Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
58/20.6T8SCG.L1-2
Relator: JORGE LEAL
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL ENTRE CÔNJUGES
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/07/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: A responsabilidade civil emergente da violação de direitos de personalidade pode fundar a instauração de ação de indemnização por danos não patrimoniais de um cônjuge contra o outro, a deduzir nos tribunais comuns.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

I. RELATÓRIO
Em 20.10.2020 Maria instaurou ação declarativa de condenação com processo comum contra L.
A A. alegou, em síntese, que:
- a A. e o R. são casados um com o outro desde Julho de 2005 e têm dois filhos menores;
- ao longo dos últimos anos a relação do casal deteriorou-se com discussões frequentes o que levou à ruptura da relação em Setembro de 2019;
- cada um passou a viver totalmente separado e em parte independente da casa comum;
- a A. já requereu o divórcio;
- o R. não quis sair de casa, embora tenha condições económicas para o efeito;
- o R. aufere 2000 EUR mensais;
- a A. apenas aufere o ordenado mínimo;
- desde que foi interposta a ação de divórcio o R. tem perturbado a A.;
- durante a vida conjugal do casal deram-se outros acontecimentos do mesmo género;
- a A. sente ansiedade, insegurança e receios contínuos;
- o comportamento do R. consubstancia uma violência psicológica continuada, que coloca a A. num estado de medo, nervosismo e tristeza constante, devendo ser reconhecido o direito da A. a ser indemnizada pelo A. a título de danos não patrimoniais, nos termos dos artigos 70.º, 80.º, 483.º e 496.º do Código Civil.
A A. terminou pedindo que o R. fosse condenado a pagar-lhe a indemnização de € 12 000,00, a título de danos morais.
Regularmente citado o réu não apresentou contestação.
A A. apresentou articulado superveniente, no qual alegou novos factos, ao qual o R. também não respondeu.
Foram considerados confessados os factos, nos termos e para os efeitos do disposto no artº 567.º do C.P.Civil.
A autora apresentou alegações.
Em 25.3.2021 foi proferida sentença em que se emitiu o seguinte dispositivo:
Face a tudo o que ficou exposto, julga-se a presente acção procedente, por provada, e em consequência decide-se condenar o réu L a pagar à autora MARIA (…) a indemnização de 2000 EUR, actualizada, por danos não patrimoniais, absolvendo-o do remanescente do pedido, excepto no que concerne aos juros, que serão devidos doravante.
Custas a suportar por ambas as partes na medida do decaimento, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário concedido à autora”.
A A. apelou da sentença, tendo apresentado alegações em que formulou as seguintes conclusões:
a) Nos presentes autos, os danos não patrimoniais que foram causados à recorrente decorrentes do comportamento e atitudes reiteradas adotadas pelo recorrido são a vivência com desgosto, nervos, insegurança e medo;
b) Esses danos devem ser considerados graves devido ao facto de serem constantes e ao facto de as atitudes e comportamentos constantes que os geram ocorrerem no local onde a recorrente vive com o recorrido, pelo que merecem a tutela do Direito;
c) O montante fixado pela Meritíssima Juíza do Tribunal a quo a título de indemnização devida pelo recorrido à recorrente não é equitativo;
d) Não é equitativo porque o valor fixado, € 2 000,00 (dois mil euros), é manifestamente baixo, atendendo aos danos que foram causados, pelo que estes não são totalmente ressarcidos, havendo, com a fixação de tal valor irrisório uma injustificada desvalorização tanto dos comportamentos intimidatórios do recorrido, como dos danos causados por esses comportamentos à recorrente;
e) Para além disso, na equação a efetuar para definição do montante indemnizatório, demanda a doutrina que se deve ponderar o critério da culpabilidade do agente, o que o lesado aufere e o que o causador dos danos aufere, algo que, in casu, não foi equacionado;
f) Caso esses critérios tivessem sido equacionados o montante fixado teria sido muito superior ao que efetivamente foi fixado atendendo a que o recorrido atuou sempre com dolo e que ficou provado que a recorrente apenas aufere o ordenado mínimo e que o recorrido aufere cerca de € 2 250,00 (dois mil duzentos e cinquenta euros) mensais;
g) Acresce a isso que a doutrina entende que uma indemnização tem cariz punitivo. Ora, se ficou provado que o recorrido aufere cerca de € 2 250,00 (dois mil duzentos e cinquenta euros) mensais, a fixação de € 2 000,00 (dois mil euros) a título de indemnização não preenche esse cariz da indemnização;
h) Ao fixar o montante € 2 000,00 (dois mil euros) a título de indemnização a Meritíssima Juíza do Tribunal de Comarca violou o disposto no art.496º/1 e 4 CC.
A recorrente terminou pedindo que a sentença recorrida fosse revogada na parte em que absolveu o R. do pedido no excedente aos 2.000,00€ fixados, devendo ser fixado a título de indemnização devida pelo recorrido à recorrente a quantia de € 12 000,00 (doze mil euros).
Não houve contra-alegações.
Foram colhidos os vistos legais.
