Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
14449/14.8T2SNT.L1-8
Relator: ANTÓNIO VALENTE
Descritores: COMPRA E VENDA
MORA
RESOLUÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/24/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: -Celebrado um contrato de compra e venda de café, que se prolonga no tempo, sem prazo, e em que se fixou uma quantidade total de café a adquirir pelo cliente bem como um consumo médio mensal, a compra pelo cliente de quantidades inferiores às médias previstas mensalmente, gera uma situação de mora.
-Mas não gera um incumprimento definitivo, que constitua causa justificada de resolução pela vendedora, sem que este interpele o cliente fixando-lhe um prazo determinado para o cumprimento da obrigação.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial: Acordam os Juizes, do Tribunal da Relação de Lisboa.


Relatório:


C ... SA, ora Autora, instaurou a presente acção declarativa de condenação, em processo comum, alegando os fundamentos de facto e de direito, que em seu entender justificam a procedência da acção, peticionando seja I..., ora Ré, condenada a pagar à Autora a quantia de € 18.869,38 euros, acrescido de juros de mora desde a data da citação até efectivo e integral pagamento.

A Ré regularmente citada apresentou contestação, alegando os fundamentos de facto e de direito que em seu entender, justificam a improcedência do pedido.

Realizou-se julgamento, vindo a ser proferida sentença que julgou a acção provada e procedente, condenando a Ré a pagar à Autora a qual de € 18.869,38 com acréscimo de juros de mora.

Foram dados como provados os seguintes factos:
A)A Autora é uma sociedade comercial que tem como principal actividade a comercialização de café e sucedâneos, chá, cacau, chocolate, açúcar e especiarias, e acessoriamente, a gestão de imóveis próprios.
B)A Ré é proprietária de um estabelecimento comercial designado "Os grelhados" sito na ...

C)No dia 24.05.2011, a Autora e a Ré assinaram documento particular, denominado "Contrato de Fornecimento - N° Lis-016611-166", cf. fls.8, no âmbito do qual acordaram as seguintes cláusulas:
"Cláusula 1" Equipamentos.
1.A N... é proprietária do seguinte equipamento/material:  (. .)
2.O equipamento/material a que se refere esta cláusula é cedido ao Cliente em regime de comodato para que este o utilize no seu estabelecimento comercial acima identificado. (...)
3.d) O cliente obriga-se a conservar, tratar e utilizar o equipamento acima descrito com o cuidado e a diligência devidas, por forma a poder restituí-los à N..., no termo do presente contrato e independentemente do motivo pelo qual este ocorra, no mesmo estado em que o recebeu e sem quaisquer deteriorações que não sejam decorrentes de um uso normal, se para o efeito foi notificado pela N....
Cláusula  2ª Produtos.
1.Pelo presente contrato o cliente obriga-se a adquirir os seguintes produtos comercializados e fornecidos pela N...:
a) Café Torrado N... Premium Grão numa quantidade mínima mensal de  24 (vinte e quatro) quilogramas e num total contratual mínimo de 1440 (mil quatrocentos e quarenta) quilogramas. (...)
3.A mercadoria será entregue no estabelecimento comercial do Cliente acima referenciado, comprometendo-se o Cliente a recebê-la e a pagá-la a pronto pagamento.
Cláusula  4ª - Prazos.
1.O presente contrato é válido por 60 meses consecutivos contados da presente data.
2.Considera-se que  o cliente cumpriu as obrigações que para si resultam do presente acordo se, antes do termo do prazo determinado no parágrafo 1 desta cláusula, tiver adquirido e pago a quantidade de café correspondente ao total definido na al. a) do parágrafo 1 da Cláusula 2ª (.. .).
Cláusula 5ª - Alteração da posição contratual
1.Se durante a vigência deste contrato o cliente vender, trespassar ou ceder por qualquer outro título o seu estabelecimento ou a sua exploração, cessar a sua actividade ou cessar o  relacionamento comercial, ainda que temporariamente, com a N..., obriga-se a comunicar a esta o facto. através de carta registada, com a antecedência de. pelo menos, quinze dias em relação à data prevista para a ocorrência de qualquer das situações referidas.
Cláusula 6ª- Incumprimento.
1.O incumprimento, por parte do cliente, das obrigações emergentes deste contrato, confere à N... o direito à sua resolução e ao que se dispõe na Cláusula 7ª
Cláusula 7ª - Resolução.
1.No caso de resolução do presente contrato por incumprimento imputável ao cliente, tem a N... o direito de exigir àquele:
a) O pagamento dos equipamentos descriminados na Cláusula 1 a pelo valor ali referido;
b) Indemnização correspondente ao valor de dez euros por cada quilograma de não adquirido, relevando para o efeito a diferença entre a quantidade total ora acordada de 1440 quilogramas e a quantidade efectivamente adquirida e paga pelo Cliente durante a vigência do presente contrato.
2.As importâncias devidas pelo Cliente consideram-se vencidas dez dias após a data do envio, pela N..., da respectiva notificação.                                               
D)No dia 27.11.2012, as partes assinaram documento particular denominado "Adenda 1", cf. Doc. fls 10, no âmbito do qual acordaram que:

"1.Este aditamento considera-se parte integrante do contrato de fornecimento  (. . .)
2.A presente adenda, manifestação da vontade dos contraentes, resulta da informação transmitida pelo Cliente à N... dando conta da impossibilidade daquele de cumprir o contrato no que se refere à quantidade de café a que se vinculou adquirir mensalmente (nos termos da alínea a) do n. a 1 da cláusula 2ª do contrato principal).
3.Assim, com efeitos contados da presente data, o Cliente obriga-se a adquirir à N... a quantidade total de 1176 kg (mil cento e setenta e seis quilogramas) de café N... Premium, numa média mensal mínima de 12 kg (doze quilogramas). A quantidade total aqui referida é a que, na presente data. se encontra em falta para cumprimento do contrato.
4.O anterior parágrafo 3 altera o disposto na alínea a) do nº 1 da cláusula 2ª do contrato principal.
5.Nestes termos. o Cliente obriga-se a adquirir mensal e consecutivamente a quantidade de café referida no anterior parágrafo 3, ou seja, 12 kg de café N... Premium.
6.O presente contrato passa a ser válido pelo período de tempo necessário ao cumprimento do disposto nos anteriores parágrafos  3 e 5, ficando assim alterado o nº 1 da cláusula 4ª do contrato principal ".

E)Desde Novembro de 2012 até Junho de 2014, a Ré adquiriu 156 kg de café, quando deveria ter adquirido 240 kg.
F)Não adquirindo mensalmente a média de 12 kg de café, nem a quantidade total de 1176 kg a que se tinha obrigado na "adenda".
G)Por carta datada de 24.06.2014, a Autora comunicou à Ré, cf. Doc fls.10-v, que por incumprimento do disposto na al. a) do nº 1 da Cláusula 2ª do Contrato de Fornecimento, alterado pela Adenda 1 de 27.12.2012, resolvia o contrato que havia celebrado a 24.05.2011, mais solicitando o pagamento dos equipamentos cedidos em regime de comodato e da indemnização devida.
H)A Ré, nem nos 10 dias posteriores à comunicação, nem até à presente data procedeu ao pagamento em dívida.                                                                                                                                        
Inconformada recorre a Ré, concluindo que:

-Considerada a prova produzida neste processo verifica-se que houve uma alteração do sujeito contratual que figurava no contrato, junto aos autos, como segunda outorgante, a ora Apelante;  
-A relação jurídica subjacente a esse contrato passou a ser titulada pela sociedade comercial "I... Lda;
-Devia ter sido essa sociedade comercial a ser chamada à presente demanda e não a aqui Apelante;
-A Apelante deve ser considerada parte ilegítima nos presentes autos;
-A ilegitimidade de qualquer sujeito processual configura uma excepção dilatória, que é do conhecimento oficioso do Tribunal, e que dá lugar à absolvição da instância;
-Cabia ao Tribunal Recorrido conhecer da excepção dilatória ora invocada, considerar a Apelante parte ilegítima nestes autos e absolver a mesma da presente instância, nos termos dos artigos 576.°, nºs 1 e 2, 577.°, alínea e) e 578.° do Código de Processo Civil, normas que resultaram violadas pelo Tribunal "a quo";
-Entende, por outro lado, a Apelante que o Tribunal Recorrido incorre em erro na interpretação, tanto da matéria de facto, como dos elementos probatórios juntos aos presentes autos;
-Não estava a Apelante obrigada, no período de tempo que mediou a data da assinatura da adenda contratual e a data da resolução do contrato promovida pela Apelada, a adquirir a quantidade exacta de 12 quilogramas de café por mês;
-Nem tão pouco estava a Apelante obrigada, durante esse período de tempo, a adquirir 240 kgs de café conforme acaba por concluir o Tribunal Recorrido no ponto 5 da matéria de facto dada como provada;
-Para além da aquisição de tal produto ter sido definido em temos de média mensal, também não decorre da adenda contratual qualquer prazo definido para a aquisição dessa quantidade de café;
-Atentos os depoimentos das testemunhas M... e V..., conjugados com o ponto 3 da adenda contratual junta aos autos, devem os pontos 5 e 6 da matéria de facto dada como provada no Aresto
Recorrido, ser modificados;                                                                        
-O ponto 5 da matéria de facto dada como provada deve obedecer à seguinte redacção: "5. Desde Novembro de 2012 até Junho de 2014, a Ré adquiriu 156 kgs de café";
-Outrossim. o facto inserto no ponto 6 não deve constar do rol dos factos dados como assentes. uma vez que está em clara contradição com os pontos 3 e 6 da adenda contratual outorgada pelas partes;
-Segundo a perspectiva da reapreciação da matéria de facto nos termos ora propostos. a Apelada não tinha legitimidade para resolver o contrato celebrado com a Apelante nos termos dos fundamentos invocados na comunicação de 24/06/2014, ao contrário do sufragado pelo Tribunal Recorrido;
-A Sentença Recorrida é assim violadora do disposto nos artigos 342.°, nº 1, 406.° e 432.°, todos do Código Civil;
-O Tribunal Recorrido também não relevou as circunstâncias supervenientes que levaram a que Apelante e Apelada promovessem a alteração do contrato inicial através da adenda outorgada em Novembro de 2012;
-Resultou demonstrado, através dos elementos de prova apresentados pela Apelante, que durante a execução do contrato ocorreram factores económicos de natureza exógena que impediram que a Apelante pudesse cumprir na íntegra o que havia inicialmente contratualizado com a Apelada;
-Tais circunstâncias não podem imputar à Apelante a eventual inexecução do contrato;
-Ademais, a Apelante, ainda que parcialmente, sempre procurou executar o contrato pelo que não houve incumprimento definitivo do mesmo por parte desta;
-Perante a impossibilidade parcial ou temporária do cumprimento da obrigação contratual por parte da Apelante, não assistia legitimidade à Apelada para resolver o contrato;
-O Tribunal Recorrido, não deu relevância às circunstâncias supervenientes invocadas e demonstradas pela Apelante e que motivaram a alteração das condições contratuais celebradas pelas partes no negócio jurídico em crise e que foram, inclusive, aceites pelas mesmas, pelo que violou o disposto nos artigos 790.°, 792.°, nº 1 e 792.°, nº 2, todos do Código Civil;
-A admitir-se o eventual incumprimento do contrato por causa imputável à Apelante e legitimadora da resolução do mesmo pela Apelada, não se mostra justificado e admissível o valor da cláusula penal que constitui a indemnização em que a Apelante foi condenada na Sentença Recorrida;
-O montante em que a Apelante é condenada é claramente excessivo e não visa a compensação de qualquer prejuízo sofrido e demonstrado pela Apelada, em resultado do incumprimento contratual;
-Contrariamente ao sufragado pelo Tribunal “a quo", a Apelada devia fazer prova dos danos sofridos para justificar a indemnização emergente da cláusula penal;
-A posição evidenciada pelo Tribunal Recorrido é violadora do disposto no artigo 811.°, nº 3 do Código Civil;
-No limite, admitindo-se a imputação do incumprimento do contrato à Apelante, tal cláusula penal, devia ser reduzida de acordo com juízos de equidade, nos termos do artigo 812.°, nº 1 do Código Civil, disposição legal igualmente violada pelo Tribunal Recorrido;
-Merece igualmente reparo a Sentença Recorrida na parte em que condena a Apelante a pagar à Apelada o valor dos equipamentos/materiais que, em regime de comodato, foram entregues na sequência da celebração do contrato;
-O regime preconizado pelo Tribunal "a quo", nos termos do qual faz subsistir o comodato celebrado pelas partes ao regime jurídico da compra e venda é manifestamente lesivo para a Apelante;
-A Sentença Recorrida, nessa parte, acaba por estabelecer uma dupla penalização à Apelante;
-A interpretação do Tribunal Recorrido não decorre do espírito que esteve subjacente à celebração do contrato entre as partes, que convencionaram que o fornecimento dos equipamentos se integrava no regime jurídico do contrato de comodato;
-O Tribunal Recorrido, ao contrário do que decidiu, devia ter considerado a estrita aplicação das regras que norteiam o regime jurídico do comodato e em consequência devia ter condenado a Apelante na simples restituição dos objectos fornecidos pela Apelada, nos termos do artigo 1137.° do Código Civil, norma que resulta assim violada pelo Aresto Recorrido.
-Deve  ser declarada  a Apelante Parte Ilegítima nos presentes autos e, por conseguinte, ser a mesma absolvida da presente instância;

Caso não seja esse o Vosso douto entendimento:
-Absolver a Apelante do pedido formulado pela Apelada ou, em alternativa, afastar a obrigatoriedade do pagamento da indemnização decorrente da cláusula penal ou reduzir o valor da mesma segundo juízos de equidade;
-Absolver a Apelante do pagamento do valor dos equipamentos identificados nestes autos, aplicando-se, in casu, as regras do regime jurídico do comodato.

Cumpre apreciar.

Coloca a Ré 7 questões no presente recurso:
a)A sua própria ilegitimidade;
b)As quantidades de café acordadas constituem uma média e não foi fixado qualquer prazo para a aquisição da quantidade de café estipulada;
c)Contradição entre a alínea F) da matéria provada e os pontos 3 e 6 da Adenda contratual;
d)Ocorrência de circunstâncias supervenientes que impediram a Ré de adquirir a quantidade contratualmente prevista de café;
e)O incumprimento foi parcial pelo que não assiste à Autora o direito de resolver o contrato;
f)A cláusula penal é excessiva e deveria ter sido reduzida, pelo Tribunal, de acordo com um juízo de equidade;
g)Estamos perante um contrato de comodato e não de compra e venda.

Quanto à questão da legitimidade.

O contrato foi celebrado entre a Autora e a ora Ré. A adenda a tal contrato, datada de 27/11/2012, foi igualmente celebrada pelas mesmas partes.

A sociedade  I... Lda foi constituída em 19/12/2012.

Nos  termos da cláusula 5ª do contrato celebrado entre as partes, “se durante a vigência deste contrato, o Cliente vender, trespassar ou ceder por qualquer outro título o seu estabelecimento ou a sua exploração (...) obriga-se a comunicar o facto  à N..., através de carta registada com a antecedência de, pelo menos quinze dias em relação à data prevista para a ocorrência de qualquer das situações referidas”.

Podendo então a N... resolver o contrato, nos termos da cláusula 5ª nº 2.

Ora, não está dado como provado que a Ré tenha efectuado tal comunicação à Autora. 

Por outro lado, a passagem da facturação para a sociedade, não significa só por si que tenha ocorrido uma transmissão ou cessão da posição contratual do contrato (e adenda) celebrados entre Autora e Ré.

Note-se que a própria Ré, na sua contestação, nem sequer invoca a sua ilegitimidade passiva, só o fazendo no presente recurso.

O facto de a Ré ter constituído com outro sócio uma sociedade comercial não significa que para ela haja transmitido a sua posição contratual no contrato celebrado com a Autora.

E não consta dos autos qualquer documento comprovativo de uma cessão ou transmissão na posição contratual, as quais também não estão contempladas no contrato de sociedade.

Ou seja, não se prova que a sociedade tenha assumido a posição da Ré na relação contratual com a Autora.

Daí que não exista qualquer motivo para concluir que a Ré I... não é sujeito da relação material controvertida, improcedendo a invocada excepção dilatória de ilegitimidade.

Quanto à segunda questão.

O contrato foi celebrado por um período de 60 meses consecutivos, contados desde 24/05/2011 – cláusula 4ª nº 1. A Ré comprometeu-se a vender os cafés da Autora na quantidade mínima mensal de 24 kg e num total contratual mínimo de 1440 kg (60 meses x 24kg mensais).

Na Adenda de 27/11/2012, a Ré obrigou-se a adquirir à Autora a quantidade total de 1176 kg (parágrafo 3º) numa quantidade  mensal mínima  de 12 kg (parágrafo 5º).

Na cláusula 6ª desta adenda, as partes acordaram que:
O presente contrato passa a ser válido pelo período de tempo necessário  ao cumprimento do disposto nos anteriores parágrafos 3º e 5º, ficando assim alterado o nº 1 da cláusula 4ª do contrato principal”.
 
Desde Novembro de 2012 (data da adenda) até Junho de 2014 (data da resolução contratual) a Ré adquiriu à Autora 156 kg de café.  Ou seja, uma média mensal de 8,21 kg de café. Devendo ainda ser lembrado que a Adenda já representava uma diminuição das quantidades mínimas de café a adquirir pela Ré face às dificuldades invocadas por esta.

A Ré não adquiriu à Autora as quantidades médias mensais de café, ou seja, 12 kg, com vista a perfazer o total de 1176 kg.

Quanto ao significado da quantidade média mensal, os depoimentos testemunhais dão a ideia de que se trataria de uma questão de, atingido o fim de um ano, se dividir por 12 o total vendido em cada um dos doze meses. Ou seja, como referiram M... (empregada de escritório da Autora) e P... (vendedor da Autora), a Ré podia comprar 9 kg de café num mês e 15 no mês
seguinte, o que a faria manter a média acordada.                                                                                 
No entanto, relembre-se que o parágrafo 5º da Adenda estipula que:
“Nestes termos, o Cliente obriga-se a adquirir mensal e consecutivamente a quantidade de café referida no anterior parágrafo 3, ou seja, 12 kg de café N... Premium.”
Na cláusula 6ª nº 1 do Contrato  - mantida em vigor pelo parágrafo 7 da Adenda – prevê-se que “o incumprimento, por parte do cliente, das obrigações emergentes deste contrato, confere à N... o direito à sua resolução (...)”.

Estamos perante uma resolução contratual de natureza convencional, prevista nos artigos 432º e 434º do Código Civil. Como se refere no Acórdão desta Relação de Lisboa, de 28/04/1987, CJ 1987, T. 2, pág. 155, “nas relações contratuais duradouras é possível a resolução contratual por justa causa. Justa causa consiste numa superveniência perturbadora  do correcto implemento do programa negocial, introduzido em regra por uma violação dos deveres contratuais por parte  de um dos contraentes (...)”.

A questão é que a Ré tinha de a adquirir, no total, a quantidade de 1176 kg de café à Autora, sendo esta a sua obrigação contratual. A média mensal, no contrato inicial, tinha a ver com o total de café a comprar e a duração temporal do contrato (1440 kg : 60 meses  =  24 kg por mês). Na adenda, contudo, além da alteração da quantidade total de café a comprar pela Ré (1176 kg), fixa-se uma média mensal de 12 kg. Simplesmente já não existe um prazo para o cumprimento, como decorre do parágrafo 6º:
“O presente contrato passa a ser válido pelo período de tempo necessário ao cumprimento do disposto nos anteriores parágrafos 3 e 5, ficando assim alterado o nº 1 da cláusula 4ª do contrato principal.”

O contrato deixou assim de ter prazo. Ficaria integralmente realizado quando as compras de café pela Ré atingissem os 1176 kg.

De acordo com as mencionadas testemunhas da Autora, nos meses seguintes à celebração da Adenda contratual a Ré respeitou a média de compra de 12 kg de café por mês. A partir de determinada altura a compra de café começou a baixar.

Poder-se-à falar aqui de incumprimento? É certo que a Ré, a partir de certo período, não comprou a média mensal de 12 kg. Mas o propósito do contrato não era este. Se o fosse, então, caso a Ré comprasse 12 kg de café em cada mês, necessitaria de 98 meses para atingir a quantidade total de 1176 kg. Ou seja, mais de oito anos.

Se, por hipótese académica, a Ré comprasse 1000 kg de café num mês e depois apenas 5 kg nos meses seguintes, cumpriria o contrato em apenas 35 meses, situação que seria muito mais benéfica para a Autora.

O problema é que, ao retirar-se qualquer prazo de cumprimento na Adenda contratual, não se pode aqui falar verdadeiramente de incumprimento. Os 12 kg/mês de compras de café não eram o objecto do contrato: se o fossem não haveria referência a um montante total de compras. Nesse caso, a Ré estaria obrigada a comprar 12 kg de café em cada mês, e caso não o fizesse entraria em incumprimento imediato.

Mas no caso dos autos, o objecto é a quantidade total de café que a Ré teria de comprar à Autora, os tais 1176 kg. Daí que no parágrafo 6º da Adenda se refira que o contrato vigorará pelo “período de tempo necessário ao cumprimento (...)”.  Ou seja, o contrato  perdurará até a Ré atingir a quantidade de 1176 kg de compras de café.

Dir-se-à que o facto de, a partir de determinada altura, após a celebração da Adenda, a Ré não alcançar a média mensal de compras de 12 kg, ia tornando mais problemática a satisfação completa dos 1176 kg a que estava obrigada. Mas não se confunda esse regime de compras médias mensais com a figura da compra e venda a prestações, em que o não pagamento de uma prestação pode desencadear o vencimento de todas.

Para uma situação contratual como a dos presentes autos, em que expressamente não se fixa prazo para o cumprimento – ou seja e como já dissemos, o cumprimento será atingido quando o volume de compras atingir os 1176 kg de café – o facto de as compras mensais da Ré não atingirem o volume de 12 kg, representará apenas uma situação de mora, mas não de incumprimento definitivo.

De resto, as próprias consequências previstas para o incumprimento – cláusula 7ª nº 1 b) do contrato principal, que se manteve em vigor mesmo após a Adenda – mostram bem que o objecto do contrato é a quantidade total de café a comprar pela Ré: em caso de resolução por incumprimento da Ré, esta terá de pagar à Autora, além do mais, € 10,00 por cada quilograma de café não adquirido, relevando para o efeito a quantidade total acordada e a quantidade efectivamente adquirida pela Ré durante a vigência do contrato (vigência essa, relembre-se, de 60 meses no contrato inicial, passando a deixar de existir prazo após a Adenda).

Na sentença recorrida escreveu-se:
“Assim, a Ré numa primeira fase, com a falta de consumo temporário, constituiu-se em mora no cumprimento da sua obrigação e, numa segunda fase, após a falta de consumo definitivo, redundaram em incumprimento definitivo (...)”.

Mas o que se quer dizer com “falta de consumo definitivo” ? A Ré continuou a consumir café, ou seja, continuou a comprar café à Autora, até à resolução operada por esta.

Não conseguimos perceber a alusão efectuada na sentença em apreço entre falta de consumo temporário e falta de consumo definitivo, que não resulta de modo algum da matéria de facto dada como provada. As próprias testemunhas da Autora, atrás mencionadas, referiram que a Ré continuou a comprar café embora as quantidades fossem baixando.

A realidade é que, depois dos meses em que, segundo tais testemunhas – e P... era quem recebia as encomendas da Ré e vendia o café, no período posterior à Adenda, tendo pois perfeito conhecimento dos factos – a Ré comprou os 12 kg mensais acordados, o volume das encomendas começou a baixar, mas nunca cessou.

Não se percebe onde vislumbra o Mº juiz a quo incumprimento definitivo da Ré, sobretudo quando a Autora nunca interpelou a Ré para o cumprimento das obrigações em mora, nem lhe fixou prazo para tal.

Para mais, na mesma sentença condena-se a Ré a pagar à Autora o valor estimado dos equipamentos que esta lhe forneceu no início do contrato – cláusula 1ª nºs 1 e 2 – e ainda o valor de € 10,00 por cada quilo de café não comprado, operada a diferença entre o total adquirido e o total a que a Ré se obrigara. Ou seja, condena-se a Ré a pagar compras de café que ainda não se tinham vencido e a que não corresponde qualquer entrega de café por parte da Autora.

Na medida em que o prejuízo da Autora se situa no valor dos equipamentos que entregou à Ré no início do contrato, o pagamento por esta do valor de tais equipamentos e da totalidade do café que se obrigara adquirir  representa uma cláusula contratual abusiva e contrária à boa fé e ao equilíbrio da posição dos contraentes. A Autora recebia o valor dos equipamentos, recebia o valor do café que a Ré não lhe chegou a comprar e que por isso a mesma Autora não lhe forneceu.

Impôr-se-ia sempre ao Tribunal uma redução equitativa da cláusula penal nos termos do art. 812º do Código Civil. 

Neste tipo de contratos, como é sabido, a empresa vendedora faz um investimento inicial emprestando ao cliente um determinado número de equipamentos – no caso dos autos, máquina de café, moínho de café, máquina de lavar loiça, toldos verticais, toldos capota de alumínio, reclamo luminoso, 10 mesas de esplanada e 20 cadeiras de esplanada – que o cliente lhe deverá restituir findo o contrato (com a óbvia depreciação e desgaste motivados pela utilização constante e pelo decurso do tempo). Para que tal investimento seja proveitoso para a vendedora, esta tem de garantir a compra pelo cliente de uma determinada quantidade de café num determinado período. Além disso, há que considerar como proveito da vendedora a publicidade à sua marca inscrita nos equipamentos vendidos.

Se o cliente não compra as quantidades de café acordadas, existe manifesto prejuízo da vendedora, que terá assim direito de interpelar o cliente com vista ao cumprimento da obrigação, e mesmo a fixar-lhe um prazo para tal.

O que não faz sentido é que, mesmo havendo incumprimento definitivo, a vendedora reclame o preço dos equipamentos quando foram cedidos, e o pagamento das quantidades de produto que o cliente não comprou durante o prazo estipulado. E não faz sentido, porque torna mais lucrativo para o vendedor o incumprimento do cliente que o seu cumprimento escrupuloso.

Repare-se: se o cliente comprar as quantidades de café acordadas, chegado o termo do contrato limita-se a devolver os equipamentos. A vendedora viu assim o cliente comprar-lhe as quantidades de café que lhe permitem cobrir o investimento inicial e a depreciação dos equipamentos pelo decurso do tempo.

No caso de incumprimento, em vez de receber os equipamentos recebe o valor destes à data da entrega e ainda recebe o valor correspondente ao café não comprado, sem ter de fornecer tal café.

De qualquer modo, voltando ao contrato (com a Adenda) dos presentes autos, não existem factos provados que nos permitam falar de incumprimento definitivo por parte da Ré.

E a Autora não procedeu à interpelação da Ré nem lhe fixou qualquer prazo de cumprimento, findo o qual o incumprimento, aí sim, se tornaria definitivo.

É claro que isso não impede o direito da Autora de resolver o contrato, impede sim o funcionamento das cláusulas 6ª e 7ª do contrato inicial.

A resolução contratual produziria os efeitos previstos nos artigos  432º nº 1, 433º e 434º do Código Civil, podendo a Autora pedir a restituição dos equipamentos cedidos e eventualmente o pagamento correspondente à desvalorização do valor destes pelo uso e pelo decurso do tempo.

Contudo, não tendo tal sido peticionado, entendemos não poder este Tribunal da Relação condenar a Ré nessa restituição e compensação, face ao disposto no art. 609º nº 1 do CPC.

Conclui-se assim que:
-Celebrado um contrato de compra e venda de café, que se prolonga no tempo, sem prazo, e em que se fixou uma quantidade total de café a adquirir pelo cliente bem como um consumo médio mensal, a compra pelo cliente de quantidades inferiores às médias previstas mensalmente, gera uma situação de mora.
-Mas não gera um incumprimento definitivo, que constitua causa justificada de resolução pela vendedora, sem que este interpele o cliente fixando-lhe um prazo determinado para o cumprimento da obrigação.

Termos em que se julga a apelação procedente, revogando-se a sentença recorrida e absolvendo-se a recorrente do pedido.
Custas pela recorrida.



Lisboa,  24/11/2016



António Valente
Ilídio Sacarrão Martins
Teresa Prazeres Pais
Decisão Texto Integral: