Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
824/11.3ECLSB.L1-5
Relator: CID GERALDO
Descritores: DEFICIÊNCIA DA GRAVAÇÃO
IRREGULARIDADE PROCESSUAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/30/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: Verificando-se a nulidade, por omissão absoluta de pronúncia, prevista pelo artigo 379.°, n.° 1, alínea c) do Código de Processo Penal, por não ter sido apreciada, em nenhum momento nos autos, a invocada nulidade do julgamento com base na deficiente gravação da prova, outra solução não resta que não seja a de declarar inválida a audiência de julgamento, em virtude de a gravação aúdio da sessão de julgamento ocorrida no dia 9/10/14, se mostrar inaudível e imperceptível, relativamente aos depoimentos prestados pelos arguidos e pela testemunha JS, e ordenar a sua repetição com a necessária documentação das declarações ali prestadas, lacuna insuperável que obviamente inviabiliza uma apreciação global da prova.

A prova testemunhal produzida na audiência é gravada com a finalidade de possibilitar o recurso da decisão final não só quanto à matéria de facto como também quanto à matéria de direito.

Esta deficiência não constitui qualquer das nulidades elencadas nos arts. 120º ou 121º CPP mas é, sem dúvida, uma irregularidade que afecta o valor do acto praticado e que pode e deve ser reparada, em conformidade com o disposto no art. 123º, nº 2 CPP visto que a sua verificação é decisivamente prejudicial para os direitos dos sujeitos processuais e tem influência no exame e decisão da causa.

A deficiente gravação da prova constitui erro apenas imputável à actividade do tribunal, não sendo por isso defensável que as consequências de tal erro se possam transferir para os destinatários da decisão, mormente por inutilizar a apreciação do recurso quanto à matéria de facto.
Decisão Texto Parcial:Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa.


1. No âmbito do processo comum, com intervenção do Tribunal Singular nº 824/11.3ECLSB, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, Juízo Local Criminal de Loures - Juiz 4, o Ministério Público deduziu acusação contra R. , Adjunto de Loja, A. , responsável de secção e "P., S.A.",  imputando, a cada um dos arguidos, em autoria material e na forma consumada, a pratica de:
  um crime de fraude sobre mercadorias p. p. pelo art. 23°, n° 1, al. b), do DL 28/84, de 20.01, sendo a sociedade arguida por referência ao art. 3° e 7° do DL 28/84, de 20.01; e
uma contra-ordenacão p. p. pelo art. 64°, n° 1, al.c), do mesmo diploma legal, sendo a sociedade arguida por referência ao art. 3° e 7° do DL 28/84, de 20.01.

(…)

3. De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (in D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso.

Assim, a recorrente impugna a sentença por considerar que:
a)- Não existe responsabilidade criminal da arguida nos termos do art. 3° do DL 28/84 de 20/01, pois que não se demonstrou que a infracção tenha sido cometida, pelos seus órgãos ou representantes, em seu nome, e no interesse colectivo, nem ficou provado que a ora recorrente tenha ditado ordens e instruções de molde a contrariar a prática dessa não conformidade, e assim sendo não estão preenchidos os elementos do tipo do crime de fraude sobre mercadorias;
b)- Verifica-se a insuficiência da matéria de facto, uma vez que, no seu entender a matéria dada com provada em julgamento não é suficiente para se concluir pela prática do crime de fraude sobre mercadorias, não só por falta dos elementos objectivos, como por falta do elemento subjectivo, na medida em que o tribunal apenas dá como provado a exposição para venda de mercadoria de natureza diferente, ou de qualidade ou quantidade inferiores às que afirmavam possuírem, sem indicar quem ou por ordem de quem, foi exposto para venda a referida mercadoria, não se tendo apurado que o produto que estava exposto era de quantidade ou qualidade inferior á que era indicada, como deveria ter sido, pois que ambos, quer o bacalhau corrente, quer o miúdo pertencem á primeira categoria, sendo que em relação ao depoimento da co-arguida A., a mesma não presenciou os factos e o seu depoimento não foi corroborado por qualquer outra prova, como deveria, pelo que não poderia ter sido valorado, entendendo a recorrente que da prova produzida em julgamento não poderia ter sido dado como provado os factos constantes dos pontos 12, 13 e 14, pois que não se provou que a arguida tivesse a intenção de enganar outrem nas relações negociais, só porque por erro indicou incorrectamente o tipo comercial do bacalhau.
c)- Verificar-se a existência de erro notório na apreciação da prova, na medida em que o tribunal atribuiu credibilidade ao depoimento da co-arguida A.  quando a mesma não presenciou os factos, e o seu depoimento não foi corroborado por qualquer outra prova, como deveria, pelo que não poderia ter sido valorado, tratando-se de meras suposições.
d)- Alega a existência de uma contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, na medida em que foi dado como provado que a 3° arguida, tem exposto no estabelecimento comercial em causa uma “tabela de classificação do bacalhau”, a qual permite com facilidade a todos os colaboradores identificar o critério de determinação do tipo comercial de bacalhau, e que a mesma deu instruções para colocação exacta dos rótulos do bacalhau, nomeadamente no que respeita ao fornecedor e lote, e o facto de se ter considerado verificados os elementos do tipo de crime atendendo a que os factos foram praticados por ordens e instruções emanadas da arguida, o que constitui uma contradição insanável.
e)- Invoca a nulidade da sentença por omissão de pronúncia uma vez que não foi apreciada, quer anteriormente, quer em sede de sentença a nulidade invocada pelo recorrente nos termos dos arts 120° n°1 e 2 do C.P.P., das gravações da sessão de julgamento por serem as mesmas inaudíveis e imperceptíveis quanto ao arguido R. e testemunha JS;
f)- Invoca igualmente a nulidade de omissão de pronúncia quanto aos factos alegados na defesa, pois que foram por esta alegados factos e oferecidos documentos para prova desses mesmos factos, com os quais aliás as testemunhas JA e TA, foram confrontados e portanto examinados em audiência, não tendo o tribunal tomado qualquer posição referente aos mesmos em sentença, sendo esta assim nula, nos termos do art. 374° n°2 e 3 do C.P.P.;
g)- Alega a nulidade da sentença, nos termos do art. 379°, n°1 al. a) do C.P.P, por não existir a análise crítica da prova produzida, de modo a serem explicadas as razões que levaram o tribunal a valorar a prova num determinado sentido e a formar a sua convicção, não cumprindo deste modo o disposto no art. 374°, n°2 do C.P.P.
h)- Por último, quanto á medida da pena, entende que a mesma não foi justa e adequada, pois que além de não respeitar os critérios legais não teve em atenção o tempo decorrido desde a prática do crime e a boa conduta da arguida.

Em suma, do ponto de vista da recorrente verifica-se o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, erro na apreciação da prova, contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, nulidade da sentença por omissão de pronúncia, nulidade da sentença, nos termos do art. 379°, n°1 al. a) do C.P.P, por falta de fundamentação crítica da prova produzida e excesso da medida da pena aplicada.

Avancemos na apreciação das questões suscitadas, a começar pelas de ordem processual, na medida em que a sua procedência prejudica o conhecimento das restantes.
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4. A questão de natureza processual com que nos confrontamos é a alegada nulidade da sentença por omissão de pronúncia, uma vez que não foi apreciada, quer anteriormente, quer em sede de sentença a nulidade invocada pelo recorrente nos termos dos arts 120° n°1 e 2 do C.P.P., das gravações da sessão de julgamento por serem as mesmas inaudíveis e imperceptíveis quanto ao arguido R. e testemunha JSs.
Invoca, igualmente a nulidade de omissão de pronúncia quanto aos factos alegados na defesa, pois que foram por esta alegados factos e oferecidos documentos para prova desses mesmos factos, com os quais aliás as testemunhas JA e TA , foram confrontados e portanto examinados em audiência, não tendo o tribunal tomado qualquer posição referente aos mesmos em sentença, sendo esta assim nula, nos termos do art. 374° n°2 e 3 do C.P.P.
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Quanto à nulidade da sentença por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 379.°, n.° 1, alínea c) do Código de Processo Penal, por não ter sido apreciada, em nenhum momento nos autos, a nulidade invocada pelo recorrente no que respeita a serem imperceptíveis e inaudíveis as gravações de julgamento.

Alega a recorrente, em síntese que, em 17.11.2014 (via fax) os três arguidos apresentaram um requerimento (fls. 279) no qual concluíram que “comprovando-se a deficiência da gravação da prova, dado o depoimento de certas testemunhas e das declarações dos arguidos se encontrarem totalmente inaudíveis e imperceptíveis, vieram arguir, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 363.° e n.°s 1 e 2 do artigo 120.°, todos do Código de Processo Penal, a nulidade da referida gravação, devendo ordenar-se a repetição da audição do Arguido R.  e da testemunha JS”. Em 10.12.2014 os três arguidos apresentaram o requerimento de interposição de recurso da douta sentença, arguindo nas respectivas motivação e conclusões, novamente aquela nulidade. Baixando os autos à 1ª instância, uma vez mais, em 03.4.2017, a arguida, ora recorrente, ofereceu (via fax) o requerimento que consta dos autos (ref 5304238), mediante o qual voltou a arguir a mesma nulidade. Em 05 de Maio de 2017 a Mmª Juiz a quo proferiu despacho no qual consignou que “no tocante às nulidades invocadas, relega-se para sede própria - sentença -, a competente apreciação”. Contudo, proferida a sentença recorrida, o Tribunal a quo não se pronunciou sobre aquela nulidade. Assim, conforme estatui o disposto no artigo 379.°, n.° 1, alínea c) do Código de Processo Penal, é nula a sentença quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar, o que, verificando-se no caso, expressamente se argui, por omissão absoluta de pronúncia na sentença quanto à invocada nulidade prevista pelo artigo 363° do Código de Processo Penal, em violação do disposto no artigo 608°, n.° 2 do Código de Processo Civil.
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Respondeu o Digno Magistrado do MºPº, admitindo que a questão da nulidade invocada não foi na verdade apreciada porquanto, o despacho proferido pela Mmª Juiz em 5/05/17 (fls 483), de que no tocante às nulidades invocadas, relegou para sede própria- sentença- a competente apreciação, a qual, porém, não foi apreciada em sede de sentença, pelo que se impõe que tal suceda. Todavia, alega que a nulidade invocada, já se encontra sanada, uma vez que não foi invocada em tempo, ou seja nos 10 dias após a data da sessão de julgamento em que foram produzidos os depoimentos em causa, ou seja em 9/10/2014, pois que só em 17/11/2014, foi a mesma arguida; a nulidade em causa, prevista no art. 363° n°1 e 2 e art. 120°, ambos do C.P.., resulta de não serem perceptíveis na gravação da prova, os depoimentos prestados pelos arguidos e pela testemunha JSs, que se mostram inaudíveis e imperceptíveis; esses depoimentos foram prestados na sessão de julgamento de 9/10/14, conforme acta de fls 227 a 229, e conforme se constata de fls 237, só em 27/10/2014 é que os arguidos requereram a entrega de cópia do registo áudio das declarações prestadas nas sessões de julgamento, cópia essa que foi entregue em 6/11/2014 (fls 230); em 17/11/2014, os arguidos vieram arguir a nulidade da gravação da prova e requereram a repetição da audição da testemunha JSs e dos arguidos, sendo que por despacho de 25/11/2014, a Mma Juiz ordenou que a secção de processos verificasse a qualidade da gravação e de tais depoimentos e lavrasse cota no processo, o que na verdade foi efectuado e lavrada a cota de fls 355, na qual é referido que não era audível/perceptível quer os depoimentos dos arguidos, quer da testemunha JSs; ora segundo o Ac. de Uniformização de Jurisprudência N° 13/2014, de 23/09, “ a nulidade prevista no art. 363° do C.P.P. deve ser arguida perante o tribunal da 1° instância, em requerimento autónomo, no prazo geral de 10 dias, a contar da date da acta de sessão de audiência em que tiver ocorrido a omissão da documentação ou a deficiente documentação das declarações orais, acrescido do período de tempo que mediar entre o requerimento da cópia da gravação, acompanhado do necessário suporte técnico, e a efectiva satisfação desse pedido pelo funcionário, nos termos do n°3 do art. 101 do mesmo diploma, sob pena de dever considerar-se sanada...”. Conclui, assim, que a invocada nulidade não foi arguida em tempo pelo que se encontra sanada, sendo que, uma vez que o tribunal de primeira instância ainda não se pronunciou sobre a mesma, entende-se que o deverá fazer antes de ser ordenada a subida dos autos para o Venerando TRL.
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A invocada nulidade em causa, prevista, segundo a recorrente, no art. 363° n°1 e 2 e art. 120°, ambos do C.P.., resulta de não serem perceptíveis na gravação da prova, os depoimentos prestados pelos arguidos e pela testemunha JSs, que se mostram inaudíveis e imperceptíveis; esses depoimentos foram prestados na sessão de julgamento de 9/10/14, conforme acta de fls 227 a 229.

Dos autos, com interesse para a decisão, constam os seguintes elementos:
Em 24.10.2014 os arguidos requereram “a extracção de cópia do registo áudio das declarações prestadas oralmente nas sessões de audiência de julgamento decorridas”.

Em 06.11.2014 foi proferida e depositada a sentença e, nesta mesma data foi entregue aos arguidos um CD com a gravação da prova (cfr. Termo de Entrega dessa data e com a referência 120369448).

Em 17.11.2014 (via fax) os arguidos apresentaram um requerimento (fls. 279) no qual concluíram que “comprovando-se a deficiência da gravação da prova, dado o depoimento de certas testemunhas e das declarações dos arguidos se encontrarem totalmente inaudíveis e imperceptíveis, vêm os Arguidos arguir, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 363.° e n.°s 1 e 2 do artigo 120.°, todos do Código de Processo Penal, a nulidade da referida gravação, devendo ordenar-se a repetição da audição do Arguido R.  e da testemunha JS”.

Por despacho de 25.11.2014 a Mmª Juiz ordenou que a secção de processos verificasse a qualidade da gravação e de tais depoimentos e lavrasse cota no processo, o que na verdade foi efectuado e lavrada a cota de fls 355, na qual é referido que não era audível/perceptível quer os depoimentos dos arguidos, quer da testemunha JS.

Em 10.12.2014 os arguidos apresentaram o requerimento de interposição de recurso da douta sentença, contendo a respectiva motivação e conclusões.


Com a referência 120972257, consta dos autos que “Aos 16-12-2014, após audição da gravação confirma-se que efectivamente não é audível/perceptível a audição das declarações dos arguidos bem como da testemunha JS”.

Admitido o recurso por douto despacho de 12.01.2015, este Tribunal da Relação de Lisboa proferiu Acórdão em 22.11.2016 que, concedendo provimento ao recurso, declarando nula a sentença recorrida e ordenando “a reabertura da audiência de julgamento para cumprimento do disposto no artigo 358°, n.°s 1 e 3 do Código de Processo Penal, a que se seguirá a prolação de nova sentença”.

Baixando os autos à 1ª instância, pela Mmª Juiz foi proferido o seguinte despacho em 27.01.2017:
De harmonia com o Acórdão proferido e pese embora os factos “novos” tenham emergido da defesa, notifique os sujeitos processuais, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 358°, n°1, do C.P.P., considerando-se que a comunicação a que o preceito se refere teve lugar com a prolação da sentença em Primeira Instância”.

Em 03.4.2017 a recorrente, ofereceu (via fax) o requerimento que consta dos autos (ref 5304238), mediante o qual, para além de se pronunciar sobre os factos constantes dos pontos n.°s 12, 13, 14, 15, 18, 21 e 22 da douta sentença de 06.11.2014, verteu o seguinte:

Por requerimento que deu entrada nos autos a 17 de Novembro de 2014 a Arguida arguiu, nos termos do disposto no artigo 363.° e n.°s 1 e 2 do artigo 120.° do Código de Processo Penal, a nulidade das gravações que documentam as sessões de audiência de julgamento realizadas no âmbito dos presentes autos, por deficiência na gravação que impossibilita a captação das declarações e depoimentos ali prestados.

Tendo reiterado a arguição daquela nulidade em sede de recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa da sentença proferida nos autos.

Questão que, não obstante, não foi ainda conhecida neste processo.

Por se revelar matéria que, salvo o devido respeito por melhor opinião, inquina o prosseguimento dos autos, determinando a repetição do julgamento, vem a Arguida, reiterando, expressamente arguir a nulidade das gravações que documentam as sessões de audiência de julgamento realizadas no âmbito dos presentes autos, porquanto as mesmas não possibilitam a captação das declarações e depoimentos prestados, nos termos dos citados artigos 363.° e n.°s 1 e 2 do 120.° do Código de Processo Penal, conforme aliás cota lavrada nos autos a 7 de Janeiro de 2015".

Por douto despacho de 21 de Abril de 2017 a Mmª Juiz determinou que:
Antes de mais, deverão os autos ir ao Ministério Público para que se pronuncie quanto à nulidade suscitada no requerimento de 04.04.17 (deficiência do registo áudio da audiência de julgamento) ".

Seguidamente, em 05 de Maio de 2017 a Mmª Juiz proferiu o seguinte despacho:
Cumpra-se o art. 151°, n°1, do C.P.C., com vista ao agendamento da audiência para audição das testemunhas arroladas pela arguida Pingo Doce e produção de alegações finais (na sequência do cumprimento do art. 358°, n°1, do C.P.P.), com indicação de que a signatária tem disponibilidade entre os dias 23 de Maio e 05 de Junho. No mais, designadamente, no tocante às nulidades invocadas, relega-se para sede própria – sentença –, a competente apreciação”.

Realizada a audiência de julgamento, pelo Tribunal foi proferida a sentença ora recorrida, sem que na mesma se tenha apreciado as nulidades invocadas, não obstante o próprio Tribunal ter diligenciado pela verificação das deficiências e omissões apontadas pela arguida e, bem assim, ter considerado que o conhecimento e decisão sobre aquela questão teria na sentença a sua sede própria.  
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No caso concreto, está em causa a omissão de pronúncia, na medida em que não foi apreciado, em nenhum momento nos autos a nulidade invocada pela recorrente no que respeita a serem imperceptíveis e inaudíveis as gravações de julgamento.

Como vimos, esta questão vem na sequência da tramitação processual dos presentes autos, que teve o seu início com o requerimento de 17.11.2014, apresentado pelos arguidos, no qual vieram arguir a nulidade em virtude da gravação áudio da sessão de julgamento ocorrida no dia 9/10/14, ser deficiente, por o depoimento de certas testemunhas e das declarações dos arguidos se encontrarem totalmente inaudíveis e imperceptíveis, consubstanciando a nulidade a que se refere o artigo 363 ° do CPP, devendo ordenar-se a repetição da audição do Arguido R. e da testemunha JSs.

