Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
464/13.2TJLSB.L1-1
Relator: RIJO FERREIRA
Descritores: COOPERATIVA DE HABITAÇÃO
QUOTIZAÇÃO
ENTREGAS DE CAPITAL
DESISTÊNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/26/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I.–As posições jurídicas decorrentes da participação em programa habitacional de cooperativa de habitação, porque do domínio da actividade cooperativa e não do domínio da pura actividade comercial de construção e venda de imóveis, regulam-se pelo Código Cooperativo e legislação complementar.
II.–A adesão a um projecto habitacional importa uma adesão firme, não sendo a desistência individual causa de exoneração das responsabilidades assumidas nem da restituição do já prestado.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes, no Tribunal da Relação de Lisboa.
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Nestes Autos de Acção Declarativa Entre.
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Vanessa...
E
Orlando... /Autores/Apelados

CONTRA:

...-Cooperativa de Habitação Económica, CRL/Ré/2ª Apelante
E
...-União de Coop. de Habitação,UCRL/Interveniente/1ª Apelante.
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I–Relatório:


Os Autores intentaram a presente acção pedindo a condenação da Ré a pagar-lhes a quantia de 20.090 €, acrescida de juros de mora, alegando que, a título de quotizações e entregas de capital tendo em vista a aquisição de uma fracção habitacional a construir e que apesar de ter ocorrido demissão da cooperativa ainda não procedeu à restituição daqueles títulos de capital, conforme disposto no art.º 36º do Código Cooperativo.

A Ré contestou alegando que o programa de construção a que a Autora aderiu era promovido por uma por outra cooperativa, não serem as quotizações restituíveis e não ter a obrigação de restituir o restante porquanto não houve demissão da cooperativa mas apenas desistência do programa, o mesmo não só não constitui qualquer título de capital como já foi integralmente transferido para a cooperativa promotora do programa.

Pediu a intervenção principal da cooperativa promotora do programa, o que foi deferido.

A Interveniente Principal contestou alegando que enquanto cooperativa de 2º grau desenvolveu um projecto habitacional a que a Ré aderiu, sendo por conta desta a selecção dos seus cooperadores que iriam beneficiar das fracções que dentro do projecto lhe eram atribuídas, não desenvolvendo qualquer relação com esses cooperadores, não ser possível imputar no que da Ré recebeu as quantias que a esta foram entregues pelos Autores, mas que nunca terá sido a totalidade e não ter assumido qualquer compromisso quanto ao início de construção do empreendimento.

A final foi proferida sentença que, considerando não ser aplicável o regime do art.º 36º do Código Cooperativo por não ter ocorrido demissão nem o pecúlio em causa configurar títulos de capital, mas terem os Autores logrado a demonstração de circunstancialismo densificador da perda do interesse na prestação em mora e que o capital entregue havia sido transferido para a Interveniente Principal e não ser restituível o pago a título de quotizações, condenou solidariamente a Ré a e Interveniente Principal a pagarem aos Autores a quantia de 20.000 € acrescida de juros moratórios.

Inconformada, apelou a Interveniente Principal concluindo, em síntese, por erro na decisão de facto, inexistência de qualquer vínculo contratual susceptível de fundamentar o direito à restituição da entrega efectuada, não poder lançar-se mão do enriquecimento sem causa como fundamento da decretada restituição quer porque ele não foi invocado pelos Autores quer por indemonstrados os respectivos fundamentos, e pedindo a sua absolvição do pedido.

Igualmente inconformada, apelou a Ré concluindo, em síntese, por nulidade da sentença, pela inexistência de qualquer vínculo contratual legitimador da obrigação de restituição, por inexistência de vínculo de solidariedade, pedindo a sua absolvição do pedido.

Houve contra-alegação onde se propugnou pela manutenção do decidido.
            I
                       
II–Questões a Resolver.

Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio.
De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.e., a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.

Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, são as seguintes as questões a resolver por este Tribunal:
da nulidade da sentença;
do erro no julgamento de facto;
da caracterização da situação jurídica das partes;
da viabilidade da pretensão dos Autores em face dessa caracterização.

III–Da Nulidade da Sentença.

