Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3901/2006-6
Relator: FERNANDA ISABEL PEREIRA
Descritores: PACTO ATRIBUTIVO DE JURISDIÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/08/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO O PROVIMENTO
Sumário: I - O campo de aplicação das regras de competência internacional estabelecidas no Código de Processo Civil é delimitado negativamente, visto que, face ao estatuído no artigo 8º nº 2 da Constituição, as regras convencionais prevalecem sobre as normas processuais portuguesas, designadamente as reguladoras da competência internacional constantes da lei adjectiva, enquanto vincularem internacionalmente o Estado Português.
II - Para além dos casos em que a competência resulte de outras disposições da Convenção, é competente o tribunal de um Estado Contratante perante o qual o requerido compareça. Esta regra não é aplicável se a comparência tiver como único objectivo arguir a incompetência ou se existir outro tribunal com competência exclusiva, por força do artigo 16º.
III – A leitura e interpretação do art. 18º da Convenção de Lugano não pode deixar de articular-se com as regras processuais vigentes no nosso ordenamento jurídico, designadamente com o facto de a incompetência dever ser arguida no prazo fixado para a contestação, de neste articulado o réu dever concentrar tanto a defesa por impugnação como por excepção e de a falta deste articulado importar a confissão dos factos articulados pelo autor, com as consequências daí advenientes para a sorte da acção (artigos 109º nº 1, 487º nº 1 e 490º nº 2 do Código de Processo Civil).
IV - A circunstância de se tratar de excepção de conhecimento oficioso, por se tratar de matéria sujeita ao regime da incompetência relativa (artigos 108º e 110º do Código de Processo Civil), não altera os dados do problema, pois que não pode deixar de perspectivar-se o eventual insucesso da arguição da excepção em causa e das consequências que daí resultariam para a parte (ré) caso se tivesse limitado a tal arguição e não tivesse deduzido toda a defesa (por excepção e por impugnação) como lhe impunha o nº 1 do artigo 487º do Código de Processo Civil.
F.G.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Relatório:
Radiotelevisão Portuguesa – Serviço Público de Televisão, SA, intentou, no Tribunal Cível da Comarca de Lisboa, a presente acção declarativa de condenação, sob a forma ordinária, contra M, SA, pedindo a condenação desta no pagamento de € 480.216,23, acrescidos de juros vencidos até 10 de Agosto de 2005 e vincendos até pagamento, e de quantia a liquidar, acrescida, igualmente, de juros vencidos e vincendos, com fundamento em que celebrou com a ré, em Setembro de 2001, um contrato de fornecimento da solução ITTCS – um sistema interactivo de conteúdos no serviço de teletexto – e de prestação de serviços relacionados com a exploração dos serviços de telefonemas móveis a publicitar na plataforma de Teletexto da Radiotelevisão Portuguesa, SA, designadamente, gestão de SMS, contrato que a ré incumpriu.
A ré contestou por excepção, invocando a ilegitimidade da autora e a incompetência do tribunal, e por impugnação.
Na réplica a autora respondeu à matéria das excepções, concluindo pela sua improcedência.

Seguidamente, no despacho saneador conheceu-se apenas da incompetência, decidindo-se que o tribunal é incompetente para conhecer da matéria dos autos, por violação do pacto de jurisdição estabelecido no contrato em apreço, absolvendo, em consequência, a ré da instância.

Deste despacho agravou a autora, sustentando na sua alegação a seguinte síntese conclusiva:
1ª A RTP celebrou com a M, SA, sociedade de direito norueguês, um contrato de fornecimento de um sistema denominado ITTCS (Interactive Teletext Content System) – um sistema interactivo de colocação e gestão de conteúdos em serviços de teletexto.
2ª As partes convencionaram um pacto atributivo de jurisdição, nos termos do qual a resolução judicial de um eventual litígio seria dirimido pelo tribunal do domicílio do Réu.
3ª Estando em causa um conflito entre duas sociedades comerciais, uma portuguesa outra norueguesa, são de aplicar ao caso sub judice as normas da Convenção de Lugano, que está em vigor no nosso país desde 1 de Julho de 1992 (Av. n.° 94/92, DR I-A, 10/07/1992).
4ª Esta convenção trata da competência internacional dos tribunais dos Estados contratantes e o reconhecimento e execução das decisões judiciais proferidas nos Estados contratantes da Convenção.
5ª Nos termos do disposto no art. 18.° da Convenção de Lugano é competente o tribunal de um Estado contratante perante o qual o requerido compareça.
6ª A prorrogação tácita de competência do tribunal onde o réu compareça, prevista no já citado art. 18º da Convenção de Lugano, não encontra qualquer referência e consagração no Código Processo Civil português.
7ª Ora, a prorrogação tácita de competência só não é aplicável se a comparência tiver como único objectivo arguir a incompetência ou se existir outro tribunal com competência exclusiva por força do artigo 16.° da mesma convenção.
8ª No caso em apreço, a Agravada foi regularmente citada e compareceu voluntariamente em juízo.
9ª No prazo legal, a Agravada apresentou a sua contestação.
10ª Neste articulado, a Agravada arguiu, em primeiro lugar, a ilegitimidade da Autora, invocou posteriormente a incompetência do tribunal, e defendeu-se ainda por impugnação.
11ª Da análise do articulado apresentado pela Agravada resulta claramente que a sua intenção foi contestar o pedido da Agravante e não apenas arguir a incompetência do tribunal.
12ª Pelo que, por força da prorrogação tácita de competência, o Tribunal a quo tornou-se o tribunal competente para conhecer o mérito da causa.
13ª Assim, o Tribunal a quo errou ao absolver a Agravada da instância, uma vez que da aplicação do art. 18º da Convenção de Lugano ao caso apreço resulta claramente que os tribunais portugueses são os competentes para conhecerem o mérito da causa.
Nestes termos requer-se a revogação da decisão que absolveu a Agravada da instância e a substituição por outra que ordene o prosseguimento dos autos,

Na contra alegação a ré pugnou pela confirmação do despacho recorrido.
Foi proferido despacho tabelar de sustentação.
Foram dispensados os vistos.

2. Fundamentos:
2.1. Para a decisão relevam os seguintes factos:
a) a autora, aqui recorrida, é uma sociedade portuguesa, com sede em Portugal e a ré, ora recorrente, tem sede na Noruega;
b) Em Setembro de 2001 a autora e a ré celebraram um contrato de fornecimento de um sistema denominado ITTCS (Interactive Teletext Content System) – um sistema interactivo de colocação e gestão de conteúdos em serviços de teletexto, cujo teor consta de fls. 25 a 30;
c) na cláusula 18ª do referido contrato as partes convencionaram:
18. Resolução de disputas através da Lei
Qualquer disputa relativa a este contrato deve ser resolvida de modo amigável fora do tribunal. No caso de tal resolução fora do Tribunal não ser possível, será resolvida pelo sistema do tribunal judicial ordinário. Se for feita uma reclamação contra a M pela RTP, the Oslo Byrett (Oslo) é adoptada como o foro legal. Se for feita uma reclamação contra a RTP pela M, a Comarca de Lisboa (Lisboa) é adoptada como o foro legal. O mero facto de uma disputa entrar no sistema judicial não exonera as partes do cumprimento de obrigações e suas responsabilidades, conforme declarado e acordado neste contrato.”;

2.2. Tal como emerge das conclusões da recorrente, as quais delimitam objectivamente o recurso, a única questão a decidir consiste em saber se o tribunal recorrido é ou não detentor de competência internacional para conhecer da acção.
Aos tribunais portugueses cabe aferir da sua própria competência internacional e, bem assim, da dos tribunais estrangeiros com que se relacionam as questões levantadas, de acordo com as regras de competência internacional directa consagradas nos artigos 61º, 65º, 65-A e 99º do Código de Processo Civil e indirecta estabelecida no artigo 1096º al. c) do mesmo compêndio adjectivo.
Dispõe o artigo 99º do Código de Processo Civil que as partes podem convencionar qual a jurisdição competente para dirimir um litígio determinado, ou os litígios eventualmente decorrentes de certa relação jurídica, contanto que a relação controvertida tenha conexão com mais de uma ordem jurídica (nº 1), exigindo, para que “a eleição do foro” seja válida, a verificação cumulativa dos requisitos nele enunciados (nº 3).
Os artigos 99º e 100º do Código de Processo Civil regulam, assim, “… o princípio da liberdade contratual enquanto factor de atribuição de competência directa – prevendo, o primeiro, os pactos de jurisdição, através dos quais as partes convencionam sobre a jurisdição nacional competente para apreciar um litígio que apresente elementos de conexão com mais de uma ordem jurídica”(1).
O campo de aplicação das regras de competência internacional estabelecidas no Código de Processo Civil é, porém, delimitado negativamente, visto que, face ao estatuído no artigo 8º nº 2 da Constituição, as regras convencionais prevalecem sobre as normas processuais portuguesas, designadamente as reguladoras da competência internacional constantes da lei adjectiva, enquanto vincularem internacionalmente o Estado Português.
Nesta acção está em causa um litígio privado internacional derivado de alegado incumprimento de um contrato celebrado entre duas sociedades comerciais com sede em dois Estados subscritores da Convenção de Lugano(2), a qual passou a vigorar na ordem interna portuguesa em 1 de Julho de 1992 e tem aplicação ao caso visto que o Estado onde está sedeada a ré, a Noruega, não pertence à União Europeia, em cujo seio vigora o Regulamento44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000(3), obrigatório em todos os seus Estados membros.
Estabelece o artigo 17º da Convenção de Lugano, a qual, pelas razões expressas, prevalece sobre as regras dos artigos 65º, 65º-A e 99º do Código de Processo Civil, que “Se as partes, das quais pelo menos uma se encontre domiciliada no território de um Estado Contratante, tiverem convencionado que um tribunal ou os tribunais de um Estado Contratante têm competência para decidir quaisquer litígios que tenham surgido ou que possam surgir de uma determinada relação jurídica, esse tribunal ou esses tribunais terão competência exclusiva” (nº 1).
Este normativo, idêntico ao que dispõe o artigo 23º do Regulamento44/2001, confere exclusividade ao foro eleito pelas partes, “…assim se evitando qualquer ambiguidade no domínio da competência judiciária, fixada pelas leis judiciárias internas das jurisdições envolvidas – ambiguidade que as partes quiseram afastar, dizendo expressamente, qual é o tribunal que julgará os eventuais conflitos…”(4) emergentes do contrato que celebraram e no qual inseriram, dentro do princípio da autonomia da vontade que preside à formação dos contratos, a cláusula em que elegeram, numa convergência de vontades, o foro competente.
Observados os requisitos substanciais e formais exigidos pelo referido artigo 17º da Convenção de Lugano para o pacto atributivo de jurisdição, que não foram postos em causa nestes autos por qualquer das partes, não se descortina fundamento para afastar a competência do foro que escolheram através da cláusula de eleição e segundo a qual os litígios emergentes do contrato seriam dirimidos no tribunal judicial de Oslo ou no de Lisboa consoante fosse a ré M, SA, ou a RTP a ser demandada.
Posto que se trata de uma acção que versa sobre direitos disponíveis e que não se verifica qualquer das situações em que ocorre limitação da possibilidade de celebração de pactos atributivos de jurisdição, como sucede quando se trata de contratos de trabalho, de seguros e de consumo (artigos 5º, 12º e 13º), nem de caso abrangido por competência judiciária exclusiva definida na Convenção (artigo 16º) e, por isso, subtraída à autonomia das partes, deve respeitar-se o pacto atributivo de jurisdição celebrado entre a recorrente e a recorrida corporizado na cláusula 18ª do contrato que firmaram(5).
E conferindo o artigo 17º nº 1 da Convenção a natureza de competência exclusiva àquela que decorre do pacto atributivo de jurisdição validamente celebrado, como sucede no caso vertente, não cabe aqui aplicar a extensão de competência prevista no artigo 18º.
Aliás, sempre se propenderia para entender que a circunstância de a recorrente ter deduzido na contestação matéria de excepção e de impugnação que vai além da arguição da incompetência não equivale a comparência para efeitos de extensão de competência tal como o artigo 18º a configura.
Na verdade, dispõe este normativo o seguinte: “Para além dos casos em que a competência resulte de outras disposições da presente Convenção, é competente o tribunal de um Estado Contratante perante o qual o requerido compareça. Esta regra não é aplicável se a comparência tiver como único objectivo arguir a incompetência ou se existir outro tribunal com competência exclusiva, por força do artigo 16º”
A sua leitura e interpretação não pode deixar de articular-se com as regras processuais vigentes no nosso ordenamento jurídico, designadamente com o facto de a incompetência dever ser arguida no prazo fixado para a contestação, de neste articulado o réu dever concentrar tanto a defesa por impugnação como por excepção e de a falta deste articulado importar a confissão dos factos articulados pelo autor, com as consequências daí advenientes para a sorte da acção (artigos 109º nº 1, 487º nº 1 e 490º nº 2 do Código de Processo Civil).
E a circunstância de se tratar de excepção de conhecimento oficioso, por se tratar de matéria sujeita ao regime da incompetência relativa (artigos 108º e 110º do Código de Processo Civil), não altera os dados do problema, pois que não pode deixar de perspectivar-se o eventual insucesso da arguição da excepção em causa e das consequências que daí resultariam para a parte (ré) caso se tivesse limitado a tal arguição e não tivesse deduzido toda a defesa (por excepção e por impugnação) como lhe impunha o nº 1 do artigo 487º do Código de Processo Civil.

Improcedem, assim, as conclusões da alegação da recorrente, merecendo o despacho recorrido inteira confirmação.

3. Decisão:
Pelo exposto, acorda-se em negar provimento ao agravo e, consequentemente, confirmar o despacho recorrido.
Custas pela agravante.
8 de Junho de 2006
(Fernanda Isabel Pereira)
(Maria Manuela Gomes)
(Olindo dos Santos Geraldes)
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1 - Lebre de Freitas, João redinha e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, vol. 1º, Coimbra Editora, 1999, pág. 178.
2 - Convenção Relativa à Competência Judiciária e à Execução de decisões em Matéria Civil e Comercial, celebrada em Lugano em 16 de Setembro de 1988, aprovada, para ratificação, pela Resolução da Assembleia da República nº 33/91, publicada no DR I Série, de 30 de Outubro, e ratificada pelo Decreto do Presidente da República nº 51/91, de 30 de Outubro.
3 - J.O.C. nº L12, de 16 de Janeiro de 2001.
4 - Cfr. Ac. do STJ de 16.12.2004, in www. Dgsi.pt/jstj.
5 - Vide citado Ac. do STJ de 16.12.2004 e Acs. do mesmo STJ de 16.02.2006, in www.dgsi.pt/jstj, e de 06.04.2006, Proc. 4379-7ª (Relator: Cons. Araújo Barros).