Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
586/15.5TDLSB-L.L1-9
Relator: FILIPA COSTA LOURENÇO
Descritores: PRIMEIRO INTERROGATÓRIO JUDICIAL
INSTRUÇÃO CRIMINAL
RECUSA DE JUÍZ
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/02/2017
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Texto Integral: S
Meio Processual: PEDIDO DE RECUSA
Decisão: INDEFERIDO
Sumário: I- O n.º 1 do artigo 43.º do C.P.P. determina que a intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade. Se não for contestada a imparcialidade pessoal dos juízes nem indicados com precisão factos verificáveis que autorizem a dela suspeitar, não é caso de pedido de escusa ou de recusa, pois que “a imparcialidade do tribunal é uma exigência que resulta da Constituição da República e direito a que uma causa seja decidida por um tribunal imparcial está expressamente consagrado na Convenção Europeia dos Direitos do Homem” (art.º 62.º, § 1.°);

II- No incidente de recusa de juiz, é imperativo cruzar a matéria de facto, ou seja, estabelecer os factos invocados como fundamento da recusa, com a matéria de direito, que consiste na qualificação daqueles factos como estando investidos de um motivo sério, grave e adequado a gerar desconfiança sobre a intervenção do juiz no processo;

III- Não basta um puro convencimento subjectivo por parte de um dos sujeitos processuais ou do próprio juiz para que tenhamos por verificada a suspeição. E também não basta a constatação de qualquer motivo gerador de desconfiança sobre a imparcialidade do juiz, sendo necessário que o motivo seja grave e sério;

IV-“ Ab initio”, diremos que, no exercício das funções de Juiz de Instrução Criminal, conforme agora delineado na lei orgânica (e já antes), que, em rigor, os impedimentos, e fundamentos de recusa constantes dos artigos 40º e 43º nº 2 do CPP, são de descartar, não se aplicando ao caso em apreço, salvo se concretamente existir um risco de ser considerada suspeita, por existir motivo sério e grave para gerar desconfiança ( que não aconteceu no caso dos autos), o que não sucede quando um Juiz de Instrução Criminal, no decurso do inquérito vem aplicando medidas de coacção ao arguido, que vão desde a prisão preventiva, OPHVE e depois apresentações periódicas e outras proibições, e que, sendo subsequentemente requerida a abertura de instrução, o processo lhe é distribuído.
(elaborado pela relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência, na 9.ª Secção Criminal de Lisboa

I.Relatório

O arguido E..., devidamente identificado nos autos, veio deduzir incidente de recusa, nos termos do disposto nos artigos 40ºal. a), 43º nº 1 e 2, 44º e 45º nº1 al. a) do CPP, relativamente à Juíza de Direito C..., alegando em suma que esta foi quem no decurso do inquérito praticou actos da exclusiva competência jurisdicionais, como o primeiro interrogatório do arguido onde lhe foi aplicada a medida de coacção de prisão preventiva e depois a de OPHVE e que, tendo chegado ao fim o inquérito foi deduzida a acusação pública.

Após foi requerida a abertura da instrução, estando a Srª Juíza a exercer funções na Comarca de Lisboa-Lisboa-Instância cenral-1ª secção ins. Criminal-J3, tendo-lhe sido distribuído a instrução a que respeitavam os actos que anteriormente tinha praticado no âmbito do inquérito relativos ao arguido.

Nestes termos em síntese, o arguido aduz que a Srª Juíza já tinha anteriormente formulado em concreto uns juízos expressos nas decisões que anteriormente proferiu aquando da aplicação das medidas de coacção ao arguido e relativamente a este aquando da sua aplicação, pelo que a actividade cognitiva da Mª Juíza durante o inquérito atingiu uma elevada intensidade, justificadora do receio, à luz do critério de um cidadão médio, de que a sua intervenção não esteja condicionada por intervenções anteriores do processo. No entanto é de inteira justiça salientar que o arguido expressamente referiu no ponto 5. do seu incidente, que “ Importa salientar que não está aqui em causa, de modo algum a pessoa da senhora juíza na sua elevada e reconhecida capacidade e qualidades pessoais e profissionais”.         