A Ré vem expressamente invocar a nulidade da sentença por contradição da fundamentação de facto com a decisão e por excesso de pronúncia (conclusão 2ª) e, implicitamente, por falta de fundamentação (conclusões 13ª e 14ª).
A fundamentação de facto destina-se a explicitar o iter cognitivo da análise crítica das provas que fundou a convicção do julgador na decisão de fixação da base factual do litígio, na definição dos factos provados e não provados. Não se relaciona com a decisão jurídica da causa e, consequentemente, não é susceptível de com ela estar em contradição; e por isso não cabe na al. c) do nº 1º do art.º 615º do CPC, cujo âmbito de aplicação é apenas a contradição entre a fundamentação jurídica e a decisão.
A sentença recorrida conclui pela existência da obrigação de restituição pela ocorrência de incumprimento definitivo derivado da perda do interesse na prestação, e foi com esse fundamento que proferiu a decisão. A afirmação nela contida de que “em último termo os Autores sempre teriam direito ao reembolso do montante que foi prestado(…) através do mecanismo subsidiário do enriquecimento sem causa” não passa de obter dictum, que não constitui fundamento da decisão; só este, a ratio decidendi, releva para efeitos da nulidade da al. d) do nº 1 do art.º 615º do CPC - excesso de pronúncia.
Inverificadas estão, pois, as referidas nulidades.
Já o mesmo se não pode afirmar relativamente à nulidade prevista na al. b) do nº 1 do art.º 615º do CPC uma vez que da sentença recorrida não se descortina qual seja a obrigação relativamente à qual ocorreu a perda do interesse na respectiva prestação nem o fundamento da sua titularidade solidária pela Ré e Interveniente Principal.
Se é certo que o conceito de fundamentação é um conceito de geometria variável e que só a sua falta, e não já a sua deficiência ou incorrecção, releva para efeitos de nulidade da sentença, não podemos deixar de considerar que, atentas as concretas e particulares características do litígio, a especificação da obrigação incumprida e da causa de solidariedade na restituição se mostram essenciais para a compreensão dos fundamentos da decisão.
Donde se conclui pela nulidade da sentença recorrida por falta de fundamentação.
Vício esse que tem apenas por consequência a obrigação de o tribunal superior providenciar por essa fundamentação ao conhecer do objecto do recurso (art.º 665º, nº 1, do CPC).

IV–Fundamentos de Facto.

A Interveniente Principal impuga o ponto 18 do elenco factual:

Os elementos documentais de fls. 123 a 130, 242, 246 e 251 configuram cheques que foram remetidos pela Ré, com vista ao referido empreendimento, a qual transferiu para a Interveniente o montante global de € 20.000,00 dos Autores

porquanto, em seu entender, quer dos referidos documentos quer dos depoimentos dos representantes da Ré e da Interveniente Principal, não se pode considera demonstrado que o montante que os Autores entregaram à Ré tenha sido (pelo menos na sua totalidade) transferido para a Interveniente Principal.
O que esse ponto 18 releva em matéria de facto é na afirmação de que o montante de 20.000 € entregues pelos Autores à Ré estava incluído no dinheiro proveniente dos cooperadores da Ré que esta entregou à Interveniente principal conforme o ponto 17 dos factos provados. O demais é mera referenciação (despropositada, aliás) de elementos de prova que nada tem a ver com a fixação do elenco factual próprio da decisão de facto.
Apreciando a questão logo nos deparamos com a perplexidade de os documentos de fls. 242, 246 e 251 se reportarem a transferências da Ré para a Interveniente Principal nos anos de 2004 e 2005, pelo que se não vislumbra como os mesmos possam comprovar a transferência dos quantitativos entregues pelos Autores em NOV2009 e MAR2010.
A que se junta a perplexidade de os documentos de fls. 123 a 130 se reportarem a transferências da Ré para a Interveniente Principal entre DEZ2010 e MAR2011, não se vislumbrando como as mesmas possam ser relacionadas com quantias entregues cerca de um ano antes.
Perplexidades essas que, por si só, são suficientes para considerar como indemonstrado que as transferências efectuadas tenham englobado as quantias entregues pelos Autores; até porque do próprio enunciado do referido ponto 18 dos factos provados resulta que os elementos probatórios relevantes são apenas os documentos nele referidos e não quaisquer declarações prestadas em audiência[1].

Termos em que se fixa o seguinte elenco factual (assinalando a negrito as alterações introduzidas):

Factos provados.

