Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3472/2008-3
Relator: VARGES GOMES
Descritores: ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
CRIME CONTINUADO
DIMINUIÇÃO DA CULPA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/28/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: 1. Não se verifica uma diminuição da culpa do arguido quando, estando em causa um crime de abuso sexual de crianças, aquele, aproveitando o «êxito» da primeira «operação» e das seguintes, agiu determinado pela vontade de satisfazer os instintos libidinosos e, para tanto, aproveitou as situações mais favoráveis para esse efeito, nomeadamente a ausência da mãe da ofendida.
2. O aproveitamento calculado de situações em que a reiteração é mais propícia exclui, porque não diminui a culpa, o crime continuado.
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência neste Tribunal da Relação de Lisboa

I- Relatório

1- Nos autos de Proc. Com. (Trib. Col.) nº 48/05.9JDLSB da 2ª Vara Criminal, 1ª Sec. de Lisboa, o arguido M… foi julgado e condenado, por douto acórdão de 6/06/2006, pela prática, “em autoria material, ou imediata, e em concurso real, de cinco crimes de abuso sexual de crianças, ps. ps. - (?!) - pelo artigo 172º nºs 1 e 2, ambos do CP” nas penas, “por cada um dos crimes”, de “três anos e seis meses de prisão” em cúmulo das quais o foi “na pena única de sete anos e seis meses de prisão”, para além e ainda na de “expulsão...do território nacional por dez anos, a executar, de imediato, após cumprimento da pena.

2- Do assim decidido foi interposto recurso para este Tribunal da Relação o qual, por douto acórdão de 18/01/2007, decidiu “conceder provimento parcial...e, em consequência, revoga(r)-se o acórdão recorrido na parte em que decretou a expulsão do arguido do território nacional...mantendo-o quanto ao mais.

3- De novo, do assim decidido foi interposto recurso para o STJ o qual, por douto acórdão de 16/05/2007, o julgou “manifestamente infundado”, rejeitando-o.

4- Interposto depois ainda outro recurso para o Tribunal Constitucional, por douto acórdão de 26/09/2007, foi decidido “não conhecer do objecto do” mesmo.

5- Em 31/01/2009, já no Tribunal a quo, presente que se teve o disposto nos artºs 30º do CP e 371º-A do CPP, requerendo o arguido “a abertura da audiência para aplicação da lei penal mais favorável...atento que estamos perante a mesma vítima”, e concluindo que “a pena a que...foi condenado deverá ser revista e aplicada uma nova pena, tendo em conta a condenação nunca superior a 3 anos e seis - meses... - de prisão”, foi o mesmo indeferido, com fundamento na não verificação de qualquer situação objecto de previsão do artº 2º nº 4 do CP, na redacção dada pela Lei 59/07, ou seja, “a entrada em vigor de lei penal “diferente...mais favorável”.

6- É do assim e agora decidido que o arguido interpõe o presente recurso, extraindo da sua motivação, em resumo, as seguintes conclusões:

            a) ...b) O arguido encontra-se em cumprimento da pena desde 26 de Setembro de 2006....
            f) A fundamentação operada pelo Tribunal “a quo” no douto Despacho recorrido é contrária ao Acórdão...que condenou o arguido na pena de 7 anos e 8 meses de prisão por cinco crimes de abuso sexual de crianças, em concurso real, que apesar de não ter sido legalmente enquadrado, presume-se ter sido feito na previsão normativa do nº 1 do artº 30º do antigo CP, sendo certo que não se fundamentou a decisão de não aplicação ao arguido do crime continuado, nem examinou, para afastar, a possibilidade de o crime ser continuado, e tão pouco se fundamentou porque é que no caso em apreço se estava perante a prática de 5 crimes de abuso sexual de crianças...em concurso real, ao ponto de nem se ter feito o enquadramento legal respectivo, como é exigível.
            g) A questão que se coloca, agora com o aditamento introduzido pela lei 59/2007 (nº 3 do artº 30º do CP), não é de possibilidade, mas sim uma obrigação, isto é, verificados os pressupostos do nº 2, e sendo o bem imanente pessoal, e a vítima a mesma, não se verifica um concurso de crimes, mas sim uma continuação, encontram-se preenchidos: há uma identidade do bem jurídico protegido, uma homogeneidade da execução e essencialmente uma diminuição da culpa no caso concreto.
            h) Nos termos do nº 3 do citado artigo, o disposto no nº 2 não se aplica aos crimes...salvo tratando-se da mesma vítima. O regime jurídico do crime continuado aplica-se a crimes praticados contra bens eminentemente pessoais, se estiver em causa a mesma vítima.
            i) ...estamos face a um crime eminentemente pessoal praticado sobre a mesma vítima...
            j) ...devendo...ser condenado pela prática de um só crime continuado do...artº 172º nºs 1 e 2 do CP, e não...cinco crimes em concurso real.
            l) Estipula o nº 4 do artº 2º do CP...
            m) Consagra o artº 29º nº 4 da Constituição...
            n)...deverá ser reaberta a Audiência...de forma a aplicar ao arguido, retroactivamente o regime...mais favorável.
            Normas jurídicas violadas:
            Artºs 30 nº 2 e 3 e 2º  nº 4 do CP
            Artº 371-A do CPP
            Artº 29º nº 4 2ª parte da CRP...

            b) Sem quaisquer conclusões, respondeu o Mº Pº pugnando pelo não provimento do recurso.

7- Já neste Tribunal da Relação, a Il. Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer no qual conclui pelo não provimento do recurso.

8- Cumprido que foi o disposto no artº 417º nº 2 do CPP, não houve qualquer resposta.

9- Foi depois colhido o competente visto.

                        Cumpre agora decidir.

II- Fundamentação

10- O objecto do presente recurso entronca na questão central de saber se, perante a nova redacção dada ao artº 30º nº 3 do CP pela Lei 59/07, de 4/09 - a lei posterior aos factos tida por mais favorável - a factualidade julgada provada integra a figura da continuação criminosa, como se pretende, que não já a prática dos cinco crimes de abuso sexual de crianças do artº 172º nºs 1 e 2 do CP, pelos quais o arguido foi condenado, sendo que, diz-se também e agora, sem fundamentação bastante.
            Impõe-se pois, assim e desde já, recordar a matéria de facto julgada provada e não provada:

a) Os factos julgados provados

            No início do ano de 2002, o arguido sub-arrendou um quarto numa casa sita na Rua XX, n.º YY, Z , em São Domingos de Benfica, Lisboa, onde residia a locatária F… e a sua filha L… , nascida em 26.08.93.
            No ano de 2002, em dia indeterminado, o arguido, aproveitando o facto de a menor L… se encontrar sozinha, no seu quarto, dirigiu-se-lhe e começou a acariciar -lhe o corpo, na zona do peito.
            Após, o arguido tirou-lhe as calças e as cuecas que aquela trazia vestidas e introduziu o seu pénis, erecto, na vagina da menor, aí o friccionando, acabando por ejacular para o chão, sem uso de qualquer preservativo, tendo provocado dores na menor e sangramento na vagina.
            O arguido mandou então a menor limpar o esperma e o sangue que tinham ficado no chão, e disse-lhe que não deveria falar daquilo a ninguém, com a ameaça de que agarrá-la-ia e à sua mãe, e mataria as duas.
            O arguido, durante o ano de 2002, voltou a repetir comportamentos semelhantes ao descrito, pelo menos em mais quatro ocasiões, aproveitando o facto da menor estar sozinha em casa, introduzindo-lhe o pénis erecto na vagina, aí o friccionando e ejaculando sempre fora do corpo da menor.
            O arguido, em tais ocasiões, também lambia e acariciava o peito da menor, apesar do facto de, na altura, aquela ainda não ter os seios desenvolvidos.
            Naquelas ocasiões, o arguido, ao acercar-se da L… foi “muito bruto”, gritando-lhe para que ela baixasse as calças e as cuecas, sendo que era também aos gritos que ameaçava aquela de que a mataria, e à mãe, se contasse o que se passava.
            O arguido, ao agir como descrito, fê-lo consciente e voluntariamente, com perfeito conhecimento da idade da aludida criança L…, com intenção de satisfazer os seus instintos libidinosos, sabendo que tal menina, em razão da sua idade, não tinha a capacidade e o discernimento necessários a uma livre decisão, que aquele relacionamento sexual prejudicava o normal desenvolvimento da mesma, e que a sua conduta era proibida por lei.