II. FUNDAMENTAÇÃO
1. O objeto deste recurso cinge-se ao valor da indemnização reconhecida à apelante pelo tribunal a quo.
Na sentença recorrida foi fixada, sem impugnação, a seguinte
2. Matéria de facto
1) A autora e o réu casaram um com o outro em 7 de julho de 2005 por casamento civil, sem convenção antenupcial, no regime de comunhão de adquiridos, na Conservatória do Registo Civil de (…).
2) As partes são pais de Margarida (…), nascida a (…) de 2013 e Miguel (…), nascido a (…) de 2018.
3) Em Setembro de 2019 autora e réu passaram a viver em partes independentes da casa comum, deixando de dialogar entre si para além do estritamente indispensável para a administração dos bens e para os assuntos relativos aos filhos comuns.
4) A autora avançou com pedido judicial de divórcio, sem consentimento do outro cônjuge, no dia 31 de Agosto de 2020, o qual tomou o nº (…) e corre termos neste Juízo de Competência Genérica de (…).
5) O réu trabalha como técnico de telecomunicações na (…), S.A. e (…), S.A. onde aufere no mínimo o salário mínimo de base, mas onde faz horas extraordinárias e aufere pelo menos 1000 EUR mensais.
6) Para além disso, o réu nas horas livres faz biscates de mecânica e electricidade, auferindo rendimentos dessas actividades no valor de pelo menos 500 EUR.
7) O réu faz ainda um part time na Funerária (…), Lda., recebendo uma média de 150 EUR mensais.
8) O réu tem uma exploração agropecuária da qual também aufere rendimentos não inferiores a 600 EUR mensais.
9) O autor gasta o que ganha exclusivamente consigo e deposita no banco em conta ou contas bancárias exclusivamente em seu nome de que nunca deu conhecimento à autora e a que esta nunca teve acesso.
10) A autora aufere o ordenado mínimo.
11) Desde que a autora requereu o divórcio, o réu diz que o avô das crianças não poderá ir buscá-las à escola, refere ter provas contra a autora e diz-lhe que as coisas vão apertar para os dois lados.
12) A autora vive nervosa, desgostosa e até amedrontada.
13) No dia 21 de setembro de 2020, no meio de uma discussão, a autora, nervosa e intimidada, refugiou-se no seu quarto de modo a terminar o conflito mas o réu foi no encalço da autora e entrou, contra a vontade desta, no quarto privado da autora, onde esta tem dormido desde a ruptura da relação com o réu.
14) A autora pediu várias vezes ao réu para sair do quarto, porém, este recusou-se a tal afirmando que de lá só sairia quando tivesse dito tudo o que queria.
15) A autora ainda o ameaçou de chamar a polícia, mas daí não resultou qualquer efeito sendo que apenas o pedido de sua filha mais velha, Margarida, chorosa, de que saísse do quarto de sua mãe é que fez com aquele se retirasse do quarto.
16) No dia 14 de Fevereiro de 2020 o réu chegou a casa mais cedo do que costuma chegar, seriam 21h30 ou 22h00.
17) A autora perguntou ao réu se esse não teria ido ter com a amante.
18) Exaltado, este desatou a discutir, tanto que o filho mais novo do casal, Miguel, acordou e foi para o colo da mãe, e mesmo essa circunstância não impediu o réu de ir buscar uma faca à gaveta da cozinha e de se dirigir à autora dizendo “sai da minha frente porque se não vou fazer desgraças!”.
19) Há 5 ou 6 anos, o réu, quando irritado, tinha o hábito de partir intencionalmente vários telemóveis seus e até chegou a partir dois da autora.
20) Há 4 ou 5 anos, no contexto de uma discussão do casal, perante a exaltação do réu, a autora optou por se esconder na despensa, sendo que o réu tentou arrombar a porta e, devido a isso, a fechadura ficou estragada.
21) Na primeira casa onde o casal viveu, há cerca de 12 ou 13 anos, o réu, numa briga, empurrou a autora e esta caiu de costas sobre uma porta de vidro que se partiu e onde a autora acabou por se cortar.
22) Ferida e com dores, a autora dirigiu-se, sozinha, ao Centro de Saúde e o réu foi para o café, como se nada tivesse acontecido.
23) Numa outra ocasião, o réu atirou uma tela pintada ao chão, a qual tinha sido uma prenda de casamento, e deu-lhe vários socos.
24) Na segunda casa onde o casal viveu, casa essa emprestada pela tia da autora, o réu, novamente irritado com algo, revoltou-se e partiu um armário da casa de banho.
25) Há oito ou nove anos, num dia 31 de Outubro, aniversário da autora, o réu amarrou um cavalo de que eram proprietários à parte de trás da carrinha e de seguida conduziu-a com o máximo de velocidade que conseguiu até que a corda rebentou, o cavalo bateu com a cabeça no chão e acabou por morrer.
26) Sempre que há alguma discussão mais acesa entre o casal, o réu começa por dar socos na mesa e nos brinquedos das crianças, o que a assusta e aos filhos.
27) A autora sente ansiedade, insegurança e receios contínuos.