1.–O Autor é o pai da Autora;
2.–A Ré é uma cooperativa de primeiro grau que desenvolve a sua actividade principal no ramo de habitação e construção, visando, sem fins lucrativos, a satisfação das necessidades habitacionais dos respetivos membros, podendo promover a aquisição de fogos para habitação dos seus membros;
3.–A Interveniente Principal é uma união constituída por diversas cooperativas onde se integra a Ré, que tem por finalidade a satisfação, sem fins lucrativos, das necessidades habitacionais dos membros das cooperativas-membros e, como objeto social, “(…) a promoção e execução de empreendimentos habitacionais, nomeadamente a compra, venda e hipoteca de terrenos, edifícios e fogos, destinados aos membros das Cooperativas (…)”;
4.–A referida Interveniente desenvolveu o projeto de habitação cooperativa que designou por empreendimento “Pardal Monteiro”, o qual implicaria a construção de um edifício de habitação na rua Pardal Monteiro, em Lisboa;
5.–O edifício a construir pela Interveniente deveria ser edificado em terreno pertencente à Câmara Municipal de Lisboa;
6.–Para tanto, em 31 de maio de 2012 foi outorgada uma escritura pública de cedência do direito de superfície dos lotes destinados a edificar os prédios abrangidos pelo mencionado empreendimento habitacional;
7.–Entendendo que seria uma boa oportunidade de adquirir um imóvel no mencionado projeto “Pardal Monteiro”, a Autora tornou-se cooperadora da Ré;
8.–Nessa sequência, em 25 de novembro de 2009, o Autor emitiu o cheque n.º 4539880178, sacado sobre a conta de depósitos à ordem n.º 16266400 da Caixa Geral de Depósitos, à ordem da Ré e no valor de € 10 000,00, tendo sido entregue o recibo referente a este pagamento;
9.–Em 10 de março de 2010, o Autor procedeu à emissão do cheque n.º 0939880182, sacado sobre a conta de depósitos à ordem n.º 16266400 da Caixa Geral de Depósitos, também à ordem da Ré e no valor de € 10 000,00, tendo sido entregue o recibo referente a este pagamento;
10.–Mais procederam os Autores ao pagamento anual do montante de € 30,00, referente às quotizações devidas, no valor total de € 90,00;
11.–O prédio onde se insere o apartamento pretendido comprar pelos Autores começaria a ser edificado, previsivelmente, no mês de outubro de 2009; em outubro de 2011 (dois anos volvidos) ainda não se tinha iniciado a construção do mencionado prédio;
12.–Tendo o Autor solicitado uma reunião junto da Ré para obter esclarecimentos quanto a tal facto, foi-lhe transmitido por um representante da Ré que se encontravam a diligenciar no sentido de obter fundos que permitissem devolver os montantes entregues pelos cooperadores;
13.–Em face dos atrasos na dita construção, a Autora enviou à Ré a carta que se encontra documentada a fls. 19, rececionada no dia 6 de outubro de 2011, com o teor seguinte: “Vanessa …, Sócia n.º 1947, por razões pessoais, vem por este meio desistir do projecto habitacional da Rua Pardal Monteiro, referente ao fogo do Lote D – 3.º Piso Frente e assim pedir a devolução das comparticipações efectuadas (20.000€)”;
14.–Por não obter resposta, por parte da Ré, quanto à devolução dos montantes entregues, o Autor solicitou uma nova reunião à Ré, reunião que veio a realizar-se em 4 de dezembro de 2012 com Carlos …, enquanto representante da Ré, na qual voltou a não ser dada uma concreta data para a devolução dos ditos montantes;
15.–Em 27 de dezembro de 2012, agora por intermédio da sua Ilustre Mandatária, os Autores instaram a Ré, mais uma vez, ao pagamento do montante global entregue, com as quotizações, através da carta registada que se encontra documentada a fls. 20 e 21 – carta essa que não obteve resposta;
16.–A Interveniente Principal era, e é, a única promotora do empreendimento “Pardal Monteiro”, sendo que a cooperativa Ré é um dos membros da dita Interveniente e integra os respetivos corpos sociais – os cargos de direção, conselho fiscal e assembleia geral – através de um ou vários representantes nestes cargos;
17.–É a dita Interveniente que se encontra na primeira linha do desenvolvimento do programa habitacional “Pardal Monteiro”, à qual foram feitas diversas entregas de cheques, por parte da cooperativa Ré, de dinheiro proveniente dos cooperadores da Ré;
18.–[Eliminado]
19.–A Interveniente não admite a inscrição direta de pessoas singulares, uma vez que se trata de uma cooperativa de segundo grau (ou de grau superior, conforme o disposto no artigo 5.º do Código Cooperativo);
20.–A Autora pretendeu inscrever-se junto da Ré como cooperadora, apenas com vista a adquirir um fogo do programa habitacional em causa, desse modo viabilizando a aquisição de um fogo naquele empreendimento;
21.–A promotora do empreendimento em apreço – a Interveniente Principal – é a titular do direito de superfície sobre o prédio e tem a seu cargo o desenvolvimento do projeto, custeando os correspondentes planos e projetos de construção, obtendo as respetivas licenças camarárias, procedendo aos investimentos necessários para o efeito e gerindo as receitas obtidas através dos pagamentos efetuados pelos interessados nas futuras aquisições dos fogos;
22.–(…) Apesar de os pagamentos serem concretizados pelos interessados às respetivas cooperativas, e não diretamente à referida Interveniente;
23.–Uma vez finalizado o empreendimento “Pardal Monteiro”, seria a Interveniente Principal a celebrar as escrituras públicas de compra e venda dos 106 fogos, com os membros das suas cooperativas, sendo que todos os valores entregues pelos mencionados interessados deveriam ser entregues, na sua totalidade, à referida Interveniente;
24.–A Interveniente manteve, e mantém, a responsabilidade exclusiva relativa ao empreendimento habitacional “Pardal Monteiro”, dependendo das disponibilidades de financiamento bancário, não sendo a cooperativa Ré sujeito em qualquer contrato do qual resultem direitos ou obrigações relativamente ao sobredito empreendimento habitacional;
25.–Em virtude da crise instalada nos setores bancário e imobiliário, a construção do dito empreendimento habitacional tem vindo a ser adiada.

