda fundamento de resolução o incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do contrato de arrendamento”.
Ou seja, como também refere o Professor Doutor Gravato Morais, se é sempre necessário que o incumprimento que confere direito à resolução seja, de per si, grave é ainda imprescindível que seja complementado com “o conceito indeterminado de inexigibilidade, da manutenção do arrendamento (in “Novo Regime do Arrendamento Comercial” – 2ª edição, Almedina, a página 209).
Assim, escreve-se ainda no acórdão mencionado, “existirá fundamento de resolução do contrato de arrendamento, nos termos do artigo 1083º, nº 2, alínea d) do Código Civil, se o arrendatário não usar o locado por mais de um ano, desde que esse incumprimento, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível ao senhorio a manutenção do contrato de arrendamento.”
9. Anote-se ainda que, no que respeita à inexigibilidade de manutenção do contrato de arrendamento o legislador apenas numa situação, porventura a mais frequente, concretizou o conceito – é o caso da mora no pagamento de rendas ou encargos por período superior a três meses.
No que se refere a todas as demais situações haverá que analisar as circunstâncias do caso concreto para se concluir pela verificação, ou não, de inexigibilidade de manutenção do contrato face ao incumprimento de uma das partes.
No que se refere ao fundamento de resolução indicado na alínea d) do nº 2 do artigo 1083º do Código Civil, importa que se tenha em atenção que o artigo 1072º do Código Civil consagrou, de forma expressa, uma obrigação de uso efectivo da coisa locada, ao impor a obrigação ao arrendatário de não deixar de a utilizar por mais de um ano.
10. Analisando as circunstâncias do caso concreto.
Vem provado que apenas alguns meses após o falecimento de D, ocorrido em 11 de Junho de 2000, a ré deixou de pernoitar no imóvel dado de arrendamento, de aí confeccionar as suas refeições, receber pessoas das suas relações, sendo a falta de regular permanência no local claramente indiciada pelos reduzidos consumos de água e de electricidade.
Perante estes factos conclui-se, com segurança, que a ré, nos cerca de nove anos que precederam a instauração da presente acção, não utilizou o imóvel dado de arrendamento como centro de organização da sua vida pessoal, o que integra o conceito de não uso, nos termos e para efeito do disposto no artigo 1083º nº 2 alínea d) do Código Civil.
Dúvidas não podem restar, por outro lado, que a manutenção de semelhante situação de não uso regular e habitual do imóvel dado de arrendamento e de incumprimento do contrato de arrendamento por período de tempo tão dilatado torna inexigível à autora a manutenção do contrato.
Só assim não seria se, porventura, a não utilização do imóvel dado de arrendamento fosse justificada – mesmo que fora dos casos previstos no artigo 1072º nº 2 do Código Civil – por qualquer circunstância objectiva que a determinasse.
No caso dos autos a ré defende que nunca deixou de usar o imóvel como centro da sua vida pessoal e que apenas temporária e esporadicamente passou a frequentar a residência de …. no âmbito de uma relação que com ele manteve. Mais alega a ré, e demonstra, que é uma pessoa doente, que sofre de doença bipolar, com baixa tolerância à frustração, com períodos sub confusionais e de desorientação em situações de maior intensidade de grau de ansiedade, sendo que o seu estado de saúde aconselha prolongados períodos de repouso.
Ora não só a ré não demonstrou que sempre manteve no imóvel dado de arrendamento o centro da sua vida e que nunca deixou de o usar – vem provado exactamente o contrário – como também é certo que nada permite estabelecer um nexo de causa e efeito entre a doença da ré e a ausência da habitação dada de arrendamento.
Em conclusão, estando demonstrado o incumprimento do contrato de arrendamento pelo não uso do locado por parte da ré e bem assim a gravidade objectiva de tal incumprimento nenhuma circunstância se apura que possam justificar a imposição à locadora da manutenção do contrato de arrendamento.
11. Na douta sentença impugnada analisou-se a matéria de facto provada tendo-se concluído que se verificava o fundamento invocado para a resolução do contrato e bem assim a relevância que a doença da ré poderia ter para a impedir.
Assim sendo, e concluindo-se como na primeira instância, há que confirmar a douta sentença impugnada, que nenhuma censura nos merece.
*
Sumariando a presente decisão, nos termos e para efeito do disposto no artigo 713º nº 7 do Código de Processo Civil, dir-se-á:
1. O artigo 1083º nº 2 do Código Civil contêm um princípio geral de acordo com o qual o incumprimento do contrato de arrendamento susceptível de fundamentar a resolução do contrato tem que ter gravidade ou consequências sobre a relação locatícia suficientes para tornar objectivamente inexigível a manutenção do contrato;
2. As várias alíneas do citado preceito descrevem situações típicas a que estão habitualmente associados incumprimentos do contrato de arrendamento susceptíveis de, de per si, tornar inexigível a manutenção do contrato e justificar a sua resolução;
3. Não ilide a presunção que resulta da constatação da situação de não uso do locado por mais de um ano a prova de que a arrendatária sofre de doença do foro psiquiátrico que a obriga a prolongados períodos de repouso e a consultas médicas regulares.

III – DECISÃO
Pelo exposto acordam em julgar improcedente a apelação e, em conformidade, em confirmar a douta sentença impugnada.
Custas pela ré apelante.
Notifique.
Dactilografado e revisto pelo relator:

Lisboa, 1 de Março de 2012

Manuel José Aguiar Pereira
Gilberto Martinho dos Santos Jorge
Maria Teresa Batalha Pires Soares