            b) Os factos não provados

            “Não se provaram quaisquer outros factos e, designadamente, não se provou que o arguido, em data não apurada de 2002, quando a menor estava a dormir, se tivesse aproximado e procurasse desembrulhá-la dos “cobertores”, tendo a mesma gritado, o que levou a tapar-lhe a boca, conseguindo enrolar-se nas “mantas”, por forma a evitar ser tocada pelo mesmo arguido.
                       
Conhecendo

            a) Da fundamentação decisória

            Nesta matéria, temos de confessar não perceber o porquê da invocação da falta de fundamentação decisória. Com efeito, lê-se o douto despacho de fls 828/30, e, certamente sem esforço interpretativo algum, se perceberá das razões do despacho ora recorrido, em resumo:
            Não entrou em vigor lei penal mais favorável ao arguido, sendo que, adiantou-se então ainda, “já à data dos factos…era admissível…o enquadramento jurídico…na figura do “crime continuado”…O aditamento introduzido pela Lei 59/2007 (nº 3 do artº 30º do CP…não trouxe nada de novo na matéria em análise…
            A não concordância com a decisão em causa, é óbvio, aceita-se. Dizer-se que se não mostra fundamentada é, cremos nós, errado.
            Improcede assim o recurso nesta parte.

            b) Do artº 30º nº 3 do CP (redacção dada pela Lei 59/07, de 4/09)

            Recorda-se o preceito em causa:
            “3 – O disposto no número anterior não abrange os crimes contra bens eminentemente pessoais, salvo tratando-se da mesma vítima.
            Disse-se então quando do respectivo processo legislativo:
            “O crime continuado é objecto de uma restrição que supera dificuldades interpretativas. Assim, determina-se que o seu regime se não aplica a crimes praticados contra bens eminentemente pessoais, se estiverem em causa diferentes vítimas, de acordo, aliás, com o entendimento da jurisprudência.(1)
            Diríamos nós que não é nova até esta preocupação legislativa, Na verdade, e relembra-o o Il Juiz Cons. Maia Gonçalves, já quando da 13ª sessão da Comissão Revisora do Código, tendo-se aprovado um último período no texto legal, dizendo que “a continuação não se verifica porém, quando são violados bens jurídicos inerentes à pessoa, salvo tratando-se da mesma vítima”, a sua supressão da lei ficou a dever-se, apenas e tão só, à sua desnecessidade, não significando assim que “outra solução deva ser adoptada(2).
            Anos volvidos…aí está agora a sua consagração expressa, sendo que, como se diz, o assim ora vigente serviu, apenas e tão só, para esclarecimento de dúvidas, por vezes, e até então, ainda existentes neste domínio.
            Quiçá, daqui também, a alguma singeleza da fundamentação antes referida.
            Estamos, no caso dos autos, perante crimes em que é vítima a mesma pessoa, pelo que importa saber da eventual verificação da continuação criminosa.

            c) Do crime continuado

Como se não desconhecerá, a figura da continuação criminosa, velha de séculos, reveste-se, no âmbito do direito criminal, concreta e naturalmente, em sede do concurso de crimes, de especificidades próprias, nem sempre susceptíveis de fácil apreensão.
            Como, certamente, se não deixará de aceitar também - por doutrinária e jurisprudencialmente aceites - a figura impõe desde logo uma reiteração criminosa, um agir repetido, contínuo, daí que, mais ou menos, prolongado no tempo.
Assim sucede no caso dos autos: Durante o “ano de 2002”, o recorrente abusou sexualmente, por 5 (cinco) vezes, da menor L, de 9 anos de idade.
            Fê-lo “aproveitando o facto de a menor L se encontrar sozinha”, na casa onde residia com a sua mãe, sempre em momentos de ausência desta, e onde o ora recorrente também residia, por ali ter arrendado um quarto.
            Que ocorre assim “uma identidade/mesmidade do bem jurídico protegido” - a “autodeterminação sexual” da menor - e, de acordo com o circunstancialismo julgado provado e supra referido em 10- a), um agir homogéneo, dúvidas não oferecem também os autos.
            Tudo está em apurar se tais condutas revelam, também e ainda, uma diminuição da culpa do recorrente, nos termos exigidos pelo artº 30º nº 2 in fine do CP.
            Quer a doutrina, quer a jurisprudência, certamente conhecidas, dão-nos exemplos típicos de tais situações:
            “a)…a circunstância de se ter criado através da primeira actividade criminosa, uma certa relação, um acordo entre os sujeitos;
            b)…de voltar a verificar-se uma oportunidade favorável à prática do crime…;
            c)…da perduração do meio apto para realizar um delito, que se criou ou adquiriu com vista a executar a primeira conduta criminosa;
            d) a circunstância de o agente, depois de executar a resolução que tomara, verificar que se lhe oferece a possibilidade de largar o âmbito da sua actividade criminosa.(3)
            Daqui que entenda hoje também o nosso STJ que o “pressuposto da continuação criminosa será a existência de uma relação que, de maneira considerável, facilitou a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito.” Contudo, adianta ainda este douto acórdão, “…não basta qualquer solicitação exterior, sendo necessário que ela facilite de maneira apreciável a reiteração criminosa; e, por outro lado, não poderá ser também suficiente que se verifique uma situação exterior normal ou geral que facilite a prática do crime: sendo normais, ou gerais, deve justamente o agente contar com elas para modelar a sua personalidade de maneira a permanecer fiel aos comandos jurídicos.(4).
            Em situação em tudo semelhante à dos presentes autos, diz ainda o nosso Mais Alto Tribunal:
Estando em causa um crime de abuso sexual de crianças…não pode aceitar-se que o «êxito» da primeira «operação» e das seguintes possa determinar a diminuição da culpa do arguido: este agiu determinado pela vontade de satisfazer os instintos libidinosos…e, para tanto, aproveitou as situações mais favoráveis para esse efeito, nomeadamente a ausência damãe da ofendida. O aproveitamento calculado de situações em que a reiteração é mais propícia exclui, porque não diminui a culpa, o crime continuado.(5) - realçados nossos.
            Ora,
            De acordo com a factualidade julgada provada, é esta mesma a situação dos autos, como claramente resultou provada: O arguido e ora recorrente, sub-locatário da casa onde residia a menor, em todas as suas reiteradas condutas aproveitou sempre “o facto da menor estar sozinha em casa”, dadas as situações de ausência da mãe, que com ela vivia, para assim agir da forma repetida deixada descrita.
Isto porque, tanto quanto os autos parecem revelar, tais ausências eram normais.
Daqui, adianta também e ainda aquele aresto referido, tal como ocorre no circunstancialismo descrito nos autos, “o aproveitamento calculado de situações em que a reiteração é mais propícia exclui, porque não diminui a culpa, o crime continuado.
Tanto bastaria assim para a improcedência do recurso.

III- Decisão

12- Face a todo o assim deixado exposto, acorda-se neste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso interposto, mantendo-se, na íntegra, a decisão recorrida.
            Custas pelo recorrente.
      
          Lxª, 28/05/2008

(Mário Manuel Varges Gomes - Relator)

(Maria Teresa Féria Gonçalves de Almeida)

_______________________________________________________



(1)  Vd Proposta de lei n.º 98/X, in DAR, II Série-A - Nº 10, 2º Suplem., de  18/10/2006.
(2)  C. P. Português, Anot. e Coment., 15ª ed.-2002, pág. 142, Almedina.
(3)  Correia, Eduardo, Direito Criminal II, pág. 210, Livraria Almedina.
(4)  Ac. de 16/01/2008, in www.gde.mj.pt
(5)  Ac. de 23/01/2008, loc.cit.