Factos não provados:

que a Autora se tivesse demitido de cooperadora da Ré no dia 6 de outubro de 2011;
que a Interveniente jamais tivesse assumido qualquer compromisso quanto ao início da construção de tais edifícios;
que a Ré tenha transferido para a Interveniente Principal os 20.000 € entregues pelos Autores.

V–Fundamentos de Direito[2]

O fundamento da sentença recorrida – a perda do interesse na prestação por parte da Autora “pessoa ainda jovem que pretenderá dar um rumo à sua vida” que viu lograda a sua “expectativa de ver as obras, pelo menos começadas” após uma “longa espera de dois anos” - jamais poderia ser mantido (independentemente do complexo obrigacional que viesse a ser considerado) porque o complexo factual invocado para chegar a tal conclusão se mostra inverificado. Com efeito do elenco factual fixado nada resulta quanto à idade da Autora nem quanto ao seu rumo de vida, nem se pode configurar uma expectativa de rapidez de execução uma vez que as previsões iniciais (cf. facto 11) já se encontravam ultrapassadas no momento em que aderiu ao projecto e, por outro lado e fundamentalmente, conforme resulta do ponto 13 do elenco dos factos provados (sendo que o documento aí referido consubstancia uma declaração confessória da Autora), o que foi invocado como razão da desistência do projecto não foi a perda do interesse na prestação derivado da mora do devedor, mas antes ‘motivos pessoais’.

Para aferir da pretensão dos Autores[3] importa, antes de mais, caracterizar as respectivas posições jurídicas. O que, porque nos encontramos no domínio da actividade cooperativa no ramo de habitação e construção e não no puro campo da actividade comercial de construção e venda de imóveis, haverá de ser feito à luz da regulamentação específica daquela actividade: o Código Cooperativo[4] e o DL 502/99, 19NOV.

Um dos principais objectivos das cooperativas de habitação é a promoção de construção de fogos para a aquisição dos seus membros (art.º 2º do DL 502/99); no desenvolvimento dessa actividade essas cooperativas promovem programas de construção, que se constituem como centros autónomos de gestão e imputação económica (artigos 8º, 9º, 17º, 19º do DL 502/99). Esses programas de construção caracterizam-se, em primeiro lugar, pela decisão da cooperativa do lançamento desse programa, idealizando o que se irá construir e as regras de desenvolvimento e gestão desse programa e as condições de adesão ao mesmo (art.º 9º do DL 502/99); depois dessa fase inicial pela angariação de aderentes ao programa; e subsequentemente o estabelecimento da sustentabilidade económica e a execução desse programa.

Pode ocorrer que uma única cooperativa não esteja em condições de por si só assegurar o lançamento e execução de um programa habitacional, mas tal seja possível através da conjugação de esforços de diversas cooperativas que para o efeito formarão uma união de cooperativas (artigos 1º do DL 502/99 e 5º e 82º [102º e 103º] do código Cooperativo).

Neste último caso temos que a promoção do projecto cabe à união das cooperativas, tendo como cooperadores e aderentes do programa, as cooperativas, a quem são atribuídos à partida determinado número de fogos (que constituirão como que sub-projectos), que estes disponibilizam aos seus cooperadores para adesão ao respectivo projecto.

Os cooperadores que aderem ao projecto fazem-no enquanto cooperadores da cooperativa e apenas relativamente ao ‘sub-projecto’ que a esta diz respeito; o que quer dizer que não participam directamente na gestão do projecto (designadamente através da participação nas ‘assembleias de projecto’), que está nas mãos das cooperativas aderentes ao projecto global.
Não há uma vinculação directa entre os cooperadores individuais e a união das cooperativas, que lhes permita reivindicar directamente a esta direitos ou posições jurídicas[5], mas uma estratificação dos diversos níveis de colaboração (embora os mesmos estejam numa estreita conexão de colaboração e interdependência).

Um projecto habitacional constitui um empreendimento de avultado valor económico e susceptível de ser afectado por múltiplos riscos[6]. O seu lançamento e desenvolvimento devem corresponder a ponderadas e avisadas decisões. Por seu turno a adesão a esses projectos implica a assunção das vantagens decorrentes do movimento cooperativo mas de igual forma a assunção dos riscos inerentes ao projecto; e essa adesão implica a aceitação das regras do projecto (normas de inscrição) e da sujeição ao princípio democrático da gestão cooperativa. Essa adesão trás consigo uma vinculação firme, um comprometimento para o êxito do programa, designadamente na contribuição para a sua sustentabilidade financeira. Não se afigura por isso que a desistência individual do programa[7] seja causa de exoneração das responsabilidades assumidas e, até, origine um direito à restituição do já prestado[8].

E mesmo que se perscrute da possibilidade de admissão de uma desistência vinculada à existência de um ‘incumprimento’ do programa (designadamente a sua má execução ou a sua não execução) por culpa da cooperativa (ou da união de cooperativas) que, por isso, pudesse ter como efeito a exoneração de responsabilidades futuras e a restituição do já prestado, sempre se esbarra com a específica organização da actividade cooperativa, designadamente o seu princípio democrático segundo o qual os cooperadores participam activamente na formulação das políticas das cooperativas e nas suas tomadas de decisões, exercendo um apertado controlo sobre a gestão das mesmas (artigos 3º. 33º [21º], 34º [22º], 49º [38º] e 65º [71º] do Código Cooperativo); formando-se a vontade da cooperativa a partir da intervenção dos diversos cooperadores nas assembleias gerais sempre se concluirá que o alegado ‘incumprimento culposo’ da cooperativa radica, afinal, na actuação (por acção ou omissão) do próprio cooperador ‘lesado’.

Sendo a lei omissa nessa matéria o certo é que nela se encontra, para o regime da propriedade colectiva, uma expressa referência no nº 2 do art.º 19º do DL 502/99 de que mesmo no caso de demissão ou exclusão (mais gravoso que a simples desistência do projecto) em caso algum serão reembolsadas as quantias pagas a título de preço do direito de habitação.

Não se desconhece a existência de jurisprudência que decretou a restituição do entretanto prestado em caso de desistência do projecto[9], mas o facto é que eles padecem, em nosso entender, da fragilidade de reconhecer um direito cujo fundamento não indicam, dando simplesmente por assente a sua existência.

Dir-se-á que a posição assumida desatende por completo a posição do desistente, que perde tudo o que investiu (porventura uma parte considerável do seu património), deixando-o desprotegido e sendo causa de injustiça.

A isso se obtemperará, em primeira mão, que não é só a posição do desistente que merece protecção; igual protecção merecem os restantes aderentes ao programa habitacional e que não têm que ver frustrada ou onerada a sua posição pela retirada do desistente. Daí que a solução a dar à questão tem de ponderar as duas posições no particular quadro da actividade cooperativa e não salvaguardar em exclusivo o interesse patrimonial do desistente.

Em segundo lugar se dirá que fica sempre aberta ao desistente a possibilidade de recurso ao enriquecimento sem causa, mas apenas se e quando ele se vier a verificar.

Com efeito, esse enriquecimento não resulta do facto de a cooperativa (ou melhor, o projecto habitacional) ficar desde logo com os quantitativos já prestados pelo desistente (que até já poderão ter sido utilizados na realização de despesas inerentes ao programa, designadamente projectos de arquitectura). Esse enriquecimento só se poderá concretizar a final aquando da liquidação do projecto habitacional. Só na medida em que o projecto habitacional tenha logrado ultrapassar os efeitos negativos da desistência cobrindo o prejuízo daí adveniente é que haverá, verdadeiramente, um enriquecimento do projecto habitacional à custa do desistente.

No caso concreto dos autos, dada a frugalidade de alegação dos Autores designadamente quanto à caracterização do projecto a que aderiram, apenas se tem por demonstrado que em 2009 aderiu a um projecto habitacional de uma união de cooperativas de que a cooperativa de que era associada era cooperadora com vista à aquisição de uma fracção habitacional a construir, tendo feito duas entregas no total de 20.000 euros e que em OUT2011 desistiu, por razões pessoais, da adesão a esse projecto habitacional.

Situação essa que se enquadra na caracterização que acima se deixou feita, donde se extrai que, de momento, não assiste aos Autores qualquer direito à restituição do prestado.

VI–Decisão

Termos em que se decide:

declarar a nulidade da sentença recorrida;
alterar o elenco factual nos termos acima descritos;
na procedência das apelações, absolver a Ré e a Interveniente Principal do pedido.

Custas (em ambas as instâncias e em ambas as apelações) pelos Autores.


Lisboa, 26SET2017

                                                                                 
(Rijo Ferreira)                                                                                  
(Afonso Henrique)                                                                                
(Rui Vouga)


[1]aliás, a única referência disponível, uma vez que com o processo não foi enviado CD com a gravação da audiência final, é a assentada das declarações do representante legal da Interveniente Principal, no sentido de que não lhe foi entregue a totalidade dos valores recebidos pela Ré (cf. fls. 282).
[2]salvo outra indicação, toda a jurisprudência dos tribunais nacionais referida, pode ser consultada em www.dgsi.pt e toda a jurisprudência dos tribunais da União Europeia pode ser consultada em http://curia.europa.eu/juris/recherche.jsf?language=pt.
[3]em bom rigor, da Autora; com efeito, ao longo de todo o processo a pretensão deduzida tem sido analisada por referência aos Autores, considerados como uma unitária posição jurídica, se bem que o Autor pai não tenha qualquer legitimidade processual uma vez que, nos termos da sua própria alegação, se limitou a providenciar fundos à sua filha, não tendo qualquer posição jurídica relativamente à Ré e à Interveniente principal, mas não se entende adequado nesta adiantada fase do processo levantar oficiosamente essa questão.
[4]aprovado pela Lei 51/96, 7SET (em vigor à data dos factos) e entretanto revogado e substituído pelo aprovado pela Lei 119/2015, 31AGO.
[5]sem prejuízo de esta assumir essas obrigações ou de elas estarem estabelecidas na regulamentação do projecto.
[6]e porque é grande o risco é que é habitual regular-se com algum pormenor e extensão a repartição desse risco entre os vários intervenientes no processo, designadamente para o caso de ocorrência de desistências.
[7]susceptível de impedir o seu êxito, gorando as expectativas de toda uma plêiade de aderentes que cumpriram escrupulosamente com as suas obrigações.
[8]sem prejuízo do que a propósito esteja determinado na regulamentação do projecto ou assumido pela ‘assembleia do projecto’.
[9]cf. acórdãos desta Relação de 15ABR2008 (proc. 3048/2008), 06OUT2011 (proc. 7685/10.8TBOER-L1) e 30OUT2014 (proc. 3588/12.0YXLSB.BL1).