Por despacho de 25.11.2014 a Mmª Juiz ordenou que a secção de processos verificasse a qualidade da gravação e de tais depoimentos e lavrasse cota no processo, o que na verdade foi efectuado e lavrada a cota de fls 355, na qual é referido que não era audível/perceptível quer os depoimentos dos arguidos, quer da testemunha JS. E, na verdade, com a referência 120972257, consta dos autos que “Aos 16-12-2014, após audição da gravação confirma-se que efectivamente não é audível/perceptível a audição das declarações dos arguidos bem como da testemunha JSs”.

Em 10.12.2014 os arguidos apresentaram recurso da douta sentença e, admitido o recurso por douto despacho de 12.01.2015, este Tribunal da Relação de Lisboa proferiu Acórdão em 22.11.2016 que, concedendo provimento ao recurso, declarando nula a sentença recorrida e ordenando “a reabertura da audiência de julgamento para cumprimento do disposto no artigo 358°, n.°s 1 e 3 do Código de Processo Penal, a que se seguirá a prolação de nova sentença”.

Baixando os autos à 1ª instância, pela Mmª Juiz foi proferido despacho a ordenar a notificação dos sujeitos processuais, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 358°, n°1, do C.P.P.

Nessa sequência, em 03.4.2017 apresentou requerimento mediante o qual, para além de se pronunciar sobre os factos constantes dos pontos n.°s 12, 13, 14, 15, 18, 21 e 22 da douta sentença de 06.11.2014,  veio arguir, de novo, nos termos do disposto no artigo 363.° e n.°s 1 e 2 do artigo 120.° do Código de Processo Penal, a nulidade das gravações, por deficiência na gravação que impossibilita a captação das declarações e depoimentos ali prestados.

Seguidamente, em 05 de Maio de 2017 a Mmª Juiz proferiu o seguinte despacho:
Cumpra-se o art. 151°, n°1, do C.P.C., com vista ao agendamento da audiência para audição das testemunhas arroladas pela arguida Pingo Doce e produção de alegações finais (na sequência do cumprimento do art. 358°, n°1, do C.P.P.), com indicação de que a signatária tem disponibilidade entre os dias 23 de Maio e 05 de Junho. No mais, designadamente, no tocante às nulidades invocadas, relega-se para sede própria – sentença –, a competente apreciação”.
Porém, realizada a audiência de julgamento, pelo Tribunal foi proferida a sentença recorrida, sem que na mesma se tenha apreciado as nulidades invocadas, não obstante o próprio Tribunal ter diligenciado pela verificação das deficiências e omissões apontadas pela arguida e, bem assim, ter considerado que o conhecimento e decisão sobre aquela questão teria na sentença a sua sede própria.  
Por tal motivo, duvidas não restam de que se verifica a nulidade por omissão absoluta de pronúncia, prevista pelo artigo 379.°, n.° 1, alínea c) do Código de Processo Penal, por não ter sido apreciada, em nenhum momento nos autos, a nulidade invocada pela recorrente no que respeita a serem imperceptíveis e inaudíveis as gravações de julgamento.

O MºPº, embora admita que a questão da nulidade invocada não foi na verdade apreciada porquanto, o despacho proferido pela Mmª Juiz em 5/05/17 (fls 483), relegou para sede própria- sentença- a competente apreciação, a qual, porém, não foi apreciada em sede de sentença, impondo-se que tal suceda, entende, porém, que a nulidade invocada, já se encontra sanada, uma vez que não foi invocada em tempo, ou seja nos 10 dias após a data da sessão de julgamento em que foram produzidos os depoimentos em causa, ou seja em 9/10/2014, pois que só em 17/11/2014, foi a mesma arguida.
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Mas, pese embora se verifique a nulidade por omissão absoluta de pronúncia, prevista pelo artigo 379.°, n.° 1, alínea c) do Código de Processo Penal, por não ter sido apreciada, em nenhum momento nos autos, a alegada nulidade do julgamento com base na deficiente gravação da prova, vejamos, antes de mais, se estamos perante a nulidade prevista pelo artigo 363° do Código de Processo Penal, invocada pela recorrente, em virtude da gravação aúdio da sessão de julgamento ocorrida no dia 9/10/14, se mostrar inaudível e imperceptível, relativamente aos depoimentos prestados pelos arguidos e pela testemunha JS.