Existe ainda nos autos um despacho judicial datado de 8.03.2017, onde é mais uma vez alterada a medida de coacção aplicada ao arguido pela Srª Juiz visada com o presente incidente sendo este restituído á liberdade, mediante apresentações periódicas e proibição do arguido se ausentar do território nacional ( vide folhas 75 e 75v. destes autos).

A Srª Juíza nos termos legais a folhas 6551 do processo principal e 80 destes autos, proferiu despacho, onde deu cumprimento ao disposto no artigo 45º nº3 do CPP, sintetizando não assistir razão ao arguido, por entender não ser aplicável “ in casu”, o artº 40º do CPP à fase da instrução.

O processo seguiu os seus termos legais.

 II.  Fundamentação

 Colhidos os vistos cumpre decidir.

 Compulsados os autos verifica-se que:

                              

O n.º 1 do artigo 43.º do CPP determina que a intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

 Se não for contestada a imparcialidade pessoal dos juízes nem indicados com precisão factos verificáveis que autorizem a dela suspeitar, não é caso de pedido de escusa ou de recusa, pois que “a imparcialidade do tribunal é uma exigência que resulta da Constituição da República e direito a que uma causa seja decidida por um tribunal imparcial está expressamente consagrado na Convenção Europeia dos Direitos do Homem” (art.º 62.º, § 1.°) (v. Ac. do STJ de 06.11.96, in CJ - Acs. do STJ, ano IV, 3, 1996, 187 e segs.).

  Na verdade, é intenção do legislador de não cair em excesso de garantismo em matéria de imparcialidade da jurisdição deduzida da muito acentuada restrição dos impedimentos até no que toca a parentesco e afinidade, por exemplo - cfr. o art. 39.°, n.°. 1 a) e b) do CPP".

 O excesso de garantismo conduziria a que qualquer cidadão que quisesse afastar o juiz da sua função em determinado processo e em determinado tribunal bastava-lhe questionar a justiça administrada nesse tribunal.

 Relativamente ao julgador: "Não se trata de confessar uma fraqueza, a impossibilidade de vencer ou recalcar questões pessoais, ou de fazer justiça, contra eventuais interesses próprios, mas de admitir ou não admitir o risco do não reconhecimento público da sua imparcialidade pelos motivos que constituem fundamento da suspeição..." (Cavaleiro Ferreira, Curso de Processo penal, 1, 237-239).

 Como é obvio e a jurisprudência tem assinalado, a seriedade e a gravidade do motivo causador do sentimento de desconfiança sobre a imparcialidade do juiz só são susceptíveis de conduzir à recusa ou escusa do juiz quando objectivamente consideradas. Não basta um puro convencimento subjectivo por parte de um dos sujeitos processuais ou do próprio juiz para que tenhamos por verificada a suspeição. E também não basta a constatação de qualquer motivo gerador de desconfiança sobre a imparcialidade do juiz sendo necessário que o motivo seja grave e sério (Ac. Rel. Coimbra, de 96.7.10, CJ 4/96-62).

 “Embora nesta matéria as aparências possam revestir-se de alguma importância, entrando em linha de conta com a óptica do acusado, sem todavia desempenhar um papel decisivo, o elemento determinante consiste em saber se as apreensões do interessado podem considerar-se objectivamente justificadas”. (Ac. STJ de 96.11.6, CJ 3/96-187)

 “O simples receio ou temor de que o juiz no seu subconsciente já tenha formulado um juízo sobre o thema decidendum, não pode servir de fundamento para a escusa/recusa deste. Há que demonstrar e provar elementos concretos que constituam motivo de especial gravidade” (Ac. Rel. Coimbra, de 9.2.12.2, CJ 5/92-92).

 A imparcialidade é um dever ínsito na função e na obrigação de julgar.

 As suspeitas de imparcialidade hão-de vir de outrem que não do próprio. Hão-de ser outros a colocar em dúvida a imparcialidade do juiz, ou há-de existir a possibilidade de isso suceder, para que este peça a sua escusa e quando isso ocorra os motivos haverão de ter os requisitos de gravidade e seriedade que já se mencionaram.

Dispõe então o artigo 43º., nºs 1, 2 e 4, do CPP:

“1 - A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

2- Pode constituir fundamento de recusa, nos termos do n.º1, a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artigo 40º…”.

Por sua vez, prescreve o artigo 45º, nº.1, al. a), do mesmo diploma legal, que o requerimento de recusa ou o pedido de escusa devem ser apresentados, juntamente com os elementos em que se fundamentam, perante o tribunal imediatamente superior.

No âmbito da jurisdição penal, o legislador, escrupuloso no respeito pelos direitos dos arguidos, consagrou, como princípio inalienável, constitucionalmente consagrado (art. 32º, nº 9 da Constituição da República Portuguesa), o do juiz natural, pressupondo tal princípio que intervém no processo o juiz que o deva ser segundo as regras de competência legalmente estabelecidas para o efeito.

Contudo, perante a possibilidade de ocorrência, em concreto, de efeitos perversos do princípio do juiz natural, estabeleceu o sistema o seu afastamento em casos-limite, ou seja, unicamente quando se evidenciem outros princípios ou regras que o ponham em causa, como sucede, a título de exemplo, quando o juiz natural não oferece garantias de imparcialidade e isenção no exercício do seu múnus.

Subjacente ao instituto em análise encontra-se a premente necessidade de preservar, até ao possível, a dignidade profissional do magistrado visado, e, igualmente, por decorrência lógica, a imagem da justiça em geral, no significado que a envolve e deve revesti-la, constituindo uma garantia essencial para o cidadão que, inserido num estado de direito democrático como o nosso, submeta a um tribunal a apreciação da sua causa.

Como decorre do teor literal do artigo 43º, nº1 do CPP, o juiz pode ser recusado ou pedir escusa quando a sua intervenção correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

Analisada a imparcialidade do juiz nas diferentes perspectivas observadas do mundo exterior, surpreendem-se dois modos distintos de a abordar e compreender:

- No plano subjectivo, a imparcialidade tem a ver com a posição pessoal do juiz, o que ele pensa no seu foro íntimo perante um determinado acontecimento da vida real e se, internamente, tem algum motivo para o favorecimento, de certo sujeito processual em detrimento de outro.

Deste ponto de vista subjectivo impõe-se, em regra, a demonstração da predisposição do julgador para favorecer ou desfavorecer um interessado na decisão, e, por isso, presume-se a imparcialidade até prova em contrário.

- Porém, para se afirmar a ausência de qualquer preconceito em relação ao thema decidendum, ou às pessoas afectadas pela decisão, não basta a visão subjectiva, sendo também imprescindível, como tem sido realçado pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, relativamente à imparcialidade garantida no art. 6º., §1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, uma apreciação objectiva, alicerçada em garantias bastantes de a intervenção do juiz não gerar qualquer dúvida legítima.

Neste plano objectivo, e como bem se escreve no Ac. do STJ de 13-4-2005 (pr. 05P1138 disponível em www.dgsi.pt/jstj), “intervêm, por regra, considerações de carácter orgânico e funcional (vd., por ex., a não cumulabilidade de funções em fases distintas de um mesmo processo), mas também todas as posições com relevância estrutural ou externa, que de um ponto de vista do destinatário da decisão possam fazer suscitar dúvidas, provocando o receio, objectivamente justificado, quanto ao risco da existência de algum elemento, prejuízo ou preconceito que possa ser negativamente considerado contra si. Mas devem ser igualmente consideradas outras posições relativas que possam, por si mesmas e independentemente do plano subjectivo do foro interior do juiz, fazer suscitar dúvidas, receio ou apreensão, razoavelmente fundadas pelo lado relevante das aparências, sobre a imparcialidade do juiz; a construção conceptual da imparcialidade objectiva está em concordância com a concepção moderna da função de julgar e com o reforço, nas sociedades democráticas de direito, da legitimidade interna e externa do juiz”.

Ainda nesta perspectiva objectiva, e para salientar a sua importância, refere Cavaleiro Ferreira (in “Curso de Processo Penal”, reimpressão da Universidade Católica, 1981, vol. I, pág. 237) o facto de não importar apenas que o Juiz permaneça, na realidade das coisas, imparcial, interessando “sobretudo considerar se em relação com o processo poderá ser reputado imparcial, em razão dos fundamentos de suspeição verificados”.

O motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador, há-de resultar da valoração objectiva das concretas circunstâncias invocadas, a partir do senso e experiência do homem médio pressuposto pelo direito.

Como se salienta no citado Ac. do STJ de 13-4-2005, “a gravidade e a seriedade do motivo hão-de revelar-se, assim, por modo prospectivo e externo, e de tal sorte que um interessado - ou, mais rigorosamente, um homem médio colocado na posição do destinatário da decisão - possa razoavelmente pensar que a massa crítica das posições relativas do magistrado e da conformação concreta da situação, vista pelo lado do processo (intervenções anteriores), ou pelo lado dos sujeitos, seja de molde a suscitar dúvidas ou apreensões quanto à existência de algum prejuízo ou preconceito do juiz sobre a matéria da causa ou sobre a posição do destinatário da decisão”.

Revertendo ao presente caso, resulta evidente que tal não sucede e depois de analisados exaustivamente estes autos.

A tal acresce, ademais, simples interpretações de cariz meramente subjectivista jamais poderão, por si só, justificar qualquer recusa.

É que no incidente de recusa de juiz cruzam-se a matéria de facto (estabelecer os factos invocados como fundamento da recusa) e a matéria de direito (qualificação daqueles factos como motivo sério e grave e adequado a gerar desconfiança sobre a intervenção do juiz no processo), coisa que não aconteceu na recusa apresentada nestes autos pelo arguido.

É que, como alerta Maia Gonçalves (Código de Processo Penal anotado, 9ª edição, pág. 163), “os motivos de suspeição são menos nítidos do que as causas de impedimento, podendo ser, por isso, fraudulentamente invocados para afastar o juiz”.

Por isso se justifica que haja uma especial exigência quanto à objectiva gravidade da invocada causa de suspeição, pois, de outro modo, estava facilmente encontrado o meio de contornar o princípio do juiz natural.

Importa ter presente, também, que o princípio do juiz natural não se esgota na sua dimensão garantística, constituindo ainda factor de segurança e certeza do ponto de vista da organização judiciária e da equidade entre juízes, pelo que a exigência de que o motivo invocado seja sério e grave traduz igualmente a excepcionalidade da concessão de recusa ou escusa.

Daí que, uma vez não vir invocado qualquer fundamento legítimo (a tanto não servindo naturalmente uma qualquer interpretação deturpada da realidade, in casu do constante de um despacho, neste caso de despachos relativos a medidas de coacção que privaram o arguido da sua liberdade, com base em indícios da pratica de determinados crimes, que, “ de per si”, venham condicionar a Srª Juiz a quem foi distribuída a instrução deste mesmo arguido, que foi a mesma, quem teve intervenção naqueles actos jurisdicionais praticados no âmbito do inquérito) se imponha concluir de imediato pela falência do requerimento em análise, o qual não pode deixar de considerar-se manifestamente infundado (art. 45º, nº7 CPP).

 Como é obvio e a jurisprudência tem assinalado, a seriedade e a gravidade do motivo causador do sentimento de desconfiança sobre a imparcialidade do juiz só são susceptíveis de conduzir à recusa ou escusa do juiz quando objectivamente consideradas. Não basta um puro convencimento subjectivo por parte de um dos sujeitos processuais ou do próprio juiz para que tenhamos por verificada a suspeição. E também não basta a constatação de qualquer motivo gerador de desconfiança sobre a imparcialidade do juiz sendo necessário que o motivo seja grave e sério. (Ac. Rel. Coimbra, de 96.7.10, CJ 4/96-62).

 “Embora nesta matéria as aparências possam revestir-se de alguma importância, entrando em linha de conta com a óptica do acusado, sem todavia desempenhar um papel decisivo, o elemento determinante consiste em saber se as apreensões do interessado podem considerar-se objectivamente justificadas”. (Ac. STJ de 96.11.6, CJ 3/96-187).

 “O simples receio ou temor de que o juiz no seu subconsciente já tenha formulado um juízo sobre o thema decidendum, não pode servir de fundamento para a escusa/recusa deste. Há que demonstrar e provar elementos concretos que constituam motivo de especial gravidade” (Ac. Rel. Coimbra, de 92.12.2, CJ 5/92-92), coisa que arguido não fez de forma clara, concreta e palpável.

(vide também o AC da TRE Sr. Juiz Desembargador António Condesso, de 24.01.2017, in www.dgsi.pt)

 A este propósito citamos o Ac. TRL de 11.10.2016, onde se afirma que, ”A conclusão de que os factos referidos no requerimento de recusa de juiz apresentada pelo arguido têm objectiva e persistentemente o intuito de prejudicar o requerente, não pode por si só justificar o requerimento de recusa, visto que, o simples receio ou temor de que o juiz no seu subconsciente já tenha formulado um juízo sobre o thema decidendum, não pode servir de fundamento para a recusa deste. Há que demonstrar e provar elementos concretos que constituam motivo de especial gravidade”.

(vide também acórdãos do TRL, recusa nº 6566/07-9, 9ª secção, recusa nº 9459/04-9, 9ª secção, recusa nº 1795/03-9, 9ª secção e recusa nº 94/07.8TABNV-A.L1 da 9ª secção criminal, relator Sr. Desembargador António Trigo Mesquita)

 Por fim diremos que no exercício das funções de Juiz de Instrução Criminal, conforme agora delineado na lei orgânica (e já antes), que, em rigor, os impedimentos do artº 40º do CPP, são de descartar, não se aplicando ao caso em apreço, pois refere-se claramente à participação de Juiz em Julgamento ou em processo de revisão, e que as hipóteses aventadas pelo arguido e predispostas no artº 43º nº 1 e 2 do CPP, também não se aplicam “in casu”, pois verdadeiramente um inquérito, em que é o seu indiscutível titular, o Ministério Público (artº 263º do CPP), não se pode equiparar á expressão “processo” referida nestas normas, pois num processo e judicial, entenda-se ser esta a interpretação correcta, o seu titular é sempre um Juiz, quando no inquérito, o juiz só é chamado a intervir nos casos expressamente previstos na lei, mais concretamente os previstos nos artigos 268º e 269º do CPP (actos que contendem com os direitos, liberdades e garantias do cidadão, que só podem ser sindicados pelo poder judicial/ vide artº 27º e 28º da C.R.P., pelo que naturalmente não cabe na previsão do nº 1 e 2 do artº 43º do CPP).

No inquérito, que como se disse é titulado pelo MºPº, a este compete-lhe entre o mais:

-Dirigir a fase processual de inquérito, que se destina a recolher prova indiciária da existência de crime e de quem foram os seus autores (é a primeira fase do processo). O Ministério Público procura todas as provas, quer sejam desfavoráveis aos suspeitos, quer lhes sejam favoráveis. Nessa actividade é coadjuvado pelos órgãos de polícia criminal, os quais actuam sob a sua orientação e na sua dependência funcional.

Recebe as denúncias, as queixas e as participações apresentadas pelos cidadãos em geral e, em particular, pelas vítimas de crimes, directamente ou através dos órgãos de polícia criminal.

Requer ao juiz de instrução a aplicação de medidas de coacção aos arguidos, caso se verifiquem em concreto um ou vários perigos, tais como o perigo de fuga, o perigo de perturbação do inquérito, o perigo de continuação da actividade criminal ou o perigo de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas. As medidas de coacção visam impedir que esses perigos se concretizem.

Igualmente não despiciendo será a referência, já por todos consabida que os despachos proferidos pelo MºPº, quer no inquérito, quer noutras sedes (promoção) não são passiveis de recurso judicial (mas só de reclamação hierárquica em certos casos), porque simplesmente a sua estrutura orgânica não o permite, pois é hierarquizada (vide artº 219º nº 2 da CRP, onde se refere que os agentes do MºPº são magistrados responsáveis hierarquicamente subordinados (…), tendo como figura de topo o Procurador Geral da Republica que responde perante o poder executivo, não gozando das prerrogativas constitucionalmente consagradas do poder judicial contidas na Constituição da Republica Portuguesa.

De facto os Tribunais, (note-se que os inquéritos não são sequer tramitados em Tribunais, mas sim em secções que funcionam junto dos tribunais, mas só… e departamentos do Ministério publico, como por exemplo o DIAP) são os únicos órgãos de soberania conforme estatui o artº 110º nº 1 da CRP, e que a eles lhes pertence em exclusivo a função jurisdicional, como um dos poderes do Estado de direito democrático, estando os seus princípios definidos estritamente nos artigos 202º a 218º da C.R.P, enquanto que as funções do MP estão sintetizadas em dois artigos da CRP, o artº 219º e 220º e que em suma lhe compete representar o estado e defender os interesses que a lei determinar (…) entre o mais.

Assim a prolação de decisões judiciais sobre concretos problemas jurídicos devidamente fundamentados no decurso do inquérito, indo contra a pretensão do arguido não podem também constituir fundamento de recusa da Srª Juíza, nos termos do artº 43º nº 1 e 2 do CPP, pois não se vislumbra também, para além do que atrás se exarou, nem sequer uma pálida falta de imparcialidade ou de um comportamento que se pudesse sob qualquer prisma gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade nos termos da norma atrás referida.

Tanto mais, acrescenta-se que a Mº juíza visada no presente incidente, e a arrepio do que refere e pretende o arguido, não está imbuída nem condicionada por despachos jurisdicionais “desfavoráveis” praticados anteriormente por esta, no âmbito do inquérito,

Senão vejamos:

Como claramente decorre dos autos e o arguido certamente ciente disso estará, tendo sido alterada a medida de coacção a que estava sujeito (sendo que antes esteve sujeito a prisão preventiva e medidas adicionais ínsitas no despacho proferido após o primeiro interrogatório judicial, tendo depois tal medida sido alterada, logo substituída, através de despacho proferido em 14.12.2015, por OPHVE, autorizando o arguido a ausentar-se da sua residência por motivos de saúde para comparência em consultório médico ou unidade hospitalar ou para comparência em actos processuais para os quais tenha sido notificado, mediante contacto prévio com o técnico da DGRSP), foi “libertado de todas as amarras”, através do despacho judicial proferido em 8.03.2017, pela Srª Juíza visada no presente incidente, através do qual este ficou sujeito a aguardar os ulteriores termos do processo em liberdade, mediante a obrigação de apresentações periódicas três vezes por semana no OPC da área da sua residência, artº 198º do CPP e na proibição de se ausentar do território nacional, artº 200º nº 1 al b) do CPP, devendo no prazo de 5 dias entregar o seu passaporte, medida a que estará agora sujeito ao que se sabe, pelo que, não faz qualquer sentido o referido pelo arguido no ponto 36 , quando afirma, “ ao aplicar e manter a medida de coacção privativa de liberdade durante 15 meses”, a meritíssima juíza de direito a quo tem já interiorizado a culpabilidade do arguido, tendo uma pré-compreensão do facto que dificilmente dele se afastará.
 Por isso, nesta perspectiva, não há razões para deferir a recusa que surge como manifestamente infundada, e que portanto será de rejeitar.

III. DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em recusar o pedido de recusa formulado pelo arguido E..., contra a Mª Juíza de Direito C...titular, para intervir na instrução em curso nos presentes autos.
 Custas a cargo do arguido fixando-se em 8UC a taxa de justiça nos termos do disposto no artº45º nº7 do C.P.P.

Comunique, de imediato, com cópia ao Tribunal a quo.

                                              

Lisboa, 2 de Novembro de 2017 (processado e integralmente revisto pela Juíza Desembargadora relatora, artº 94ºnº2 do CPP)

Filipa Costa Lourenço

António Trigo Mesquita

Margarida Vieira de Almeida (Juíza Desembargadora) Com declaração de voto: na medida que entendo que o que o legislador pretende em abstracto é que esta fase do processo seja cometida a outro juiz por forma a evitar pré-juizos relativamente à matéria de facto reunida em sede de inquérito.