28) O estado em que a autora se encontra também afecta os filhos do casal.
29) No dia 5 de Novembro de 2020, alguns dias após a interposição desta acção, o réu, ao chegar a casa, viu um recipiente destinado à água de pintos, o qual havia sido adquirido pelo sogro, e disse não querer nada que seja deste último dentro daquela casa e também não querer o próprio sogro dentro de casa.
30) Esta atitude fere a autora porquanto daí resulta que fica impedida de ter o seu pai como visita na casa onde vive ou até de ter um qualquer objecto seu.
31) Na ocasião a autora respondeu ao réu que foi ela quem pediu a seu pai que comprasse o recipiente, após o que aquele pegou no recipiente e bateu com ele na borda do caixote do lixo para que este se partisse e de seguida atirou-o para lá.
32) Toda esta situação ocorreu em frente aos filhos do casal, sendo que a criança mais velha, de nome Margarida, aterrorizada, disse que a mãe apenas queria ajudar, mas o réu apenas voltou a reforçar não querer o pai da autora naquela casa, alegando para isso que a casa é sua e que a construiu com o seu dinheiro.
33) Para além disso, o réu afirmou ainda que iria fazer desaparecer todos os pintos, o que deixou Margarida num pranto.
34) O réu ainda se virou para a filha mais velha e começou a dizer a esta que esta teria que ir dizer ao avô que não pode voltar mais lá a casa, mas a autora interrompeu-o dizendo que ninguém iria fazer uma coisa dessas, até porque os pais da autora têm sido a ajuda que o réu não tem dado.
35) Então, dirigido apenas à filha o réu começou a proferir afirmações como “o avô e a avó arranjaram um advogado para me pôr fora da sua casa”, “a mãe meteu o pai a dormir no sofá”, “a mãe foi levantar 1.600€ da conta do pai, que tem testemunhas para dizer que a mãe recebeu dinheiro das rendas das casas”, “as galinhas são só minhas e que a mãe nunca comprou milho para as galinhas”, “o avô anda cheio de maldade contra o pai”.
36) A autora disse então que estas são conversas de adultos e não conversas para ter com uma criança de 7 anos, ao que o réu respondeu «ela é como se fosse adulta, tem de perceber estas coisas».
37) A criança, assustada e triste, tapava os ouvidos com os dedos enquanto o réu falava e ficou novamente com lágrimas nos olhos.
38) O filho mais novo, de dois anos, ficou bastante assustado com toda a gritaria.
39) A autora acabou por desatar chorar em frente aos filhos...
3. O Direito
Estamos perante uma ação de indemnização emergente de responsabilidade civil extracontratual. Efetivamente, a A. assenta a sua pretensão indemnizatória na violação de direitos de personalidade, invocando a cláusula geral de proteção consagrada no art.º 70.º do Código Civil e, bem assim, o direito à reserva sobre a intimidade da vida privada, consagrado no art.º 80.º do Código Civil. Chamada à liça é, assim, a responsabilidade civil aquiliana, radicada no art.º 483.º e seguintes do Código Civil.
Não se olvida que a presente ação tem a particularidade de o alegado responsável e a lesada se encontrarem (ainda) unidos pelo matrimónio (sendo certo que a A. já avançou com a instauração de ação de divórcio sem consentimento – cfr. n.ºs 1 e 4 da matéria de facto).
Ora, da celebração do casamento emerge uma panóplia de direitos e deveres pessoais, enunciados no art.º 1672.º do Código Civil.
Tradicionalmente, imputa-se a esses direitos/deveres “fragilidade na garantia”. Nas palavras de F. M. Pereira Coelho, datadas de 1977 (Curso de Direito da Família, Lições ao curso de 1977/78, Coimbra, 1977, pp. 81 e 82) “…trata-se de direitos com garantia mais frágil que a dos direitos de crédito, de direitos para cuja violação não há verdadeiramente uma sanção ou só há uma sanção muito imperfeita. Esta característica é fundamentalmente exacta em face da nossa lei. Na verdade, e abstraindo agora das sanções criminais estabelecidas pela lei n.º 2053 para certos casos particulares, pode dizer-se que não há entre nós sanção organizada para o não cumprimento dos deveres familiares, a que a lei não liga qualquer obrigação de indemnizar do infractor. É certo que o art.º 483.º está redigido em termos genéricos, mas, segundo uma doutrina tradicional, deverá ser objecto de interpretação restritiva por forma a não se abrangerem aí os direitos familiares pessoais. Como resulta do art.º 1792.º, esta doutrina não pode aceitar-se em termos tão amplos, mas do mesmo art. 1792.º, a contr. sensu, parece inferir-se que a violação dos deveres familiares não constitui o infractor, em princípio, em obrigação de indemnizar o lesado. A favor desta doutrina, poderá argumentar-se com a já referida atitude de retraimento do legislador em face da família, a qual não resultaria protegida – antes pelo contrário – se se abrissem amplamente aos tribunais as portas do santuário familiar. Acrescente-se apenas que, excluída a aplicação, em geral, dos princípios da responsabilidade civil em matéria de deveres familiares, não organiza a lei outra sanção para o não cumprimento desses deveres. Nem pode pensar-se que essa sanção seja o divórcio ou a separação de pessoas e bens, no que aos deveres conjugais se refere. A ideia não estaria certa, até porque o divórcio, como a separação, não pretende ser sanção contra o não cumprimento dos deveres conjugais, mas remédio para uma situação de vida matrimonial intolerável ou, mais exactamente, constatação da ruptura do casamento (…).”
Pese embora a finalidade “curativa” imputada por aquele ilustre Professor ao divórcio, a verdade é que até à reforma de 2008 (introduzida no direito da família português pela Lei n.º 61/2008, de 31.10) o regime de dissolução do matrimónio por divórcio continha uma vertente sancionatória, medida pelo comportamento dos cônjuges perante os deveres pessoais conjugais, traduzida, na modalidade do divórcio litigioso, pela imputação de culpa pela dissolução do casamento, a que correspondiam algumas consequências negativas, para o cônjuge culpado ou principal culpado (cfr. a redação anterior dos artigos 1779.º, 1790.º, 1791.º, 1792.º n.º 1, 2016.º do CC). De entre essas consequências negativas, realce-se o disposto no art.º 1792.º, com a redação introduzida pelo Dec.-Lei n.º 496/77, de 25.11: sob a epígrafe “Reparação de danos não patrimoniais”, no n.º 1 consignava-se a obrigação de o cônjuge declarado único ou principal culpado (bem assim o cônjuge que se divorciara com base na alteração das faculdades mentais do outro cônjuge) “reparar os danos não patrimoniais causados ao outro cônjuge pela dissolução do casamento”. O respetivo pedido de indemnização deveria ser deduzido na ação de divórcio (n.º 2 do art.º 1792.º).
Quanto à responsabilização cível pelos danos emergentes da violação dos deveres conjugais que haviam causado o divórcio, a jurisprudência admitia-a, embora remetesse a sua apreciação para os tribunais comuns (cfr. STJ, 13.3.1985, BMJ 345, p. 414; STJ, 15.6.1993, CJ STJ, I, tomo II, 1993, p. 154; STJ, 08.02.2001, processo 00A4061, consultável, tal como aqueloutros em que nada se diga em contrário, em www.dgsi.pt). Na prática, eram raras as ações fundadas em tais danos (veja-se, de entre os poucos casos publicados, o acórdão do STJ, de 26.6.1991, processo n.º 078085).
Pese embora o supra exposto acerca da fragilidade da garantia dos direitos pessoais familiares, alguma doutrina admitia que a violação dos direitos pessoais dos cônjuges poderia fundar ações cíveis próprias dos direitos absolutos, incluindo “acções de indemnização de danos, fundadas em facto ilícito” (cfr. Antunes Varela, Direito da Família, Livraria Petrony, 1987, p. 356). Afirmando-se expressamente, quanto ao disposto no n.º 2 do art.º 1792.º do CC, que “esta disposição não obsta naturalmente à ressarcibilidade, quer dos danos provenientes da violação dos deveres relativos dos cônjuges, quer da violação dos direitos absolutos de que seja titular o cônjuge ofendido (ofensas à sua integridade física ou ao seu bom nome, violações da sua propriedade, etc)”, embora esses danos tivessem de ser apreciados em ação autónoma e não na ação de divórcio (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. IV, 2.ª edição revista e atualizada, 1992, Coimbra Editora, pp. 568 e 569).
Também aquela parte da doutrina que deduzia das razões da denominada “fragilidade da garantia” dos deveres familiares pessoais a rejeição de um direito do familiar “lesado” à indemnização pelo não cumprimento dos deveres do outro, ressalvava, porém, que isso não impedia que “no caso de um dos membros da família praticar contra outro um acto que, em si mesmo, independentemente do contexto «familiar» em que se situa, seja qualificável facto ilícito – o faltoso esteja sujeito a responsabilidade civil e criminal perante o lesado” (cfr., v.g., Diogo Leite de Campos, Lições de Direito da Família e das Sucessões, reimpressão da edição de 1997, 2013, pp. 141 e 142; idem, p. 309).
O atual regime do divórcio foi introduzido no Código Civil pela Lei n.º 61/2008, de 31.10.
Conforme consta na Exposição de motivos do Projecto de Lei n.º 509/10, que esteve na origem daquele diploma, procurou-se adaptar o regime jurídico do divórcio a uma visão atual do matrimónio, tido como espaço de vida a dois assente fundamentalmente no laço afetivo: “decorrendo do princípio da liberdade, ninguém deve permanecer casado contra sua vontade ou se considerar que houve quebra do laço afectivo. O cônjuge tratado de forma desigual, injusta ou que atente contra a sua dignidade deve poder terminar a relação conjugal mesmo sem a vontade do outro. Ao “divórcio-sanção”, em que se procurava apurar a quem cabia a culpa da dissolução do vínculo conjugal, sucede o “divórcio-ruptura”, em que “a invocação da ruptura definitiva da vida em comum deve ser fundamento suficiente para que o divórcio possa ser decretado”, sem a carga estigmatizadora e punitiva inerente ao apuramento da culpa. O divórcio sem consentimento do outro cônjuge assentará em causas objetivas, que manifestem uma situação de rutura definitiva da relação conjugal, traduzida não só num determinado período de afastamento dos cônjuges (separação de facto), mas também noutros factos que indiciem claramente, de acordo com a cláusula geral prevista na alínea d) do art.º 1781.º do Código Civil, o fim do vínculo matrimonial.
Quanto a eventuais danos, consignou-se o seguinte, na Exposição de Motivos:
Não pode significar esta elisão [de qualquer referência à culpa] que se desprotejam situações de injustiça ou desigualdade. Nas consequências do divórcio está prevista a reparação de danos bem como a existência de créditos de compensação quando houver manifesta desigualdade de contributos dos cônjuges para os encargos da vida familiar. É decisivo, com efeito, observar rigor no domínio das consequências, quer relativamente aos filhos, quer nas situações de maior fragilidade e desigualdade entre cônjuges”.
E, mais adiante:
“Os pedidos de reparação de danos serão, em qualquer caso, julgados nos termos gerais da responsabilidade civil, nas acções próprias; este é um corolário da retirada da apreciação da culpa do âmbito das acções de divórcio”.
Como já se realçou, destas alterações resultou o desaparecimento da violação dos deveres conjugais como fundamento do divórcio e o decretamento do divórcio, mesmo nas situações não consensuais, deixou de ser acompanhado de qualquer avaliação da culpa dos cônjuges na dissolução do matrimónio.
O art.º 1792.º do CC passou a ter a seguinte redação:
(Reparação de danos não patrimoniais)
1. O cônjuge lesado tem o direito de pedir a reparação dos danos causados pelo outro cônjuge, nos termos gerais da responsabilidade civil e nos tribunais comuns.
2. O cônjuge que pediu o divórcio com o fundamento da alínea b) do artigo 1781º deve reparar os danos não patrimoniais causados ao outro cônjuge pela dissolução do casamento; este pedido deve ser deduzido na própria acção de divórcio”.
Esta nova redação deu origem, na doutrina, a interpretações divergentes.
Para parte da doutrina, a tese da fragilidade da garantia dos deveres pessoais dos cônjuges foi definitivamente arredada, ficando claro que a violação de tais deveres é ressarcível nos termos gerais da responsabilidade civil, contratual e/ou extracontratual (neste sentido, cfr., v.g., Jorge Duarte Pinheiro, O Direito da Família Contemporâneo, 5.ª edição, Almedina, 2017, pp. 66-68, 394-397, 533; Heinrich Ewald Hörster, “A responsabilidade civil entre os cônjuges”, in E foram felizes para sempre? Actas do Congresso de 23, 24 e 25 de outubro de 2008, Wolters Kluwer, Coimbra Editora, 2010, pp. 108-110; Cristina Araújo Dias, “Responsabilidade e indemnização por perda do débito conjugal – considerações em torno do artigo 496.º do Código Civil”, in Scientia Iuridica – Revista de Direito Comparado Português e Brasileiro, tomo LXI, n.º 329, Maio/Agosto, 2012, pp. 391-393 (acessível na internet); Diogo Leite de Campos e Mónica Martinez de Campos, Lições de Direito da Família, 3.ª edição revista e atualizada, 2017, Almedina, pp. 352-354); Rute Teixeira Pedro, in Código Civil Anotado, Coorden. Ana Prata, vol. II, 2.ª edição, reimpressão, 2020, Almedina, pp. 709 e 710).
Uma outra corrente doutrinária defende que o sentido da reforma de 2008, de retraimento na regulação da intimidade, de realce da individualidade dos cônjuges e da sua liberdade de ação para o desenvolvimento da personalidade, com a concomitante eliminação dos juízos de culpa no decurso do processo de divórcio, erodiu o desvalor associado ao incumprimento dos deveres conjugais, pelo que o seu incumprimento não desencadeia, só por si, o funcionamento da responsabilidade civil. Apenas será acionada a responsabilidade civil extracontratual, e tão-só na medida em que sejam (diretamente) violados os direitos fundamentais / de personalidade do cônjuge, pois o cidadão casado não goza de menor proteção do direito comum que um cidadão não casado. Neste sentido, cfr. Guilherme de Oliveira, “Responsabilidade civil por violação dos deveres conjugais”, in Lex Familiae, Ano 16, N.º 31-32 (2019), pp. 28-43; Francisco Brito Pereira Coelho, “STJ – Acórdão de 12 de maio de 2016: Deveres conjugais e responsabilidade civil – estatuto matrimonial e estatuto pessoal (não matrimonial) dos cônjuges”, in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 147º, n.º 4006, 2017, pp. 54-67.