Tal deficiência verifica-se, constando dos autos que “Aos 16-12-2014, após audição da gravação confirma-se que efectivamente não é audível/perceptível a audição das declarações dos arguidos bem como da testemunha JS”.

Ora, a prova testemunhal produzida na audiência foi gravada com a finalidade de possibilitar o recurso da decisão final não só quanto à matéria de facto como também quanto à matéria de direito.

Mas, encontra-se inviabilizada a audição do arguido R., com algumas intervenções com captação de som deficiente; da arguida AS, com intervenções com captação de som muito deficiente ou inaudível; da testemunha PF: intervenções com captação de som muito deficiente ou inaudível.

Esta lacuna insuperável obviamente inviabiliza uma apreciação global da prova.

Esta deficiência não constitui qualquer das nulidades elencadas nos arts. 120º ou 121º CPP mas é, sem dúvida, uma irregularidade que afecta o valor do acto praticado e que pode e deve ser reparada, em conformidade com o disposto no art. 123º, nº 2 CPP.

Sendo pacífico o entendimento de que o vício só pode qualificar-se como mera irregularidade, nos termos do nº 2 do artigo 118º do CPP, sujeita ao regime do artigo 123º do mesmo código, já se detectam divergências jurisprudenciais quanto ao regime da sua sanação.

De um lado, encontram-se decisões que, considerando tratar-se de uma irregularidade, ou nulidade relativa, impõe ao sujeito processual que argua, uma ou outra, dentro de determinados prazos, perante o tribunal do julgamento, prévia e independentemente de impugnação em sede de recurso – neste sentido, cfr. Ac. do TRL, de 17-12-2008 (Procº 10227/2008-3), Ac. TRP, de 24.9.2008, (Procº 0894957), Ac. TRP, de 01.4.2009 (Procº 531/07.1TAESP.P1), in www.dgsi.pt. Neste entendimento, a irregularidade está sujeita ao regime do nº 1 do artigo 123º do CPP, devendo ser arguida perante o tribunal do julgamento, pelo que a possibilidade de conhecimento oficioso não é extensível aos Tribunais Superiores, cingindo-se à 1ª Instância.

Em defesa desta solução, argumenta-se que, a não ser assim, possibilitar-se-ia uma disciplina de conhecimento mais abrangente para um vício menos gravoso, posto dúvidas não haver que as nulidades dependentes de arguição não podem ser sanadas em sede de recurso, a não ser no âmbito de recursos que impugnem decisões que indefiram as respectivas arguições. Por isso mesmo, a Lei, no que respeita à nulidades insanáveis, consignou no artº 119º que a sua declaração deve ocorrer, oficiosamente, em qualquer fase do procedimento, ao contrário do que se dispõe, quer quanto às nulidades dependentes de arguição (artºs. 120º e 121º), quer às irregularidades, ainda que de conhecimento oficioso (artº 123).

Ao invés, corrente diversa, entendendo que se trata de irregularidade susceptível de afectar o valor do acto e, por isso, reconduzível ao nº 2, do artº 123º, do CPP, conclui poder ordenar-se a respectiva reparação no momento em que dela se tomar conhecimento, em sede de recurso e independentemente de prévia arguição perante a 1ª Instância – neste sentido, Ac. TRL, de 02.10.2007, Procº 3986/07.9, in www.dgsi.pt.

Por outra via, o artº 363º, do CPP, na redacção introduzida pela Lei 48/2007, de 29 de Agosto, dispõe que “As declarações prestadas oralmente na audiência são sempre documentadas na acta, sob pena de nulidade.”.

O Ac. do T.R.Porto, de 01.4.2009, considerou que “a essa falta de gravação deve ser equiparada a imperceptibilidade das mesmas declarações, por deficiente gravação, ou outra causa”, e, ainda, que “tal nulidade (arts. 363º e 118º, 1 do CPP), porque não constante das taxativamente enumeradas no art. 119º do CPP (nulidade insanável), enquadra-se nas nulidades dependentes de arguição do art. 120º do CPP.”.

Ao invés desta solução, entendemos que se trata de irregularidade susceptível de afectar o valor do acto e, por isso, reconduzível ao nº 2, do artº 123º, do CPP, visto que a sua verificação é decisivamente prejudicial para os direitos dos sujeitos processuais e tem influência no exame e decisão da causa.

Com efeito, a deficiente gravação da prova constitui erro apenas imputável à actividade do tribunal, não sendo por isso defensável que as consequências de tal erro se possam transferir para os destinatários da decisão, mormente por inutilizar a apreciação do recurso quanto à matéria de facto.

Como bem se salienta no citado Ac. TRL, de 02.10.2007, Procº 3986/07.9, Rel: Carlos Benido «A falta total ou parcial da gravação da prova ou, ainda, a deficiente gravação da prova, quando a deficiência signifique uma verdadeira inexistência da gravação, são erros apenas imputáveis à actividade do tribunal, lato sensu.

A solução da sanação da irregularidade, por falta de arguição tempestiva, leva à consequência de, pelo mecanismo da sanação de irregularidades processuais, se transferir para os destinatários da decisão as consequências de um erro material da responsabilidade do tribunal. E, além disso, afasta, contra a vontade das partes e contando com a absoluta passividade da relação, a norma relativa à competência material do tribunal superior para conhecer de facto e de direito.

Por isso, não pode deixar de entender-se que a inexistência total ou parcial da gravação afecta o próprio valor do julgamento, por não poder produzir os efeitos a que se destinava, devendo repercutir-se na subsistência do mesmo, desde logo dada a desconformidade entre o que a acta do mesmo documenta e a realidade dos factos.

(…)Assim, independentemente de tal irregularidade só ter sido arguida no recurso [cfr. conclusões a) a f)], deve este tribunal conhecer dela oficiosamente e determinar a sua reparação».

Isto posto, e embora se verifique a nulidade por omissão absoluta de pronúncia, prevista pelo artigo 379.°, n.° 1, alínea c) do Código de Processo Penal, por não ter sido apreciada, em nenhum momento nos autos, a invocada nulidade do julgamento com base na deficiente gravação da prova, outra solução não resta que não seja a de declarar inválida a audiência de julgamento, em virtude da gravação aúdio da sessão de julgamento ocorrida no dia 9/10/14, se mostrar inaudível e imperceptível, relativamente aos depoimentos prestados pelos arguidos e pela testemunha JS, e ordenar a sua repetição com a necessária documentação das declarações ali prestadas.
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5. Face ao exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal (5ª) deste Tribunal em:
a)- Conceder provimento ao recurso interposto pela arguida, por se verificar a nulidade por omissão absoluta de pronúncia, prevista pelo artigo 379.°, n.° 1, alínea c) do Código de Processo Penal, por não ter sido apreciada, em nenhum momento nos autos, a invocada deficiência da gravação da prova;
b)- Considerar, desde já, inválida a audiência de julgamento ocorrida no dia 9/10/14, por se verificar a irregularidade da deficiente gravação da prova, susceptível de afectar o valor do acto e, por isso, reconduzível ao nº 2, do artº 123º, do CPP, ordenando-se a repetição do julgamento pelo mesmo Tribunal.
c)- Julgar prejudicado o conhecimento das restantes questões e do recurso da sentença final, na medida em que poderá decorrer uma alteração da decisão, por via do agora decidido. 
Sem tributação.



                                        
Lisboa, 30 de Abril de 2019



Cid Geraldo
Ana Sebastião 
 

Decisão Texto Integral: