Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
13580/16.0T8LSB-A.L1-1
Relator: MANUEL RIBEIRO MARQUES
Descritores: GARANTIA BANCÁRIA
AGRUPAMENTO COMPLEMENTAR DE EMPRESAS
PERSONALIDADE JURÍDICA
BOA-FÉ
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/09/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1.– No caso de garantias bancárias “on first demand”, há da parte do garante a obrigação de pagar a quantia estabelecida com base no mero pedido, solicitação ou interpelação do beneficiário, sem que lhe seja permitido invocar qualquer excepção fundada na relação fundamental entre o beneficiário e o seu devedor.

2.– Não obstante a automaticidade da garantia, isentando-se o beneficiário da prova do pressuposto do seu direito, não fica vedada ao garante a possibilidade de recusar a soma objecto da garantia em caso de possuir prova líquida de “fraude” ou de “abuso de direito” do beneficiário, para além da hipótese de extinção da garantia por cumprimento ou outra causa similar (como, por exemplo, a dação em cumprimento e a compensação), resolução ou caducidade.

3.– A disponibilidade, pelo garante, de prova líquida da fraude ou do abuso deve ser aferida por referência ao momento em que é solicitado o pagamento.

4.– O ACE tem personalidade jurídica própria, que não se confunde com a dos seus mandatários/representantes ou das empresas componentes.

5.– Do simples facto do ACE beneficiário das garantias bancárias integrar as sociedades ordenadoras não deriva que estas venham a beneficiar com o accionamento das garantias, por falta de prova de que os valores solicitados pela exequente à executada/garante excedem o montante necessário à reparação dos danos ocorridos na obra executada pela ordenante.

6.– Ainda que os valores das garantias excedessem aquele custo e viessem a integrar os lucros do ACE não se vislumbra que tal ofendesse de forma clamorosa os limites impostos pela boa fé.
Decisão Texto Parcial: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa.


I.– A C., executada na execução que lhe move L. ACE, veio deduzir embargos de executado, por apenso aos autos de execução para pagamento de quantia certa proposta por esta.

Alegou, em síntese, que as garantias bancárias dadas à execução (na que constitui o doc. n.º 1 as ordenantes são a N., SA e a M., SA e na que constitui o doc. n.º 2, a ordenante é a N.) não constituem titulo executivo suficiente, porquanto, a estipulação constante da garantia de que o banco garante o exacto e pontual cumprimento de todas as obrigações evidencia a exigência de prova de incumprimento das ordenadoras das garantias, prova a cargo da exequente e que deriva do próprio texto das garantias e que pode ser sempre invocada pelo banco independentemente da caracterização da natureza da garantia bancária, ou seja, independentemente de se considerar ou não uma garantia bancária automática, pois o garante pode sempre opor ao beneficiário as excepções que resultem directamente do contrato de garantia; que a exequente tinha que fazer prova complementar do título relativamente aos factos que integram o não cumprimento ou cumprimento defeituoso, o que não resulta dos documentos juntos na execução, sendo insuficiente a mera alegação do incumprimento; que, relativamente à ordenante M. S.A., não é imputado pela exequente qualquer incumprimento; que não aceita que as garantias sejam automáticas; que, ainda que assim não seja, sempre o garante pode recusar o incumprimento em caso de exercício abusivo do direito, má-fé ou fraude; que ignora se houve ou não incumprimento mas apurou que o alegado incumprimento resulta de um sinistro que se encontra coberto pelo seguro da obra de que é beneficiária a exequente, os seguros foram accionados e a seguradora declinou o pagamento; que, segundo se apurou, o sinistro resulta de erros e omissões da fiscalização da obra que pertence à exequente, pelo que, atenta a boa-fé o accionamento da garantia; que a exequente poderá vir a receber da seguradora caso demonstre, afinal, que o sinistro está coberto pelas apólices, pelo que, a exequente pretende receber duas vezes; que as ordenantes e a exequente integram o mesmo ACE como agrupadas do mesmo e com membros comuns nos respectivos órgãos sociais; que quer a exequente quer as ordenantes das garantias têm interesse na execução das garantias, o que também não é aceitável face ao princípio da boa-fé; que a ordenante N. instaurou processo especial de revitalização que não foi aceite pelo tribunal pelo que se aguarda a declaração de insolvência, sendo diminutas as possibilidades da C. reaver em direito de regresso quantias que tenha que pagar.

A embargante requereu ainda a intervenção acessória das sociedades N., SA e M., SA.

A exequente contestou refutando a inexistência de título executivo, defendendo que as garantias têm a natureza de garantais bancárias à primeira solicitação como se extrai dos seus textos, pelo que, a exequente está dispensada de qualquer prova do incumprimento, e a executada não pode recusar o seu cumprimento; que contrariamente ao que diz a executada as garantias não exigem incumprimento de ambas as ordenantes; que quanto à imputada violação do princípio da boa-fé, diz que nos termos estabelecidos nos contratos celebrados entre a exequente e as ordenantes das garantias, foi afastada a responsabilidade da exequente por actos ou omissões imputáveis à subconcessionária, ao concedente, aos projectistas ou quaisquer terceiros; que a executada sabia que a exequente era um agrupamento complementar de empresas e quem eram as sociedades agrupadas e conhecia os contratos celebrados, pelo que, é abuso de direito invocar factos que conhecia para se furtar ao cumprimento.

A exequente opôs-se ainda à admissibilidade da intervenção acessória das chamadas.

Posteriormente foi proferido despacho de não admissão do chamamento.

De seguida, dispensada a realização da audiência prévia, foi proferido despacho saneador-sentença, no qual se decidiu julgar improcedentes os embargos.

Inconformada, a embargante interpôs recurso da sentença, tendo nas suas alegações formulado as seguintes conclusões:
(…)
Termos em que deverá a douta sentença recorrida ser revogada, ordenando-se o prosseguimento dos embargos.

