Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
477/20.8PDAMD.L1-5
Relator: JORGE GONÇALVES
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
EXIGÊNCIAS LEGAIS
MEDIDA DA PENA
PENA CONJUNTA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/02/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: - O ónus processual de indicação das provas que impõem decisão diversa da recorrida, previsto na alínea b), do n.º 3, do artigo 412.º, do C.P.P., apresenta uma configuração alternativa, conforme a acta da audiência de julgamento contenha, ou não, a referência do início e do termo de cada declaração gravada.
- Para dar cumprimento às exigências legais da impugnação ampla tem o recorrente de especificar, nas conclusões, quais os pontos de facto que considera terem sido incorrectamente julgados, quais as provas (específicas) que impõem decisão diversa da recorrida, bem como referir as concretas passagens/excertos das declarações/depoimentos que, no seu entender, obrigam à alteração da matéria de facto, transcrevendo-as (se na acta da audiência de julgamento não se faz referência ao início e termo de cada declaração ou depoimento gravados) ou mediante a indicação do segmento ou segmentos da gravação áudio que suportam o seu entendimento divergente, com indicação do início e termo desses segmentos (quando na acta da audiência de julgamento se faz essa referência - o que não obsta a que, também nesta eventualidade, o recorrente, querendo, proceda à transcrição dessas passagens).
- Importa não só proceder à individualização das passagens que alicerçam a impugnação, mas também relacionar o conteúdo específico de cada meio de prova susceptível de impor essa decisão diversa com o facto individualizado que se considera incorrectamente julgado, o que se mostra essencial, pois, julgando o tribunal de acordo com as regras da experiência e a livre convicção e só sendo admissível a alteração da matéria de facto quando as provas especificadas conduzam necessariamente a decisão diversa da recorrida – face à exigência da alínea b), do n.º 3, do artigo 412.º, do C.P.P., a saber: indicação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida -, a demonstração desta imposição compete também ao recorrente.
- A atribuição de credibilidade, ou não, a uma fonte de prova testemunhal ou por declarações, tem por base uma valoração do julgador que, enquanto fundada na imediação e na oralidade (nessa medida), o tribunal de recurso, em rigor, só poderá criticar demonstrando que é inadmissível face às regras da experiência comum.
- Se relativamente às declarações para memória futura o tribunal de recurso está nas mesmas condições do tribunal de 1.ª instância, não é assim quanto à prova pessoal produzida em audiência de julgamento, em relação à qual, ouvida a gravação dos depoimentos, não se conclui que o tribunal recorrido tenha violado o artigo 127.º do C.P.P., apreciado arbitrariamente a prova e formulado juízos de credibilidade que mereçam qualquer censura.
- As exigências de prevenção geral revestem elevada intensidade, porquanto os crimes em causa repugnam fortemente à consciência da comunidade, havendo ainda que ter em atenção o aumento considerável deste tipo de crimes que se vem registando, impondo-se que se desmotivem os demais indivíduos da prática de condutas desta natureza, assim se repondo, também, a confiança na validade da norma e eficácia do sistema jurídico e o juízo de ponderação sobre a culpa, como medida superior da pena e considerando as exigências de prevenção e as demais circunstâncias previstas no artigo 71.º, do Código Penal, revela a adequação das penas impostas no acórdão recorrido, para cada um dos crimes pelos quais o arguido foi condenado.
-Sendo a moldura de punição do concurso de 3 (três) anos e 6 (seis) meses a 10 (dez) anos e 6 (seis) meses de prisão e devendo a pena unitária a atribuir em sede de cúmulo jurídico revestir-se de uma especificidade própria, pois na fixação da pena correspondente ao concurso entra como factor determinante a personalidade do agente enquanto aglutinador da pena aplicável aos vários crimes e se na consideração dos factos (do conjunto dos factos que integram os crimes em concurso) está ínsita uma avaliação da gravidade da ilicitude global, como se o conjunto de crimes em concurso se ficcionasse como um todo único, globalizado, que deve ter em conta a existência ou não de ligações ou conexões e o tipo de ligação ou conexão que se verifique entre os factos em concurso, ponderada a personalidade do arguido revelada pelos factos em julgamento, a gravidade e natureza dos mesmos, entende-se adequada a pena conjunta resultante de cúmulo jurídico de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão.
- O acórdão recorrido sublinha que, da análise global dos factos pelos quais o arguido vai condenado, ressalta uma imagem de saliente gravidade, pois o agente, aproveitando-se da pernoita da sua neta na casa que habitava, actuou sempre com dolo directo e sem se preocupar com as repercussões da sua conduta no seu bem-estar físico e moral, pelas quais revelou intenso desprezo, embora se reconheça que se tratou de ocorrências isoladas na vida do arguido, não lhe sendo conhecidos antecedentes criminais com significativa relevância, beneficiando de apoio familiar e possuindo hábitos de trabalho.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório
1. No processo comum com intervenção do tribunal colectivo n.º 477/20.8PDAMD, AA e BB, melhor identificados nos autos, foram julgados pela imputada prática, conforme decisão instrutória de pronúncia que consta a fls. 523 e seguintes:
• pelo arguido AA, em autoria material e na forma consumada, de três crimes de abuso sexual de crianças agravado, p e p. pelos n.° 1 e 2 do artigo 171.° e pelas alíneas a) e b) do n.° 1 do artigo 177.°, ambos do Código Penal;
• pelo arguido BB, em autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso sexual de criança agravado, p e p. pela alínea a) do n.° 3 do artigo 171.° (com referência ao artigo 170.°) e pela alínea b) do n.° 1 do artigo 177.°, todos do Código Penal.
O “Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte, E.P.E.”, deduziu pedido de indemnização civil contra os arguidos/demandados alegando, em resumo, que, na sequência dos factos por eles praticados contra a ofendida, prestou-lhe assistência hospitalar, o que importou em € 292,42, peticionando a condenação dos demandados a pagarem-lhe esta importância, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos desde a notificação aos mesmos do pedido de indemnização civil e até integral e efectivo pagamento.
Realizado o julgamento, foi proferido acórdão que decidiu nos seguintes termos:
«Pelo exposto, os juízes que compõem este tribunal colectivo acordam:
• em julgar o despacho de pronúncia parcialmente procedente por provado e, em consequência:
• em absolver o arguido AA da prática de três crimes de abuso sexual de crianças agravado, pp. pelo n.° 2 do artigo 171.° e pelas alíneas a) e b) do n.° 1 do artigo 177.°, ambos do Código Penal;
• em absolver o arguido BB da prática de um crime de abuso sexual de crianças agravado, pp. pelo artigo 170.°, pela alínea a) do n.° 3 do artigo 171.° e pela alínea b) do n.° 1 do artigo 177.°, todos do Código Penal;
•  em condenar o arguido AA, pela prática de um crime de abuso sexual de crianças agravado, p.p. pelo n.° 1 do artigo 171.° e pela alínea b) do n.° 1 do artigo 177.°, todos do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão;
• em condenar o arguido AA, pela prática de um crime de abuso sexual de crianças agravado, p.p. pelo n.° 1 do artigo 171.° e pela alínea b) do n.° 1 do artigo 177.°, todos do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão;
• em condenar o arguido AA, pela prática de um crime de abuso sexual de crianças agravado, p.p. pelo n.° 1 do artigo 171.° e pela alínea b) do n.° 1 do artigo 177.°, todos do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão;
• E em cúmulo jurídico das penas referidas nos parágrafos antecedentes, condenar o arguido AA na pena única de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão;
• Em condenar o arguido AA a pagar à ofendida CC a quantia de € 10.000 (dez mil euros);
• Em julgar o pedido de indemnização civil formulado pelo “Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte, E.P.E.” parcialmente procedente por provado:
- e, em consequência, em condenar o demandado AA a pagar-lhe a quantia de € 233,32 (duzentos e trinta e três e trinta e dois cêntimos), acrescida de juros moratórios à taxa anual de 4% desde a notificação daquele pedido;
- em absolver do pedido o demandado BB;
(…).»
2. O arguido AA recorreu deste acórdão, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
1 - O presente recurso tem como objeto toda a matéria de facto e de direito do Acórdão proferido nos presentes autos que condenou o recorrente como autor material de três crimes de abuso sexual de crianças agravado previsto e punido pelo artigo 171° e pela al. a) n.° 1 do artigo 177°, todos do C. P..
2 - E consequentemente a pagar a quantia peticionada de 233,32 (duzentos e trinta e três euros e trinta e dois cêntimos).
3 - Assim como, a pagamento da quantia de 10.000,00 (dez mil euros) oficiosamente arbitrada com o escopo de reparação de danos não patrimoniais sofridos pela ofendida.
4 - Dos factos que foram indevidamente dados como provados:
No que concerne aos alegados factos contra CC imputados ao arguido AA, ora, recorrente, constantes da acusação, o tribunal “a quo” considerou provado que, “nas ocasiões em que foi dormir a casa dos seus avós paternos, após o jantar, no quarto onde dormia e quando estava deitada (sendo que a sua avó já estava deitada) de barriga para o chão, o arguido já despido, tirou-lhe a roupa e, em seguida, “deu-lhe por detrás, apesar de lhe dizer para parar, ao que este não respondeu. Após, virou-a para si e tentou introduzir na vagina. Referiu ainda que, em todas as ocasiões, tudo se passou da mesma forma.”
5 - Tal convicção assentou-se essencialmente na valoração do testemunho da ofendida (as declarações para memória futura da ofendida, prestadas em 24-07-2020 a fls. 232 e gravadas pelo sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso no tribunal de 12:47:16 a 13:52:49), uma vez que nenhuma das testemunhas presenciaram os alegados factos.
6 - E ainda, considerou merecedores de credibilidade os depoimentos de DD (gravado digitalmente na sessão de audiência de julgamento de 28-04-2021, no ficheiro n.° ....., com início 00:01:57 e termo 00:34:24);
7 - EE (gravado digitalmente na sessão de audiência de julgamento de 19-05-2021, no ficheiro n.° ....., com início 00:00:50 e termo 00:23:52);
8 - FF (gravado digitalmente na sessão de audiência de julgamento de 19-052021, no ficheiro n.° ....., com início 00:00:01 e termo 00:13:26);
9 - Assim como, o facto da Avô paterna não ter prestado depoimento.
10 - Acontece que, as declarações para memória futura da ofendida, prestadas em 24-07-2020 a fls. 232 e gravadas pelo sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso no tribunal de 12:47:16 a 13:52:49, que se revelaram-se pouco claras, imprecisas e incoerentes, tais factos (vertidos no ponto 7 - 11 do douto acórdão) não ficaram demonstrados.
11 - Com efeito, tais declarações não demonstram os factos considerados provados no ponto 7 - 11 do douto acórdão (24-05-2021).
12 - Assim, os referidos factos, foram incorretamente julgados como provados.
13 - Se compararmos as declarações para memória futura da CC com as constantes do auto de inquirição da mesma na PJ de 24-06-2020, conclui-se que são contraditórias.
14 - Vejamos, citando só algumas destas contradições, enquanto que, na PJ, a CC verbalizou que vivia com a sua bisavó e tia-avó materna, deslocando-se a casa dos avôs paternos para comer ou pernoitar quando lhe apetecia, nas declarações para memória futura esta disse que vivia com os seus avós paternos (AA e GG).
15 - Questionada sobre o período temporal em que ocorreram os alegados factos, a mesma disse na PJ que não sabe quando é que aconteceu pela primeira vez, mas que a última vez foi há um ano atrás (a contar da data da inquirição - 24-06-2021).
16 - No entanto, quando questionada no ato de prestar declarações para memória futura, apresentou outra versão, ou seja, que os alegados factos ocorreram por 3 vezes no mesmo mês e da mesma forma.
17 - No que concerne a posição em que esta se encontrava na cama, a CC respondeu na PJ que não sabia explicar bem como aconteceu pela primeira vez.
18 - Sucede que, posteriormente, a mesma já veio disse que quando a sua Avó foi dormir, o arguido AA chamou-a para o outro quarto e trancou a porta deste, começou a tocá-la na maminha e em ato contínuo despiu-a e despiu-se, isto, dentro do quarto.
19 - De seguida, empurrou-a para a cama tendo ficado de barriga para cima.
20 - Mais disse, que o arguido chegou a mexer com os dedos na sua vagina e que nessa altura, a pila do arguido AA estava para baixo.
21 - Dúvidas não subsistem, que existem contradições entre as declarações prestadas pela CC na PJ e as declarações por si prestadas para memória futura, aliás, onde acaba por dizer que quando se encontrava deitada na cama, de costas virada para a porta, o arguido AA entrou já despido no quarto.
22 - Colocada a questão sobre o facto de, como é que o arguido AA, ora recorrente, conseguiu despi-la estando esta deitada de lado, a CC não soube responder, mantendo-se calada.
23 - É de notar as acentuadas contradições nas suas declarações, uma vez que, quando questionada na PJ verbalizou que no ânus não doeu, mas na vagina, doeu só um bocadinho.
24 - Mais disse, que ficou molhada e se lavou no dia seguinte.
25 - Contudo, em sede das declarações para memória futura, a mesma não referiu que tenha sentido qualquer dor e nem que tenha ficado molhada.
26 - Estas contradições são visíveis no relatório de perícia psicológica realizado à CC, tanto mais, que o mesmo é inconclusivo.
27 - Ora, como é que se pode fundar a convicção numa declaração pautada pela enorme incoerência.
28 - Por outro lado, no relatório de perícia de natureza sexual em direito penal, de fls. 242 - 244, conclui-se que não se observaram sinais objetivos de lesões traumáticas ou seus vestígios a nível da superfície corporal em geral.
29 - Especifica ainda, que na observação da região ano-genital, não foram encontrados sinais de lesões traumáticas.
30 - Pese embora, do mesmo relatório conste que o tempo decorrido entre o alegado 1 -evento e a observação em exame médico-legal possa ter inviabilizado a colheita de amostras biológicas na vítima, é de se admitir, igualmente, que pode não ter acontecido esse alegado evento, até porque consta num dos exames médico junto aos presentes autos que a menor CC é virgem.
31 - Ademais, a ter havido penetração por parte do arguido AA com o pénis ereto por três ocasiões, conforme diz a acusação, a verdade é que não há qualquer indício que nos leva a essa conclusão.
32 - Por isso mesmo, com relação a esses factos houve alteração não substancial dos factos, ou seja, como o relatório de perícia de natureza sexual em Direito Penal veio provar o contrário do que a acusação pretendia sustentar, em vez de absolver o arguido, o tribunal “a quo”, por outras vias, encontrar justificação através do seguinte argumento: o que houve foi o encosto e não a penetração.
33 - Obviamente, que, não tem qualquer sustentabilidade, crer que o arguido AA por três ocasiões vai se acercar a CC com pénis ereto só para encostar e nada mais, como se pretende fazer crer.
34 - Reitera-se o facto, da menor CC, dizer que nessas três ocasiões tudo ocorreu da mesma forma. Deste modo, questiona-se: como é possível os factos acontecerem exatamente da mesma forma sem nada mudar! É óbvio que essa afirmação também revela a falta de veracidade das suas declarações, pois, o que não aconteceu é mais difícil de se explicar.
35 - O tribunal “a quo” para sustentar a sua convicção refere ainda que pelo facto da CC nunca ter mantido relações sexuais com outras pessoas, lhe faltaria um referencial a partir do qual pudesse “construir” uma narrativa inverídica dos factos.
36 - Mas, a verdade é que, todos nós sabemos, que, com a exposição/exibição nas médias sociais de cenas de caris sexuais em horário nobre, as crianças, adolescentes e jovens não precisam de iniciar a sua vida sexual para saberem como tudo acontece ou para aprenderem fantasiar em relação a essa matéria,
37 - tanto mais que, a CC gosta de ver televisão por cabo, segundo afirma o recorrente, sendo que, uma das coisas que lhe motivava ir a casa dos avôs paternos era precisamente ver TV por cabo.
38 -A própria testemunha HH (mãe da CC) reiterou no seu depoimento eu durante o período que a CC se deslocou a sua casa estava sempre a ver TV Cabo gostando muito de ver, entre outras séries, “Morango com açúcar” (série este onde são exibidas cenas de caris sexual inadequadas para a sua facha etária).
39 - Quanto à testemunha DD (depoimento gravado digitalmente na sessão de audiência de julgamento de 28-04-2021, no ficheiro n.°....., com início 00:01:57 e termo 00:34:24), este, nada veio acrescentar que nos leve a crer na versão da CC até, pelo contrário, as suas declarações vieram ainda reforçar a convicção da falsidade das declarações/versões apresentadas pela CC, demonstrando não ter nenhum conhecimento dos alegados factos.
40 - Ademais, resultou do seu depoimento, que este não apresentou queixa porque acreditava na versão da CC (sua filha), mas, porque sendo pai se sentia na obrigação de apresentar queixa, reiterando isto, por diversas vezes em sede da audiência de julgamento de forma espontânea.
41 - Por outro lado, coloca-se a questão de saber, qual o motivo que o levou a questionar o arguido BB (padrasto da sua filha), quando a CC lhe contou sobre o que alegadamente teria acontecido, e não procedeu da mesma forma em relação ao arguido AA, sendo este seu pai e avô da CC, com quem sempre se dera bem.
42 - Questionado pelo tribunal sobre a questão no artigo que antecede, o mesmo respondeu, ter sido por indicação do seu irmão II que lhe dissera para ir diretamente a Polícia e não confrontar arguido AA.
43 - Não podemos ignorar que a testemunha GG sempre que fala do arguido AA, manifesta atitudes de raiva, devido ao facto deste ter assumido o relacionamento com outra mulher, como se de marido e mulher se tratasse, o que foi confirmado pela testemunha DD.
44 - Questionado sobre, em que quarto CC lhe disse que aconteceram os alegados factos, este respondeu: “é onde a minha mãe dorme agora” - min. 00:06:14 - 00:06:16.
45 - Na sequência da sua resposta foi questionado se o quarto que referiu é onde a sua mãe sempre dormiu ou onde dorme agora, ao mesmo respondeu: “não sei, já não vivo cá há muitos anos, não sei” - min. 00:06:18 - 00:06:26.
46 -Em relação a questão sobre se as portas dos quartos, se se podiam fechar, este disse: “algumas fecham e outras não, onde a minha mãe dorme a fechadura está avariada” - min.00:07:20 - 00:07:37, ou seja, respondeu espontaneamente, que as portas dos quartos não se fechavam, só apenas as da sala e da casa de banho.
47 - Sucede que, após muita insistência, por parte da Digníssima Magistrada do Ministério Público, este resolveu dizer, que não tem fechadura, mas se trancam.
48 - Ainda, questionado se CC lhe contou sobre relações sexuais mesmo de cúpula completa e este respondeu espontaneamente: “não, fizeram-lhe mal só” - min. 00:08:55 - 00:08:58.
49 - Resulta do depoimento prestado pela testemunha DD, que apresentou a queixa, desconhecimento dos alegados factos, não conseguindo concretizá-los, apenas limitando-se a verbalizar de forma genérica, que a CC disse que lhe fizeram mal, isso, foi verbalizado por várias vezes.
50 - Mais uma vez, só após muita insistência por parte do tribunal “a quo” e de lhe ter sido dito que o tribunal já tem a versão da CC e que a vai ouvir, mas era importante para perceber se esta tem credibilidade ou não, é que lhe foi feita perguntas indicando elementos constantes na acusação, limitando-se este a dizer sim, quando foi dizendo nos entretantos, que não sabia.
51 - Curioso é que a CC não contou nada a mãe com quem tem relação mais próxima, nem a bisavó com quem vive, nem durante o tempo que aconteceram os alegados factos, e foi preciso o pai sair da cadeia em precária, com quem não tinha ligação nenhuma, para que decorrido um ano fosse contar os alegados factos com o agravante de se encontrar a chorar, o que por si só, já demonstra a falsidade das versões apresentadas.
52 - No que diz respeito a testemunha EE (depoimento gravado digitalmente na sessão de audiência de julgamento de 19-05-2021, no ficheiro n.° ....., com início 00:00:50 e termo 00:23:52), por se tratar de uma amiga da HH (mãe da CC) e por ser uma pessoa próxima em termos de amizade da própria CC com quem esta tem à vontade para confidenciar qualquer assunto, é de se estranhar eu a CC também nunca lhe tenha contado os alegados factos, só tomando conhecimento dos mesmos, depois da apresentação da queixa.
53 - No final do seu depoimento, a testemunha EE, quando questionada, se através da CC, tomou conhecimento sobre número de vezes que o arguido AA lhe fez alguma coisa, esta respondeu que foram duas ou três vezes, logo a seguir, disse que “não falamos sobre a quantidade de vezes que os alegados factos aconteceram e ainda, acrescenta que perguntou a CC algumas coisas e outras não.
54 - Quanto a testemunha FF, bisavó da CC (depoimento gravado digitalmente na sessão de audiência de julgamento de 1905-2021, no ficheiro n.° ....., com início 00:00:01 e termo 00:13:26), como as demais testemunhas arroladas, nada veio acrescentar, disse que a CC nunca lhe contou nada, só quando posteriormente (já no fim do seu depoimento) perguntada pelo tribunal se CC quando regressava da casa dos avôs paternos estava triste, é que esta se lembrou de responder que vinha um pouco triste.
55 - Ora, o que esta testemunha se esqueceu, é que a CC deslocava-se para a casa dos Avôs paternos não só para pernoitar, mas, também, e na maioria das vezes, para almoçar ou jantar, portanto, a sua resposta leva a crer que só respondeu desta forma, para dar a entender ao tribunal “a quo” que acontecia alguma coisa de estranho, cada vez que a CC se deslocava a casa dos seus avôs paternos.
56 - Ora, se a CC vinha triste, porquê que esta testemunha nunca lhe questionou.
57 - Ainda, quando questionada sobre número de vezes que a CC dormiu na casa dos avôs paternos, no seu depoimento, esta afirmou que foram só por duas vezes.
58 - Mais afirmou no seu depoimento, que a CC nunca lhe contou nada sobre o arguido AA, pelo que, esta estava longe de alguma vez pensar algo desse género em relação ao ora recorrente.
59 - No que se refere à testemunha GG, esta não quis prestar depoimento em sede de audiência de julgamento, pese embora, não deixe de ser curioso, que em sede de inquirição na PJ em 24-06-2020, verbalizou que a CC inicialmente foi falar consigo sobre o que alegadamente estaria a acontecer entre si e o seu padrasto, pelo que, aproveitou o momento para questioná-la se o arguido AA, ora recorrente, também lhe teria feito algum mal, pois, até aqui, o alvo era só o seu padrasto - arguido - BB.
60 - Perante estes factos, vemo-nos obrigados a questionar o seguinte: porque motivo a testemunha GG resolveu fazer tal pergunta à CC! Ora, se a mesma desconfiasse de alguma coisa, a atitude que se espera de qualquer ser humano e consequentemente da D. GG, seria questionar a ofendida/CC ou ao próprio arguido/marido, e até alertado a própria mãe da CC, o que causa bastante estranheza.
61 - Não se pode admitir, em hipótese alguma, que só a partir do momento em que tomou conhecimento que o arguido resolveu refazer a sua vida com outra mulher, como se de marido e mulher se tratasse, é que se venha a desenrolar toda essa situação.
62 - A ilação que o tribunal “a quo” fez da recusa do depoimento desta, consiste no seguinte: que a testemunha GG teve em sede de audiência de julgamento, a oportunidade de se vingar de vez do arguido AA e não o fez, descredibilizando deste modo, a versão do arguido sobre a ameaça proferida pela mesma a este e que foi confirmada pelo filho de ambos (testemunha DD), no que diz respeito à raiva que a testemunha GG (mãe) manifesta em relação ao arguido AA por este ter arranjado uma nova companheira, corroborando com o recorrente que lhe falou sobre esse assunto, com raiva.
63 - Não se aceitar o fundamento invocado pelo tribunal “a quo” no que se refere a recusa de prestar depoimento por parte da testemunha GG, na medida em que, com certeza, a mesma sabia que não iria conseguir sustentar o que dissera na PJ.
64 - No que tange a testemunha HH, mãe da CC (depoimento gravado digitalmente na sessão de audiência de julgamento de 28-04-2021, no ficheiro n.° ....., com início 00:00:01 e termo 00:35:59), no seu depoimento confirma o que tinha dito na PJ, disse que não compreende como é que a CC, apesar dos alegados factos, continuava a crer ir sempre para a casa dos Avôs paternos, se o arguido AA lhe fazia mal.
65 - Mais disse, que proibiu a menor de ir a casa dos avôs, por ter ouvido rumores, que o arguido AA permitia que a CC fosse na sua companhia “às baladas", ou seja, a festas que ocorrem no bairro vizinho, frequentado por adultos e crianças, onde costumam pôr músicas para o convivo.
66 - Acresce ainda, que a testemunha HH disse no seu depoimento, que a CC (sua filha), conta-lhe tudo, mas nunca lhe contou nada sobre os alegados factos no que se refere aos arguidos AA, ora recorrente, e BB, quando nada lhe impedia de o fazer.
67 - Admite-se que CC não tenha dito nada a testemunha HH (sua mãe) sobre o arguido BB por se tratar do seu padrasto e companheiro de sua mãe, mas em relação ao arguido AA (seu avô), nada justifica o seu silêncio, assim como o seu interesse em continuar a frequentar a casa dos seus avôs paternos.
68 - A testemunha HH, no seu depoimento, afirma que a CC (sua filha) é mentirosa e influenciável.
69 - Nenhuma destas testemunhas foram espontâneas e coerentes em seu depoimento ao referir aos alegados factos vertidos no ponto 7 - 11 do douto acórdão, não devendo, por isso, os seus depoimentos merecerem qualquer credibilidade.
70 - Reforçando ainda, que a dinâmica relacional entre a família materna e paterna da CC não é muito pacífica, diria até, que as duas famílias não se entendem,
71 - tanto mais que, a testemunha HH, no seu depoimento disse que a família paterna da CC nunca quis saber dela e foi referido no douto acórdão que ora se recorre que no seu depoimento “revelou animosidade perante a pessoa do arguido AA e uma flagrante parcialidade relativamente ao arguido BB” (ver penúltimo paragrafo, pág. 9 do douto acórdão).
72 - Desta forma compreende-se o motivo pelo qual de todas as testemunhas arroladas pelo arguido BB tiverem nos seus depoimentos o mesmo discurso dando a entender que a CC disse a verdade em relação ao arguido AA e relativamente ao arguido BB, houve um mal-entendido por parte da mesma, por outras palavras, significa isto, é tudo mentira relativamente a este último arguido.
73 - Ora, se a CC mentiu com relação ao arguido BB por que razão não mentiria com relação ao arguido AA? Porque ela é considerada mentirosa e manipulável para alguns factos e para outras não? Merece credibilidade uma pessoa que na PJ deu uma versão dos factos e em sede de declarações para memória futura deu outra versão totalmente diferente?
74 - Nesta medida é nosso entender, que não devem ser merecedores de credibilidade, ao depoimentos prestados pela CC assim como, não devem também merecer credibilidade os depoimentos das demais testemunhas nos quais o tribunal “a quo” fundamentou as suas convicções.
75 - Por outro lado, a própria irmã do recorrente AA, JJ aponta alguma instabilidade e disfuncionalidade à dinâmica relacional do ex-agregado familiar do AA (ver Informação Social para Determinação da Sanção).
76 - É percetível que dentro do ex-agregado familiar do arguido AA a dinâmica relacional não é boa, o que foi notória através do depoimento da testemunha DD gravado digitalmente na sessão de audiência de julgamento de 28-04-2021, no ficheiro n.° ....., com início 00:01:57 e termo 00:34:24.
77 - Acresce ainda a tudo isso, a própria localização dos quartos, isto é, além dos quartos estarem um perto do outro, não permitia que se fechasse as portas, conforme foi espontaneamente dito pela testemunha DD, pois, só com muita insistência, é que o mesmo posteriormente veio a dizer que embora as portas não tenham fechadura, trancavam, o que leva a concluir que se estivesse a acontecer algo de estranho num dos quartos, conseguia-se ouvir no outro,
78 - Além de que, a hora indicada como sendo a da prática dos alegados factos pelo recorrente, por ser demasiado cedo, leva-nos a crer que mesmo que a testemunha GG se tivesse recolhido para dormir não teria como não ouvir.
79 - Salienta-se, que o recorrente nas suas declarações prestadas em sede de audiência de julgamento (gravado digitalmente na sessão de 28-04-2021, no ficheiro n.° ....., com início 00:00:01 e termo 00:28:10), negou sempre os factos, esclarecendo as circunstâncias em que a CC dormiu na sua casa onde vivia com a GG (sua mulher) e ainda o mesmo foi espontâneo ao explicar factos que não lhe foi perguntado e que lhe podiam comprometer, como de facto lhe comprometeu, mas, mesmo assim, entendeu que não tinha nada a esconder e que deveria sim explicar aquilo que realmente aconteceu,
80 - porque tem consciência de que nada fez a CC, verbalizando que nunca tocou na nesta e nem seria capaz de fazer uma coisa dessas, mostrando-se claramente o seu repúdio em relação a esse tipo de comportamento.
81 - Essa postura foi evidenciada na “informação social para determinação da sanção”, não se revendo na prática dos crimes pelos quais vem acusado.
82 - Sendo considerado uma pessoa humilde, respeitoso e trabalhador como também foi confirmado pelas testemunhas abonatórias arroladas por este, KK e LL nos seus depoimentos, respetivamente, gravados digitalmente na sessão de audiência de julgamento de 19-05-2021, no ficheiro n.° ....., com início 00:00:01 e termo 00:15:28, e no ficheiro n.° ....., com início 00:00:01 e termo 00:05:50.
83 - O arguido foi sempre coerente em todas as suas declarações prestadas ao longo do processo (1° interrogatório de arguido detido a fls. 164 - 183, gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso naquele tribunal, com início 12:42:15 e termo 13:08:12).
84 - Impõe-se ainda, fazer as seguintes considerações:
Reitera-se, o facto de que a CC vivia com a bisavó e tia-avó materna e eu, o seu comportamento, naturalmente seria, não querer voltar para casa dos avôs paternos após o primeiro alegado abuso, mas não foi isso que aconteceu, esta continuou a frequentar a casa dos mesmos normalmente, mesmo tendo sido proibida pela mãe de frequentar a casa destes, continuava a querer frequentar.
85 - Por outro lado, durante todo o decurso do processo a mesma nunca verbalizou que o recorrente lhe tenha tratado com violência ou lhe tenha ameaçado, o que reforça a convicção de que se tivesse acontecido alguma coisa de anormal entre esta e o recorrente, não havia nada que lhe impedisse de contar a mãe ou a bisavó ou qualquer outra pessoa da sua confiança.
86 - Como já se referiu, não deixa de ser curioso que só depois da volta da GG e depois do arguido AA resolver refazer a sua vida amorosa e a testemunha DD ter voltado da precária é que se desenrolou esse episódio.
87 - Acresce ainda, que não ficou provado que os alegados factos ocorreram.
88 - Ora, se não se fez prova, como é que o tribunal “a quo” formou a sua convicção.
89 - Assim, o tribunal “a quo” ao dar como provados os factos vertidos no ponto 7 -11, nas versões que constam da fundamentação do acórdão, violou, entre outros, o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art.° 127°, do CPP.
90 - Princípio que, conforme salienta Figueiredo Dias in “Direito Processual...,” p. 139, está associada ao “... dever de perseguir a chamada “verdade material”-, de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objetivos e, portanto, em geral suscetível de motivação e controlo (pessa embora a lei renunciar à motivação e ao controlo efetivos).”.
91 - Neste mesmo sentido, Henriques Eiras in “Processo Penal Elementar”, Quid luris, 2003, 4ã Edição, p. 102, refere que este princípio "... não significa que o tribunal possa utilizar essa liberdade à sua vontade, de modo discricionário e arbitrário, decidindo como entender, sem fundamentação.
92 - O juiz tem de orientar a produção de prova para a busca da verdade material e, ao decidir, há-de fundamentar as suas decisões: a apreciação da prova que faz reconduz-se a critérios objetivos, controláveis através da motivação. A sua convicção, que o levará a decidir de certa maneira e não de outra, embora pessoal, é objetivável.”.
93 - Não poderia deixar-se de levantar todas as questões aqui expostas e que certamente serão analisadas e ponderadas pelo tribunal “ad quem”.
94 - Face ao exposto, não se pode imputar ao recorrente AA os crimes pelos quais foi condenado.
95 - Dúvidas não subsistem que o recorrente não praticou os crimes em que foi condenado, pelo que deles deve ser absolvido.
96 - Nos termos do supra alegado e não tendo o recorrente praticado os crimes pelos quais foi condenado, deve o mesmo ser absolvido do pedido de indemnização civil em que foi condenado, assim como, a que oficiosamente lhe foi arbitrada.
97 - Sem prescindir, e admitindo por mera hipótese académica como provados os factos em que assentou o acórdão objeto de recurso, constatamos que o recorrente AA, apesar de ter sofrido uma condenação, não registou condenação pelo crime da mesma natureza.
98 - O mesmo com 58 anos de idade conta com uma única condenação.
99 - O recorrente AA iniciou o seu percurso laboral desde os 16 anos de idade, tendo sempre cumprido com as suas obrigações contributivas.
100 - Encontra-se integrado social e familiarmente, vivia até a sua prisão com a sua companheira KK, quem descreve o recorrente como uma pessoa impecável, a quem não tem nenhum reparo negativo a apontar (depoimento gravado digitalmente na sessão de audiência de julgamento de 19-05-2021, no ficheiro n.° ....., com início 00:00:01 e termo 00:15:28).
101 - Factos estes confirmados também pela testemunha LL (depoimento gravado digitalmente na sessão de audiência de julgamento de 19-05-2021, no ficheiro n.° ....., com início 00:00:01 e termo 00:05:50).
102 - O recorrente conta com o apoio da companheira e da sua irmã mais velha (ver informação social para determinação da sanção).
103 - O responsável da entidade patronal do seu último emprego antes da sua prisão, detém uma imagem positiva do recorrente AA, não o revendo na prática do crime pelo qual foi condenado, aliás, esse sentimento é unânime entre todas as pessoas que conhecem e convivem com este.
104 - Tem um bom comportamento no estabelecimento prisional onde se encontra.
105 - Também foi provado a sua situação económica e social, assim como, sua atitude perante o trabalho.
106 - O recorrente, ainda, dispõe de enquadramento familiar estruturado, por parte da companheira, com quem, como já se constatou e foi referido na informação social para determinação da sanção, mantém uma relação caracterizada como positiva, e apoio emocional por parte do agregado familiar da irmã.
107 - Ora, tendo em conta estes factos, cremos que a condenação de uma pena de 5 anos e seis meses de prisão efetiva, não teve em consideração os fatores sociais nem familiares, bem como ao facto de o arguido não ter antecedentes criminais do crime da mesma natureza.
108 - Ora, se por um lado, para a determinação da medida da pena aplicada ao crime pelo qual o arguido foi condenado, se deverá dar relevância à culpa do agente e a exigência da prevenção, nos termos do n.° 1 do artigo 71° do C.P., bem como os elementos constantes do n.° 2 do mesmo artigo.
109 - Por outro lado, no que diz respeito à determinação da pena, nos termos do n.° 1 do artigo 71° do C.P., tais factos deverão ser conjugados com uma apreciação global dos factos e da personalidade do agente que praticou os actos passíveis de responsabilidades criminal.
110 - Ora, ainda que toda a factualidade supra descrita tenha sido considerado no douto acórdão de que ora se recorre, e em consequência, sido tomada em conta na apreciação da medida da pena aplicada ao crime pelo qual o recorrente foi condenado, considera o mesmo que tal factualidade foi apreciada de forma inversa, sobretudo em contraste com a gravidade do próprio crime por que foi condenado.
111 - Assim, o arguido não poderá deixar de se inconformar com uma pena de 5 anos e 6 meses de prisão efetiva.
112 - Pelo exposto, retira-se do acórdão que a factualidade dada como provada, favorável ao recorrente, foi devidamente considerada na apreciação da medida concreta da pena do crime pelo qual o arguido foi condenado.
113 - No entanto, na apreciação da medida em sede da condenação por tal crime não se considerarão os atenuantes específicos do ora recorrente, no que diz respeito aos factos e personalidade deste, com a mesma importância com que foram apreciadas as factualidades desfavoráveis em sede da condenação por referido crime.
114 - Como tal cremos que a medida da pena é exagerada e que a mesma deverá diminuir com a correspondente suspensão da pena, mesmo que seja com regime de prova ou através de sistema eletrónica de vigilância.
115 - Pelo exposto, sem prescindir, existe a favor do arguido atenuantes suficientes para beneficiar de uma pena mais reduzida e suspensa na sua execução.
Termos em que e nos demais de direito que V. Ex.s certamente suprirá, deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele, ser revogada o acórdão recorrido e, em consequência, ser o recorrente absolvido de três crimes de abuso sexual de crianças em que foi condenado, bem como do respetivo pedido de indemnização civil e a que lhe foi arbitrada.
Se assim não for doutamente entendido, sem prescindir, que em consequência ser ordenado a retificação do douto acórdão de que ora se recorre, sendo o mesmo substituído por outro, que fundamenta especificamente a condenação do arguido, no que diz respeito à globalidade dos factos e da personalidade do agente nos termos do n.° 1 do artigo 71° do C.P. e que, não aplicando ao arguido uma pena efetiva exagerada de 5 anos e seis meses de prisão, mas que a mesma seja diminuída com a correspondente suspensão da pena, mesmo que seja com regime de prova ou através de sistema eletrónico de vigilância. E que seja também diminuída a quantia indemnizatória de 10.000,00 (dez mil euros) arbitrada.
Fazendo-se, assim, a habitual e necessária justiça.
3. O Ministério Público junto da 1.ª instância apresentou resposta em que conclui nos seguintes termos (transcrição das conclusões):
1. O arguido AA foi condenado, no âmbito dos presentes autos, pela prática, em autoria material e em concurso real, de:
• um crime de abuso sexual de crianças agravado, p.p. pelo n.° 1 do artigo 171.° e pela alínea b) do n.° 1 do artigo 177.°, todos do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão;
• um crime de abuso sexual de crianças agravado, p.p. pelo n.° 1 do artigo 171.° e pela alínea b) do n.° 1 do artigo 177.°, todos do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão;
• um crime de abuso sexual de crianças agravado, p.p. pelo n.° 1 do artigo 171.° e pela alínea b) do n.° 1 do artigo 177.°, todos do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão;
E em cúmulo jurídico daquelas penas parcelares, na pena única de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão. 
Bem como:
• a pagar à ofendida CC a quantia de € 10.000 (dez mil euros);
• foi o pedido de indemnização civil formulado pelo “Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte, E.P.E.” julgado parcialmente procedente por provado e, em consequência, foi o demandado condenado a pagar-lhe a quantia de € 233,32 (duzentos e trinta e três e trinta e dois cêntimos), acrescida de juros moratórios à taxa anual de 4% desde a notificação daquele pedido.
2. Para fundamentar a sua discordância com a factualidade dada como provada nos pontos 7. a 11. do acórdão recorrido, o Recorrente coloca em causa os depoimentos da ofendida e das testemunhas DD, EE, FF e, o facto da avó paterna não ter prestado depoimento, depoimentos que o tribunal a quo entendeu serem merecedores de credibilidade.
3. Efectivamente o Recorrente, na sua motivação, de modo a descredibilizar o depoimento da menor ofendida, CC, começa por fazer uma comparação do seu depoimento prestado perante a Polícia Judiciária, em sede de inquérito e as declarações prestadas para memória futura.
4. Fazendo igualmente, com a mesma intenção, uma comparação entre o que a avó paterna, GG, referiu em sede de inquérito, sendo que a mesma fez uso do seu direito ao silêncio em audiência de discussão e julgamento.
5. Porém, não tendo sido lidas, em audiência de discussão e julgamento os depoimentos prestados em sede de inquérito, quer pela ofendida quer pela testemunha GG - a qual, inclusivamente, não prestou sequer declarações em julgamento - não poderia o tribunal a quo valorar de forma directa ou indirecta tais autos de inquirição porque deles não tem conhecimento, em observância do disposto no art.° 355.° do CPP que proíbe a formação de convicção pelo tribunal sobre prova não produzida ou examinada em audiência.
6. Logo, não pode o Recorrente “socorrer-se” das mesmas, para desvalorizar as declarações prestadas pela ofendida em declarações para memória futura ou utilizar as declarações prestadas pela sua avó paterna para o mesmo efeito.
7. Efectivamente, trata-se de prova proibida.
8. Pelo que o tribunal a quo apenas pode valorizar as declarações prestadas pela ofendida para memória futura.
9. Às quais, conjugadas com os depoimentos de outras testemunhas, deu alguma credibilidade.
10. Não pode deixar de se realçar que vigora entre nós o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art.° 127.° do CPP, de acordo com o qual as provas são apreciadas pelo julgador segundo as regras da experiência comum e a sua livre convicção, não uma convicção subjetiva, baseada em impressões ou conjeturas de difícil objetivação, mas uma convicção racional e crítica, baseada nas regras da experiência comum, da lógica e nos critérios da normalidade da vida.
11. Na realidade, o tribunal superior pode verificar se na sentença se seguiu um processo lógico e racional de apreciação da prova, ou seja, se a decisão recorrida não se mostra ilógica, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, pg. 294), mas, face aos princípios da oralidade e da imediação, é o tribunal de iã instância que está em condições melhores para fazer um adequado uso do princípio de livre apreciação da prova.
12. Ora, do texto do acórdão recorrido, por si só ou conjugado com os ditames da experiência comum, não resulta a verificação do apontado vício posto que daquele decorre que os factos nele considerados como provados constituem suporte bastante para a decisão a que se chegou e dele não resulta qualquer incompatibilidade entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão, assim como nele não se detecta qualquer equívoco ostensivo contrário a facto do conhecimento geral ou ofensivo das leis da física, da mecânica, da lógica ou de conhecimentos científicos criminológicos e vitimológicos.
13. Encontrando-se a decisão devidamente fundamentada.
14. Havendo, assim, que concluir não assistir razão ao recorrente.
15. O crime praticado pelo arguido é punível com pena entre 1 ano e 4 meses e 10 anos e 8 meses de prisão.
16. Cabe ponderar globalmente:
- a gravidade da ilicitude que, no caso concreto, é elevada considerando, por um lado, a idade da vítima e, por outro, a natureza dos actos sexuais de relevo perpetrados pelo arguido com cariz significativamente intrusivo na intimidade daquela;
- a intensidade do dolo, que no caso em apreço bastante elevado, porquanto directo;
- as necessidades de prevenção geral, que se têm por elevadas considerando a enorme frequência com que este tipo de abusos são praticados, o facto de na maioria das vezes serem perpetrados no seio do agregado familiar da vítima, a natureza dos bens jurídicos protegidos pelos ilícitos em causa e o alarme e o sentimento de insegurança que este tipo de condutas causam na população e que exigem a reposição da confiança na validade e eficácia das normas violadas;
- as necessidades de prevenção especial, que se revelam medianas, considerando, por um lado, a ausência de antecedentes criminais e o facto de o arguido se encontrar profissional, familiar e socialmente inserido, mas, por outro, o facto de o mesmo possuir um reduzido juízo crítico acerca da ilicitude das suas condutas e não demonstrar arrependimento, negando os factos.
17. Tudo ponderado, entendeu o Tribunal ser adequado impor ao arguido a pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão como forma de sancionar a prática de cada um dos crimes de abuso sexual de crianças agravado.
18. E, em cúmulo jurídico destas penas, a pena única de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão.
19. Concordando-se inteiramente com o veredicto condenatório, por se entender que foi feita justiça e o direito bem aplicado.
20. Assim, face à pena única aplicada, não é possível, legalmente, a suspensão da execução da pena.
21. De salientar, ainda, que se concorda inteiramente com a quantia indemnizatória arbitrada.
22. No mais, não se mostrará violado qualquer preceito legal nem desrespeitado qualquer direito.
24. Nesta conformidade, negando-se provimento ao recurso e mantendo-se o douto acórdão recorrido, será feita justiça.
4. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que se reporta o artigo 416.º do Código de Processo Penal (diploma que passaremos a designar de C.P.P.), acompanhou a resposta do Ministério Público junto da 1.ª instância.
5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do C.P.P., reiterando o recorrente as suas razões, procedeu-se a exame preliminar e foram colhidos os vistos, após o que os autos foram à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º 3, do mesmo diploma.
II – Fundamentação
1. Dispõe o artigo 412.º, n.º 1, do C.P.P., que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
Constitui entendimento constante e pacífico que o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2.ª ed. 2000, p. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 2007, p. 103; entre muitos, os Acs. do S.T.J., de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242; de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271; de 28.04.1999, CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, p. 196).
Atentas as conclusões apresentadas, as questões a apreciar e decidir no recurso são:
- erro de julgamento da matéria de facto / erro na apreciação da prova / violação do artigo 127.º do C.P.P.;
- determinação da pena, que o recorrente considera exagerada. 
2. Do acórdão recorrido
2.1. O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos:
A) FACTOS PROVADOS COLHIDOS NO DESPACHO DE PRONÚNCIA:   
1. CC nasceu a … de … de 2007 e é filha de DD e de HH.
2. O arguido AA é pai de DD.
3. O arguido BB foi viver com HH partilhando leito, mesa e habitação, na residência sita na Rua ....., na ......
4. Nessa sequência, CC foi viver com bisavó materna e com uma tia-avó numa casa sita no n.° ... daquela mesma rua.
5. À data, o arguido AA e a sua esposa, GG, também viviam no n.° ..... dessa rua.
6. Entre Fevereiro a Junho de 2019, em três ocasiões distintas, em datas não concretamente apuradas mas todas situadas no período escolar, CC pernoitou em casa do arguido AA.
7. Nessas três ocasiões, após as 20h00, quando GG já estava deitada no seu quarto e CC deitada num outro quarto, o arguido AA despiu-se por completo e entrou neste último quarto.
8. Aí, o arguido AA dirigiu-se para junto de CC - que estava deitada na cama de barriga para baixo - e despiu-a.
9. Seguidamente, o arguido AA aproximou o seu pénis erecto do ânus de CC.
10. Posteriormente, o arguido AA colocou CC de costas para baixo e de barriga para cima e aproximou o seu pénis erecto da vagina de CC.
11. Enquanto o arguido AA actuava da forma descrita em 9. e em 10., CC pediu-lhe para ele parar, mas ele não lhe respondeu e prosseguiu com o seu comportamento.
12. Antes dos factos referidos nos pontos precedentes, CC não mantivera relações sexuais com outras pessoas.
13. Em datas não concretamente apuradas, mas depois dos factos referidos nos pontos n.ºs 7. a 11. CC foi a casa da sua mãe e do arguido BB.
14. Nessas ocasiões, por várias vezes, quando CC estava no quarto da mãe a ver televisão e a sua mãe não estava presente, o arguido BB abeirou-se daquela, colocou a sua mão nas nádegas dela e aí desferiu uma palmada.
15. Os arguidos sabiam a idade de CC.
16. Ao actuar da forma acima descrita, o arguido AA agiu com o propósito concretizado de satisfazer os seus desejos sexuais com CC, bem sabendo a sua idade.
17. O arguido AA sabia que, em função da idade de CC, os actos que praticou eram adequados a prejudicar o livre e harmonioso desenvolvimento da personalidade desta e que tinham reflexos na esfera sexual da personalidade da mesma.
18. O arguido AA sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal e tinha capacidade e liberdade para se determinar de acordo com esse conhecimento.
B) FACTOS COLHIDOS NO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL:
19. Em virtude dos factos referidos nos pontos n.ºs 7. a 11., CC foi assistida pelo demandante em episódio de urgência no dia 24 de Junho de 2020, com recurso a meios complementares de diagnóstico, tudo no valor global de € 233,32;
C) CONDIÇÕES DE VIDA E ANTECEDENTES CRIMINAIS:
20. O arguido AA nasceu em …., no seio de um agregado familiar constituído pelos progenitores e uma irmã, sete anos mais velha. O seu processo de desenvolvimento decorreu na ....., para onde o agregado familiar migrou quando o arguido tinha cerca de três meses de idade. Os pais exerciam actividade profissional no ....., fazendo ..... no ....., sendo detentores de uma condição socioeconómica avaliada como equilibrada.
21. A dinâmica familiar foi descrita como normativa, com laços de afectividade e coesão entre os seus elementos, havendo indicadores da presença de um estilo educativo assente na transmissão de valores e normas socialmente ajustados.
22. O arguido AA ingressou no sistema de ensino em idade regular, vindo a completar o 4.º ano de escolaridade. Em idade adulta concluiu o 6°. ano de escolaridade na Escola ....., na ......
23. Iniciou actividade laboral aos 16 anos na área das ....., onde se manteve até aos 21 anos. Com esta idade integrou o Exército Português, cumprindo 16 meses no Regimento …... Aos 23 anos, após cumprimento do Serviço Militar o arguido integrou várias empresas na área da ..... por um período de 3 anos.
24. Aos 26 anos e durante 5 a 6 anos, voltou a trabalhar na área das ....., mantendo em paralelo actividades na ..... no ..... com os seus pais. Posteriormente, iniciou actividade no ramo da ....., enquanto ....., que manteve até ser detido no âmbito do actual processo.
25. O arguido AA terá iniciado a sua vida sexual aos 17/18 anos com KK (a actual companheira), que tinha a mesma idade. Posteriormente estabeleceu uma relação com GG, com quem contraiu matrimónio e com quem tem quatro filhos.
26. Durante o seu percurso de vida, o arguido AA manteve consumos abusivos de heroína e cocaína, tendo-se submetido a um programa de desabituação por substituição com metadona, promovido pelo CAT da sua área de residência. Encontra-se abstinente há cerca de 17 anos.
27. À data dos factos, o arguido AA coabitava com GG, num apartamento de tipologia T2, situada na ...... Apesar disso, refere que não mantinham relacionamento marital, ocupando cada um o seu quarto, partilhando apenas o espaço habitacional.
28. Seis meses antes da detenção, o arguido AA reatou relacionamento com KK, vivendo, desde então, com ela em comunhão de mesa e habitação. A relação com KK foi caracterizada como tranquila e estável e o relacionamento íntimo como satisfatório.
29. A actual situação jurídico-penal do arguido tem tido um forte impacto em KK que demonstra alguma apreensão face ao desfecho do julgamento.
30. A irmã mostra-se disponível para apoiar o arguido AA, apontando alguma instabilidade e disfuncionalidade à dinâmica relacional do ex-agregado familiar daquele.
31. Em fase anterior à detenção, o arguido desenvolvia actividade profissional no sector da ..... para a empresa “.....”, tendo sido dispensado no âmbito do primeiro confinamento, na sequência da situação pandémica actual.
32. O arguido AA revela capacidades de relacionamento interpessoal, demonstrando uma atitude humilde.
33. Em termos de enquadramento sociofamiliar, o arguido AA beneficia de apoio emocional e financeiro, por parte da irmã e da companheira, apesar desta última deter algumas reservas face ao futuro da relação. A relação intrafamiliar foi caracterizada pela proximidade relacional, com sentido de interajuda e coesão.
34. A cumprir medida de coacção de prisão preventiva desde 03 de Julho de 2020 (estando desde 31 de Julho de 2020 no Estabelecimento Prisional da .....), o arguido AA assume uma atitude crítica e de censura face a crimes de abuso sexual de crianças.
35. Em ambiente prisional, o arguido AA apresenta um comportamento de acordo com o normativo institucional. Encontra-se inactivo, apesar de mostrar disponibilidade para integrar um posto ocupacional. Tem acompanhamento na valência de psicologia dos Serviços Clínicos do Estabelecimento Prisional.
36. O arguido AA verbaliza a intenção de regressar à casa da companheira, onde residia à data da prisão. No plano profissional, não apresenta projectos definidos, assegurando integração profissional no ramo da ......
37. O arguido AA sofreu já a seguinte condenação:
a. Por sentença proferida no processo n.° 1696/19..... do Juízo Local Criminal da ..... (Juiz …) a 12 de Fevereiro de 2020 e transitada em julgado em 8 de Junho de 2020, foi condenado pela prática, em 16 de Agosto de 2019, de um crime de ofensa à integridade física simples na pena de 100 dias de multa à razão diária de € 5;
38. O trajecto desenvolvimental do arguido BB decorreu em ....., no seio de um agregado familiar numeroso (nove descendentes). A dinâmica familiar era positiva, sendo que os pais exerceram o papel parental por referência à valorização da responsabilização individual e imposição de regras.
39. O sustento do núcleo doméstico foi assegurado pelos rendimentos dos progenitores, ambos ....., sem registo de dificuldades materiais acrescidas.
40. A fim de contribuir para o orçamento familiar e em virtude de ter assumido responsabilidades parentais aos 17 anos, o arguido abandonou o sistema de ensino após conclusão do 11.° ano de escolaridade.
41. A sua experiência profissional inscreveu-se exclusivamente no sector da ..... e o trajecto foi marcado pela estabilidade.
42. O arguido BB tem três descendentes com idades compreendidas entre 15 e 24 anos - um dos quais resultante de uma relação marital de longa duração, sendo que os restantes foram fruto de relacionamentos de namoro -, sendo que não estabeleceu relações de proximidade com as respectivas progenitoras dos filhos, nas fases posteriores às respectivas rupturas amorosas.
43. O arguido BB caracteriza a sua experiência/vida sexual de cariz heterossexual como normalizada, considerando a dimensão sexual como fonte essencial de bem-estar e gratificação pessoal.
44. À data dos factos e na actualidade, o arguido BB reside com a companheira e com a avó paterna desta.
45. A relação conjugal foi iniciada há cerca de três anos, não se identificando indicadores de disfuncionalidade, hostilidade ou outros que remetam para obstruções na gratificação sexual.
46. O arguido BB denota ambivalência quanto à natureza da relação afectiva, aos sentimentos nutridos pela CC e aos factores desencadeadores de aproximações circunstanciais.
47. O arguido BB reconhece genericamente o bem jurídico em questão bem como potenciais danos psicológicos, demonstrando globalmente empatia pelas vítimas.
48. Pese embora resida na mesma zona geográfica, o arguido BB não retomou contactos presenciais ou outros com CC desde o surgimento do presente processo judicial.
49. À semelhança daquela data, a situação económica do agregado permanece descrita como equilibrada, ainda que, devido à situação de desemprego da companheira, o arguido BB - que mantém actividade laboral regular na..... auferindo cerca de € 600 por mês - seja o principal garante da subsistência do núcleo familiar.
50. O arguido BB consome bebidas alcoólicas de forma regular, ainda que moderada. Dedica os seus tempos livres ao cultivo de uma pequena horta.
51. O arguido BB é autocentrado, pese embora consiga expressar empatia. Pese embora aparente possuir noção do grau de ilicitude em causa, atribui a terceiros uma eventual responsabilidade criminal.
52. A aplicação da medida de coacção de prisão preventiva teve repercussões emocionais, denotando aqueles sentimentos de tristeza e desalento causados pelo afastamento de CC.
53. Ao arguido BB não são conhecidos antecedentes criminais.
2.2. Quanto a factos não provados ficou consignado no acórdão recorrido (transcrição):
• O arguido AA introduziu o seu pénis erecto no ânus de CC e efectuou movimentos oscilantes de fricção;
• O arguido AA introduziu o seu pénis junto à vagina de CC e efectuou movimentos oscilantes de fricção;
• O arguido AA tocou nos seios de CC;
• Os factos supra referidos ocorreram entre Fevereiro e Dezembro de 2019;
• O arguido AA tinha conhecimento do facto referido no ponto n.° 12.;
• Em virtude dos factos referidos nos pontos n.os 7. a 11., CC foi assistida pelo demandante em consultas externas de pediatria e de pediatria-infecciologia (respectivamente, a 1 de Julho de 2020 e a 4 de Agosto de 2020), no valor de global € 59,10.
• Em virtude dos factos referidos nos pontos n.os 13. a 14., CC foi assistida pelo demandante nos termos expostos no ponto n.° 19.
• Ao actuar da forma descrita pontos n.os 13. a 14., o arguido BB agiu com o propósito concretizado de satisfazer os seus desejos sexuais com CC, bem sabendo a sua idade.
• O arguido BB sabia que, em função da idade de CC, os actos que praticou eram adequados a prejudicar o livre e harmonioso desenvolvimento da personalidade desta e que tinham reflexos na esfera sexual da personalidade da mesma.
• O arguido BB sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal e tinha capacidade e liberdade para se determinar de acordo com esse conhecimento.
Não se provaram quaisquer outros factos relevantes e o demais alegado tem cariz conclusivo e/ou reporta-se à apreciação de elementos de prova ou é manifestamente irrelevante para a decisão a proferir.
2.3. O tribunal recorrido fundamentou a sua convicção nos seguintes termos (transcrição):
Os factos inscritos no ponto n.° 1 do elenco factual foram tidos como demonstrados com base na valoração da certidão de registo de nascimento de fls. 367.
A convicção quanto aos factos contidos no ponto n.° 2 daquele elenco assentou na valoração das declarações prestadas pelo arguido AA, no segmento em que deu conta de que era o avô paterno da ofendida.
No que se refere apos factos inscritos no ponto n.° 3 e no ponto n.° 4, o tribunal teve conjugadamente em conta os depoimentos prestados por HH e FF (bisavó da ofendida), nos segmentos em que, em suma, deram conta dos locais onde moravam e da falta de condições da primeira para albergar a sua filha, razão pela qual esta ficou a cargo da segunda.
Estes testemunhos foram apreciados à luz de critérios de normalidade e de experiência corrente.
HH revelou animosidade perante a pessoa do arguido AA e uma flagrante parcialidade relativamente ao arguido BB, a que não é alheia a relação amorosa que com ele mantém. Nessa medida, o seu testemunho foi tido como parcial, tendo apenas sido considerado na medida em que, como sucedeu neste e noutros aspectos, foi secundado por outros meios de prova.
Já o testemunho de FF, apesar de não ter sido prestado de um modo totalmente espontâneo, revelou clareza, coerência e equidistância, revelando aquela testemunha a firmeza que são inerentes a quem detém conhecimento presencial dos factos.
Daí que o tribunal tenha reputado aquele testemunho como sendo globalmente credível, fiável e persuasivo.
A convicção quanto aos factos contidos no ponto n.° 5 daquele elenco assentou na valoração das declarações prestadas pelo arguido AA, no segmento em que os confirmou.
Os factos inscritos no ponto n.° 6 foram tidos como demonstrados com base na valoração concatenada das declarações prestadas pelo arguido AA - no segmento em que deu conta dos factos aí inscritos, referindo que essas ocasiões tiveram lugar até ao mês de Junho de 2019 - e do testemunho de FF - no trecho em que deu nota de que a ofendida pernoitou em casa dos avós paternos em, pelo menos, duas ocasiões.
De salientar que, como se constata pela reprodução da aplicação “Google Maps” de fls. 58, as habitações em causa situam-se em zonas relativamente próximas, o que ajuda a credibilizar tais relatos. Cabe ainda frisar que aquele arguido referiu que tais pernoitas sucediam a pedido da sua neta, por a avó com quem vivia estar doente e a bisavó trabalhar à noite e por aquele ter “TV Cabo” em sua casa.
Teve-se ainda em conta as declarações para memória futura prestadas por CC, no segmento em que, em suma, deu nota de que os factos sucederam a partir de Fevereiro, no período escolar.
Antes de elencar as razões pelas quais, em concreto, tais declarações foram tidas como sendo merecedoras de credibilidade, importa preliminarmente salientar o seguinte.
Como se expõe no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 12 de Abril de 2010 [Proferido no processo n.° 42/06.2TAMLG.G1 e acessível em www.dgsi.pt.], «em matéria de “crimes sexuais” as declarações do ofendido têm um especial valor, dado o ambiente de secretismo que rodeia o seu cometimento, em privado, sem testemunhas presenciais e, por vezes, sem vestígios que permitam uma perícia determinante (...), pelo que não aceitar a validade do depoimento da vítima poderia até conduzir à impunidade de muitos ilícitos perpetrados de forma clandestina, secreta ou encoberta como são os crimes sexuais.
Em função das especialidades dos crimes sexuais e do especial valor que as declarações do ofendido assumem no âmbito daquela criminalidade, quando o tribunal não dispuser de outra prova, as declarações de uma única testemunha, seja ou não vítima, de maior ou menor idade, opostas, em maior ou menor medida, ao do arguido, podem fundamentar uma sentença condenatória se depois de examinadas e valoradas as versões contraditórias dos interessados se considerar aquela versão verdadeira em função de todas as circunstâncias que concorrem no caso. O velho aforismo “testis unus testis nullus”, carece, pois, de eficácia jurídica num sistema como o nosso em a prova já não é tarifada ou legal mas antes livremente apreciada pelo tribunal [sobre aquela regra unus testis, testis nullius, cujas origens remontam a Moisés, as criticas que lhe foram sendo dirigidas ao longo da história (De Arnaud, Blackstone, Bentham, Meyer, Bonnier), a sua abolição e a possibilidade de um único depoimento, nomeadamente as declarações da vítima, poderem ilidir a presunção de inocência e fundamentarem uma condenação (...).
Esta questão - que não é, naturalmente, privativa do direito português - tem merecido um desenvolvimento assinalável na doutrina e jurisprudência do País vizinho onde se tem vindo reiteradamente a declarar que um único testemunho, ainda que da vítima e inclusivamente de uma criança, pode ser suficiente para desvirtuar a presunção de inocência desde que ocorram as seguintes notas: a) ausência de incredibilidade subjectiva derivada das relações arguido/vítima ou denunciante que possam conduzir à dedução da existência de um móbil de ressentimento, ou inimizade; b) verosimilhança: o testemunho há de estar rodeado de certas corroborações periféricas de carácter objectivo que o dotem de aptidão probatória e; c) persistência na incriminação, prolongada no tempo e reiteradamente expressa e exposta sem ambiguidades ou contradições (...).
Estas regras jurisprudenciais vigentes no país vizinho revelam-se instrumentos úteis na valoração das declarações da vítima, mas não podem ser erigidos em princípios vinculativos na ordem jurídica portuguesa onde vigora o princípio da livre apreciação da prova (artigo 127° do Código de Processo Penal) e onde não se prevê qualquer regra de corroboração necessária (...)».
Regressando ao caso, temos que a apreciação do depoimento prestado por CC revelou uma jovem que estava ainda emocionalmente afectada pelo sucedido. Possuía um discurso sóbrio e, tanto quanto possível, pormenorizado, o que foi perceptível no relato dos factos contra si praticados.
Embora não haja logrado situar, no tempo, os factos ocorridos (o que será atribuível à sua iteração e ao seu cariz intrusivo), a ofendida, pese embora as inibições naturalmente decorrentes de estar em tribunal a relatar, perante estranhos, factos de natureza sexual e não obstante o sentimento de vergonha a eles inerente, conseguiu (revelando, no mesmo passo, suficiente fluidez e espontaneidade na narração dos factos) fornecer um relato dotado de intrínseca coesão.
Não revelou quaisquer indícios de efabulação, tendo mesmo revelado um carácter algo ingénuo e pueril. Cabe aqui acrescentar que, como a mesma referiu, aquela jamais manteve relações sexuais com outras pessoas, pelo que sempre lhe faltaria um referencial a partir do qual pudesse “construir” uma narrativa inverídica dos factos.
Pese embora tanto HH como FF tenham referido que a ofendida mentia sobre factos ocorridos na escola (vg. faltas ou quebras de óculos), nenhuma delas afirmou que tal sucedia relativamente a factos dotados de maior relevância, sendo certo que DD referiu que nunca a “apanhou” a mentir. Tenha-se ainda em conta que não se evidenciou que a ofendida tivesse colhido (ou pudesse vir a colher) qualquer vantagem em mentir.
É certo que o relatório de perícia psicológica de fls. 373 e ss. se revelou inconclusivo quanto à credibilidade do declarado relativamente ao arguido AA (a seu tempo, se considerará o declarado quanto ao co-arguido). Porém, tal consideração parece ter sobretudo assentado na detecção de inconsistências relativamente ao declarado por aquela perante o órgão de polícia criminal incumbido da investigação, o que, como se percebe, é inviável considerar nesta fase processual.
Daí que, na ponderação conjugada de todas estas considerações, o testemunho da ofendida tenha sido tido como fiável, convincente e merecedor de credibilidade.
A convicção do tribunal quanto aos factos inscritos nos pontos n.° 7 a 11 assentou essencialmente na valoração do testemunho da ofendida.
Em apertada síntese, a mesma deu nota de que, nas ocasiões em que foi dormir a casa dos seus avós paternos, após o jantar, no quarto onde dormia e quando já estava deitada (sendo que a sua avó já também estava deitada) de barriga para o chão, o arguido, já despido, tirou-lhe a roupa e, em seguida, “deu-lhe” por detrás, apesar de lhe dizer para parar, ao que este não respondeu. Após, virou-a para si e tentou introduzir na vagina. Referiu ainda que, em todas as ocasiões, tudo se passou da mesma forma.
Adicionalmente, foi considerado que o relatório de exame médico legal (de fls. 242 e ss.), de onde resulta a ausência de vestígios de penetração peniana, o que se revela coerente com o teor do relato da ofendida. Note-se que, apesar de esta referir a introdução no ânus, daquele relato não emerge a existência de dor ou sangramento, pelo que se considerou mais plausível que, como se assinala naquele exame, a existência de aproximações superficiais do pénis relativamente àquelas zonas do corpo da ofendida.
Adicionalmente ainda, refira-se que, de acordo com os relatos (que foram objecto de apreciação crítica à luz daqueles vectores e que se revelaram convictos, espontâneos e sinceros e que, por isso, foram tidos como sendo merecedores de credibilidade) de DD e EE (amiga da mãe da ofendida), a ofendida narrou-lhes estes factos de forma essencialmente similar, o que, a acrescer aos motivos supra expostos, afasta a hipótese de a mesma estar a efabular.
De notar que DD deu nota de que a ofendida se agarrou a si a chorar naquela ocasião, o que igualmente reforça a convicção de que a rememoração dos mesmos, porque geradora de activação emocional, correspondia a um relato genuíno.
Coincidentemente, há ainda considerar que a sua bisavó deu nota de que, quando regressava de casa dos avós paternos, a ofendida apresentava-se triste, o que corrobora a sensação de que algo se passara nessas ocasiões.
O arguido AA negou os factos, afirmando-se contra tais práticas, considerando que tudo ainda lhe parecia um pesadelo e procurando fazer crer que tudo não passava de uma vingança de GG, por, após ter saído de casa, ter encetado uma relação amorosa com a testemunha KK e ter sido depois “descoberto” por aquela, quando regressou de um tratamento de desintoxicação ao álcool.
O tribunal considerou esta versão desprovida de credibilidade.
Além da maior credibilidade que, pelos motivos supra expostos, deve ser reconhecida ao testemunho da ofendida, o tribunal considerou o seguinte.
Aquele arguido admitiu que chegou a dormir com esta na mesma cama, o que pode ser interpretado como uma admissão implícita dos factos. Há ainda a considerar que, segundo este arguido, GG consumia então álcool em excesso, pelo que é perfeitamente plausível considerar que, apesar de fisicamente estar na mesma habitação, aquela não estava em condições de se aperceber do que ia sucedendo.
Por sua vez, a valoração da prova não evidenciou que GG exercesse (ou, sequer, tivesse condições de exercer) qualquer sorte de ascendente psicológico sobre a sua neta (note-se, de resto, que esta, segundo aquele mesmo arguido, lhe chamava nomes) no sentido de a levar a mentir para exercer a vingança invocada por aquele arguido.
Pese embora DD tenha dado nota de que a sua mãe mostrara raiva em relação à traição sofrida, há também a ter em conta que aquela se recusou legitimamente a prestar depoimento. Ora, se a mesma tivesse actuado da forma que lhe é imputada por aquele arguido, decerto não teria evitado depor e, ao invés, teria usado essa clara oportunidade para prosseguir a sua “vingança”. É, aliás, de notar que, segundo aquela testemunha, a ofendida contou primeiramente à sua mãe o sucedido, pelo que estaria numa posição privilegiadíssima para agir dessa forma em audiência de julgamento.
Acresce que aquele arguido deu nota de que a sua relação com GG já terminara em Setembro de 2019 e que iniciou o relacionamento com a sua actual companheira em 22 de Dezembro de 2019 (o que esta confirmou), pelo que sempre seria altamente improvável que a mesma apenas tivesse instrumentalizado a sua neta em Junho de 2020 [Foi nesse mês que DD, então em saída precária há cerca de 2 semanas, situou o relato que lhe foi feito pela sua filha, sendo essa a única referência temporal mais ou menos precisa que emergiu da prova produzida], i.e. volvidos mais de 9 meses sobre a sua separação.
Refira-se ainda que, de acordo com a ofendida (e, bem assim, com a sua mãe), esta também relatou ao arguido BB [o que, de acordo com a sua mãe, sucedeu em Junho de 2019, altura em que, como se disse, cessaram os contactos, o que terá sido determinado por esta] o que se passara em casa do avô paterno, o que será atribuível ao facto de aquela manter com aquele uma relação de grande proximidade, vendo-o como um pai. Ora, a existir a dita a intenção vindicativa, não se vislumbra qualquer racionalidade neste facto, já que seria manifestamente implausível que GG tivesse induzido a ofendida a relatar uma situação por si “inventada” a uma pessoa estranha ao seu núcleo familiar.
Note-se, enfim, que o próprio arguido AA admitiu que a ofendida deixou de ir a sua casa (o que denota que algo de perturbador para aquela ali se passou), assim se esbatendo a relevância que poderia assumir a circunstância de os factos terem sucedido em três momentos distintos e, correspondentemente, a inferência de que nada se passara. Há, de resto, a notar que a pernoita era, como acima se notou, do interesse (egoístico, mas algo infantil) da própria ofendida.
Os factos referidos no ponto n.° 12 do elenco factual foram tidos como demonstrados com base na valoração das declarações prestadas pela ofendida no segmento em que relatou os mesmos.
A convicção quanto aos factos inscritos no ponto n.° 13 e n.° 14 assentou na consideração do relatado pela ofendida. Em suma, a mesma relatou que, no período aí referenciado, o arguido BB lhe dava palmadinhas no rabo com a mão esticada quando estava deitada a ver televisão, o que lhe causava desconforto e estranheza, sendo que a mãe estava na cozinha.
Este segmento do relato foi incoerente com aquele que a ofendida fez ao seu pai mas congruente com aquele que fez a EE, o que, porventura, é explanável pela aludida relação que mantém com o arguido BB e pelo sentimento de culpa por aquela experienciado pelo facto de este ter estado sujeito a prisão preventiva.
Este arguido remeteu-se ao silêncio e nenhuma prova foi produzida que permitisse infirmar aquelas declarações. Assim, pese embora seja perceptível a dita incoerência com um outro relato, inexistem razões para desvaliar este segmento das ditas declarações.
O conhecimento que os arguidos tinham acerca da idade da ofendida foi inferido a partir, respectivamente, das relações de índole familiar e para-familiar e de inerente proximidade que com ela mantêm.
A convicção quanto à atitude interior do arguido AA foi tida como demonstrada com base numa inferência assente na demonstração dos demais factos provados e sempre sem esquecer o necessário apelo aos dados da experiência corrente e da lógica para a sua compreensão.
Os factos inscritos no ponto n.° 19 do elenco factual foram tidos como demonstrados com base na valoração conjugada da ficha clínica de fls. 10 e da factura cuja cópia consta de fls. 458 e 459 e do teor do auto de denúncia de fls. 72 e ss., no segmento em que nele se dá nota de que a ofendida foi encaminhada para o hospital na sequência da apresentação da queixa.
Quanto à história de vida e condições de vida dos arguidos (pontos n.° 20 e ss.) e quanto aos traços mais relevantes da personalidade daqueles, foram tidos em conta os elementos mais relevantes extraídos dos relatórios para a determinação da sanção junto aos autos.
Os antecedentes criminais dos arguidos foram apurados mediante a consideração dos respectivos certificados de registo criminal de fls. 585 e ss..
No que tange aos factos não provados, observou-se o seguinte.
O arguido AA negou peremptoriamente os demais factos vertidos no despacho de pronúncia. A ofendida, no seu relato, não deu conta dos demais actos sexuais ali narrados, sendo que, como se expôs, a conjugação do mesmo com os demais meios de prova produzidos indicava a inexistência de efectiva penetração peniana.
No que se refere aos demais factos, observa-se que a valoração das declarações colhidas e dos documentos não permitiu aquilatar a respectiva veracidade. Refira-se que a própria ofendida narrou que o arguido BB, nas referidas ocasiões, não se despiu e não a questionou sobre namorados, o que, à míngua de outros elementos atendíveis, arreda a possibilidade de atribuir à actuação do arguido BB um cariz sexual.
De igual modo, não se demonstrou qualquer relação causal entre o comportamento deste arguido e a assistência prestada à ofendida em 24 de Junho de 2020.
Por fim, nenhuma prova foi produzida que corroborasse a alegação de que a realização das consultas a que se refere a factura de fls. 466 foram ocasionadas pela conduta de algum dos arguidos, atento, ademais, o lapso de tempo decorrido entre aquelas e as mesmas.    
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3. Apreciando          
3.1. O recorrente alega que o tribunal a quo incorreu em erro de julgamento da matéria de facto quando considerou provado que “nas ocasiões em que foi dormir a casa dos seus avós paternos, após o jantar, no quarto onde dormia e quando estava deitada (sendo que a sua avó já estava deitada) de barriga para o chão, o arguido já despido, tirou-lhe a roupa e, em seguida, “deu-lhe por detrás, apesar de lhe dizer para parar, ao que este não respondeu. Após, virou-a para si e tentou introduzir na vagina. Referiu ainda que, em todas as ocasiões, tudo se passou da mesma forma.”
Embora na conclusão n.º 1 conste que o recurso tem como objecto “toda a matéria de facto”, a conclusão seguinte remete, ainda que sem os indicar expressamente, para a matéria dos pontos de facto provados 7. a 11.
Em síntese, diz o recorrente que o tribunal “a quo”, ao dar como provados os factos vertidos naqueles pontos, nas versões que constam da fundamentação do acórdão, violou, “entre outros”, o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127.º, do C.P.P., colocando o recorrente em causa a credibilidade das declarações da ofendida e dos depoimentos das testemunhas DD, EE e FF, fazendo menções, ainda, a segmentos dos depoimentos de HH e das testemunhas abonatórias, KK e LL.
3.1.1. Dispõe o artigo 428.º, n.º 1, do C.P.P., que os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito.
A matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do C.P.P., no que se convencionou chamar de “revista alargada”; ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.º 3, 4 e 6, do mesmo diploma.
 No primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do n.º 2 do referido artigo 410.º, cuja indagação, como resulta do preceito, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 16. ª ed., p. 873; Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª ed., p. 339; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 2007, pp. 77 e ss.; Maria João Antunes, RPCC, Janeiro-Março de 1994, p. 121).
No segundo caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do C.P. Penal.
Quer isto dizer que enquanto os vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, são vícios da decisão, evidenciados pelo próprio texto, por si ou em conjugação com as regras da experiência comum, na impugnação ampla temos a alegação de erros de julgamento por invocação de provas produzidas e erroneamente apreciadas pelo tribunal recorrido, que imponham diversa apreciação. Neste caso, o recorrente pretende que o tribunal de recurso se debruce não apenas sobre o texto da decisão recorrida, mas sobre a prova produzida em 1.ª instância, alegadamente mal apreciada.
Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. O recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa (sobre estas questões, os acórdãos do S.T.J., de 14 de Março de 2007, Processo 07P21, de 23 de Maio de 2007, Processo 07P1498, de 3 de Julho de 2008, Processo 08P1312, de 29 de Outubro de 2008, Processo 07P1016 e de 20 de Novembro de 2008, Processo 08P3269, in www.dgsi.pt., como todos os que venham a ser indicados sem outra indicação).
Precisamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constitui um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir determinados erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deverá expressamente indicar, impõe-se a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, estabelecendo o artigo 412.º, n.º3, do C.P. Penal:
«3. Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.»
A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados.
A especificação das «concretas provas» só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.
Finalmente, a especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1.ª instância cuja renovação se pretenda, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do C.P.P. e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. artigo 430.º do C.P.P.).
Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência: havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na acta, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação (não basta a simples remissão para a totalidade de um ou vários depoimentos), pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.º 4 e 6 do artigo 412.º do C.P.P.), salientando-se que o S.T.J, no seu acórdão n.º 3/2012, publicado no Diário da República, 1.ª série, N.º 77, de 18 de abril de 2012, fixou jurisprudência no seguinte sentido:
«Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações».
Assim, o ónus processual de indicação das provas que impõem decisão diversa da recorrida, previsto na alínea b), do n.º 3, do artigo 412.º, do C.P.P., apresenta uma configuração alternativa, conforme a acta da audiência de julgamento contenha ou não a referência do início e do termo de cada declaração gravada, nos seguintes termos:
- se a acta contiver essa referência, a indicação das concretas passagens em que se funda a impugnação faz-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364.º (n.º 4 do artigo 412.º do C.P.P.);
– se a acta não contiver essa referência, basta a identificação e transcrição nas motivações de recurso das ditas “passagens/excertos” dos meios de prova oral gravados (acórdão da Relação de Évora, de 28/05/2013, processo 94/08.0GGODM.E1).
Em síntese: para dar cumprimento às exigências legais da impugnação ampla tem o recorrente de especificar, nas conclusões, quais os pontos de facto que considera terem sido incorrectamente julgados, quais as provas (específicas) que impõem decisão diversa da recorrida, bem como referir as concretas passagens/excertos das declarações/depoimentos que, no seu entender, obrigam à alteração da matéria de facto, transcrevendo-as (se na acta da audiência de julgamento não se faz referência ao início e termo de cada declaração ou depoimento gravados) ou mediante a indicação do segmento ou segmentos da gravação áudio que suportam o seu entendimento divergente, com indicação do início e termo desses segmentos (quando na acta da audiência de julgamento se faz essa referência - o que não obsta a que, também nesta eventualidade, o recorrente, querendo, proceda à transcrição dessas passagens). Importa não só proceder à individualização das passagens que alicerçam a impugnação, mas também relacionar o conteúdo específico de cada meio de prova susceptível de impor essa decisão diversa com o facto individualizado que se considera incorrectamente julgado, o que se mostra essencial, pois, julgando o tribunal de acordo com as regras da experiência e a livre convicção e só sendo admissível a alteração da matéria de facto quando as provas especificadas conduzam necessariamente a decisão diversa da recorrida – face à exigência da alínea b), do n.º 3, do artigo 412.º, do C.P.P., a saber: indicação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida -, a demonstração desta imposição compete também ao recorrente.
Resultando do recurso, ainda que imperfeitamente, que se pretende sindicar a apreciação da prova, através da impugnação ampla da decisão sobre a matéria de facto, procedeu-se à audição da prova gravada indicada, confrontando-a com a restante prova, e bem assim com a motivação da decisão de facto exposta no acórdão recorrido.
Procedeu-se dessa forma tendo sempre em vista que, como realçou o S.T.J., em acórdão de 12 de Junho de 2008 (Processo:07P4375), a sindicância da matéria de facto, na impugnação ampla, ainda que debruçando-se sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre quatro tipos de limitações, que sintetizam o que se disse supra:
- a que decorre da necessidade de observância pelo recorrente do mencionado ónus de especificação, pelo que a reapreciação é restrita aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam;
- a que decorre da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com a prova pessoal ao que consta das gravações;
- a que resulta da circunstância de a reponderação de facto pela Relação não constituir um segundo/novo julgamento, cingindo-se a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disso;
- a que tem a ver com o facto de ao tribunal de 2.ª instância, no recurso da matéria de facto, só ser possível alterar o decidido pela 1.ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida [al. b) do n.º 3 do citado artigo 412.º – também neste sentido o ac. da Relação de Lisboa, de 10.10.2007, proc. 8428/2007-3].
Como se diz no acórdão da Relação de Évora, de 1 de Abril de 2008 (processo n.º 360/08-1.ª):
«Impor decisão diversa da recorrida não significa admitir uma decisão diversa da recorrida. Tem um alcance muito mais exigente, muito mais impositivo, no sentido de que não basta contrapor à convicção do julgador uma outra convicção diferente, ainda que também possível, para provocar uma modificação na decisão de facto. É necessário que o recorrente desenvolva um quadro argumentativo que demonstre, através da análise das provas por si especificadas, que a convicção formada pelo julgador, relativamente aos pontos de facto impugnados, é impossível ou desprovida de razoabilidade. É inequivocamente este o sentido da referida expressão, que consubstancia um ónus imposto ao recorrente
Na reapreciação da prova importa articular os poderes de conhecimento do tribunal de recurso com os princípios relativos à produção e à valoração da prova no tribunal de 1.ª instância, especialmente com o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127.º do C.P.P., princípio que vale também para o tribunal de recurso. Essa articulação há-de necessariamente ter em conta que as condições de que beneficia a 1.ª instância – em particular, a oralidade e a imediação – para avaliar os depoimentos prestados, no contexto de toda a prova produzida, se não verificam (pelo menos em toda a extensão) quando o tribunal de recurso vai julgar.
Traduzindo-se a livre apreciação das provas numa valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, a falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, a não vivência do julgamento, sede do contraditório, com privação da possibilidade de intervir na produção da prova pessoal, serão, por assim dizer, limites epistemológicos a que a Relação deverá atender na sua apreciação, ainda que não barreiras intransponíveis a que faça a ponderação, em concreto e autónoma, das provas identificadas pelo recorrente, que pode conduzir à conclusão de que tais elementos de prova impõem um juízo diverso do da decisão recorrida.
Os diversos elementos de prova não devem ser analisados separadamente, antes devem ser apreciados em correlação uns com os outros, de forma a discernir aqueles que se corroboram e aqueles que se contradizem, possibilitando ou a remoção das dúvidas ou a constatação de que o peso destas é tal que não permite uma convicção segura acerca do modo como os factos se passaram.
3.1.2. Como já se assinalou, o recorrente entende que inexiste prova suficiente que sustente a matéria dada como provada nos pontos de facto provados 7 a 10, invocando as declarações para memória futura prestada por CC, que considera não merecerem credibilidade.
É sabido que os crimes sexuais em geral (e os praticados num contexto intrafamiliar ou de algum modo análogo, em particular), decorrem de forma oculta, longe da “vista” de terceiros. Em muitos casos de abuso sexual, os abusadores são familiares, amigos, vizinhos ou pessoas próximas da vítima.
Compreende-se, pois, que no âmbito do elenco dos meios de prova admissíveis – constituindo princípio legal o de que «são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei» (artigo 125.º do C.P.P,) –, a apreciar segundo as regras da experiência comum e a livre convicção (embora motivada e juridicamente controlável) da entidade decisora, assumem particular relevo as declarações das ofendidas (ou ofendidos), designadamente se forem menores, pois atenta a natureza do bem jurídico violado, o seu sujeito activo procura rodear-se, na prossecução dos seus propósitos, das maiores cautelas, longe dos olhares intrusos, actuando sem dar nas vistas para não se comprometer.
Quer isto dizer que a prova da verificação dos factos, nos crimes de natureza sexual, por força das circunstâncias, pode ser particularmente difícil, já que escasseia a prova directa e, regra geral, só o agressor e a vítima têm conhecimento da maioria dos factos.
Daí que assuma especial relevância o depoimento da vítima, desde que, como é evidente, o mesmo seja credível e esteja em sintonia com as regras da experiência comum, de molde a formar a convicção do julgador. Se tais declarações, criticamente analisadas, vierem a mostrar-se verosímeis e credíveis, constituirão um importante e muitas vezes decisivo meio de prova.
Em matéria de apreciação da prova, o referido artigo 127.º dispõe, como já se disse, que a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
Na expressão regras da experiência incluem-se as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios, devendo as inferências basear-se na correcção do raciocínio, nas regras da lógica, nos princípios da experiência e nos conhecimentos científicos a partir dos quais o raciocínio deve ser orientado e formulado (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 2.ª edição, p. 127, citando F. Gómez de Liaño, La Prueba en el Proceso Penal, 184).
Atentas as naturais dificuldades de reconstituição do facto delituoso, sobretudo quando perpetrado de forma oculta e longe da vista de terceiros, há que recorrer, por vezes, à prova indirecta para basear a convicção da entidade competente sobre a existência ou não da situação de facto.
Revertendo de novo aos crimes sexuais, com vítimas menores, por vezes a prova, para além das declarações da vítima, que esbarra com a negação do arguido, é mais indirecta que directa, cuja apreciação envolve um elevado nível de tratamento cognitivo (deduções e induções), sempre a partir das regras da experiência, porquanto, na maioria dos casos, o tribunal confronta-se com duas posições acerca dos factos: a da vítima que os denuncia e a do arguido que normalmente os nega.
Assim, a prova no âmbito deste tipo de criminalidade passa, essencialmente, pelas declarações da vítima.
Nos autos foram prestadas declarações para memória futura pela menor CC.
Mediante este tipo de diligência pretende-se, essencialmente, não sujeitar os menores a interrogatórios sucessivos e traumatizantes, que os obriguem a um constante rememorar dos factos em questão.
Importa ter todo o cuidado no modo de conduzir a tomada deste tipo de declarações, desde logo adequando a linguagem à idade do declarante, facilitando a comunicação em matérias que mesmo para adultos são extremamente penosas, por estarem em causa questões “morais” e de “pudor”, que podem condicionar o desenrolar da diligência.
Analisadas as declarações para memória futura prestadas pela menor CC, evidenciam-se a partir da audição diversas características de personalidade da menor que foram assinaladas por testemunhas: fechada, tímida e envergonhada, algo infantil para a idade.
O seu discurso revelou alguma inibição e relativa pobreza de recursos verbais, mas ainda assim, tal como se diz no acórdão recorrido, revelando uma jovem “ainda emocionalmente afectada pelo sucedido”, logrou fazer um relato, tão pormenorizado quanto lhe foi possível, dos factos contra si praticados, o que requereu empenho e paciência por parte da Mm.ª juíza que presidiu à diligência, que teve de cuidadosamente conduzir a tomada de declarações, sem condicionar ou sugestionar a menor, de modo a que esta fosse vencendo a inibição e esclarecesse os factos. Não se evidenciam sinais de efabulação, tendo a menor, como se assinala na motivação da decisão de facto, revelado um carácter algo ingénuo e pueril.
Disse a menor que, nas três ocasiões, a avó já se tinha deitado.
Atente-se que, como veremos mais adiante, a avó a que a menor se refere, GG, tinha problemas sérios de alcoolismo, tendo o arguido/recorrente declarado, inclusivamente, que quando chegava a casa vindo do trabalho a encontrava, por vezes, caída no chão, alcoolizada, razão por que a tinha de levantar e deitar na cama.
Não espanta, pois, que a dita GG, enquanto estava no respectivo quarto, não se desse conta do que se passava no outro quarto onde estava a sua neta, CC.
A descrição de como os factos se passavam, ainda que com a assinalada pobreza de linguagem, corresponde ao que veio a ser dado como provado, referindo a menor que os factos ocorreram já depois de ter feito anos (tinha, na altura, 12 anos e estava no 5.º ano), era tempo de aulas (ou seja, não foi em período de férias), em datas próximas, em hora já depois do jantar que costumava ser às 20h00. Nessas ocasiões, estava já deitada, o arguido entrou, despiu-a e “deu-me por trás e de frente”, estando ela inicialmente deitada de barriga para baixo e, depois, o avô virou-a. Perguntada sobre se o arguido lhe tinha introduzido o pénis na vagina, a menor disse “não conseguiu”, ao que a Mm.ª juíza perguntou se “ficou junto à vagina sem entrar”, o que a menor confirmou. Quando o avô a despia, tocava-lhe “de passagem” no peito.
Perguntada, a dado passo, sobre se na casa da mãe também acontecia alguma coisa diferente, a menor respondeu que o padrasto “dava-me palmadinhas”, que eram “no rabo”, mas “era na brincadeira”, quando ela estava deitada no quarto a ver TV. Quando isto acontecia, a mãe estava na cozinha.
Relativamente ao padrasto – BB, que veio a ser absolvido pelo tribunal recorrido -, a menor disse que ele “a tratava como um pai”. Revelou grande preocupação, dizendo “ele não fez isso por mal”, sentindo-se culpada pela sua prisão e pela tristeza da mãe.
A menor explicou que, quando BB lhe dava as “palmadinhas”, ela achava que “era noutro sentido”, pois nessa altura já tinham acontecido “as coisas” com o avô.
Por outras palavras, a menor disse ter associado o gesto do padrasto, de dar-lhe “palmadinhas”, ao que lhe tinha sido feito pelo avô, mostrando-se culpabilizada por ter efectuado essa associação e o padrasto ter sido preso.
Disse a menor que a dada altura tinha contado ao padrasto o que o avô fizera – “disse que o meu avô me tinha feito aquilo e ele não disse nada”, não sabendo explicar por que razão fez essa revelação ao padrasto e não à sua mãe.
O recorrente pretende contrariar as declarações para memória futura com recurso a declarações prestadas pela menor ao órgão de polícia criminal, mas esquece que, de acordo com o artigo 355.º do C.P.P., não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência, com ressalva das contidas em actos processuais cuja leitura, visualização ou audição em audiência sejam permitidas, nos termos dos artigos 356.º e 357.º.
In casu, as declarações de que o arguido/recorrente se pretende servir foram prestadas na fase de inquérito e não foram, nem podiam ser consideradas, para o efeito de formação da convicção do tribunal, por não estarem reunidos os requisitos previstos no artigo 356.º, n.º2, al. b) e 5, do C.P.P.
O ora recorrente negou os factos imputados, dizendo que “é falso” e “sou contra isso, até”. Admitiu que a CC dormiu lá em casa algumas vezes, “não lhe sei dizer ao certo”, indo mais lá a casa para ver Tv Cabo. Muito embora tenha, a dada altura, pretendido que a menor teria pernoitado na sua casa “uma vez ou duas”, certo é que acabou por admitir que a menor chegou a dormir umas vezes na sala – “várias vezes cheguei a ir lá desligar a televisão” -, algumas vezes dormiu com a avó (na altura, já o arguido e a sua mulher dormiam em quartos separados e não mantinham, há dois anos, relações sexuais um com o outro) e, “uma vez ou duas”, reconheceu que dormiu na mesma cama com a menor, em razão desta ter medo de dormir com a avó que estava alcoolizada. Das vezes que dormiu com a menor, não aconteceu nada – “eu era incapaz”, “para mim é como se fosse um bebé”. Quanto à localização dos quartos, o arguido fez uma descrição que não é totalmente perceptível a quem, como ocorre na Relação, não tem o benefício da imediação, dizendo “ficava assim”, “não eram em frente, ficavam assim”, faz um “L”, observando o Mm.º Juiz Presidente “ficavam transversalmente em lados opostos”. Referiu que a porta do quarto não tinha fechadura.
Quanto à relação da menor com a avó, o arguido/recorrente relatou que umas vezes a avó dava-se bem; outras chegava a dizer da menor “que vens fazer com essa cabra para aqui”.
A explicação que o arguido/recorrente encontra para que a sua neta lhe impute tais factos é a de que tudo não passa de uma vingança de GG, a sua ex-mulher e avó da menor, por, após ter saído de casa, ter encetado uma relação amorosa com a testemunha KK e ter sido depois “descoberto” por aquela, quando a sua ex-mulher regressou de um tratamento de desintoxicação do alcoolismo.
Diz-se na motivação:
«O tribunal considerou esta versão desprovida de credibilidade.
Além da maior credibilidade que, pelos motivos supra expostos, deve ser reconhecida ao testemunho da ofendida, o tribunal considerou o seguinte.
Aquele arguido admitiu que chegou a dormir com esta na mesma cama, o que pode ser interpretado como uma admissão implícita dos factos. Há ainda a considerar que, segundo este arguido, GG consumia então álcool em excesso, pelo que é perfeitamente plausível considerar que, apesar de fisicamente estar na mesma habitação, aquela não estava em condições de se aperceber do que ia sucedendo.
Por sua vez, a valoração da prova não evidenciou que GG exercesse (ou, sequer, tivesse condições de exercer) qualquer sorte de ascendente psicológico sobre a sua neta (note-se, de resto, que esta, segundo aquele mesmo arguido, lhe chamava nomes) no sentido de a levar a mentir para exercer a vingança invocada por aquele arguido.
Pese embora DD tenha dado nota de que a sua mãe mostrara raiva em relação à traição sofrida, há também a ter em conta que aquela se recusou legitimamente a prestar depoimento. Ora, se a mesma tivesse actuado da forma que lhe é imputada por aquele arguido, decerto não teria evitado depor e, ao invés, teria usado essa clara oportunidade para prosseguir a sua “vingança”. É, aliás, de notar que, segundo aquela testemunha, a ofendida contou primeiramente à sua mãe o sucedido, pelo que estaria numa posição privilegiadíssima para agir dessa forma em audiência de julgamento.
Acresce que aquele arguido deu nota de que a sua relação com GG já terminara em Setembro de 2019 e que iniciou o relacionamento com a sua actual companheira em 22 de Dezembro de 2019 (o que esta confirmou), pelo que sempre seria altamente improvável que a mesma apenas tivesse instrumentalizado a sua neta em Junho de 2020 [Foi nesse mês que DD, então em saída precária há cerca de 2 semanas, situou o relato que lhe foi feito pela sua filha, sendo essa a única referência temporal mais ou menos precisa que emergiu da prova produzida], i.e. volvidos mais de 9 meses sobre a sua separação.
Refira-se ainda que, de acordo com a ofendida (e, bem assim, com a sua mãe), esta também relatou ao arguido BB [o que, de acordo com a sua mãe, sucedeu em Junho de 2019, altura em que, como se disse, cessaram os contactos, o que terá sido determinado por esta] o que se passara em casa do avô paterno, o que será atribuível ao facto de aquela manter com aquele uma relação de grande proximidade, vendo-o como um pai. Ora, a existir a dita a intenção vindicativa, não se vislumbra qualquer racionalidade neste facto, já que seria manifestamente implausível que GG tivesse induzido a ofendida a relatar uma situação por si “inventada” a uma pessoa estranha ao seu núcleo familiar.»
Estas judiciosas observações não nos suscitam quaisquer reparos, não se vislumbrando por que razão a sua ex-mulher inventaria uma cabala contra o arguido/recorrente, com o apoio do filho de ambos, a testemunha DD, sendo certo que a menor referiu que já havia contado ao seu padrasto, BB, o que se passara com o avô, o que, como veremos mais adiante, merece credibilidade.
Como observa o tribunal recorrido, o alcoolismo da então mulher do arguido – este disse que, por vezes, a encontrava caída no chão e tinha que a levantar e levar para a cama, de tão alcoolizada ela estava – torna perfeitamente plausível considerar que, apesar de fisicamente na mesma habitação, aquela não estava em condições de se aperceber do que sucedia no outro quarto.
A menor não evidenciou quaisquer indícios de efabulação, tendo mesmo revelado um carácter algo ingénuo e pueril, como o tribunal recorrido sublinhou.
A testemunha DD, filho do recorrente e pai da CC, disse que, no decurso de uma “precária” (a testemunha cumpria pena de prisão), em que conviveu mais com a menor - não teve a oportunidade, segundo relatou, de acompanhar o crescimento da filha, mas aproveitou a precária para estar com ela quase todos os dias -, esta contou à avó (mãe da testemunha) e depois contou-lhe a si “que o meu pai e o companheiro da mãe lhe tinham feito mal” “e eu fui fazer queixa à esquadra”; “fizeram-lhe mal”, “que o meu pai tinha feito várias coisas com ela”, “que o meu pai virou-a de barriga para baixo”, confirmando que a menor contou que o avô lhe tinha posto o pénis no ânus e na vagina, e que tal aconteceu mais de uma vez. BB “fez coisas com ela”, “mas não me disse onde foi”, que a “andava a apalpar constantemente”. A testemunha relatou que a menor lhe contou o que se passara “a chorar”, “não estava bem”, “estava meio coisa da cabeça”.
Decidiu, então, antes de apresentar queixa, falar nesse mesmo dia com a mãe da CC e o companheiro desta para os confrontar com o que a menor contara.
A CC, perante a mãe, BB e um irmão da testemunha, confirmou ser verdade o que contara.
Na ocasião, BB confirmou que já sabia da situação com o avô da CC.
Durante a conversa com a mãe da menor e BB, o irmão da testemunha que também esteve presente sugeriu que, para simplificar as coisas, a CC exemplificasse apalpando “os sítios onde foi apalpada”, o que a menor fez, ao que a mãe da menor “vira-se e diz que apalpar, isso não tem nada de mal”.
A testemunha foi confrontada com passagens do seu depoimento prestado em inquérito, ao abrigo do disposto no artigo 356.º, n.º 2, al b) e n.º 5, do C.P.P., o que, a nosso ver, em nada altera o juízo de credibilidade sobre o seu testemunho.
A mãe da menor, testemunha HH, revelou alguma ambivalência no seu depoimento.
Por um lado, foi notório o empenho em defender o seu companheiro, BB (também tratado como “BB…..”), em relação ao qual disse não acreditar que tivesse feito algum mal à menor: ele “sempre tratou a minha filha como trata os três filhos dele”, “nunca lhe deixou faltar nada”, “eu não acredito mesmo”, “ele é contra isso”.
É nesse contexto, de defesa intransigente do companheiro, que a testemunha, que diz que “a minha filha sempre falou comigo de tudo”, referiu que a menor, “além de ser uma miúda fechada, é uma miúda mentirosa, ciumenta”. Depois de dizer que a menor “nunca me mentiu, ou seja, ela nunca me deu mentiras graves”, a testemunha HH exemplifica a conduta da CC com uma situação em que esta chegou a casa com os óculos partidos, dizendo que tinha ido contra um colega e os óculos tinham caído, vindo a mesma CC a confessar a uma professora da escola que tinha mentido, pois tinha sido ela que “amandou os óculos para o chão porque aos colegas estavam a gozar com ela por o pai estar preso”. Noutras situações, a CC teria dito que queria estar na escola com os amigos, mas afinal iria para o parque de ......
A testemunha, depois de afirmar que a sua filha “nunca me deu mentiras graves”, não teve outros exemplos a dar que os referidos para a caracterizar como mentirosa, afirmando mais adiante que a menor não mente “em coisas graves”.
Disse a testemunha HH que estava a chegar a casa quando recebeu uma mensagem da filha a perguntar se podia jantar e dormir na casa do pai. Respondeu que jantar podia, mas dormir não. Eram umas “10 e tal” (da noite) quando recebeu uma telefonema do II, irmão do pai da menor, a dizer que precisava de falar com ela com muita urgência e para levar a identificação, pois tinham de ir à esquadra. A testemunha deslocou-se juntamente com o seu companheiro junto à casa onde estava o pai da CC e estiveram todos a falar na rua. O II (irmão da testemunha DD) disse “o meu pai violou a CC e o BB….. meteu a boca nas mamas da CC e apalpou-lhe o rabo”. A testemunha, referindo-se ao que era imputado ao seu companheiro, respondeu logo “impossível”, “ele sai de manhã e entra à noite”, “as maiores discussões é que ele não pára em casa”.
Referiu a testemunha ter chamado a CC, que começou a chorar. “Perguntei-lhe: CC, isto que eles me estão a dizer, isto é verdade? E ela disse – sim, sim, é verdade”.
Denotando a ambivalência já notada, verificamos que a testemunha, a respeito do que a filha confirmara sobre o avô, questionada sobre a sua reacção, respondeu: “a minha reacção foi uma só, eu acho que nem deveria dizer aqui, mas vou dizê-lo: foi fazer justiça com as minhas mãos, porque além de ser uma criança, é neta e ninguém merece passar por aquilo que a minha filha está a passar.”
Noutro passo, referindo que a CC está nervosa, a testemunha mencionou ter dito à menor que “não tem de se preocupar com nada”, “não precisas de estar assim”, afirmando “ela aqui é uma vítima”, “ela aqui não tem culpa de nada”.
Isto depois de ter manifestado algum tom de censura pelo simples facto de a testemunha DD, quando a menor foi chamada a confirmar o que havia contado, ter abraçado a menor, que estava a chorar, dizendo-lhe “podes falar, podes falar, que ninguém vai-te fazer mal”.
Significativo que a testemunha haja confirmado ter sabido que o seu companheiro já sabia que o avô da CC “havia feito alguma coisa” à menor.
Disse mesmo a testemunha que o seu companheiro, a dada altura, em 2019, lhe disse “atenção à menina com o avô”.
Porém, a testemunha disse nunca ter questionado o seu companheiro sobre o aviso que este lhe fizera - “não costumo questionar as pessoas” -, embora tenha proibido a menor de ir casa do avô.
Não deixa de causar perplexidade que a testemunha, perante tal advertência, não tenha feito quaisquer perguntas.
Mais disse a testemunha que já tinha havido umas conversas “pela rua” de que o recorrente “andava com a minha filha, ou seja, quando a minha filha pedia para lá ir dormir, ele andava com a minha filha em bares, tipo bares/discotecas, que não é apropriado para ela”.
Depois da revelação dos factos, a testemunha nunca quis falar com a menor sobre o assunto: “ela se quiser falar comigo, ela sabe que o pode fazer”.
A testemunha HH, que afirmou “a minha filha sempre falou comigo de tudo”, no entanto nunca tomou a iniciativa de, numa conversa entre mãe e filha, questionar a CC sobre o que se passara, estando esta, aparentemente, mais à vontade para falar/desabafar com uma amiga da família do que com a sua mãe.
Se pensarmos na reacção da testemunha às revelações feitas pela menor, não espanta que esta nada lhe tenha contado.
O que ressalta deste depoimento é a referida ambivalência, mas também contribui para reforçar a credibilidade das declarações da menor que afirmou ter contado a BB o que se passava com o avô.
Realmente, a testemunha DD afirmou que, perante os presentes na supra referida conversa, o referido BB confirmou que já sabia da situação com o avô da CC.
E a mãe da menor acabou por dizer que tomou conhecimento de que o seu companheiro sabia que o avô havia feito alguma coisa à menor, concretizando, até, que BB, já em 2019, a avisara em relação ao recorrente: “atenção à menina com o avô”.
Além de reforçar a credibilidade das declarações da menor, depõe contra a tese de que tudo não passaria de uma cabala congeminada em 2020.
A testemunha HH disse que “a minha filha não fala no avô desde que isto aconteceu” (desde a revelação), “por estranho que pareça” (não se vislumbra a razão da estranheza!).
Quando o companheiro da testemunha a avisou em relação ao recorrente, “proibi logo” que a menor fosse a casa dos avós paternos, mas “decisivo foi quando a minha filha presenciou ele a bater na avó, que eu própria fui falar com a irmã dele, expliquei o caso, a GG estava toda marcada”; “a minha filha deixou completamente de estar com ele”. Segundo a testemunha, quando diz à filha “não quero que faças isso” a CC “não faz”, mas responde-lhe “mãe, também não me deixas fazer nada”. É com base nesta resposta – “não me deixas fazer nada” - que se pretende extrair que a menor quereria continuar a frequentar a casa dos avós paternos.
A testemunha FF, bisavó da menor por ser avó da testemunha HH (um dos factores que dificultou a tomada de declarações para memória futura foi a multiplicação de referências a avós e bisavós, que demandou da Mm.ª Juíza a necessidade de fazer um apanhado para perceber as relações familiares), com quem a CC vive, diz que a menor chora “quando vou ter a minha vida de volta”, “quero a minha vida de volta”. Disse a testemunha “nunca me apercebi de nada”, confirmou que a menor foi dormir algumas vezes a casa do recorrente, recordou que “houve uma altura em que eu achava a minha neta triste” quando regressava da casa dos avós paternos, mas “não, nunca supus”, “longe de mim”, “quando isto veio à baila foi como um balde de água fria”.
A testemunha referiu que a bisneta é “muito fechada”, “é ingénua e infantil” e, quanto a ser mentirosa, disse que “nunca em coisas graves”, apenas em “coisas de garotos”.
A testemunha EE conhece os envolvidos, por serem vizinhos e frequentarem os mesmos sítios: “conhece todos desde sempre”. Prestou um depoimento articulado e claro, não denotando qualquer animosidade contra o recorrente. Disse conhecer a CC desde que esta nasceu e que a menor gosta de falar com ela. Quando se deu o conhecimento dos factos, teve várias conversas com a CC, que caracteriza como sendo “muito fechada”, “muito tímida”, “doce”, “muito envergonhada” e que “acaba sempre por fechar os olhos no chão”. Mencionando que se tratou de “várias conversas”, referiu que a menor começou “por me dar a entender que o avô, tinham dormido na mesma cama e tinham feito algumas coisas”; “que a avó estava alcoolizada”, que o avô “fazia por trás e pela frente”, mas “que não a magoou”, no sentido de que não a penetrou, “que ficava no meio das pernas”, “que lhe pegava na mão para o tocar.” A testemunha disse compreender muito bem a menor “porque passei por uma situação similar no princípio da adolescência”, mas nunca teve a coragem de a denunciar. Quanto ao “BB……” – o referido BB -, a testemunha referiu que a menor lhe disse “que ele não fez nada” e que “fez tipo uma confusão”, “confundiu” o significado das palmadas do BB porque o avô “também lhe fazia” o mesmo. Disse a testemunha, a esse respeito: “E eu sei perfeitamente o que é passar uma adolescência a achar que toda a gente que nos toca nos braços ou em qualquer parte nos quer usar, entendo, também, um bocadinho a associação de ideias da CC”.
As testemunhas indicadas pelo recorrente, KK e LL, foram essencialmente abonatórias. A primeira, com quem o arguido/recorrente viveu maritalmente, classificou a sua relação de “muito boa”, “como marido foi do melhor que tive”, enquanto a segunda, amiga de longa data do recorrente, arrendou-lhe um quarto por três semanas e disse não ter nada a dizer dele e que o mesmo nunca lhe faltou ao respeito.
Tudo analisado, entendemos que o juízo do tribunal colectivo sobre a credibilidade das declarações da menor não merece qualquer censura.
Atente-se que logo na ida à urgência pediátrica do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte – Hospital …. (cfr. fls. 10 – 11 e 78) foi assinalado que a menor verbalizou ter sido vítima de abuso sexual por parte do avô paterno e que, relativamente ao padrasto, teria sido apalpada.
O relatório de exame médico legal (de fls. 242 e ss.) refere a ausência de vestígios de penetração peniana, o que se revela coerente com o teor do relato da menor. Como se diz na motivação da decisão de facto, apesar de esta referir a introdução no ânus, “daquele relato não emerge a existência de dor ou sangramento, pelo que se considerou mais plausível, como se assinala naquele exame, a existência de aproximações superficiais do pénis relativamente àquelas zonas do corpo da ofendida”. O relato da menor, em sede de exame pericial, quanto ao ocorrido, conforma-se, no essencial, ao relatado pela mesma em sede de declarações para memória futura.
Não se identificam razões de incredibilidade subjectiva derivadas de um móbil de ressentimento, inimizade ou outro – influência de terceiros - que possam explicar as queixas da menor, verificando-se que esta relatou os factos ao seu pai e à testemunha EE e, em função das suas declarações para memória futura e do depoimento da mãe da menor, também já havia dado conhecimento dos abusos por parte do avô ao “padrasto” no ano anterior, o que afasta a tese de que tudo não passaria de uma “história” promovida/instigada, em 2020, pela avó paterna.
Compreende-se a posição da menor relativamente ao padrasto: a explicação de que associou os gestos deste – as tais “palmadinhas” - ao que o avô já lhe tinha feito, a prisão do padrasto, a angústia perante a reacção desfavorável e contrária da mãe e o medo de a perder, em conjunto com o sentimento de culpa experienciado pelo facto de BB ter estado sujeito a prisão preventiva.
O tribunal recorrido não deixou de mencionar que o relatório de perícia psicológica de fls. 373 e ss. se revelou inconclusivo quanto à credibilidade do declarado, ao considerar existirem indicadores que apontam para a credibilidade dos relatos e outros que a comprometem. Nesse relatório, assinalam-se características da menor, como medo intenso de separação das figuras significativas, desvalorização das suas próprias capacidades, nível médio-baixo de desenvolvimento, sintomatologia activa na “dimensão eficácia”.
Como se diz na motivação, o resultado inconclusivo parece ter assentado sobretudo na detecção de determinadas inconsistências relativamente ao que terá sido declarado pela menor perante o órgão de polícia criminal incumbido da investigação.
Porém, o tribunal recorrido, na ponderação conjugada de toda a prova, julgou as declarações da menor como fiáveis, convincentes e merecedoras de credibilidade, o que, no nosso entendimento e pelo já exposto, não merece censura.
A imediação, que se traduz no contacto pessoal entre o juiz e os diversos meios de prova, podendo também ser definida como «a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de modo tal que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá que ter como base da sua decisão» (Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra, 1984, Volume I, p. 232), confere ao julgador em 1.ª instância meios de apreciação da prova pessoal de que o tribunal de recurso não dispõe. É essencialmente a esse julgador que compete apreciar a credibilidade das declarações e depoimentos, com fundamento no seu conhecimento das reacções humanas, atendendo a uma vasta multiplicidade de factores: as razões de ciência, a espontaneidade, a linguagem (verbal e não verbal), as hesitações, o tom de voz, as contradições, etc. As razões pelas quais se confere credibilidade a determinadas provas e não a outras dependem desse juízo de valoração realizado pelo juiz de 1.ª instância, com base na imediação, ainda que condicionado pela aplicação das regras da experiência comum.
Quer isto dizer que a atribuição de credibilidade, ou não, a uma fonte de prova testemunhal ou por declarações, tem por base uma valoração do julgador que, enquanto fundada na imediação e na oralidade (nessa medida), o tribunal de recurso, em rigor, só poderá criticar demonstrando que é inadmissível face às regras da experiência comum (cfr. acórdão da Relação do Porto, de 21 de Abril de 2004, Processo: 0314013).
Se relativamente às declarações para memória futura o tribunal de recurso está nas mesmas condições do tribunal de 1.ª instância, não é assim quanto à prova pessoal produzida em audiência de julgamento, em relação à qual, ouvida a gravação dos depoimentos, não se conclui que o tribunal recorrido tenha violado o artigo 127.º do C.P.P., apreciado arbitrariamente a prova e formulado juízos de credibilidade que mereçam qualquer censura.
Ouvida a gravação da prova pessoal, na perspectiva da impugnação ampla, conjugada com a motivação da decisão de facto e demais prova nesta indicada (e não perdendo de vista que o princípio da livre apreciação da prova também se aplica ao tribunal de 2.ª instância), entendemos não haver razões para concluir que o tribunal recorrido tenha apreciado arbitrariamente a prova e que houvesse que decidir de forma diversa.          
Da perspectiva, não já da impugnação ampla, mas antes dos vícios decisórios previtos no artigo 410.º, n.º 2 do C.P.P. – não invocados, mas de conhecimento oficioso -, importa reter que estes são vícios de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, que tornam impossível uma decisão logicamente correcta e conforme à lei, que têm a ver com a perfeição formal da decisão da matéria de facto e cuja verificação há-de, necessariamente, como resulta do preceito, ser evidenciada pelo próprio texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, sem possibilidade de apelo a outros elementos que lhe sejam estranhos, mesmo que constem do processo, sendo os referidos vícios intrínsecos à decisão como peça autónoma.
Verifica-se o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal, podendo fazê-lo, não investigou toda a matéria de facto relevante, acarretando a normal consequência de uma decisão de direito viciada por falta de suficiente base factual, ou seja, os factos dados como provados não permitem, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido à apreciação do julgador. Dito de outra forma, este vício ocorre quando a matéria de facto provada não basta para fundamentar a solução de direito e quando não foi investigada toda a matéria de facto contida no objecto do processo e com relevo para a decisão, cujo apuramento conduziria à solução legal (cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos …, 6.ª ed., 2007, p. 69; Acórdão da Relação de Lisboa, de 11.11.2009, processo 346/08.0ECLSB.L1-3).
Não se deve confundir este vício decisório com a errada subsunção dos factos (devida e totalmente apurados) ao direito, o que consubstancia um caso de erro de julgamento, nem, por outro lado, tal vício se reconduz à discordância sobre a factualidade que o tribunal, apreciando a prova com base nas “regras da experiência” e a sua “livre convicção”, nos termos do artigo 127.º do C.P.P., entendeu dar como provada. A insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão que pertence ao âmbito do princípio de livre apreciação da prova, não é sindicável caso não seja suscitada a impugnação ampla da decisão sobre a matéria de facto.
Quanto à contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea b), consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão. Ocorrerá, por exemplo, quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação da convicção conduz a uma decisão sobre a matéria de facto provada e não provada contrária àquela que foi tomada – e assim é porque, como já se disse, todos os vícios elencados no artigo 410.º, n.º 2, do C.P.P., reportam-se à decisão de facto e consubstanciam anomalias decisórias, ao nível da elaboração da sentença, circunscritas à matéria de facto (cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, ob. cit., pp. 71 a 73).
Finalmente, o vício do erro notório na apreciação da prova, a que se reporta a alínea c) do n.º 2 do artigo 410.º, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se apercebe de que o tribunal, na análise da prova, violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios, verificando-se, igualmente, este vício quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das leges artis. O requisito da notoriedade afere-se, como se referiu, pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum, ao homem médio - ou, talvez melhor dito (se partirmos de um critério menos restritivo, na senda do entendimento do Conselheiro José de Sousa Brito, na declaração de voto no Acórdão n.º 322/93, in www.tribunalconstitucional.pt, ou do entendimento do Acórdão do S.T.J. de 30 de Janeiro de 2002, Proc. n.º 3264/01 - 3.ª Secção, sumariado em SASTJ), ao juiz “normal”, dotado da cultura e experiência que são supostas existir em quem exerce a função de julgar, desde que seja segura a verificação da sua existência -, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente, consistindo, basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, ob. cit., p. 74; Acórdão da R. do Porto de 12/11/2003, Processo 0342994).
In casu, os factos provados são suficientes para suportar a decisão de direito a que se chegou, nas suas diversas vertentes; visionando toda a matéria factual, não se verifica qualquer inconciliabilidade na fundamentação ou entre esta e a decisão; também não se patenteia a existência de erro notório na apreciação da prova, na definição que deixamos supra exposta.
Percorrendo-se o acórdão recorrido, deste não resulta que tenha ficado instalada no espírito dos julgadores, muito pelo contrário, a mais pequena incerteza quanto a qualquer um dos factos que na decisão consideraram provados, ou seja, não se alcança que o tribunal a quo tenha valorado contra o arguido/recorrente qualquer estado de dúvida sobre a existência dos factos, do mesmo modo que também não se infere que o tribunal recorrido, que não teve dúvidas, as devesse ter, em face do que decorre da própria decisão e da prova reapreciada.
3.1.3. Face ao exposto, nos limites da reapreciação da prova, não vislumbramos quaisquer razões para divergir do juízo formulado pelo tribunal recorrido em sede de decisão de facto, pelo que, inexistindo vícios de conhecimento oficioso, deve manter-se toda a factualidade provada e não provada.
3.2. Diz-se no acórdão recorrido:
«Valorando os factos provados, temos que o arguido AA, em três ocasiões e estando desnudado, aproximou o seu pénis do rabo e da vagina (por si desnudados) de uma pessoa que, à data, contava, pelo menos, com 13 anos de idade.
Aquele arguido agiu com o propósito concretizado de satisfazer os seus desejos sexuais com aquela, bem sabendo da sua idade e da inerente falta de discernimento acerca de tais práticas. Agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
Atenta o cariz erógeno das zonas do corpo da ofendida sobre as quais o arguido aproximou o seu pénis erecto (o que denuncia que, para este, tais actuações eram percepcionadas como sexuais e/ou indutoras de prazer sexual), é de concluir, em face das considerações de pendor teórico supra tecidas, que as ditas actuações integram o conceito de acto sexual de relevo.
Verificam-se, por isso, todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime de abuso sexual de crianças, pp. pelo n.° 1 do artigo 171.° do Código Penal.
Verifica-se ainda a agravante prevenida pela alínea a) do n.° 1 do artigo 177.° do Código Penal, já que, como se colhe no ponto n.° 2 do elenco dos factos provados, aquele arguido é avô (logo, parente em segundo grau da linha recta da ofendida).
Em relação a qualquer um destes factos, não se verificam causas de exclusão da ilicitude ou da culpa e inexistem obstáculos à punibilidade.
Temos assim que o arguido AA deve ser punido por 3 crimes de abuso sexual de crianças agravado, pp. pelo n.° 1 do artigo 171.° e pela alínea a) do n.° 1 do artigo 177.°, todos do Código Penal.
Nas ocasiões acima referenciadas agiu com o mesmo propósito delituoso e tudo indica que tenha renovado o seu propósito delituoso.
Daí que, tendo em conta o que resulta do n.° 1 e do n.° 3 do artigo 30.° do mesmo diploma, deva ser punido em concurso real e heterogéneo.
Estando em causa apenas o enquadramento jurídico-criminal dos factos - a realidade histórica mantém-se inalterada - cabe ao tribunal alterar a qualificação jurídica dos mesmos (n.° 3 do artigo 358.° e alínea a) do n.° 3 do artigo 374.°, ambos do Código de Processo Penal), havendo que conceder ao arguido a possibilidade de defesa, sob pena de nulidade da sentença (n.° 1 e n.° 3 do artigo 358.° do Código de Processo Penal e alínea b) do n.° 1 do artigo 379.° do mesmo diploma).
No caso vertente, tendo sido respeitado o contraditório, cumpre proceder à referida alteração da qualificação jurídica destes factos no que toca ao seu enquadramento.
Contudo, não se tendo demonstrado a existência de efectiva penetração peniana, é inviável atribuir a prática do crime a que alude o n.° 2 do artigo 171.° do Código Penal, razão pela qual aquele arguido é absolvido desta imputação.»
Sobre a determinação da pena:
«Ao crime de abuso sexual de crianças agravado corresponde uma moldura entre 1 ano e 4 meses e 10 anos e 8 meses de prisão.
Na definição da pena concreta a aplicar, apela-se, em primeiro lugar, ao critério da culpa do agente (n.° 2 do artigo 40.° e n.° 1 do artigo 71.°, ambos do Código Penal), no preciso sentido que tem enquanto elemento constitutivo do tipo de crime, uma vez que este “(...) é o limite máximo da pena que ao caso deve ser aplicada, sendo em função de considerações de prevenção - geral de reintegração e especial de socialização” - que deve ser determinada, abaixo daquele máximo, a medida final da pena”  .
Por outro lado, paralelamente, consideram-se as exigências preventivas ligadas ao facto (parte final do n.° 1 do artigo 71.° do Código Penal), respeitantes às necessidades de tutela dos bens jurídicos no caso concreto e às expectativas refractárias da comunidade (enquanto fundamento da pena, cfr. n.° 1 do artigo 40.°) e aos pontos de vista de prevenção especial de socialização.
Para o efeito, há que atender às circunstâncias modificativas comuns (i.e. não integrantes do tipo de crime - n.° 2 do artigo 71.° do Código Penal) decorrente do caso dos autos como factores relevantes para a determinação daqueles conceitos.
Assim:
• Atenta a idade da ofendida, a índole das condutas e o seu cariz significativamente intrusivo na intimidade daquela, o grau de ilicitude das condutas referidas nos pontos n.° 7. a 11. (o qual é essencialmente homogéneo) reputa-se como elevado;
• Demonstrou-se que o arguido AA agiu sempre com dolo directo (n.° 1 do artigo 14.° do Código Penal), logo bastante intenso;
• Da história de vida do arguido AA respiga-se o crescimento num ambiente normativo e financeiramente estável, a existência de hábitos de trabalho e a já prolongada abstinência relativamente a consumos abusivos de heroína e cocaína;
• Beneficia de apoio familiar por parte da irmã e companheira e revela capacidades de relacionamento interpessoal, demonstrando uma atitude humilde;
• O arguido AA assume uma atitude crítica e de censura face a crimes de abuso sexual de crianças;
• Em ambiente prisional, o arguido AA apresenta um comportamento de acordo com o normativo institucional. Encontra-se inactivo, apesar de mostrar disponibilidade para integrar um posto ocupacional. Tem acompanhamento na valência de psicologia dos Serviços Clínicos do Estabelecimento Prisional;
• O arguido AA verbaliza a intenção de regressar à casa da companheira, onde residia à data da prisão. No plano profissional, não apresenta projectos definidos, assegurando integração profissional no ramo da .....;
• À data dos factos, não lhe eram conhecidos antecedentes criminais, vindo posteriormente a ser condenado pela prática de crime diverso;
Do ponto de vista de prevenção geral, importa notar que nos deparamos com condutas rejeitadas pela comunidade portuguesa, para a qual as actividades de índole sexual são - e devem ser - reservadas às pessoas que apresentam desenvolvimento físico e psíquico compatível com tais práticas e que dispõem de capacidade para compreender as realidades quotidianas e para se determinarem em função dessa avaliação. Nessa medida, tratando-se de actuações claramente repudiáveis, a tutela das expectativas da comunidade na manutenção da validade do ordenamento jurídico somente ficará assegurada com a imposição ao arguido de penas a fixar aquém dos limites médios das molduras penais abstractas.
Ponderando conjugadamente todos estes elementos, tem-se por ajustado e adequado às circunstâncias do caso concreto a aplicação de penas de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão como forma de sancionar a prática de cada um dos crimes de abuso sexual de crianças agravado, p.p. pelo n.° 1 do artigo 171.° e pela alínea b) do n.° 1 do artigo 177.°, todos do Código Penal.
DETERMINAÇÃO DA PENA DO CONCURSO
Com a fixação desta pena, dá-se cumprimento à exigência de fixação de uma pena unitária conjunta, constante do n.° 1 do artigo 77.° do Código Penal.
A determinação da pena conjunta aplicada exige a ponderação da gravidade dos factos encarados no seu conjunto e da personalidade do agente, sem perder de vista a culpa daquele e as exigências preventivas do facto (cfr. n.° 1 do artigo 77.° do Código Penal), podendo o julgador socorrer-se dos elementos a que se atenderam para a fixação das penas parcelares, conquanto os mesmos sejam agora referidos ao conjunto dos factos e não só em relação a um facto singular .
O limite máximo desta pena é de 10 anos e 6 meses e o limite mínimo é de 3 anos e 6 meses (cfr. n.° 2 do artigo 77.° do mesmo diploma).
A culpa revelada pelo arguido AA é elevada, a prevenção geral positiva requer, pelos motivos já expostos, que se fixe a pena bem acima dos limites mínimos e as exigências de prevenção especial sensíveis no caso concreto demandam que a pena seja fixada em medida algo afastada desses limites, de modo a que aquele arguido efectivamente interiorize a censura inerente à sua conduta, adquira plena consciência da gravidade dos seus actos e reflicta sobre a sua danosidade.
Da análise global dos factos pelos quais o arguido vai condenado ressalta uma imagem de saliente gravidade. Com efeito, o agente, aproveitando-se da pernoita da sua neta na casa que habitava, actuou sempre com dolo directo e sem se preocupar com as repercussões da sua conduta no seu bem-estar físico e moral, pelas quais revelou intenso desprezo.
Há, todavia, que ponderar que as circunstâncias que rodearam o cometimento dos crimes e que transparecem dos autos evidenciam que se trataram de ocorrências isoladas na vida do arguido, não lhe sendo conhecidos antecedentes criminais com significativa relevância.
O arguido beneficia de apoio familiar, possui hábitos de trabalho (aliás, tudo leva a crer que os factos ocorreram num ambiente de desocupação laboral) e revela possuir uma consciencialização crítica relativamente a este tipo de crimes.
Desse modo, tem-se por ajustada e proporcional à factualidade dos autos a fixação da pena do concurso de crimes em 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão.»
Alega o recorrente que a medida da pena “é exagerada e que a mesma deverá diminuir com a correspondente suspensão da pena, mesmo que seja com regime de prova ou através de sistema eletrónica de vigilância”.
A determinação da pena envolve diversos tipos de operações, resultando do preceituado no artigo 40.º do Código Penal que as finalidades das penas reconduzem-se à protecção de bens jurídicos (prevenção geral) e à reintegração do agente na sociedade (prevenção especial).
Hoje não se aceita que o procedimento de determinação da pena seja atribuído à discricionariedade não vinculada do juiz ou à sua “arte de julgar”. No âmbito das molduras legais predeterminadas pelo legislador, cabe ao juiz encontrar a medida da pena de acordo com critérios legais, ou seja, de forma juridicamente vinculada, o que se traduz numa autêntica aplicação do direito (cfr., com interesse, Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime, Editorial Notícias, 1993, pp. 194 e seguintes).
Tal não significa que, dentro dos parâmetros definidos pela culpa e pela forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, se chegue com precisão matemática à determinação de um quantum exacto de pena.
O juiz começa por determinar a moldura penal abstracta e, dentro dessa moldura, determina depois a medida concreta da pena que vai aplicar, para finalmente escolher a espécie da pena que efectivamente deve ser cumprida, tendo em vista as penas de substituição que a lei prevê.
No caso concreto, a moldura abstracta aplicável a cada crime é a indicada no acórdão recorrido, não se verificando quaisquer circunstâncias modificativas que alterem tal moldura legal.
Realmente, só em situações excepcionais e por força de circunstâncias que atenuassem acentuadamente a culpa, a ilicitude ou a necessidade da pena, seria legítimo lançar mão ao instituto da atenuação especial, enquanto válvula de segurança do sistema.
Tais circunstâncias não se verificam, nem sequer o recorrente invoca a sua existência.
Dentro da moldura legal, estabelece o artigo 71.º, n.º 1, do Código Penal, que a determinação da medida da pena é feita «em função da culpa do agente e das exigências de prevenção». O n.º 2 elenca, a título exemplificativo, algumas das circunstâncias, agravantes e atenuantes, a atender na determinação concreta da pena, dispondo o n.º 3 que na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena, o que encontra concretização adjectiva no artigo 375.º, n.º 1, do C.P.P., ao prescrever que a sentença condenatória especifica os fundamentos que presidiram à escolha e à medida da sanção aplicada.
Em termos doutrinais tem-se defendido que as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos e, tanto quanto possível, na reinserção do agente na comunidade e que, neste quadro conceptual, o processo de determinação da pena concreta seguirá a seguinte metodologia: a partir da moldura penal abstracta procurar-se-á encontrar uma sub-moldura para o caso concreto, que terá como limite superior a medida óptima de tutela de bens jurídicos e das expectativas comunitárias e, como limite inferior, o quantum abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar. Dentro dessa moldura de prevenção actuarão, de seguida, as considerações extraídas das exigências de prevenção especial de socialização. Quanto à culpa, compete-lhe estabelecer o limite inultrapassável da medida da pena a estabelecer (cfr. Figueiredo Dias, ob. cit., pp. 227 e segs.).
Na mesma linha, Anabela Miranda Rodrigues, no seu texto O modelo de prevenção na determinação da medida concreta da pena (Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, n.º2, Abril-Junho de 2002, pp. 181 e 182), apresenta três proposições, em jeito de conclusões, da seguinte forma sintética:
Em primeiro lugar, a medida da pena é fornecida pela medida da necessidade de tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais. Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas.
Como refere o S.T.J., em Acórdão de 17 de Abril de 2008, «as circunstâncias e os critérios do artigo 71.º do Código Penal têm a função de fornecer ao juiz módulos de vinculação na escolha da medida da pena; tais elementos e critérios devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (circunstâncias pessoais do agente; a idade, a confissão; o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente» (proc. 08P571; também relativamente à questão da determinação da medida da pena, cfr., entre outros, o Acórdão do S.T.J. de 9 de Março do 2006, in CJSTJ, tomo I, pp. 212 e ss., e o Acórdão do S.T.J., de 29 de Maio de 2008, proc. 08P1145).
Volvendo ao caso concreto, as circunstâncias a valorar na determinação da pena, no quadro da culpa e da prevenção, são as indicadas no acórdão recorrido, constantes da transcrição que antecede.
As exigências de prevenção geral revestem elevada intensidade, porquanto os crimes em causa repugnam fortemente à consciência da comunidade, havendo ainda que ter em atenção o aumento considerável deste tipo de crimes que se vem registando, impondo-se que se desmotivem os demais indivíduos da prática de condutas desta natureza, assim se repondo, também, a confiança na validade da norma e eficácia do sistema jurídico.
O tribunal recorrido elencou, com rigor, os factores relevantes de determinação de cada pena parcelar, sopesando as circunstâncias contra e a favor do recorrente.
Efectuado juízo de ponderação sobre a culpa, como medida superior da pena e considerando as exigências de prevenção e as demais circunstâncias previstas no artigo 71.º, do Código Penal, afigura-se-nos serem adequadas as penas impostas no acórdão recorrido para cada um dos crimes pelos quais o arguido foi condenado.
Estabelece o artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal: “Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa pena única. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”.
Nos termos do n.º 2, a moldura do concurso tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.
O que significa que no caso presente, a moldura de punição do concurso é de 3 (três) anos e 6 (seis) meses a 10 (dez) anos e 6 (seis) meses de prisão.
A medida da pena unitária a atribuir em sede de cúmulo jurídico reveste-se de uma especificidade própria, pois na fixação da pena correspondente ao concurso entra como factor determinante a personalidade do agente enquanto aglutinador da pena aplicável aos vários crimes.
Na consideração dos factos (do conjunto dos factos que integram os crimes em concurso) está ínsita uma avaliação da gravidade da ilicitude global, como se o conjunto de crimes em concurso se ficcionasse como um todo único, globalizado, que deve ter em conta a existência ou não de ligações ou conexões e o tipo de ligação ou conexão que se verifique entre os factos em concurso.
Como refere Cristina Líbano Monteiro, A Pena «Unitária» do Concurso de Crimes, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 16, n.º 1, págs. 151 a 166, o Código rejeita uma visão atomística da pluralidade de crimes e obriga a olhar para o conjunto – para a possível conexão dos factos entre si e para a necessária relação de todo esse bocado de vida criminosa com a personalidade do seu agente, estando em causa a avaliação de uma «unidade relacional de ilícito», portadora de um significado global próprio, a censurar de uma vez só a um mesmo agente.
A pena conjunta tenderá, por conseguinte, a ser uma pena voltada para ajustar a sanção - dentro da moldura formada a partir de concretas penas parcelares – à unidade relacional de ilícito e culpa, fundada na conexão auctoris causa própria do concurso de crimes, tendo presentes, na valoração do ilícito global, os princípios da proporcionalidade, da adequação e proibição do excesso.                
O acórdão recorrido sublinha que, da análise global dos factos pelos quais o arguido vai condenado, ressalta uma imagem de saliente gravidade, pois o agente, aproveitando-se da pernoita da sua neta na casa que habitava, actuou sempre com dolo directo e sem se preocupar com as repercussões da sua conduta no seu bem-estar físico e moral, pelas quais revelou intenso desprezo.
Teve-se em conta, todavia, que se tratou de ocorrências isoladas na vida do arguido, não lhe sendo conhecidos antecedentes criminais com significativa relevância, beneficiando de apoio familar e possuindo hábitos de trabalho.
Ponderada a personalidade do arguido revelada pelos factos em julgamento, a gravidade e natureza dos mesmos, entendeu-se adequada a pena conjunta resultante de cúmulo jurídico de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão.
Consideramos que tal pena conjunta, que fez acrescer ao mínimo da moldura um pouco mais de ¼ da soma das restantes duas penas, é justa e equilibrada, não merecendo qualquer censura.
Assim, conclui-se que o recurso não deve ser provido.
3.3- Uma vez que o arguido decaiu totalmente no recurso que interpôs, é responsável pelo pagamento da taxa de justiça e dos encargos a que a sua actividade deu lugar (artigos 513.º e 514.º do C.P.P., na redacção da Lei n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro, que aprovou o Regulamento das Custas Processuais – R.C.P.).
Tendo em conta a complexidade do processo, julga-se adequado fixar essa taxa em 4 UC (dentro dos limites da Tabela III a que se refere o artigo 8.º, n.º9, do R.C.P.).
*        
III – Dispositivo
Em face do exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal desta Relação em negar provimento ao recurso interposto por AA.
Custas a cargo do recorrente, fixando-se em 4 (quatro) UC a taxa de justiça (artigos 513.º, n.º1 do C.P.P., 8.º, n.º9, do R.C.P. e tabela III anexa a esse Regulamento), sem prejuízo de se poder vir a verificar a condição de que depende a isenção prevista na al. j) do artigo 4.º do RCP.
Dê conhecimento de imediato ao tribunal de 1.ª instância.

Lisboa, 2 de Novembro de 2021
(o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo relator, seu primeiro signatário – artigo 94.º, n.º2, do C.P.P.)
Jorge Gonçalves
Fernando Ventura