Na jurisprudência, no sentido da tese primeiramente enunciada, cfr. o acórdão do STJ, de 12.5.2016, processo 2325/12.3TVLSB.L1.S1; acórdão da Relação de Lisboa, 13.7.2017, processo 2155/15.0T8PDL.L1-2; acórdão da Relação de Lisboa, de 29.9.2020, processo 288/18.0T8SNT.L1-7. No sentido da tese enunciada em segundo lugar, cfr. acórdão da Relação de Lisboa, 25.3.2021, processo 4195/19.1T8ALM.L1-2, relatado pelo ora Exm.º 1.º adjunto.
Como se disse, a A. eximiu-se da controvérsia acima referenciada, alicerçando a sua pretensão indemnizatória na violação dos seus direitos fundamentais / de personalidade, não no seu estatuto familiar.
E essa foi a perspetiva da sentença recorrida, ora reiterada pela apelante – não se antolhando a esta Relação razões para aqui divergir.
A A. peticionou, e agora renova tal pretensão, a atribuição da quantia de € 12 000,00, a título de reparação de danos não patrimoniais infligidos pelo R. na sua pessoa.
O art.º 70.º do Código Civil consagra uma cláusula geral de tutela da personalidade, ou seja, a proteção legal dos indivíduos contra qualquer ofensa aos seus direitos de personalidade. Os artigos seguintes do Código tutelam especificamente alguns direitos de personalidade, nomeadamente o direito à reserva sobre a intimidade da vida privada (art.º 80.º).
A Constituição da República Portuguesa, sem referir expressamente a categoria dos direitos de personalidade, ocupa-se dos direitos e deveres fundamentais, entre os quais se encontram diversos direitos de personalidade: o direito à vida (art.º 24.º), o direito à integridade pessoal (art.º 25.º), o direito ao desenvolvimento da personalidade, à reserva da intimidade da vida privada e familiar (art.º 26.º n.º 2), o direito à liberdade e à segurança (art.º 27.º n.º 1).
Uma das formas de tutela desses direitos é o acionamento dos mecanismos da responsabilidade civil.
Nestes inclui-se a indemnização por danos não patrimoniais (art.º 496.º do Código Civil).
Trata-se de ofensas que não afetam o património do lesado, mas que causam dor ou sofrimento, de natureza física ou moral.
Citando Rabindranath Capelo de Sousa (O direito geral de personalidade, Coimbra Editora, 1995, p. 458):
É o caso da perda de vida e da saúde, das dores e incomodidades físicas, dos sofrimentos, constrangimentos e desgostos morais e afectivos, dos complexos e frustrações de ordem estética e psicológica, dos vexames e humilhações, da privação ou redução da liberdade, da perda ou diminuição do bem nome, do prestígio, da reputação e consideração social, das contrafacções da identidade e da imagem, etc.”
Entende-se que embora a atribuição de uma quantia pecuniária não recomponha a situação prévia à lesão, fazendo desparecer o prejuízo, a concessão de meios económicos de algum modo compensa o lesado da lesão sofrida, proporcionando-lhe satisfação, lenitivo, e impondo ao ofensor uma sanção em benefício do ofendido (cfr., v.g., Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, 7.ª edição revista e atualizada, 1997, Coimbra Editora, pp. 378-382).
De todo o modo, a reparabilidade dos danos não patrimoniais fica confinada àqueles que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito (n.º 1 do art.º 496.º). A gravidade do dano há-de medir-se por um padrão objetivo, atendendo embora às circunstâncias de cada caso, e não à luz de fatores subjetivos (como uma sensibilidade particularmente embotada ou especialmente requintada) (cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em geral, vol. I, 8.ª edição, Almedina, p. 617). Porém, tal não significa que deva ser excluída a indemnização do dano que só se revela grave por a vítima ser particularmente frágil ou vulnerável, atendendo às suas especiais características, como a doença ou a idade (cfr. Gabriela Páris Fernandes, in Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Das Obrigações em Geral, Universidade Católica Editora, 2018, p. 359).
Voltando a citar Capelo de Sousa (O direito geral de personalidade, pp. 553 e 554), ficarão de fora “prejuízos insignificantes ou de diminuto significado, cuja compensação pecuniária não se justifica, que todos devem suportar num contexto de adequação social, cuja ressarcibilidade estimularia uma exagerada mania de processar e que, em parte, são pressupostos pela cada vez mais intensa e interactiva vida social hodierna. Assim, não são indemnizáveis os diminutos incómodos, desgostos e contrariedades, embora emergentes de actos ilícitos, imputáveis a outrem e culposos.”
Quanto à avaliação dos danos não patrimoniais, para o efeito da fixação da compensação, resulta do disposto no n.º 4 do art.º 496.º, conjugado com o art.º 494.º, que essa avaliação é feita equitativamente pelo tribunal, em que se atenderá, não só à própria extensão e gravidade dos prejuízos, mas também ao grau de culpabilidade do agente, à situação económica deste e do lesado e às demais circunstâncias do caso. A referência ao grau de culpabilidade do agente e à sua situação económica (e bem assim à do lesado) denotam que a reparação dos danos não patrimoniais tem também, de certo modo, um caráter punitivo (cfr. Galvão Telles, Direito das Obrigações, cit., p. 387 e 388, nota 1; Antunes Varela, Das Obrigações em geral, cit., p. 619; Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, volume I, 15.ª edição, 2021, p. 335 e 336).
Entre as “circunstâncias do caso” a tomar em consideração, incluir-se-á o facto de o A. e o R. serem marido e mulher, e de os factos alegados e provados terem ocorrido em contexto familiar, na casa de morada de família.
A este propósito, ocorre-nos citar Antunes Varela (Direito da Família, 1987, cit., p. 348):
De igual modo, cada um dos cônjuges tem o dever de não atentar contra a vida, a saúde, a integridade física, a honra e o bom nome do outro. Pode dizer-se, em síntese, que o dever de respeito abrange de modo especial a integridade física e moral do cônjuge.
É bastante duvidoso, porém, que o dever geral de abstenção correspondente a estes direitos de personalidade de cada cônjuge recaia com mais intensidade sobre o outro cônjuge do que sobre o comum das restantes pessoas.
Perante o mundo exterior, compreende-se que cada um dos cônjuges seja obrigado a zelar, mais do que ninguém, a vida, a saúde, a integridade corporal, a honra e o bom nome do seu consorte. Na intimidade do lar, com as desavenças frequentes a que a vida em comum dá lugar e com o conhecimento que cada um dos cônjuges possui das fraquezas humanas do outro, compreendem-se mais facilmente, por seu turno, certas ofensas à honra, à integridade física ou ao bom nome de um dos desavindos, até por ser mais forte também o dever que impende sobre os ofendidos de as desculpar e perdoar.”
Estas palavras, de um tom compreensivo quanto a “certas ofensas” e com referência ao dever de as desculpar e perdoar por parte do cônjuge ofendido, parecem, hoje em dia, ultrapassadas.
Basta atentar nas sucessivas alterações legislativas tendo em vista a punição criminal da violência doméstica (art.º 152.º do Código Penal), a sua prevenção e proteção das suas vítimas (vide Regime Jurídico Aplicável à Prevenção da Violência Doméstica, à Proteção e à Assistência das suas Vítimas, aprovado pela Lei n.º 112/2009, de 16.9, com as alterações publicitadas).
Numa perspetiva atual, veja-se Guilherme de Oliveira, que, pese embora exclua a responsabilização civil pela violação dos deveres conjugais qua tale, admite “que o dever de respeito dos cônjuges reforce o dever de abstenção de atos capazes de causar danos nos direitos de personalidade, sendo, portanto, apto a qualificar as infrações praticadas. Também assim, no âmbito criminal, a “exigência intensificada de respeito pela vida do outro com que se resolveu constituir família ou formar uma comunhão de vida” não só parece fundamentar o efeito qualificador nos crimes de homicídio [art. 132.º, n.º 2, b), CPen] e de ofensa à integridade física (art. 145.º, n.º 2, CPen), mas também participa do fundamento do crime de violência doméstica (art. 152.º, CPen), (ainda que, por vezes, não tenha nascido, tecnicamente, um dever conjugal de respeito) (“Responsabilidade civil por violação dos deveres conjugais”, estudo citado, p. 39).
Quanto à comparação jurisprudencial de casos, imposta pelo disposto no n.º 2 do art.º 8.º do Código Civil, mostra-se particularmente dificultada pela rarefação da intervenção judicial nestas situações, do ponto de vista da jurisdição cível.
Registar-se-á que o STJ, no caso de um cônjuge que abandonava o lar familiar para estar com outras mulheres, regressando tempos depois, reiterando esse comportamento durante cerca de onze anos, causando grande mágoa à A., fazendo com que perdesse a alegria de viver, tornando-se pessoa triste, deprimida, vivendo fechada em casa e chegando a ser submetida a consultas de psiquiatria, foi concedida uma indemnização por danos não patrimoniais no valor de € 13 000,00 (supracitado acórdão de 12.5.2016, processo 2325/12.3TVLSB.L1.S1); no acórdão da Relação de Lisboa de 13.7.2017, processo 2155/15.0T8PDL.L1-2, por violação do dever de respeito, através de expressões injuriosas, concedeu-se a compensação de € 3 000,00; no acórdão da Relação de Lisboa de 29.9.2020, processo 288/18.0T8SNT.L1-7, num caso de lesão à integridade psíquica da A., causada pela descoberta de uma relação extraconjugal mantida pelo cônjuge, da qual nascera uma criança que fora apresentada à família como futura “afilhada”, atribuiu-se uma indemnização no valor de € 20 000,00; no acórdão da Relação de Lisboa de 25.3.2021, processo 4195/19.1T8ALM.L1-2, em virtude de expressão injuriosa e de pontapé nos glúteos (com um pé descalço), concedeu-se uma indemnização de € 2 500,00.
Nestes autos, os factos julgados merecedores de reprovação e de indemnização por danos não patrimoniais, ao que este tribunal está, de resto, vinculado, por tal decisão não ter sido questionada (cfr. art.º 635.º n.ºs 3 e 5 do CPC), são os seguintes:
13) No dia 21 de setembro de 2020, no meio de uma discussão, a autora, nervosa e intimidada, refugiou-se no seu quarto de modo a terminar o conflito mas o réu foi no encalço da autora e entrou, contra a vontade desta, no quarto privado da autora, onde esta tem dormido desde a ruptura da relação com o réu.
14) A autora pediu várias vezes ao réu para sair do quarto, porém, este recusou-se a tal afirmando que de lá só sairia quando tivesse dito tudo o que queria.
15) A autora ainda o ameaçou de chamar a polícia, mas daí não resultou qualquer efeito sendo que apenas o pedido de sua filha mais velha, Margarida, chorosa, de que saísse do quarto de sua mãe é que fez com aquele se retirasse do quarto.
16) No dia 14 de Fevereiro de 2020 o réu chegou a casa mais cedo do que costuma chegar, seriam 21h30 ou 22h00.
17) A autora perguntou ao réu se esse não teria ido ter com a amante.
18) Exaltado, este desatou a discutir, tanto que o filho mais novo do casal, Miguel, acordou e foi para o colo da mãe, e mesmo essa circunstância não impediu o réu de ir buscar uma faca à gaveta da cozinha e de se dirigir à autora dizendo “sai da minha frente porque se não vou fazer desgraças!”.
21) Na primeira casa onde o casal viveu, há cerca de 12 ou 13 anos, o réu, numa briga, empurrou a autora e esta caiu de costas sobre uma porta de vidro que se partiu e onde a autora acabou por se cortar.
22) Ferida e com dores, a autora dirigiu-se, sozinha, ao Centro de Saúde e o réu foi para o café, como se nada tivesse acontecido.
Acresce que o R. é uma pessoa dada a acessos de ira destruidora, dirigida a coisas e, até, animais, conforme descrito nos números 20, 23 a 26, 31, com o que assusta a A. e os filhos (n.ºs 26 e 27).
Todos os factos acima descritos colocam a A. num estado de enervamento, desgosto, medo, ansiedade, insegurança e receios contínuos (números 12 e 27 da matéria de facto).
Parece-nos evidente que os factos acima descritos ofenderam a A. na sua pessoa, na sua integridade física e psíquica, e bem assim na sua liberdade e privacidade (referimo-nos à “invasão” do quarto da A.). Tais factos chegaram à violência física (empurrão da A. contra uma porta de vidro, que se partiu e onde a A. se cortou) e à ameaça muito grave (exibição de uma faca de cozinha contra a A., que tinha o filho mais novo ao colo).
Admite-se que a entrada do R. no quarto da A. não visava atentar contra a sua privacidade mas continuar uma discussão a que a A. pretendera pôr fim. E a exibição da faca foi despoletada por uma desajustada (que se saiba, face aos elementos dados a conhecer nos autos) referência, por parte da A., a uma visita do R. a uma suposta amante. Quanto ao empurrão contra a porta de vidro, sucedeu já há longo tempo (doze ou treze anos). Acresce a total inconveniência objetiva que constitui a manutenção da residência do A. e da R. na mesma casa, potenciadora de conflitos.
Isto exposto, as atitudes do R. ultrapassam, como é evidente, os limites do que é aceitável, sendo certo que já vêm de longe, mesmo antes da instauração do processo de divórcio.
O grau de culpa é elevado, atingindo o nível do dolo.
O dano causado é relevante, num nível médio.
Neste caso particular assume importância a natureza punitiva (e preventiva) da quantia a arbitrar.
Neste aspeto cabe levar em consideração a condição económica do R.. Este exerce diversas atividades, das quais aufere o valor total mensal, médio, de € 2 250,00 (n.ºs 5 a 8 da matéria de facto). A indemnização arbitrada pelo tribunal a quo, € 2 000,00, quase corresponde a um mês de rendimentos do R. – pelo que, nesta perspetiva, não é um valor insignificante. Tanto mais que a A., por sua vez, aufere o ordenado mínimo (n.º 10 dos factos provados). Mas, não sendo insignificante, fica demasiado abaixo do que, atento o acima exposto, é simultaneamente adequado à satisfação da finalidade mista da indemnização por danos não patrimoniais: dar consolo ao lesado e punir (assim como reprimir) o agente.
A indemnização peticionada pela A. (€ 12 000,00) corresponde a quase metade do rendimento anual do R.. É também, até levando em consideração os valores jurisprudenciais acima citados, excessiva.
Afigura-se-nos, tudo ponderado, ser equilibrado o montante de €6000,00.
III. DECISÃO
Pelo exposto, julga-se a apelação parcialmente procedente e, consequentemente:
a) Altera-se o valor da indemnização fixada na sentença recorrida, fixando-se em sua substituição o montante de € 6 000,00 (seis mil euros);
b) No mais, mantém-se a sentença recorrida.
As custas da apelação, na vertente de custas de parte, seriam a cargo da apelante e do apelado, na proporção do respetivo decaimento (artigos 527.º n.ºs 1 e 2 e 533.º do CPC), mas a A. está delas dispensada em virtude do apoio judiciário de que beneficia.

Lisboa, 07.10.2021
Jorge Leal
Nelson Borges Carneiro
Paulo Fernandes da Silva