A apelada apresentou contra-alegações, nas quais formulou as seguintes conclusões:
(…)
Nestes termos e nos mais de Direito, e com o Douto suprimento deste Venerando Tribunal, deve o recurso ser julgado improcedente e, consequentemente, ser confirmada a douta sentença recorrida.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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II.– As questões a decidir resumem-se, essencialmente, em apurar:
- se nos encontramos em presença garantia autónoma à 1ª solicitação;
- se se encontra provado nos autos que, na data da outorga das garantias bancárias, a ora apelante (garante) tinha conhecimento que as ordenantes integravam o ACE (exequente) beneficiário das garantias e se este última actua com abuso de direito.
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III.– Factos considerados provados em 1ª instância:
1.– A execução, instaurada em 23.5.2016, tem como títulos executivos os documentos epigrafados “Termo de Garantia Bancária n.º9140037660593 (M.) e n.º9140037605293 (N.)”, junto a fls.17 da execução, e “Termo de Garantia Bancária PT00359140037605293”, junto a fls.12 da execução, o primeiro datado de 13.8.2010 e o segundo datado de 23.8.2010, e emitidos pelo banco executado, cujo teor integral se dá aqui por reproduzido. (provado em face do requerimento e títulos executivos)
2.– No requerimento executivo a exequente invoca que “A N. incumpriu um conjunto de obrigações que assumiu perante o exequente quer no Acordo de Divisão de Trabalhos, quer no Aditamento ao Acordo de Divisão de Trabalhos.” (provado em face do requerimento executivo)
3.– Consta do termo de Garantia Bancária n.º9140037660593 (M.) e n.º9140037605293 (N.) o seguinte “Pelo presente instrumento a C., S.A., (…) presta, em nome e a pedido da M. S.A., (…) e N. S.A., (…), (doravante “garantidas”) uma garantia bancária autónoma à primeira solicitação a favor da L., ACE, nos seguintes termos e condições: 1. O Banco garante o exacto e pontual cumprimento de todas e quaisquer obrigações assumidas pelas garantidas no Acordo de Divisão de Trabalhos celebrado entre o L. e as empresas agrupadas em 22 de Outubro de 2009, o qual tem por objecto a divisão entre as empresas agrupadas da organização e execução dos trabalhos de construção dos lanços identificados como (…) no âmbito da Subconcessão do Litoral Oeste. 2. Sem prejuízo do disposto no número 10 infra, a presente garantia é prestada pelo valor global máximo de EUR: 6.464.497,27 (…). 3. A presente garantia poderá ser accionada, por uma ou mais vezes, mediante simples comunicação discriminativa dos montantes a liquidar, dirigida pelo L. ao banco através de carta ou telefax. 4. A presente garantia bancária é totalmente autónoma, incondicional e incondicionada, pelo que o Banco se obriga a pagar quaisquer montantes que lhe sejam reclamados pelo L. nos termos do número anterior, à primeira solicitação e no prazo máximo de 5 dias uteis contados da data de recepção da referida comunicação. 5. O Banco aceita de forma definitiva, irrevogável e incondicional, que não tem direito a apreciar, em nenhuma circunstância, a legalidade ou a justeza dos pedidos apresentados pelo L., renunciando expressamente e sem reservas ao benefício da prévia excussão dos bens das garantidas e ao direito de contestar a validade dos pedidos efectuados e dos pagamentos que realizar ao abrigo desta garantia bancária. 6. O Banco não poderá (i) opor ao L. qualquer meio de defesa ou excepção que as garantidas pudessem invocar perante o L. e, bem assim, (ii) operar qualquer compensação com créditos que eventualmente detenha sobre o L.. 7. O banco procederá ao pagamento das quantias que lhe forem solicitadas independentemente de autorização ou concordância das garantidas. 8. A presente garantia é válida até à data em que o L. confirme por escrito ao banco ter ocorrido a recepção definitiva dos trabalhos assumidos pelas garantidas (…). 9. A presente garantia não poderá, em qualquer circunstância ser alterada, revogada, ou denunciada sem o acordo prévio e por escrito do L.. (…).” (provado em face da garantia/ título executivo)
4.– Consta do termo de Garantia Bancária PT00359140037605293 o seguinte “Pelo presente instrumento a C., S.A., (…) presta, em nome e a pedido da N. S.A., (…), (doravante “garantida”) uma garantia bancária autónoma à primeira solicitação a favor da L., ACE, nos seguintes termos e condições: 1. O Banco garante o exacto e pontual cumprimento de todas e quaisquer obrigações assumidas pela garantida no Aditamento ao Acordo de Divisão de Trabalhos celebrado entre esta, o L. e as empresas agrupadas em 27 de Abril de 2010, o qual tem por objecto a atribuição às agrupadas La e N. da execução dos trabalhos de construção do Lote 5 de acordo com o Modelo de Divisão de Trabalhos em Lotes. 2. Sem prejuízo do disposto no número 10 infra, a presente garantia é prestada pelo valor global máximo de EUR: 111.112,96 (…). 3. A presente garantia poderá ser accionada, por uma ou mais vezes, mediante simples comunicação discriminativa dos montantes a liquidar, dirigida pelo L. ao banco através de carta ou telefax. 4. A presente garantia bancária é totalmente autónoma, incondicional e incondicionada, pelo que o Banco se obriga a pagar quaisquer montantes que lhe sejam reclamados pelo L. nos termos do número anterior, à primeira solicitação e no prazo máximo de 5 dias úteis contados da data de recepção da referida comunicação. 5. O Banco aceita de forma definitiva, irrevogável e incondicional, que não tem direito a apreciar, em nenhuma circunstância, a legalidade ou a justeza dos pedidos apresentados pelo L., renunciando expressamente e sem reservas ao benefício da prévia excussão dos bens da garantida e ao direito de contestar a validade dos pedidos efectuados e dos pagamentos que realizar ao abrigo desta garantia bancária. 6. O Banco não poderá (i) opor ao L. qualquer meio de defesa ou excepção que a garantida pudesse invocar perante o L. e, bem assim, (ii) operar qualquer compensação com créditos que eventualmente detenha sobre o L.. 7. O banco procederá ao pagamento das quantias que lhe forem solicitadas independentemente de autorização ou concordância da garantida. 8. A presente garantia é válida até à data em que o L. confirme por escrito ao banco ter ocorrido a recepção definitiva dos trabalhos assumidos pela garantida (…). 9. A presente garantia não poderá, em qualquer circunstância ser alterada, revogada, ou denunciada sem o acordo prévio e por escrito do L.. (…).” (provado em face da garantia/ título executivo)
5.– A exequente, por carta de 9 de Março de 2016, cuja cópia está a fls.16 da execução, solicitou à executada, a entrega no prazo de cinco dias úteis, do valor de €748.159,04 relativamente à garantia 9140037605293 e do valor de €62.063,11 relativamente à garantia 9140037764493. (provado em face da carta)
6.– Nessa carta consta, ainda, “Não obstante repetidamente solicitado através das nossas cartas (…) de 16.4.2015, (…) de 5.6.2015 e (…) 9.9.2015, relativas à garantia bancária n.º9140037605293, e (…) de 11.12.2015 relativa à garantia bancária n.º9140037764493 (…) e apesar de todas as diligências posteriormente desenvolvidas continua este ACE sem receber quaisquer montantes ao abrigo das referidas garantias bancárias. (…). Acresce que, situações supervenientes traduzidas em novos incumprimentos por parte da agrupada N. das suas obrigações de garantia da empreitada e a sua substituição pelo L., no cumprimento de tais obrigações, agravaram as responsabilidades desta agrupada, verificando a necessidade de actualizar os montantes accionados. (…)”(provado em face da carta)
7.– A N. S.A. enviou à C., datada de 13 de Agosto de 2014, a carta cuja cópia esta a fls.33, onde, entre o mais se lê. “Tem a N. necessidade de executar um conjunto de reparações na obra de subconcessão do Litoral Centro que se encontra em período de garantia. Os trabalhos são consequência, na sua grande maioria, de acidentes geotécnicos que ocorreram nos últimos invernos e encontram-se os respectivos custos reclamados no âmbito dos seguros de obra (CAR e OAR) de que o L. é tomador. Apresenta-se a descriminação dos trabalhos a executar e a estimativa de custos das subempreitadas das diversas especialidades: (…). A aceitação da companhia de seguros dos montantes reclamados e o adiantamento do valor dos trabalhos de subempreitada, de modo a permitir executar as reparações durante o presente verão ainda não se concretizou e a N., no passado mês de Julho foi intimada pelo L. a iniciar os trabalhos durante o mês de agosto, sob pena deste proceder a tais reparações e accionar a garantia bancária n.º9140037605293 da C., para se ressarcir dos respectivos custos. Assim de modo a evitar o accionamento da garantia (…) vimos solicitar à C. um financiamento de 467 000,00€, a ser amortizado por fundos dos pagamentos provenientes das indemnizações dos seguros de obra em condições a acordar com o L.. (…).” (provado em face da carta)
8.– A executada enviou à exequente a carta datada de 7.12.2015, a fls.34, da qual fez constar, entre o mais, o seguinte: “(…) Assunto: Garantia bancária n.º9140037660593/9140037605293 (…). Na sequência das comunicações anteriores trocadas (…) praz-nos transmitir o seguinte: (…) 3. Com efeito, independentemente da natureza e força vinculativa das obrigações a que esta instituição está adstrita, não é aceitável, a qualquer título, pretender que a C. proceda ao cumprimento, sem o devido esclarecimento do conteúdo e limites das obrigações. (…) 4.Ora é do conhecimento de V. Exas. que, pela emissão do Termo de Garantia…a C. garantiu, perante V. Exas “o exacto e pontual cumprimento de todas as obrigações assumidas pelas garantidas no Acordo de Divisão de Trabalhos (…). 5. No acordo … pode ler-se …que o exacto e pontual cumprimento das obrigações assumidas pelas agrupadas no âmbito da divisão de trabalhos será assegurado pela prestação de uma garantia bancária. Os trabalhos de construção deverão, contudo, ser também cobertos por seguros que cubram, entre outros, “perdas e danos acidentais nos trabalhos provisórios ou definitivos”. 6. Conforme resulta da carta enviada pela N. à C. em 23 de julho de 2015, as obras, cuja alegada inexecução pela N. (e, eventualmente, pela M.) terá despoletado o accionamento da garantia bancária por Vs. Exas, resultarão da verificação de sinistros cobertos pelos seguros de obra, dos quais V. Exas, serão tomadores. 7. Quer na correspondência recebida por esta instituição, com referência a este assunto, quer nas reuniões havidas recentemente, resulta claro que V. Exas, sustentam que vos assiste o direito de a receber das seguradoras as quantias indemnizatórias correspondentes ao custo das obras realizadas por V. Exas. em substituição da N., na sequência da ocorrência dos sinistros e que tais quantias ascendem ao montante global de Euros €809.376,00. 8. Considerando-se Vs. Exas convictamente investidos no direito de receber das seguradoras (…) considera-se, também esta instituição convictamente investida no direito de sustar o pagamento pretendido por V. Exas., enquanto o assunto não se mostrar devidamente esclarecido, sob pena de, em manifesta iniquidade e abuso de direito, Vs. Exas poderem vir a estar colocados na posição de duas vezes receberem o mesmo crédito indemnizatório situação não querida nem consentida pelo ordenamento jurídico. 9. Acresce que, sendo a N. e a MSF, Ordenadoras da Garantia bancária em causa e simultaneamente agrupadas no ACE, mal se compreenderia também, que esta instituição tivesse que pagar ao ACE, pagando em parte, indirectamente, às referidas agrupadas e ordenadoras, sem sequer poder fazer operar a devida compensação legal. 10. (…) gostaríamos de pedir a vossa melhor colaboração para que, no comum interesse das partes, se possam esclarecer e estabelecer devidamente o exacto conteúdo e limites das obrigações que, em concreto, possam subsistir para esta instituição e, nesse sentido, gostaríamos de pedir que nos enviassem o seguinte: a) cópia do dossiê relativo às seguradoras a que acima nos reportamos com o vosso entendimento quanto ao recebimento e seus termos dos valores que Vs. Exs. Peticionam aquelas seguradoras; b) copia do contrato de agrupamento L.; c) copia do contrato de empreitada; d) quaisquer outros elementos que entendam possam contribuir para os esclarecimentos por nós pretendidos.” (provado em face da carta)
9.–A executada enviou à exequente a carta cuja cópia está a fls.35, datada de 15.2.2016, da qual consta o seguinte: “(…) Acusamos a recepção das vossas cartas de 11 de dezembro de 2015 e 13 de janeiro de 2016. (…) vem a C. informar que continuará a aguardar, para melhor análise deste assunto, a documentação solicitada na nossa pretérita comunicação escrita. Enquanto não nos forem facultados os elementos já anteriormente solicitados, a presente instituição, fiadora da N. e da M., sustará o pagamento de quaisquer valores solicitados, ao abrigo de tal fiança por V. Exas. (…)”(provado em face da carta)
10.–A executada enviou à exequente a carta cuja cópia está a fls.35 verso, datada de 22.6.2016, da qual consta o seguinte: “(…) Acusamos a recepção da V/carta de 16 de março de 2016 (…). Analisada a documentação enviada, entende a C. existir fundamento para continuar, por ora, a suster a decisão de não honrar a garantia bancária …, porquanto, salvo, outros elementos que V. Exas, nos queiram enviar, para melhor análise, a carta da Companhia de Seguros da Fidelidade, datada de 1 de outubro de 2015, entende ser de afastar a responsabilidade da Ordenadora, pelo que, concomitantemente resultará afastada a nossa responsabilidade de garante. (…)”(provado em face da carta)
11.–A executada enviou à N. a carta cuja cópia está a fls.36 verso, datada de 17.6.2016, da qual consta o seguinte: “(…) No pretérito dia 23 de Fevereiro de 2016 a beneficiária …L., ACE, accionou a garantia …reclamando o pagamento da quantia de €57.463,11 (…). Em 23 de Março de 2016 foi-vos enviada carta …a solicitar indicação de situações que obstem o pagamento (total ou parcial) do montante (…). Solicitamos resposta urgente (…).” (provado em face da carta, não impugnada)
12.–A companhia de Seguros Fidelidade enviou à exequente a carta cuja cópia está a fls.32, datada de 6.10.2015, da qual consta o seguinte: “(…) No âmbito da V/apólice …de responsabilidade civil projectista foi-nos apresentada a participação cautelar na sequência do sinistro ocorrido a 19.1.2013 … correspondente ao assentamento do corpo do aterro, com deslizamento de taludes, escorregamento e ruptura da faixa de rodagem e berma e, ainda, do caminho municipal contíguo. Da análise aos documentos que constituem o nosso processo de sinistro, entre eles os documentos contratuais com que funciona a presente apólice, verificamos que a entidade lesada e a entidade lesante (o próprio segurado) são a mesma, pelo que, não estamos perante uma situação que faça accionar as garantias da presente apólice. (…)”(provado em face da carta)
13.–A exequente, a M. S.A., a N. e outras, acordaram como consta do documento denominado “Acordo de Divisão de Trabalho”, datado de 22.10.2009, cuja copia está a fls.19 verso e seguintes, por via do qual regularam os termos da divisão dos trabalhos decorrentes da celebração pelo ACE e sociedades agrupadas de um contrato de empreitada com a A., S.A., subconcessionária da obra, para concepção, projecto expropriações e construção de lanços de auto-estrada no distrito de Leiria. (provado em face do documento)
14.– A Cláusula 17.ª, do acordo acima referido dispõe o seguinte: “12. O ACE não será, em circunstância alguma, responsabilizado pelas Agrupadas por quaisquer factos ou omissões imputáveis à subconcessionária, ao Concedente, aos Projectistas ou quaisquer terceiros (BEG, BAER, etc.) ou às restantes Agrupadas. 13. As Agrupadas não poderão exigir responsabilidades ao ACE por qualquer dano, prejuízo, encargo, ou trabalho a mais ou a menos resultantes de erro, omissão ou qualquer outro facto relativo aos projectos ou por atrasos nas expropriações. 14. Cada Agrupada é directamente responsável perante a Subconcessionária ou outros terceiros e substituirá e compensará o ACE no caso em que a este seja assacada pela Subconcessionária ou outros terceiros qualquer responsabilidade por erro ou omissão de projecto relativo aos trabalhos que lhes tenham sido distribuídos nos termos do presente Acordo. 15. Do mesmo modo, as Agrupadas ficam desde já subrogadas nos direitos que eventualmente assistam ao ACE perante os projectistas ou quaisquer terceiros por qualquer erro ou omissão dos projectos ou por qualquer outro facto danoso relativos aos trabalhos que lhes tenham sido distribuídos nos termos do presente Acordo.” (provado em face do documento)
15.– O Exequente é um agrupamento complementar de empresas composto pelas seguintes sociedades: M., S.A., S., S.A., La, S.A. e N., S.A. (provado em face da certidão da matricula junta a fls.52)
16.– Pelo menos em parte o incumprimento imputado à ordenante N. resulta da verificação de um sinistro - isto é uma ocorrência na obra – que respeita aos processos de sinistro com os nºs 131357200162 e 131292020007 da seguradora, e ocorreu em 19.01.2013 no ID nº 125/126 (Km 43 + 300 a 43 + 650 do ICS, correspondente ao assentamento do corpo do aterro, com deslizamento de taludes, escorregamento e rutura da faixa de rodagem e berma, e ainda do caminho municipal contíguo. (provado por não impugnado, não se encontrado em oposição ao alegado no requerimento executivo, sendo que se deu como provado que é em parte em face da alegação do art.79.º da contestação)
17.– Sinistros esses que determinaram a realização de obras por parte da aqui exequente para reparação dessas ocorrências. (provado por não impugnado, não se encontrado em oposição ao alegado no requerimento executivo)
18.– A exequente accionou seguros de obra de que é beneficiária na seguradora Fidelidade Mundial. (provado por não impugnado, não se encontrado em oposição ao alegado no requerimento executivo)
19.– Seguradora esta que, todavia, declinou o pagamento. (provado por não impugnado, não se encontrado em oposição ao alegado no requerimento executivo)
20. O presidente do conselho de administração da exequente é J., designado pela agrupada M. S.A., e a agrupada N. designou para esse conselho de administração, como vogal, G. (provado em face da certidão da matricula junta a fls.52)
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IV.– Da questão de Direito:

Quanto à qualificação das garantias prestadas:

Na sentença qualificaram-se as garantias prestadas como garantias bancárias autónomas, à 1ª solicitação.

Na apelação a embargante questiona essa qualificação, sustentando que (conclusões 2ª a 14ª), como deriva do próprio texto das garantias (ponto n.º 1), é exigível a prova (e não apenas a mera alegação) de incumprimento das ordenadoras das garantias, exigência essa a cargo da beneficiária aqui exequente/apelada e que a mesma não fez essa prova complementar dos títulos executivos. E, quando o banco refere que “garante o exacto e pontual cumprimento de todas e quaisquer obrigações” está a expressar que apenas tal situação jurídica é garantida, e que consequentemente o accionamento só é correctamente efectivado mediante a apresentação da demonstração de tal situação jurídica.

Conclui, por isso, que a exequente/embargada/apelada não dispõe de título executivo tal como se exige na previsão dos arts. 703º, 713º e 715º todos do CPC, o que acarreta como consequência que os documentos em que se funda a presente execução não têm força executiva, não podendo, portanto, a execução prosseguir, com as legais consequências, tendo a douta sentença assim violado estas sobreditas normas legais.

Vejamos.

Como nos dá conta o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Junho de 2018, Helder Almeida (Relator), citando um estudo de Mónica Jardim: “Existem garantias autónomas simples e garantias autónomas automáticas” –, que “[…] em rigor a automaticidade só introduz alterações na estrutura tradicional da garantia autónoma ao nível da exigibilidade do cumprimento da obrigação do garante de entregar a quantia pecuniária acordada.”
E continua: “Na garantia autónoma simples o beneficiário só o pode exigir desde que prove o facto que é pressuposto da constituição da obrigação (o incumprimento do devedor, o não cumprimento pontual, o cumprimento defeituoso, etc), na garantia autónoma “à primeira solicitação” a quantia acordada é imediatamente exigível com a simples interpelação pelo beneficiário nesse sentido sem que o banco possa pedir qualquer prova”.
Salientando assim que “[…] a garantia autónoma dotada de automaticidade é uma garantia mais eficaz, expedita e segura para o beneficiário e bastante mais operacional para o próprio garante”, adverte qua a mesma também acarreta riscos acrescidos que […] os próprios interessados […] tentam limitar optando pela emissão de garantias automáticas a pedido justificado e a pedido acompanhado de um (ou vários) documentos.” E elucida: “Na primeira é previsto que o pagamento só terá lugar após uma afirmação escrita mais ou menos minuciosa do beneficiário de que a condição prevista no contrato de garantia ocorreu, no entanto o beneficiário nada tem de provar. Na segunda o pedido é acompanhado de um documento que cria a convicção da ocorrência do evento previsto no contrato […].” E mais refere: “Quanto à garantia a pedido acompanhado de documento há que afirmar […] que ela, “embora documental, mantém a característica da autonomia “[…] sem que possam ser opostas excepções derivadas do contrato base).”- acórdão acessível, assim como os demais citados neste acórdão, em www.dgsi.pt.

A automaticidade é pois a característica da garantia bancária autónoma que lhe é atribuída pela inclusão no contrato de garantia da cláusula “a primeira solicitação” (on first demand”, “upon first demand”, “nauf erstes Anfordem”, “à primière demande”; “prima richusta”) pela qual o garante fica obrigado a entregar imediatamente a quantia pecuniária fixada ao primeiro pedido do beneficiário, dispensando-se este de provar, como tem que fazer se esta cláusula não constar do contrato, o incumprimento da obrigação do devedor ou qualquer outro evento que seja o pressuposto da constituição do seu crédito contra o banco – vide Ac. Supremo Tribunal de Justiça, 25 de Novembro de 2014, Fonseca Ramos (Relator).

Na garantia “on first demand”, há da parte do garante a obrigação de pagar a quantia estabelecida com base no mero pedido, solicitação ou interpelação do beneficiário, sem que lhe seja permitido invocar qualquer excepção fundada na relação fundamental entre o beneficiário e o seu devedor.

Como costuma invocar-se na gíria bancária, o carácter autónomo do funcionamento desta garantia significa: «pediu, pagou»; o garante não pode contestar o pagamento que lhe foi exigido (Pedro Romano Martinez e Pedro Fuseta da Ponte; Garantias do Cumprimento, 5ª edição, pag. 136).

Porém, como nos dão conta estes autores (pag. 137), neste tipo de garantia, “ainda é usual distinguir-se entre a garantia de pagamento com ou sem justificação documental. No primeiro caso, o credor tem de justificar documentalmente (divergindo o tipo de documentação em função do conteúdo da garantia) o pedido feito ao garante, não perdendo, por isso, as características de autonomia e automaticidade, pois que o pagamento continua a depender apenas da interpelação acompanhada da documentação prevista, sem que o ao beneficiário possam ser opostas as excepções concernentes ao contrato subjacente”. No mesmo sentido vide Meneses Leitão, Garantia das Obrigações, 2ª edição, pag. 144.

Como quer que seja, independentemente de qualquer classificação quanto à sua natureza, é no instrumento da garantia que constam as precisas condições para a respectiva execução e que importa ter em consideração, com vista a aquilatar da adequada exigibilidade ou não do cumprimento de tal garantia - vide Pedro Romano Martinez e Pedro Fuseta da Ponte; Garantias do Cumprimento, 5ª edição, pag. 128

Ora, consta no texto das garantias que:
Garantia Bancária n.ºs 9140037660593 (MSF) e 9140037605293 (N.):
“Pelo presente instrumento a C., S.A., (…) presta, em nome e a pedido da M. S.A., (…) e N. S.A., (…), (doravante “garantidas”) uma garantia bancária autónoma à primeira solicitação a favor da L., ACE, nos seguintes termos e condições:
1.- O Banco garante o exacto e pontual cumprimento de todas e quaisquer obrigações assumidas pelas garantidas no Acordo de Divisão de Trabalhos celebrado entre o L. e as empresas agrupadas em 22 de Outubro de 2009, o qual tem por objecto a divisão entre as empresas agrupadas da organização e execução dos trabalhos de construção dos lanços identificados como (…) no âmbito da Subconcessão do Litoral Oeste.
2.- Sem prejuízo do disposto no número 10 infra, a presente garantia é prestada pelo valor global máximo de EUR: 6.464.497,27 (…).
3.- A presente garantia poderá ser accionada, por uma ou mais vezes, mediante simples comunicação discriminativa dos montantes a liquidar, dirigida pelo L. ao banco através de carta ou telefax.
 4.- A presente garantia bancária é totalmente autónoma, incondicional e incondicionada, pelo que o Banco se obriga a pagar quaisquer montantes que lhe sejam reclamados pelo L. nos termos do número anterior, à primeira solicitação e no prazo máximo de 5 dias uteis contados da data de recepção da referida comunicação.
 5.- O Banco aceita de forma definitiva, irrevogável e incondicional, que não tem direito a apreciar, em nenhuma circunstância, a legalidade ou a justeza dos pedidos apresentados pelo L., renunciando expressamente e sem reservas ao benefício da prévia excussão dos bens das garantidas e ao direito de contestar a validade dos pedidos efectuados e dos pagamentos que realizar ao abrigo desta garantia bancária.
6.- O Banco não poderá (i) opor ao L. qualquer meio de defesa ou excepção que as garantidas pudessem invocar perante o L. e, bem assim, (ii) operar qualquer compensação com créditos que eventualmente detenha sobre o L..
7.- O banco procederá ao pagamento das quantias que lhe forem solicitadas independentemente de autorização ou concordância das garantidas.
8.- A presente garantia é válida até à data em que o L. confirme por escrito ao banco ter ocorrido a recepção definitiva dos trabalhos assumidos pelas garantidas (…).
9.- A presente garantia não poderá, em qualquer circunstância ser alterada, revogada, ou denunciada sem o acordo prévio e por escrito do L.. (…).” (provado em face da garantia/ título executivo)

Garantia Bancária nº. PT00359140037605293:
“Pelo presente instrumento a C., S.A., (…) presta, em nome e a pedido da N. S.A., (…), (doravante “garantida”) uma garantia bancária autónoma à primeira solicitação a favor da L., ACE, nos seguintes termos e condições:
1.- O Banco garante o exacto e pontual cumprimento de todas e quaisquer obrigações assumidas pela garantida no Aditamento ao Acordo de Divisão de Trabalhos celebrado entre esta, o L. e as empresas agrupadas em 27 de Abril de 2010, o qual tem por objecto a atribuição às agrupadas Lena e N. da execução dos trabalhos de construção do Lote 5 de acordo com o Modelo de Divisão de Trabalhos em Lotes.
2.- Sem prejuízo do disposto no número 10 infra, a presente garantia é prestada pelo valor global máximo de EUR: 111.112,96 (…).
3.- A presente garantia poderá ser accionada, por uma ou mais vezes, mediante simples comunicação discriminativa dos montantes a liquidar, dirigida pelo L. ao banco através de carta ou telefax.
 4.- A presente garantia bancária é totalmente autónoma, incondicional e incondicionada, pelo que o Banco se obriga a pagar quaisquer montantes que lhe sejam reclamados pelo L. nos termos do número anterior, à primeira solicitação e no prazo máximo de 5 dias uteis contados da data de recepção da referida comunicação.
 5.- O Banco aceita de forma definitiva, irrevogável e incondicional, que não tem direito a apreciar, em nenhuma circunstância, a legalidade ou a justeza dos pedidos apresentados pelo L., renunciando expressamente e sem reservas ao benefício da prévia excussão dos bens da garantida e ao direito de contestar a validade dos pedidos efectuados e dos pagamentos que realizar ao abrigo desta garantia bancária.
 6.- O Banco não poderá (i) opor ao L. qualquer meio de defesa ou excepção que a garantida pudesse invocar perante o L. e, bem assim, (ii) operar qualquer compensação com créditos que eventualmente detenha sobre o L..
7.- O banco procederá ao pagamento das quantias que lhe forem solicitadas independentemente de autorização ou concordância da garantida.
8.- A presente garantia é válida até à data em que o L. confirme por escrito ao banco ter ocorrido a recepção definitiva dos trabalhos assumidos pela garantida (…).
9.- A presente garantia não poderá, em qualquer circunstância ser alterada, revogada, ou denunciada sem o acordo prévio e por escrito do L.. (…).” (provado em face da garantia/ título executivo)
Está, pois, em causa a interpretação das declarações negociais expressas nestes contratos, sendo essa tarefa essencial para determinar o alcance das garantis.
Nos termos do art. 236º do CC, na interpretação dos contratos, prevalece, em regra, "a vontade real do declarante", sempre que for conhecida do declaratário. Faltando esse conhecimento, a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, coL.ado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante.
Nesta sede são atendíveis todos os elementos que um declaratário medianamente instruído, diligente e sagaz, na posição do declaratário efectivo, teria tomado em conta.
Posto isto, ponderando, desde logo, o elemento literal dos documentos em causa, ressalta que o Banco declarou prestar ““uma garantia bancária autónoma à primeira solicitação a favor da L., ACE”; garantir “o exacto e pontual cumprimento de todas e quaisquer obrigações assumidas pela(s) garantida(s) no Acordo/Aditamento de Divisão de Trabalhos” (n.º 1); a “garantia poderá ser accionada, por uma ou mais vezes, mediante simples comunicação discriminativa dos montantes a liquidar, dirigida pelo L. ao banco através de carta ou telefax” (n.º 3); a “garantia bancária é totalmente autónoma, incondicional e incondicionada, pelo que o Banco se obriga a pagar quaisquer montantes que lhe sejam reclamados pelo L. nos termos do número anterior, à primeira solicitação e no prazo máximo de 5 dias uteis contados da data de recepção da referida comunicação (n.º 4); o “Banco aceita de forma definitiva, irrevogável e incondicional, que não tem direito a apreciar, em nenhuma circunstância, a legalidade ou a justeza dos pedidos apresentados pelo L., renunciando expressamente e sem reservas ao benefício da prévia excussão dos bens da garantida e ao direito de contestar a validade dos pedidos efectuados e dos pagamentos que realizar ao abrigo desta garantia bancária” (n.º 5); o “ Banco não poderá (i) opor ao L. qualquer meio de defesa ou excepção que a garantida pudesse invocar perante o L. e, bem assim, (ii) operar qualquer compensação com créditos que eventualmente detenha sobre o L.” (n.º 6).
No n.º 1 das garantias, alude-se, assim, à função das mesmas: garantir o exacto e pontual cumprimento de todas e quaisquer obrigações assumidas pelas garantidas no Acordo/Aditamento de Divisão de Trabalhos celebrado entre a L. e as empresas agrupadas.
Trata-se, pois, de garantias prestadas como caução de uma eventual indemnização derivada de um potencial incumprimento das obrigações assumidas nesse acordo/aditamento.
É esse o sentido dessa cláusula que um declaratário normal lhe daria, não evidenciando a mesma o sentido que lhe é atribuído pela apelante, ao referir que aí se faz uma exigência de prova de incumprimento das ordenadoras das garantias.
Sintomático de tal é o teor da cláusula 3ª, quando na mesma se diz que a “garantia poderá ser accionada, por uma ou mais vezes, mediante simples comunicação discriminativa dos montantes a liquidar, dirigida pelo L. ao banco através de carta ou telefax” (sublinhado nosso)
De resto, o teor das garantias prestadas corresponde à execução do estabelecido no n.º 1, da Cláusula vigésima do Acordo de Divisão de Trabalhos – de cujo conteúdo o Banco tinha conhecimento -, onde se estabeleceu que “por forma a assegurar o exacto e pontual cumprimento das obrigações assumidas pelas Agrupadas e pelo ACE, cada uma das agrupadas garantirá perante o ACE o cabal cumprimento de todas as obrigações que lhe caibam perante este, quer perante a Subconcessionária, quer perante terceiros (…) através da prestação de garantia bancária irrevogável e à primeira solicitação, de instituição bancária de primeira linha a nível nacional, de 5% do valor dos trabalhos que lhe estão confiados”.
Ora, nessa cláusula, à semelhança do estabelecido nas garantias não se estabeleceu a necessidade de demonstração do incumprimento.
Responsabilizou-se ao invés a ora executada C. a pagar à beneficiária, ora exequente, determinadas importâncias, logo que este lhas pedisse por escrito.
Tratam-se, pois, de garantias bancárias na modalidade on first demand, nas quais se não exige a demonstração do incumprimento.
E, como se refere na sentença recorrida: “ (…) se assim é não tinha a exequente que apresentar com as garantias bancárias prova complementar do título. O título executivo apresentado – as garantias bancárias bastam-se a si próprias. Improcede por conseguinte o fundamento de embargos atinente à fata de título ou ausência de prova complementar dele.
Resta ainda dizer que não se exige na garantia bancária em que as ordenantes são as duas empresas N. e M., que qualquer incumprimento que esteja na origem do accionamento das garantias tenha que ser imputável a ambas. Ao invés a garantia abrange a responsabilidade de cada uma das ordenantes, donde pode ser accionada ainda que a exequente apenas a uma impute incumprimento do contrato-base”.
Improcede, deste modo, a 1ª questão suscitada pela apelante, dispondo a exequente de título executivo como se considerou na sentença recorrida.

Quanto à 2ª questão:
Aceita-se que não se mostra provado que, na data da outorga das garantias bancárias, a ora apelante (garante) tivesse conhecimento que as ordenantes integravam o ACE (exequente) beneficiário das garantias.
Esse facto também não se pode inferir dos demais factos provados.
Assiste assim razão à apelante, estando aquele facto sujeito a prova, ainda que, importa dizê-lo, se afigure pouco plausível que um banco, antes de conceder garantias bancárias, ao indagar sobre a capacidade económica das ordenantes, não se inteire do facto destas integrarem um determinado agrupamento interempresarial.
Seja como for, não obstante não se considerar provado aquele facto, tal não importa a revogação da sentença recorrida.
Senão vejamos.
Como a doutrina e a jurisprudência têm vindo a sustentar, não obstante a automaticidade da garantia, isentando-se o beneficiário da prova do pressuposto do seu direito, não fica vedada ao garante a possibilidade de recusar a soma objecto da garantia em caso de “fraude” ou de “abuso de direito” do beneficiário, para além da hipótese de extinção da garantia por cumprimento ou outra causa similar (como, por exemplo, a dação em cumprimento e a compensação), resolução ou caducidade - cfr Pedro Romano Martinez e Pedro Fuseta da Ponte, ob. cit. pags. 145 a 151.
Aceita-se assim a existência de um limite ao modo como há-de processar-se o seu cumprimento e cuja violação implicará um desrespeito aos princípios basilares da ordem jurídica portuguesa – Ac. STJ 6-03-2014, relatado pelo Cons. Silva Gonçalves.
A legitimidade da recusa tem sido defendida designadamente nas seguintes circunstâncias:
- Manifesta má fé ou a má fé patente, isto é, que não oferece a menor dúvida, por decorrer com absoluta segurança de prova documental em poder do ordenante ou do garante;
- Casos de fraude manifesta ou de abuso evidentepor parte do beneficiário;
- Quando o contrato garantido ofender a ordem pública ou os bons costumes;
- Sempre que exista prova irrefutável de que o contrato-base foi cumprido – cfr. Acs. STJ de  5-07-2012, A. Geraldes(relator) e de 27/09/2016, Fernandes do Vale (Relator).
Tem-se, pois, por incontroverso que a autonomia da garantia se não sobrepõe à eventualidade de má fé ou abuso de direito por parte do beneficiário da garantia.
Como em geral resulta dos artigos 762º e 334º do Código Civil, também aqui a actuação das partes se deve pautar pelas regras da boa fé, sendo ilegítimo exercer um direito em manifesto desrespeito pelos “limites impostos pela boa fé, bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito” (artigo 334º).
É claro que esta fraude – que se reconduz à figura do abuso de direito, previsto e sancionado no artigo 334º do Código Civil –, tem de ser evidente, clamorosa e manifesta, de tal forma que ignorá-la, em nome da autonomia da garantia, ofenderia princípios fundamentais da ordem jurídica.
Certo é que, como nos dá conta o Ac. STJ de 21/04/2010 Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (Relatora), “só em casos de “prova líquida” de má fé ou abuso de direito seja atendível a excepção correspondente, sendo tal “prova líquida (…) sobretudo, associada à prova documental”, admitindo-se ainda “a invocabilidade de prova resultante de uma decisão judicial transitada em julgado ou de uma decisão arbitral” (Fátima Gomes, op. cit., págs. 180-181). Galvão Telles exige que a “má fé” seja “patente, não oferecendo a menor dúvida, por decorrer com absoluta segurança de prova documental (…)” (op. cit., pág.s 289-290); Almeida Costa e Pinto Monteiro, op. cit., pág 21, salientam que “não basta a suspeita de fraude ou de abuso para impedir a entrega da garantia, logo que solicitada (…). Só é legítima a recusa de pagamento do Banco se – no momento em que o pagamento da garantia lhe for solicitado – o banco possuir prova inequívoca do abuso ou da fraude manifestas do beneficiário”; Calvão da Silva, op. cit., págs. 342-343 observa que “todas as cautelas são poucas, e por isso se exige ao dador da ordem uma prova líquida, uma prova qualificada, segura e inequívoca da conduta fraudulenta ou abusiva do credor, que a doutrina maioritária requer documental”; Mónica Jardim, op. cit, pág. 293 refere “prova documental de segura e imediata interpretação, pois esta prova satisfaz plenamente a exigência de prova pronta (preconstituída) e líquida (inequívoca)”
A disponibilidade, pelo garante, de prova líquida da fraude ou do abuso deve ser aferida por referência ao momento em que é solicitado o pagamento.
Assim, na linha das considerações exaradas na sentença recorrida, alegando o garante uma situação de abuso de direito há-de estar em condições de oferecer prova líquida, uma prova qualificada, segura e inequívoca da conduta fraudulenta ou abusiva do credor, ou seja, da patente e manifesta falta de direito do ordenante a ser ressarcido.
Vejamos, pois, se a ora apelante fez essa prova.
Nesta sede, invoca a apelante dois fundamentos distintos, a saber: um referente ao seguro e outro referente à circunstância das ordenantes integrarem o ACE exequente.

Quanto à questão do seguro:

Diz a apelante que:
- Na investigação que realizou após o accionamento das garantias bancárias apurou a C. que o alegado incumprimento imputado à ordenante N. resultou da verificação de um sinistro - isto é uma ocorrência na obra que representa a materialização de risco coberto por seguradora – em abstracto coberto pelo seguro da obra, seguro este contratado com a seguradora Fidelidade Mundial, mediante a apólice com o nº 72/9253175 e mediante a apólice destinada à “Construção e Montagem”, seguros estes de que é beneficiária e pessoa segura a aqui exequente, sinistro este que correspondeu ao assentamento do corpo do aterro, com deslizamento de taludes, escorregamento e ruptura da faixa de rodagem e berma, e ainda do caminho municipal contíguo;
- Apurou a seguradora e, também, a aqui apelante, que as obras que tiveram de ser executadas pela aqui apelada L. foram-no na sequência de erros que não resultam de actos ou omissões das ordenantes das garantias, mas ao invés, de erros e omissões respeitantes à própria Direcção/Fiscalização da Obra, que pertence à aqui apelada consoante resulta do Acordo de Divisão de Trabalhos que se juntou sob doc. 1 com os embargos, cfr. cláusula primeira nº 2, cláusula terceira nº 3, cláusula nona, cláusula15ª e cláusula 16ª;
- Foi a exequente/apelada a causadora ou, pelo menos corresponsável, quanto aos erros e omissões de projecto (ou falta dele) que determinaram a ulterior realização de obras, destinadas a corrigi-los;
- Ora, entende a apelante que a L. - ao pretender que o banco garante suporte o respectivo custo das obras (através do accionamento das garantias bancárias) às quais ela própria deu causa por força da verificação de erro de concepção da fundação, inexistência de um projecto específico de estabilidade do aterro, bem como de todos os demais pontos elencados na missiva remetida em 01.10.2015 pela seguradora Fidelidade à L. – está a actuar em violação do princípio da boa fé (conclusões 20ª a 25ª)
- A exigência da prova apta/suficiente para recusar o pagamento por parte do banco é consistente e suficiente com a declaração por parte da seguradora – que peritou o pedido da titular da apólice no sentido de lhe serem pagos os danos causados pelo sinistro e é entidade que nada lucra ou perde com o accionamento das garantias – de que quem foi o responsável do sinistro foi a própria exequente/apelada (conclusão 42ª).

No que respeita à questão do seguro e da possibilidade abstracta de serem pagos os danos por via do seguro, referente ao sinistro ocorrido na obra – deslizamento de taludes, escorregamento e ruptura da faixa de rodagem e berma, e ainda do caminho municipal contíguo - o que resulta dos factos provados é que o seguro foi accionado e a seguradora recusou o pagamento, imputando a responsabilidade pelo sinistro a um erro de concepção e não a um erro de execução da obra (vide doc. de fls. 32 junto aos autos).
Ora, a correspondência trocada entre a seguradora e a ora exequente não consubstancia prova, e muito menos inequívoca, de que tivesse sido esta a dar causa ao sinistro.
E como se salienta na sentença recorrida:
“O facto de existir um seguro que possa cobrir danos resultantes do incumprimento do contrato base da garantia, a menos que tenha já havido pagamento ou – admite-se – esse pagamento esteja eminente, não impede o accionamento da garantia.
Trata-se de accionar títulos de responsabilidade diferentes e com pressupostos diferenciados, pelo que, não havendo pagamento dos danos, não há ressarcimento que impeça o accionamento da garantia.
Se assim não fosse sempre que houvesse seguro, de pouco servia a garantia bancária pois era sempre possível o garante contrapor com a existência de seguro.
Não cremos que assim seja. Admitindo a executada que a seguradora não pagou, não podia por isso recusar o pagamento (…)”.
Em face do que vem alegado e documentos juntos mesmo nos embargos não se dilucida sobre a culpa na ocorrência.
 Não tinha, nem tem a executada qualquer prova líquida da fraude – no caso ser a exequente a culpada do incumprimento – e por decorrência da má-fé da exequente em accionar a garantia, sabido, repete.se que a exequente de facto fez as reparações que se impunham com o inerente custo.
A executada arrima-se à posição da seguradora, sendo que os pressupostos de accionamento e de cobertura do seguro não coincidem com os pressupostos em que se pode afirmar a conduta culposa da exequente causadora do sinistro. E são estes últimos que, com o devido respeito, não se observa qualquer prova líquida da sua verificação.
Nestes termos, concluímos que a executada estava obrigada a pagar no prazo de cinco dias a contar da interpelação, não podendo recusar o pagamento por não se verificar, nuns casos, abuso ou fraude ou comportamento atentatório da boa-fé, e noutro não estar munida de prova clara, inequívoca e contemporânea (por referência ao momento em que devia cumprir) da existência de qualquer fraude ou abuso de direito por parte da beneficiária. Tal conclusão impõe a improcedência dos embargos, também nesta parte”.
De resto, no Acordo de Divisão de Trabalhos estipulou-se que não assiste às Agrupadas (entre elas as ordenantes das garantias) o direito a reclamar por qualquer erro ou omissão dos projectos, nem por qualquer outro facto aos mesmos relativos que não possa ser transferido pelo ACE para a Subconcessionária ou para os Projectistas, não podendo o ACE ser responsabilizado pelas Agrupadas por qualquer dano, prejuízo, encargo ou trabalho a mais ou a menos resultantes de erro, omissão ou qualquer outro facto relativos aos projectos ou quaisquer factos ou omissões imputáveis à Subconcessionária, ao Concedente, aos Projectistas ou a quaisquer terceiros, (cláusulas 6ª e 17ª, n.ºs 12 e 13).
Concluímos assim que a garante não forneceu prova líquida, segura e inequívoca da conduta fraudulenta ou abusiva da exequente (beneficiária das garantias), ou seja, da patente e manifesta falta de direito desta a ser ressarcida.
Desatende-se assim esta questão.

Quanto à questão do ACE:

Na decisão recorrida entendeu-se que:
“Relativamente à existência de membros dos órgãos sociais da exequente indicados pelas garantidas e interesses comuns entre elas e não opostos, afigura-se-nos que também não pode colher a argumentação da executada nem tal facto constitui a exequente em abuso de direito, ou fraude ou atenta a boa-fé. É que tais factos não podem ser desconhecidos da executada desde a data em que anuiu na prestação da garantia.
(…)
A situação jurídica, a composição dos órgãos socias etc. quer da beneficiária quer das garantes podia ter sido analisada pela executada, cabia-lhe tal análise e, por conseguinte, não pode legitimar a recusa de pagamento nem torna a beneficiária actuante de má-fé ao pedir o pagamento”.
Como supra deixámos expresso, não se mostra provado que, na data da outorga das garantias bancárias, a ora apelante (garante) tivesse conhecimento que as ordenantes integravam o ACE (exequente) beneficiário das garantias.
Porém daí não decorre a necessidade de revogar a sentença recorrida e ordenar o prosseguimento dos autos.
Com efeito, a apelante C. fundamenta o abuso de direito na circunstância das ordenantes e da beneficiária (exequente) serem membros do ACE e poderem vir a repartir os lucros decorrentes da execução das garantias.
O ACE tem personalidade jurídica própria, que não se confunde com a dos seus mandatários/representantes ou das empresas componentes, e tem como principal objectivo melhorar as condições de exercício ou de resultado das actividades económicas destas (Bases I-1 e IV da Lei n.º 4/73, de 04.06), podendo ter por fim acessório a realização e partilha de lucros, quando autorizado expressamente pelo contrato constitutivo - art. 1.º do DL 430/73, de 25/08.
Certo é que, mantendo cada membro a sua individualidade, não se vislumbra que não pudesse ser celebrado o contrato de garantia, nem a apelante sustenta tal, limitando-se a dizer que a exequente (beneficiária das garantias) e as próprias ordenantes das garantias possuem interesses não opostos entre si, mas ao invés interligados e condizentes, lucrando ambas com a execução das garantias, pelo simples facto de integrarem o ACE, ao contrário do que sempre sucede nos casos ditos “normais” de accionamento de garantias.
Deste modo, a ora apelante não invocou um qualquer conluio entre as ordenantes e a beneficiária das garantias, mão tão-só que se trata de uma evidente e insofismável situação de conflito de interesses, não sendo aceitável face ao princípio da boa fé e do exercício de direitos dentro do que é admissível no seio do nosso Ordenamento Jurídico.
Afirma, desde logo a apelante um facto que não demonstrou: lucrarem as próprias ordenantes das garantias com o accionamento destas.
Com efeito, do simples facto de integrarem o ACE não deriva que venham a beneficiar com esse accionamento, nem a embargante demonstrou que os valores das garantias excedem o montante necessário à reparação dos danos ocorridos na obra.
E ainda que os valores das garantias excedessem aquele custo e viessem a integrar os lucros do ACE não se vislumbra que tal ofendesse de forma clamorosa os limites impostos pela boa fé.
Não podia por isso a apelante recusar o pagamento das garantias nos termos em que foram pedidos pela ora exequente. De outro modo estar-se-ia a atentar contra a essência das próprias garantias.

Improcede, nestes termos, a apelação.

Sumário:
1. No caso de garantias bancárias “on first demand”, há da parte do garante a obrigação de pagar a quantia estabelecida com base no mero pedido, solicitação ou interpelação do beneficiário, sem que lhe seja permitido invocar qualquer excepção fundada na relação fundamental entre o beneficiário e o seu devedor.
2. Não obstante a automaticidade da garantia, isentando-se o beneficiário da prova do pressuposto do seu direito, não fica vedada ao garante a possibilidade de recusar a soma objecto da garantia em caso de possuir prova líquida de “fraude” ou de “abuso de direito” do beneficiário, para além da hipótese de extinção da garantia por cumprimento ou outra causa similar (como, por exemplo, a dação em cumprimento e a compensação), resolução ou caducidade.
3. A disponibilidade, pelo garante, de prova líquida da fraude ou do abuso deve ser aferida por referência ao momento em que é solicitado o pagamento.
4. O ACE tem personalidade jurídica própria, que não se confunde com a dos seus mandatários/representantes ou das empresas componentes.
5. Do simples facto do ACE beneficiário das garantias bancárias integrar as sociedades ordenadoras não deriva que estas venham a beneficiar com o accionamento das garantias, por falta de prova de que os valores solicitados pela exequente à executada/garante excedem o montante necessário à reparação dos danos ocorridos na obra executada pela ordenante.
6. Ainda que os valores das garantias excedessem aquele custo e viessem a integrar os lucros do ACE não se vislumbra que tal ofendesse de forma clamorosa os limites impostos pela boa fé.
***

V.–Decisão:

Pelo exposto decide-se:
1.– Julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida;
2.– Custas pela apelante.
3.– Notifique.




Lisboa, 9 de Setembro de 2019



(Manuel Ribeiro Marques - Relator)
(Pedro Brighton - 1º Adjunto)
(Teresa Sousa Henriques – 2ª Adjunta)
Decisão Texto Integral: