Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
9338/21.2T8LSB.L1-2
Relator: CARLOS CASTELO BRANCO
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
APRECIAÇÃO DA PROVA
MATÉRIA CONCLUSIVA
CONTRATO DE MEDIAÇÃO IMOBILIÁRIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/28/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I)–São os enunciados de factos, e não os temas de prova, que o artigo 607.º, n.ºs. 4 e 5, do CPC impõe que sejam discriminados e declarados provados e/ou não provados pelo juiz, na sentença.

II)–Assim, como princípio, não deve enunciar-se, em sede de fundamentação da sentença, no segmento dos factos apurados (provados/não provados), matéria conclusiva ou de direito, designadamente, quando esta se reporte ao cerne do objeto da questão a decidir.

III)– Contudo, tem-se admitido que a mesma seleção factual possa conter expressões de cariz fático-jurídico com um significado socialmente consensual, se não forem objeto de discussão entre as partes, nem carecerem de interpretação jurídica, devendo ser tomadas na sua aceção corrente ou mesmo jurídica, se for coincidente, ou estiver já consolidada como tal na linguagem comum, caso em que ainda estaremos perante matéria factual.

IV)–Imputando os autores (adquirentes de imóvel) à ré (mediadora imobiliária que mediou tal aquisição) responsabilidade civil por inobservância do dever previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 17.º da Lei n.º 15/2013, de 8 de fevereiro, a inclusão na selecção factual de que “a ré omitiu o dever de se certificar de que o prédio (…) estava licenciado” é indevida, por tal asserção conter matéria absolutamente conclusiva, que contém o desfecho da ação, culminando na assunção da conclusão jurídica que se retiraria dos factos materiais apurados/não apurados, não podendo ser incluída ou mantida – devendo ser eliminada - no rol dos factos provados ou não provados.

V)–O artigo 17.º, n.º 1, al. b) da Lei n.º 15/2013, de 8 de fevereiro – no âmbito dos deveres para com os clientes e os destinatários - determina que a empresa de mediação deve certificar-se da correspondência entre as características do imóvel objeto do contrato de mediação e as fornecidas pelos clientes, pelo que, imputando os autores responsabilidade civil à contraparte por inobservância de tal dever, cabe-lhes, nomeadamente, o ónus de alegação e prova dos pressupostos da responsabilidade civil inerente, entre os quais a ilicitude imputada – no sentido da demonstração do incumprimento de tal dever - por se tratar de facto constitutivo da pretensão que deduziram - quer em face do disposto no artigo 483.º do CC, quer em vista do disposto no artigo 486.º do mesmo Código (inexistindo presunção legal que transfira tal ónus para a contraparte) - , em conformidade com o disposto no n.º 1 do artigo 342.º do CC.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa


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1. Relatório:

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1.–PL e CP, identificados nos autos, instauraram a presente ação de condenação, sob a forma de processo comum de declaração, contra PRESTÍGIO GLOBAL – SOCIEDADE DE MEDIAÇÃO IMOBILIÁRIA, S.A., também identificada nos autos, pedindo a condenação da ré a pagar-lhes uma indemnização de € 27.000,00 e as custas do processo.

Para o efeito alegaram, em suma:
- Que o autor se dedica à compra e venda de imóveis, adquirindo-os, restaurando-os e vendendo-os e no exercício dessa actividade, teve conhecimento que a ré tinha em carteira, para venda, na sua loja em Alverca, o prédio urbano sito na Quinta do Serrado, n.º …, em Camarate, inscrito na matriz predial urbana da União das Freguesias de Camarate, Unhos e Apelação sob o artigo … e, descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Loures sob o n.º … da freguesia de Camarate, tendo apresentado através da Ré, uma proposta que foi aceite pelo vendedor e por documento particular, autenticado de compra e venda, datado de 08/02/2018, elaborado pela Solicitadora LO e assinado nas instalações da Ré em Alverca, AG declarou vender ao A. o referido prédio, ficando a constar desse documento a intervenção da ré como mediadora.
- Que após a aquisição do imóvel procederam a obras de melhoramento e modernização (trabalhos de construção civil, identificados na petição inicial), nas quais gastaram cerca de € 12.000,00, tendo colocado o referido prédio no mercado para venda;
- Que por escrito denominado de contrato-promessa de compra e venda, dado de 28/02/2019, os AA. prometeram vender a MO o mencionado prédio, pelo preço de € 55.000,00, sendo que para instruir o pedido de financiamento bancário de que necessitava para comprar o prédio em causa, a promitente compradora, precisava de entregar ao Montepio uma certidão da licença de utilização/habitação, pelo que o A. dirigiu-se à Câmara Municipal de Loures e, requereu certidão da licença de habitação n.º … emitida em 11/11/1971, porém, essa licença dizia respeito a um prédio com dois fogos, sito em Almosteis, Campo do Rio, Camarate, pelo que os AA. adquiriram uma edificação clandestina, a qual não é passível de legalização, estando os AA. impossibilitados de celebrar o contrato promessa supra referido e, estando obrigados a devolver à promitente compradora, pelo menos o sinal que dela receberam, correndo o risco de terem de lho dobrar, pelo que o negócio intermediado pela Ré, no qual os AA. foram ludibriados, só foi possível, porque a Ré não cumpriu a lei e, causou danos aos AA. que equivalem a somatório da diferença entre o valor que pagaram pelo prédio e, aquele que é o seu por não estar licenciado, com o montante despendido em obras no valor de cerca de € 12.000,00; e
- Que a omissão da Ré, que consistia em cumprir a obrigação que lhe é imposta pela alínea b) do n.º 1 do artigo 17.º da Lei n.º 15/2013 de 08/02, determinou para os AA. um prejuízo de € 15.000,00 correspondente à diferença entre o que pagaram pela compra do prédio e o seu valor real como edificação, acrescido dos € 12.000,00 em obras, os quais deverão ser ressarcidos pela Ré.

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2.–Citada a ré, a mesma contestou alegando, em síntese, que em 21/11/2017 celebrou com os AA. o contrato de mediação imobiliária, visando encontrar interessado na compra do prédio em causa nos autos, sendo que aquando da celebração desse contrato, a Ré verificou todos os elementos ao seu dispor, incluindo a existência de utilização, através da consulta de escritura pública de compra e venda outorgada a fls. 81 do Livro …-A do Cartório Notarial de Arruda dos Vinhos, em 02/…/1980, da qual consta que foi exibida essa licença de utilização e, só após a celebração do contrato de compra e venda pelos AA., veio a provar-se que a informação atestada por aquele oficial púbico não estava correcta e, o imóvel não possui licença de utilização, sendo que os AA. não interpelaram os anteriores proprietários do imóvel, solicitando a anulação do contrato de compra e venda nos termos dos artigos 916.º e 917.º do C. Civil.
Concluiu, pela sua absolvição da instância e serem os autores condenados no pagamento de custas e procuradoria condigna.
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3.–Por despacho de 23-09-2021 foi dispensada a realização de audiência prévia, fixado o valor da causa, e proferido despacho saneador, com identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova.
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4.–Após a realização da audiência de discussão e julgamento, em 22-11-2021 foi proferida sentença julgando a ação improcedente e absolvendo a ré do pedido deduzido pelos autores.
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5.–Não se conformando com a referida sentença, dela apelam os autores, pugnando pela sua revogação e substituição por outra que julgue a acção procedente, tendo formulado as seguintes conclusões:
a)-Através da presente acção, os AA. pretendem ser indemnizados pela Ré dos prejuízos que sofreram em consequência da aquisição de um prédio clandestino – insusceptível de ser transacionado – em negócio por ela intermediado;
b)-A Ré tinha em carteira (como mediadora imobiliária devidamente licenciada – cfr. facto provado nº. 2), para venda, o prédio sito na Quinta do Serrado, nº. …, em Camarate (facto provado nº. 3), que o A. marido mostrou interesse em adquirir, destinando-o a revenda – factos provados nºs. 3 e 4;
c)-Os AA. compraram o prédio em causa por escrito particular de 8 de Fevereiro de 2018, elaborado pela solicitadora Senhora D. EO, nas instalações da Ré – facto provado nº. 5;
d)-Ficou a constar do título translativo da propriedade referido na conclusão anterior que havia sido emitida para o prédio em causa, em 11 de Novembro de 1971, a licença de habitação nº. … da Câmara Municipal de Loures – facto provado nº. 7;
e)-Os AA. promoveram obras de reabilitação no prédio que adquiriram com a intermediação da Ré, obras que ascenderam a € 12.000,00 – factos provados nºs. 8 e 9;
f)-Colocada a casa no mercado para revenda, os AA. prometeram vendê-la a MO – facto provado nº. 11;
g)-Tendo o Banco financiador da promitente compradora solicitado certidão da licença de utilização, o A. marido deslocou-se à Câmara Municipal de Loures, com o propósito de obter tal documento – factos provados nºs. 12 e 13;
h)-A licença de utilização identificada no “documento particular autenticado de compra e venda” referido na conclusão c) supra não corresponde ao prédio adquirido pelos AA. através daquele título, mas a um imóvel de dois andares, sito em Almostéis, Campo do Rio – facto provado nº. 14;
i)- O prédio adquirido pelos AA. no negócio intermediado pela Ré não se encontrava licenciado no momento do negócio, nem é passível de vir a sê-lo – facto provado nº. 17;
j)- A intervenção de mediadora nos negócios imobiliários gera no interessado-comprador a convicção de que os prédios que aquela tem em carteira se encontram legalizados e que a intermediária se certificou de que os elementos que lhe foram fornecidos pelo interessado vendedor correspondem aos imóveis angariados;
k)- Não é sobre o interessado na compra, ainda que exerça a actividade de compra para revenda, que recai o ónus de averiguar se os documentos apresentados pelo vendedor correspondem ao objecto do negócio;
l)- O facto dado como não provado na, aliás douta, sentença recorrida – “a Ré omitiu o dever de se certificar de que o prédio estava licenciado” – não integra, verdadeiramente, matéria de facto, mas uma conclusão jurídica a extrair da factualidade apurada na instrução do processo, após a interpretação e aplicação da norma, pelo que deverá ser eliminado;
m)- Por força do disposto na alínea a) do nº. 1 do art. 17º. da Lei nº. 15/2013, de 8 de Fevereiro, a empresa de mediação está obrigada a certificar-se da correspondência entre as características do imóvel objecto do contrato de mediação e as fornecidas pelos clientes;
n)- O cumprimento da obrigação legal que impende sobre a empresa de mediação de se certificar da correspondência a que se alude na conclusão supra não se basta com a leitura dos documentos apresentados pelo vendedor, carecendo de averiguação para apuramento da verdade;
o)- Verificação documental e certificação não são uma e mesma realidade; a primeira cabe ao notário que exara a escritura de compra e venda, enquanto que a segunda constitui obrigação legal da mediadora imobiliária, devendo esta garantir que o prédio se encontra em condições de ser transmitido, para o que é indispensável que disponha de licença de utilização que lhe corresponda, independentemente de na escritura anterior ter sido feita menção à existência de tal licença;
p)- Confiando na probidade da mediadora imobiliária Ré, os AA., ora apelantes, despenderam € 27.000,00 na aquisição do prédio que supunham legalizado (facto provado nº. 6) e gastaram € 12.000,00 com as obras que nele realizaram, tendo em vista a sua revenda com lucro – factos provados nºs. 9 e 10;
q)- Por não estar legalizado, nem ser susceptível de vir a sê-lo (facto provado nº. 17), o prédio que os AA. adquiriram no negócio intermediado pela Ré não vale mais de € 12.000,00 (facto provado nº. 18), não podendo ser vendido;
r)- Não cumprindo a obrigação, a que estava legalmente adstrita, de se certificar de que o prédio em cuja venda interveio se encontrava efectivamente licenciado, a Ré causou aos AA. um prejuízo (pelo menos) equivalente ao preço por eles desembolsado na compra, já que o valor da construção clandestina tem a expressão económica igual ao montante despendido com as obras;
s)- Ao entender que a Ré – que não se certificou da existência da licença de habitação – “pautou a sua conduta em conformidade com a lei”, a Mma. Juiz a quo procedeu a errada interpretação e aplicação do art. 17º., nº. 1, alínea b) da Lei nº. 15/2013, de 8 de Fevereiro.”.
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6.–Não consta dos autos a dedução de contra-alegações.
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7.–Em 28-03-2022 foi proferido despacho de admissão liminar da apelação.
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8.–Foram colhidos os vistos legais.
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2.Questões a decidir:

Sendo o objeto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos artigos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do CPC - sem prejuízo das questões de que o tribunal deva conhecer oficiosamente e apenas estando adstrito a conhecer das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objeto do recurso - , as questões a decidir são:
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A)–Se o facto dado como não provado – “a Ré omitiu o dever de se certificar de que o prédio estava licenciado” – deve ser eliminado por não integrar matéria de facto, mas uma conclusão jurídica?
B)–Se a decisão recorrida procedeu a errada interpretação e aplicação do art. 17º, nº. 1, alínea b) da Lei nº. 15/2013, de 8 de Fevereiro?
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3. Fundamentação de facto:
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A DECISÃO RECORRIDA CONSIDEROU COMO PROVADA A SEGUINTE FACTUALIDADE:
1.–O A. dedica-se à compra e venda de prédios, adquirindo-os, restaurando-os e vendendo-os.
2.–A Ré é sociedade de mediação imobiliária, a que foi atribuída a licença AMI 7772, estando identificada como fazendo parte da rede Remax, com a designação de “REMAX vantagem Park”.
3.–No exercício da actividade referida em 1), o A. tomou conhecimento de que a Ré tinha em carteira, para venda, na sua loja de Alverca, o prédio sito na Quinta do Serrado, n.º …, em Camarate, inscrito na matriz predial da União das Freguesias de Camarate, Unhos e Apelação sob o artigo … e, descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Loures sob o n.º … da Freguesia de Camarate.
4.–Depois de visitar o prédio referido em 3), o A. informou a Ré de estava interessado em comprá-lo, tendo apresentado proposta que foi aceite pelo vendedor.
5.–Por escrito particular autenticado de compra e venda, datado de 8 de Fevereiro de 2018, elaborado pela solicitadora LO e, assinado nas instalações da Ré em Alverca, AG declarou vender ao A., o prédio referido em 3).
6.–O preço da venda referida em 5) foi de € 27.000,00, tendo ficado a constar desse escrito a intervenção da Ré como mediadora.
7.–Do escrito referido em 5) consta “Para o prédio supra identificado foi emitida em 11.11.1971, a licença de habitação número …, pela Câmara Municipal de Loures.”.
8.–Adquirido o prédio referido em 3), o A. promoveu no prédio referido em 3), os seguintes trabalhos:
A No exterior
a)-Remoção dos azulejos de revestimento;
b)-Regularização das superfícies, com reboco e pintura das paredes;
c)-Nivelamento do patamar;
d)-Revisão geral do telhado, com substituição das telhas partidas e limpeza das demais e
e)-Relocalização do contador da água para que a sua leitura pudesse passar a ser feita pelo exterior do prédio.
B– No Interior
a)-Substituição integral da canalização, incluindo a dos esgotos;
b)-Substituição integral da instalação eléctrica, com colocação de novos interruptores e tomadas;
c)-Remoção do revestimento e das loiças da casa de banho e sua substituição por novos, incluindo torneiras e autoclismo;
d)-Remoção do revestimento e dos móveis da cozinha e sua substituição por novos, incluindo lava-loiça e torneira;
e)-Reparação de todas as paredes, com aplicação de massas e pintura com duas demãos;
f)-Revestimento dos pavimentos das assoalhadas e corredor por piso flutuante e,
g)-Instalação de exaustor, termoacumulador, placa e forno na cozinha.
9.–Nos trabalhos referidos em 8), os AA. gastaram € 12.000,00.
10.–Concluídos os trabalhos referidos em 8), o A. colocou o prédio referido em 3) no mercado para o vender.
11.–Por escrito denominado “Contrato Promessa de Compra e Venda”, datado de 28 de Fevereiro de 2019, os AA. prometeram vender a MO, o prédio referido em 3) pelo preço de € 55.000,00.
12.–Para instruir o pedido de financiamento bancário de que necessitava para comprar o prédio referido em 3) aos AA., MO precisava de entregar ao Montepio certidão da licença de utilização/habitação.
13.–O A. dirigiu-se à Câmara Municipal de Loures e requereu certidão da licença de referida em 7).
14.–O alvará da licença de habitação referido em 7) diz respeito a prédio com dois fogos, sito em Almosteis, Campo do Rio, Camarate.
15.–Supondo tratar-se de engano, o A. solicitou à Câmara Municipal de Loures, o auto de vistoria relativo ao alvará da licença referida em 7), do qual resulta que o prédio licenciado por aquele alvará se situa em Almosteis e tem dois andares.
16.–O prédio referido em 3) é uma casa térrea e situa-se na Quinta do Serrado, que não tem licença de utilização/habitação.
17.–O prédio referido em 3) não é passível de “licenciamento de edificação”.
18.–O prédio referido em 3), com 36 m2 de área coberta, no local onde se situa, não vale mais de € 12.000,00.
19.–De termo de autenticação lavrado na data referida em 5), a solicitadora LO declarou que lhe foi exibida “- Certidão de escritura de 25.06.1980, do Cartório Notarial de Arruda dos Vinhos, exarada a folhas 81, do livro …, por onde verifiquei que para o prédio foi emitida a licença de habitação número …, em 11.11.1970, pela Câmara Municipal de Loures.”
20.–Em momento anterior ao escrito referido em 5), foram entregues ao A. os escritos por ele solicitados, para que os pudesse analisar, não tendo solicitado a apresentação da certidão da licença de utilização referida em 7).
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A DECISÃO RECORRIDA CONSIDEROU COMO NÃO PROVADO O SEGUINTE:
1.–A Ré omitiu o dever de se certificar de que o prédio referido em 3) estava licenciado.
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4.Fundamentação de Direito:
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A)Se o facto dado como não provado – “a Ré omitiu o dever de se certificar de que o prédio estava licenciado” – deve ser eliminado por não integrar matéria de facto, mas uma conclusão jurídica?
Os recorrentes, em sede de alegações de recurso, visam a reapreciação da matéria de facto, quanto ao facto não provado (cfr. Ponto III, A) das alegações), considerando que o mesmo não é matéria de facto, mas uma conclusão, “um ponto de chegada da interpretação da lei” e, ainda que, “a sê-lo, deveria ter sido dado como provado”.

Dispõe o artigo 640.º do CPC que:
1- Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a)- Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b)- Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c)- A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2- No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a)- Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b)- Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3- O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º”.

Assim, aos concretos pontos de facto, concretos meios probatórios e à decisão deve o recorrente aludir na motivação do recurso (de forma mais desenvolvida), sintetizando-os nas conclusões.

As exigências legais referidas têm uma dupla função: Delimitar o âmbito do recurso e tornar efectivo o exercício do contraditório pela parte contrária (pois só na medida em que se sabe especificamente o que se impugna, e qual a lógica de raciocínio expendido na valoração/conjugação deste ou daquele meio de prova, é que se habilita a contraparte a poder contrariá-lo).

O recorrente deverá apresentar “um discurso argumentativo onde, em primeiro lugar, alinhe as provas, identificando-as, ou seja, localizando-as no processo e tratando-se de depoimentos a respectiva passagem e, em segundo lugar, produza uma análise crítica relativa a essas provas, mostrando minimamente por que razão se “impunha” a formação de uma convicção no sentido pretendido” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17-03-2014, Processo nº 3785/11.5TBVFR.P1, relator ALBERTO RUÇO).

Os aspectos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade (cfr. o Acórdão do STJ de 28-04-2014, P.º nº 1006/12.2TBPRD.P1.S1, relator ABRANTES GERALDES).

Não cumprindo o recorrente os ónus do artigo 640º, n.º 1 do CPC, dever-se-á rejeitar o seu recurso sobre a matéria de facto, uma vez que a lei não admite aqui despacho de aperfeiçoamento, ao contrário do que sucede quanto ao recurso em matéria de direito, face ao disposto no art. 639.º, n.º 3, do CPC (cfr. Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 19-06-2014, P.º n.º 1458/10.5TBEPS.G1, relator MANUEL BARGADO).

Dever-se-á usar de maior rigor na apreciação da observância do ónus previsto no n.º 1 do artigo 640.º do CPC (de delimitação do objecto do recurso e de fundamentação concludente do mesmo), face ao ónus do n.º 2 (destinado a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, que tem oscilado em exigência ao longo do tempo, indo desde a transcrição obrigatória dos depoimentos até uma mera indicação e localização exacta das passagens da gravação relevantes) do mesmo artigo (cfr., neste sentido, Ac. do STJ de 29-10-2015, P.º n.º 233/09.4TBVNG.G1.S1, relator LOPES DO REGO).

O ónus atinente à indicação exacta das passagens relevantes dos depoimentos gravados deve ser interpretado em termos funcionalmente adequados e em conformidade com o princípio da proporcionalidade, pelo que a falta de indicação, com exactidão, só será idónea a fundamentar a rejeição liminar se dificultar, de forma substancial e relevante, o exercício do contraditório, ou o exame pelo tribunal, sob pena de ser uma solução excessivamente formal, rigorosa e sem justificação razoável (cfr. Acs. do STJ, de 26-05-2015, P.º nº 1426/08.7CSNT.L1.S1, relator HÉLDER ROQUE, de 22-09-2015, P-º nº 29/12.6TBFAF.G1.S1, relator PINTO DE ALMEIDA, de 29-10-2015, P.º n.º 233/09.4TBVNG.G1.S1, relator LOPES DO REGO e de 19-01-2016, P.º nº 3316/10.4TBLRA-C1-S1, relator SEBASTIÃO PÓVOAS).

A apresentação de transcrições globais dos depoimentos das testemunhas não satisfaz a exigência determinada pela al. a) do n.º 2 do art. 640.º do CPC (neste sentido, Ac. do STJ de 19-02-2015, P.º nº 405/09.1TMCBR.C1.S1, relatora MARIA DOS PRAZERES BELEZA), o mesmo sucedendo com o recorrente que procede a uma referência genérica aos depoimentos das testemunhas considerados relevantes pelo tribunal para a prova de quesitos, sem única alusão às passagens dos depoimentos de onde é depreendida a insuficiência dos mesmos para formar a convicção do juiz (cfr. Ac. do STJ de 28-05-2015, P.º n.º 460/11.4TVLSB.L1.S1, relator GRANJA DA FONSECA).

Nas conclusões do recurso devem ser identificados com precisão os pontos de facto que são objecto de impugnação, bastando que os demais requisitos constem de forma explícita da motivação (neste sentido, entre outros, os Acórdãos do STJ de 19-02-2015, P.º nº 299/05.6TBMGD.P2.S1, relator TOMÉ GOMES, de 01-10-2015, P.º nº 824/11.3TTLRS.L1.S1, relatora ANA LUÍSA GERALDES, de 11-02-2016, P.º nº 157/12-8TVGMR.G1.S1, relator MÁRIO BELO MORGADO).

Note-se, todavia, que, quanto à reapreciação factual pelo Tribunal de recurso, atenta a função deste tribunal, que não se compadece com a realização de um novo – e integral – julgamento, o mesmo só deverá alterar a decisão sobre a matéria de facto se concluir que as provas produzidas apontam em sentido diverso ao apurado pelo tribunal recorrido. Ou seja: “I.- Mantendo-se em vigor, em sede de Recurso, os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pelo Tribunal da Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve ser efectuado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados. II:- Assim, a alteração da matéria de facto só deve ser efectuada pelo Tribunal da Relação, quando este Tribunal, depois de proceder à audição efectiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência final, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direcção diversa, e delimitaram uma conclusão diferente daquela que vingou na primeira Instância” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 14-06-2017, Processo 6095/15T8BRG.G1, relator PEDRO DAMIÃO E CUNHA).

A insuficiência da fundamentação probatória do recorrente não releva como requisito formal do ónus de impugnação, mas, quando muito, como parâmetro da reapreciação da decisão de facto, na valoração das provas, exigindo maior ou menor grau de fundamentação, por parte do tribunal de recurso, consoante a densidade ou consistência daquela fundamentação (neste sentido, Ac. do STJ de 19-02-2015, P.º nº 299/05.6TBMGD.P2.S1, relator TOMÉ GOMES).

Contudo, “não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objecto da impugnação for insusceptível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica para a solução da causa ou mérito do recurso, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15-09-2015, Processo 6871/14.6T8CBR.C1, relator MOREIRA DO CARMO), sob pena de se praticar um acto inútil proibido por lei (cfr. artigo 130.º do CPC).

Como resulta do n.º 1 do já citado artigo 640.º do CPC, no caso de impugnação sobre a decisão de facto, o recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera terem sido incorretamente julgados, bem como, os concretos meios de prova que impunham diversa decisão, indicando a decisão que, em seu entender, deve ser proferida sobre tais questões de facto.

De acordo com o previsto no n.º 2 do mesmo artigo, quando os meios de prova invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, cabe ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso na parte respetiva, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o recurso (sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes).

Quanto ao cumprimento deste ónus impugnatório, o mesmo deve, tendencialmente, fazer-se nos seguintes moldes: “(…) enquanto a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, já não se afigura que a especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações, posto que estas não têm por função delimitar o objeto do recurso nessa parte, constituindo antes elementos de apoio à argumentação probatória” (assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-02-2015, Processo 299/05.6TBMGD.P2.S1, relator TOMÉ GOMES).

Do mesmo modo, se entendeu no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 26-04-2018 (processo 1716/15.2T8BGC.G1, relatora MARIA DA PURIFICAÇÃO CARVALHO) escrevendo-se o seguinte:
1.- O art.º 640.º do C.P.C. enumera os ónus que ficam a cargo do recorrente que pretenda impugnar a decisão da matéria de facto, sendo que a cominação para a inobservância do que aí se impõe é a rejeição do recurso quanto à parte afectada.
2.- Ao impor tal artigo um ónus especial de alegação quando se pretenda impugnar a matéria de facto, com fundamento na reapreciação da prova gravada, o legislador pretendeu evitar que o impugnante se limite a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo simplesmente a reapreciação de toda a prova produzida em primeira instância.
3.- Ao cumprimento do ónus da indicação dos concretos meios probatórios não bastará somente identificar os intervenientes, efectuar uma apreciação do que possam ter dito ou impugnar de forma meramente genérica os factos em causa, devendo antes precisar-se, em primeiro lugar, detalhadamente cada um dos pontos da matéria de facto constante da decisão proferida colocados em crise, indicando-se depois, relativamente a cada um deles, as passagens concretas e determinadas dos depoimentos em que se funda a impugnação que impõem decisão diversa (e não que meramente a possibilitariam) e procurando-se localizar, ao menos de forma aproximada, o início e termo de tais passagens por referência aos suportes técnicos, conforme o preceituado no referido n.º4.
4.- Se o recorrente não cumpre tais deveres, não é exigível ao Tribunal que aprecia o recurso que se lhe substitua e tudo reexamine, quando o que lhe é pedido é que sindique concretos erros de julgamento da peça recorrida que lhe sejam devidamente apontados com referência à prova e respectivos suportes”.

Refira-se, no mesmo sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 28-06-2018 (Processo 123/11.0TBCBT.G1, rel. JORGE TEIXEIRA) concluindo que: “Tendo o recurso por objecto a reapreciação da matéria de facto, deve o recorrente, para além de delimitar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar, motivá-lo através da indicação das passagens da gravação que reproduzam os meios de prova que, no seu entendimento, determinam decisão dissemelhante da que foi proferida pelo tribunal “a quo”. Nestas situações, não podendo o Tribunal da Relação retirar as consequências que a impugnação da matéria de facto, deve entender-se que essa omissão impõe a rejeição da impugnação do pertinente recurso, por não cumprimento dos ónus estabelecidos no art. 640º do CPC e consequente inviabilização do cumprimento do princípio do contraditório por parte do recorrido, quando a esses pontos da matéria de facto não concretizados”.

Conforme se salientou no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12-09-2012 (processo 245/09.8 GBACB.C1, relator BRÍZIDA MARTINS):O recorrente que queira impugnar a matéria de facto tem que (…) indicar, dos pontos de facto, os que considera incorretamente julgados – o que só se satisfaz com a indicação individualizada dos factos que constam da decisão, sendo inapta ao preenchimento do ónus a indicação genérica de todos os factos relativos a determinada ocorrência”.
Assim, pode concluir-se que, “como decorre do art. 640.º do CPC o recorrente não satisfaz o ónus impugnatório quando omite a especificação dos pontos de facto que entende terem sido incorrectamente julgados, uma vez que é essa indicação que delimita o objecto do recurso” (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27-09-2018, Pº 2611/12.2TBSTS.L1.S1, rel. SOUSA LAMEIRA).

De todo o modo, de harmonia com o princípio da prevalência da substância pela forma a que se refere o artigo 6.º do vigente CPC (cfr., neste sentido, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa; Código de Processo Civil, Vol. I, Almedina, 2018, p. 32, nota 5), tem-se admitido que, se da conjugação da motivação e das conclusões é viável a percepção de quais os pontos da matéria de facto impugnados, não deverá ter lugar a rejeição da impugnação: “Na verificação do cumprimento dos ónus de alegação previstos no artigo 640º do CPC, os aspectos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, dando-se prevalência à dimensão substancial sobre a estritamente formal. Tendo a recorrente identificado, no corpo das alegações e nas conclusões, os pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados, identificando e transcrevendo parcialmente os depoimentos das testemunhas, em conjugação com a prova documental, que, no seu entender, impõem decisão diversa e retirando-se da leitura das alegações e conclusões, qual a decisão que deve ser proferida a esse propósito, mostra-se cumprido, à luz da orientação atrás referida, o ónus de impugnação previsto no artigo 640º do CPC” (assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10-12-2020, Pº 274/17.8T8AVR.P1.S1, rel. ILÍDIO SACARRÃO MARTINS, na linha do Acórdão do mesmo Tribunal de 12-07-2018, Pº 167/11.2TTTVD.L1.S1, rel. FERREIRA PINTO).

Sobre a indicação concreta de meios de prova que se pretendem utilizar, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05-09-2018 (Processo 15787/15.8T8PRT.P1.S2, rel. GONÇALVES ROCHA) decidiu que: “A alínea b), do nº 1, do art. 640º do CPC, ao exigir que o recorrente especifique os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto impugnados, exige que esta concretização seja feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respectivos meios de prova, documental e/ou testemunhal e das passagens de cada um dos depoimentos”.

E, conforme se concluiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-02-2015 (Processo 405/09.1TMCBR.C1.S1, rel. MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA), não observa o ónus legalmente exigido, “o recorrente que identifica os pontos de facto que considera mal julgados, mas se limita a indicar os depoimentos prestados e a listar documentos, sem fazer a indispensável referência àqueles pontos de facto, especificando os concretos meios de prova que impunham que cada um desses pontos fosse julgado provado ou não provado”.

Quanto ao ónus previsto na alínea c) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC, a jurisprudência tem entendido uniformemente, o seguinte:
- “Limitando-se o Recorrente a afirmar, tanto na alegação como nas conclusões, que, face aos concretos meios de prova que indica, “se impunha uma decisão diversa”, relativamente às questões de facto que impugnara, deve o recurso ser rejeitado quanto à impugnação da matéria de facto, por não cumprimento do ónus processual fixado na alínea c), do n.º 1 do artigo 640º, do CPC” (cfr., o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10-01-2019, Pº 126528/16.6YIPRT.P1, rel. CARLOS PORTELA); e
- “Limitando-se o Recorrente a afirmar, tanto na alegação como nas conclusões, que, face aos concretos meios de prova que indica, “se impunha uma decisão diversa”, relativamente às questões de facto que impugnara, deve o recurso ser rejeitado quanto à impugnação da matéria de facto, por não cumprimento do ónus processual fixado na alínea c), do n.º 1, do artigo 640º, do CPC” (assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06-06-2018, Pº 1474/16.3T8CLD.C1.S1, rel. FERREIRA PINTO).
Finalmente – refira-se – que, conforme se deu nota no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06-06-2018 (Pº 552/13.5TTVIS.C1.S1, rel. PINTO HESPANHOL): “A rejeição da impugnação da decisão sobre a matéria de facto prevista no n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil não está dependente da observância prévia do princípio do contraditório. Para que a Relação conheça da impugnação da matéria de facto é imperioso que o recorrente, nas conclusões da sua alegação, indique os concretos pontos de facto incorretamente julgados, bem como a decisão a proferir sobre tais pontos de facto”.

Conforme refere Abrantes Geraldes, (Recursos em Processo Civil, 6ª edição actualizada, 2020, pp. 199-200) impõe-se a “rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto”, designadamente quando se verifique “(…) Falta de especificação nas conclusões dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados; (…) Falta de especificação dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.); (…) Falta de posição expressa sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação (…)”, concluindo que, a observância dos requisitos acima elencados visa impedir “que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo”.

Estas as linhas gerais em que se baliza a reapreciação da matéria de facto na Relação.
No caso, os recorrentes indicam, com clareza, qual o facto que visam impugnar – o único dado como não provado – e, bem assim, as razões que justificam, por um lado, a sua eliminação e, a considerar-se que a matéria em questão é factual, as atinentes a considerar tal matéria como provada.
Contudo, nesta última alternativa, verifica-se que não são indicados quaisquer concretos meios de prova que justificam a pretensão dos recorrentes, o que, por si, só, justifica, caso se conclua que não é de eliminar a matéria da seleção factual efetuada pelo Tribunal dos factos não provados, a rejeição da impugnação de facto, por inobservância do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC (não se afigurando suficiente para suprir uma tal exigência de indicação, a mera alegação de que em face do provado em 16 e 17 era materialmente impossível à ré ter-se certificado de que o prédio estava licenciado).
Vejamos, pois, se existe motivo para a eliminação da matéria do rol dos factos não provados.
Sendo função e finalidade da decisão judicial, a de resolução de um “conflito de interesses” (cfr. n.º 1 do artigo 3.º do CPC), a paz social só será efetivamente alcançada se o juiz passar de convencido a convincente, o que apenas se consegue através da fundamentação (cfr. Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex, Lisboa, 1997, p. 348).
Neste sentido, é a fundamentação da decisão que assegurará aos visados o respectivo controlo e, simultaneamente, permitirá ao Tribunal de recurso a sindicância do acerto ou desacerto do decidido.
“A motivação constitui, portanto, a um tempo, um instrumento de ponderação e legitimação da decisão judicial e, nos casos em que seja admissível (…) de garantia do direito ao recurso” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 29-04-2014, Pº 772/11.7TBBVNO-A.C1, rel. HENRIQUE ANTUNES).

Logo, conforme se sublinha no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 04-10-2018 (Pº 4981/15.1T8VNF-A.G1, rel. MARIA JOÃO MATOS) “e em termos de matéria de facto, impõe-se ao juiz que, na sentença, em parte própria, discrimine os factos tidos por si como provados e como não provados (por reporte aos factos oportunamente alegados pelas partes, ou por reporte a factos instrumentais, ou concretizadores ou complementares de outros essenciais oportunamente alegados, que hajam resultado da instrução da causa, justificando-se nestas três últimas hipóteses a respectiva natureza).
Impõe-se-lhe ainda que deixe bem claras, quer a indicação do elenco dos meios de prova que utilizou para formar a sua convicção (sobre a prova, ou não prova, dos factos objecto do processo), quer a relevância atribuída a cada um desses meios de prova (para o mesmo efeito), desse modo explicitando não só a respectiva decisão («o que» decidiu), mas também quais os motivos que a determinaram («o porquê» de ter decidido assim).
A explicitação da formação da convicção do juiz consubstancia precisamente a «análise crítica da prova» que lhe cabe fazer (art. 607.º, n.º 4 do CPC): obedecendo aos princípios de prova resultantes da lei, será em função deles e das regras da experiência que irá formar a sua convicção, sobre a matéria de facto trazida ao respectivo julgamento”.
E, de facto, apreciar livremente a prova (cfr. artigo 607.º, n.º 5 do CPC) não equivale a uma apreciação da prova arbitrária, liberta de qualquer regra ou desregrada.
O Juiz tem, ao invés, o dever de objectivar e exteriorizar o modo como formou a sua convicção, impondo-se a “identificação precisa dos meios probatórios concretos em que se alicerçou a convicção do Julgador”, e ainda “a menção das razões justificativas da opção pelo Julgador entre os meios de prova de sinal oposto relativos ao mesmo facto” (assim, Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra Editora, Limitada, 1985, p. 655).
Como evidencia Paulo Pimenta (Processo Civil Declarativo, Almedina, 2014, p. 325): “É assim que o juiz explicará por que motivo deu mais crédito a uma testemunha do que a outra, por que motivo deu prevalência a um laudo pericial em detrimento de outro, por que motivo o depoimento de certa testemunha tecnicamente qualificada levou à desconsideração de um relatório pericial ou por que motivo não deu como provado certo facto apesar de o mesmo ser referido em vários depoimentos. E é ainda assim por referência a certo depoimento e a propósito do crédito que merece (ou não), o juiz aludirá ao modo como o depoente se comportou em audiência, como reagiu às questões colocadas, às hesitações que não teve (teve), a naturalidade e tranquilidade que teve (ou não)”.
“Destarte, o Tribunal ao expressar a sua convicção, deve indicar os fundamentos suficientes que a determinaram, para que através das regras da lógica e da experiência se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento dos factos provados e não provados, permitindo aferir das razões que motivaram o julgador a concluir num sentido ou noutro (provado, não provado, provado apenas…, provado com o esclarecimento de que…), de modo a possibilitar a reapreciação da respectiva decisão da matéria de facto pelo Tribunal de 2.ª Instância” (assim, Ana Luísa Geraldes, “Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto”, in Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Volume I, Coimbra Editora, p. 591).

A fundamentação exerce, pois, uma dupla função: “(…) facilitar o reexame da causa pelo Tribunal Superior e (…) reforçar o autocontrolo do julgador, sendo um elemento fundamental na transparência da justiça, inerente ao acto jurisdicional” (cfr. José Lebre de Freitas, A Acção Declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3.ª edição, Coimbra Editora, 2013, p. 281).

Relativamente ao modo de evidenciação ou de exteriorização na decisão de facto, pelo julgador, do iter que levou à formação da convicção sobre a matéria de facto, não estabelece a lei uma modulação inflexível, podendo a motivação ser concretizada por formas diversas.

Isso mesmo foi referenciado no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 30-04-2019 (Pº 963/13.6TJLSB.L1-7, rel. JOSÉ CAPACETE) onde se concluiu que:
1. O relatório é a parte inicial ou cabeçalho da sentença, de matriz expositiva, em que, de forma sintética, são identificadas as partes e o objeto da causa e se fixam ou enunciam as questões que cumpre ao tribunal apreciar e decidir, não podendo, por isso, limitar-se a identificar as partes e a transcrever os pedidos formulados.
2. O teor dos enunciados de facto correspondentes aos juízos probatórios deve ser depurado de referências aos meios de prova ou às respectivas fontes de conhecimento, que devem, quando muito, constituir argumento probatório, a consignar na motivação, para fundamentar um juízo afirmativo ou negativo, pleno ou restritivo, do facto em causa.
3. Apesar de decorrer da 1ª parte do nº 5 do art. 607º do CPC, que a regra é a da motivação facto a facto, nada impede, no entanto, antes pelo contrário, que a motivação possa incidir sobre um conjunto ou bloco de factos sempre que tal o justifique ou aconselhe, o que ocorrerá, por exemplo, quando um bloco de factos respeite a um determinado tema de prova e o seu encadeamento ou sequência lógica seja tal que se justifique a sua motivação conjunta e simultânea, em vez de fragmentada”.
Nos termos do artigo 662.º, n.º 2, al. c), do CPC a “Relação deve (…), mesmo oficiosamente (…), anular a decisão proferida na 1ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que (…) permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto (…)”.
Assim, quando se verifique que a decisão sobre a matéria de facto omitiu a “pronúncia sobre factos essenciais ou complementares”, tem uma “natureza ininteligível, equívoca ou imprecisa”, ou patenteia “incongruências, de modo que conjugadamente se mostre impedido o estabelecimento de uma plataforma sólida para a integração jurídica do caso”, deve o Tribunal da Relação, oficiosamente, anulá-la, quando não lhe seja possível suprir tais vícios (assim, António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pp. 239 e 240).
Todavia, não poderá esquecer-se que, “o regime consagrado entre nós para os recursos ordinários é de (…) reponderação e não de reexame, visto que o tribunal superior não é chamado a apreciar de novo a acção e a julgá-la como se fosse pela primeira vez, indo antes controlar a correcção da decisão proferida pelo tribunal recorrido, face aos elementos averiguados por este último” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 27-05-2015, Pº 416/13.2TBCBR.C1, rel. ISABEL SILVA).

De facto, a função da Relação não é a de realizar um novo julgamento de facto: “Quando o Tribunal da Relação é chamado a pronunciar-se sobre a reapreciação da prova, no caso de se mostrarem gravados os depoimentos ou estando em causa a análise de meios prova reduzidos a escrito e constantes do processo, deve o mesmo considerar os meios de prova indicados pela partes e confrontá-los com outros meios de prova que se mostrem acessíveis, a fim de verificar se foi cometido ou não erro de apreciação que deva ser corrigido, seja no sentido de decidir em sentido oposto ou, num plano intermédio, alterar a decisão no sentido restritivo ou explicativo; Importa, porém, não esquecer que se mantêm-se em vigor os princípios de imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, pelo que o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados. Assim, em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira instância, em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 30-11-2017, Processo 1426/15.0T8BGC-A.G1, relator ANTÓNIO JOSÉ SAÚDE BARROCA PENHA).

Neste sentido, “não estando em causa formalidades especiais de prova legalmente exigidas para a demonstração de quaisquer factos e assentando a decisão da matéria de facto na convicção criada no espírito do juiz e baseada na livre apreciação das provas testemunhal e documental e pericial que lhe foram apresentadas, a sindicância de tal decisão não pode deixar de respeitar a liberdade da 1ª instância na apreciação dessas provas. O erro na apreciação das provas consiste em o tribunal ter dado como provado ou não provado determinado facto quando a conclusão deveria ter sido manifestamente contrária, seja por força de uma incongruência lógica, seja por ofender princípios e leis científicas, nomeadamente, das ciências da natureza e das ciências físicas ou contrariar princípios gerais da experiência comum (sendo em todos os casos o erro mesmo notório e evidente), seja também quando a valoração das provas produzidas apontarem num sentido diverso do acolhido pela decisão judicial mas, note-se, excluindo este. Em caso de dúvida sobre o sentido da decisão, face às provas que lhe são apresentadas, a 2ª instância deve fazer prevalecer a decisão da 1ª instância, em homenagem à livre convicção e liberdade de julgamento. A garantia do duplo grau de jurisdição em caso algum pode subverter o princípio da livre apreciação da prova, de acordo com a prudente convicção do juiz acerca de cada facto e, por isso, o objecto do recurso não pode ser nem a liberdade de apreciação das provas, nem a convicção que presidiu à matéria de facto, mas esta própria decisão” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 05-05-2011, Processo 334/07.3TBASL.E1, relatora MARIA ALEXANDRA A. MOURA SANTOS).

É que, na verdade, como escreve Abrantes Geraldes (Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, p. 234): “… existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas são percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção do julgador. O sistema não garante de forma tão perfeita quanto a que é possível na 1ª instância a percepção do entusiasmo, das hesitações, do nervosismo, das reticências, das insinuações, da excessiva segurança ou da aparente imprecisão, em suma, de todos os factores coligidos pela psicologia judiciária e de onde é legítimo ao tribunal retirar argumentos que permitam, com razoável segurança, credibilizar determinada informação ou deixar de lhe atribuir qualquer relevo. Além do mais, todos sabemos que, por muito esforço que possa ser feito na racionalização da motivação da decisão da matéria de facto, sempre existirão factores difíceis ou impossíveis de concretizar ou de verbalizar, mas que são importantes para fixar ou repelir a convicção acerca do grau de isenção que preside a determinados depoimentos”.

Em suma: Para se considerarem provados ou não provados determinados factos, não basta que as testemunhas chamadas a depor se pronunciem sobre os factos num determinado sentido, para que o juiz necessariamente aceite esse sentido ou versão.
O julgamento dos factos, na sua valoração, mormente quando se reporta a meios de prova produzidos oralmente, não se reconduz a uma operação aritmética de número ou de adição de depoimentos, antes tem de atender a uma multiplicidade de factores, não se bastando com a palavra pronunciada, mas nele confluindo aspetos tão variados como, as garantias de imparcialidade, as razões de ciência, a espontaneidade dos depoimentos, a verosimilhança, a seriedade, o raciocínio, as lacunas, as hesitações, a linguagem, o tom de voz, o comportamento, os tempos de resposta, as coincidências, as contradições, o acessório, as circunstâncias, o tempo decorrido, o contexto sócio-cultural, a linguagem gestual (como por exemplo os olhares) e até interpretar as pausas e os silêncios dos depoentes, para poder perceber quem estará a falar com verdade e até que ponto é que, consciente ou inconscientemente, poderá a verdade estar a ser distorcida.
“Quanto à apreciação da prova, actividade que se processa segundo as regras da experiência comum e o princípio da livre convicção, certo é que em matéria de prova testemunhal (em sentido amplo) quer directa quer indirecta, tendo em vista a carga subjectiva inerente, a mesma não dispensa um tratamento a nível cognitivo por parte do julgador, mediante operações de cotejo com os restantes meios de prova, sendo que a mesma, tal como a prova indiciária de qualquer outra natureza, pode e deve ser objecto de formulação de deduções e induções, as quais partindo da inteligência, hão-de basear-se na correcção de raciocínio, mediante a utilização das regras de experiência e conhecimentos científicos, tudo se englobando na expressão legal “regras de experiência” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 19-12-2017, Processo: 1156/15.3T8CTB.C2, relator ARLINDO OLIVEIRA).
Assim, como se referiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 02-11-2017 (Processo n.º 501/12.8TBCBC.G1, relatora MARIA JOÃO MATOS): “O recorrente que pretenda contrariar a apreciação crítica da prova feita pelo Tribunal a quo terá de apresentar razões objectivas para contrariar a prevalência dada a um meio de prova sobre outro de sinal oposto, ou o maior crédito dado a um depoimento sobre outro contrário, não sendo suficiente para o efeito a mera transcrição de excertos de alguns dos depoimentos prestados, já antes ouvidos pelo julgador sindicado e ponderados na sua decisão recorrida (art. 640º do C.P.C.)”.
Em suma, conforme se sublinhou no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21-06-2021 (Pº 2479/18.5T8VLG.P1, rel. PEDRO DAMIÃO E CUNHA): “Mantendo-se em vigor, em sede de Recurso, os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova, e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pelo Tribunal da Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve ser efectuado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados. Assim, a alteração da matéria de facto só deve ser efectuada pelo Tribunal da Relação, quando este Tribunal, depois de proceder à audição efectiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência final, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direcção diversa, e delimitaram uma conclusão diferente daquela que vingou na primeira Instância”.
O ordenamento processual probatório português combina o sistema livre apreciação ou do íntimo convencimento com o sistema da prova positiva ou legal, dado que, “a partir da prova pessoal obtida e da análise do teor dos documentos existentes nos autos ou doutra fonte probatória relevante, tomando em consideração a análise da motivação da respectiva decisão, importa aferir se os elementos de convicção probatória foram obtidos em conformidade com o princípio da convicção racional, consagrado pelo artigo 607º, nº 5, do Código de Processo Civil” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 06-10-2016, Pº 1306/12.1TBSSB.E1, rel. JOSÉ TOMÉ DE CARVALHO).
A valoração da prova, nomeadamente a testemunhal, deve ser efectuada segundo um critério de probabilidade lógica, através da confirmação lógica da factualidade em apreciação, partindo da análise e ponderação da prova disponibilizada (cfr. Antunes Varela, Miguel Varela e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, pp. 435-436).
Os meios probatórios têm por função a demonstração da realidade dos factos, sendo que, através da sua produção não se pretende criar no espírito do julgador uma certeza absoluta da realidade dos factos, o que, obviamente implica que a realização da justiça se tenha de bastar com um grau de probabilidade bastante, em face das circunstâncias do caso, das regras da experiência da comum e dos conhecimentos obtidos pela ciência.
A prova não visa “(...) a certeza absoluta (a irrefragável exclusão da possibilidade de o facto não ter ocorrido ou ter ocorrido de modo diferente) (...)”, mas tão só, “(...) de acordo com os critérios de razoabilidade essenciais à prática do Direito, criar no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto” (assim, Antunes Varela, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 1984, págs. 419 e 420).
A apreciação das provas resolve-se, assim, em formação de juízos, em elaboração de raciocínios, juízos e raciocínios estes que surgem no espírito do julgador “(...) segundo as aquisições que a experiência tenha acumulado na mentalidade do juiz segundo os processos psicológicos que presidem ao exercício da actividade intelectual, e portanto segundo as máximas de experiência e as regras da lógica (...)” (assim, Alberto dos Reis; Código de Processo Civil Anotado, vol. III, pág. 245).
Nessa actividade de livre apreciação da prova deve o tribunal especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção adquirida (art. 653º, nº 2 do CPC), permitindo, dessa forma, que se “possa controlar a razoabilidade da convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado” (cfr. Teixeira de Sousa; Estudos Sobre o Novo Processo Civil, p. 348) e exercer um controle externo e geral do fundamento de facto da decisão.
A “prova testemunhal, tal como acontece com a prova indiciária de qualquer outra natureza, pode e deve ser objecto de formulação de deduções e induções, as quais, partindo da inteligência, hão-de basear-se na correcção de raciocínio, mediante a utilização das regras de experiência [o id quod plerumque accidit] e de conhecimentos científicos.
Na transição de um facto conhecido para a aquisição ou para a prova de um facto desconhecido, têm de intervir as presunções naturais, como juízos de avaliação, através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam, fundadamente, afirmar, segundo as regras da experiência, que determinado facto, não, anteriormente, conhecido, nem, directamente, provado, é a natural consequência ou resulta, com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido” (assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de uniformização de jurisprudência, de 21-06-2016, Pº 2683/12.0TJLSB.L1.S1, rel. HÉLDER ROQUE).
Neste enquadramento, a credibilidade firmada em torno de um específico meio de prova tem subjacente a aplicação de máximas da experiência comum, que devem enformar a opção do julgador e cuja validade se objectiva e se afere em determinado contexto histórico e jurídico, à luz da sua compatibilidade lógica com o sentido comum e com critérios de normalidade social, os quais permitem (ou não) aceitar a certeza subjectiva da sua realidade.
Todas estas circunstâncias deverão ser ponderadas na ocasião em que a Relação procede à reapreciação dos meios de prova, evitando a introdução de alterações quando, fazendo actuar o princípio da livre apreciação das provas, não seja possível concluir, com a necessária segurança, pela existência de erro de apreciação relativamente aos concretos pontos de facto impugnados.
Revertendo estas considerações para o caso dos autos, vemos que a recorrente considera que ocorreu erro na apreciação da prova produzida, por entender que o Tribunal não devia ter incluído na matéria de facto – não provada – conceitos que considerou conclusivos, pugnando pela respetiva eliminação.
Em causa está o vertido no único dos factos não provados do seguinte teor: “1. A Ré omitiu o dever de se certificar de que o prédio referido em 3) estava licenciado.”.
Vejamos:
De acordo com o que constava dos artigos 508.º-A, n.º 1, al. e) e 511.º do CPC de 1961, na redação ultimamente vigente, a base instrutória deveria conter a matéria de facto relevante para a decisão da causa, segundo as várias situações plausíveis da questão de direito e sobre a qual incidiriam as diligências instrutórias de prova e de julgamento. Estas normas harmonizavam-se com a disposição contida no artigo 513.º do mesmo Código (com a epígrafe “Objecto da prova”), no qual se consagrava que a instrução tinha por objecto os factos relevantes para o exame e decisão da causa que devessem considerar-se controvertidos ou necessitados de prova.
No novo e vigente Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, na enunciação dos temas da prova, não está em causa a quesitação de cada um dos enunciados de facto controvertidos, mas apenas a enunciação das questões essenciais de facto, em que assenta a controvérsia entre as partes, deixando-se para a decisão sobre a matéria de facto - a ter lugar, em regra, no momento de prolação da sentença - a descrição dos factos que, relativamente a cada tema da prova, tenham sido provados ou não provados.
Conforme esclarecem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 699), “[r]elativamente aos temas da prova a enunciar, não se trata mais da quesitação atomística e sincopada de pontos de facto que caracterizou o nosso processo civil durante muitas décadas. Numa clara mudança de paradigma, procura-se agora que a instrução, dentro dos limites definidos pela causa de pedir e pelas exceções deduzidas, decorra sem barreiras artificiai e sem quaisquer constrangimentos, assegurando a livre investigação e consideração de toda a matéria com atinência para a decisão da causa. Quando, mais adiante, o juiz vier a decidir a vertente fáctica da lide, importará que tal decisão expresse o mais fielmente possível a realidade histórica tal como esta, pela prova produzida, se revelou nos autos, em termos de assegurar a adequação da sentença à realidade extraprocessual”.
Ora, conforme se evidencia no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23-04-2015 (Pº 185/14.9TBRGR.L1-2, rel. ONDINA CARMO ALVES): “Será, pois, admissível que a enunciação dos temas da prova, actualmente prevista no n.º 1 do artigo 596.º do nCPC, assuma um carácter genérico e até, por vezes, aparentemente conclusivo, apenas devendo ser balizada pelos limites que decorrem da causa de pedir e das excepções invocadas, nos exactos termos que a lide justifique.
Todavia, no que concerne à decisão da matéria de facto, a mesma já não deverá conter formulações genéricas, de direito ou conclusivas, ali se exigindo que o juiz se pronuncie sobre os factos essenciais e ainda os instrumentais que assumam pertinência para a questão a decidir.
Não obstante a redacção dada ao artigo 410º do nCPC, nos termos do qual a instrução tem por objecto os temas da prova enunciados ou, quando não tenha havido lugar a esta enunciação, os factos necessitados de prova, é sobre os factos constante dos articulados apresentados pelas partes que a produção de prova e respectivos meios incidirão, como se infere dos artigos 452.º, n.ºs 1 e 2, 454.º, 460.º, 466.º, n.º 1, 475.º, 490.º ou 495.º, n.º 1, do nCPC, e não sobre os respectivos temas de prova enunciados.
São de igual modo os enunciados de factos, e não os temas de prova, que o artigo 607.º do nCPC impõe que sejam discriminados e declarados provados e/ou não provados pelo julgador, na sentença.
Acresce que decorre do artigo 413.º do nCPC, que reproduziu sem alteração o artigo 515.º do aCPC, que o Tribunal deve tomar em consideração todas as provas produzidas, tenham ou não emanado da parte que devia produzi-las, mantendo-se, assim, intocável o princípio da aquisição processual.
Nos termos do aludido princípio, as provas acumuladas no processo consideram-se adquiridas para o efeito da decisão de mérito, pouco importando saber por via de quem foram trazidas para os autos (…)”.
Ou seja: “A enunciação dos temas da prova pode fazer-se em diversos graus de abstração ou concretização, ora mais vaga, ora mais precisa, tudo dependendo daquilo que seja realmente adequado às necessidades de uma instrução apta a propiciar a justa composição do litígio (…).
Haverá ações em que os temas da prova surgirão com maior concretização, embora não seja necessário (nem sequer aconselhável, na maior parte dos casos) que cada tema corresponda a um facto puro e simples, e haverá ações em que os temas da prova se apresentarão numa formulação de pendor mais genérico ou até mesmo conclusivo (…)” (assim, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, pp. 699-700).
De todo o modo, como sublinham estes mesmos Autores (ob. cit., p. 701), “a maleabilidade ou plasticidade que a enunciação dos temas da prova confere à instrução não dispensa o juiz de, no momento em que proceder ao julgamento da matéria de facto, indicar com precisão os factos provados e não provados”.
Assim, não obstante o artigo 646.º, n.º 4, do anterior CPC (onde se dispunha que: “Têm-se por não escritas as respostas do tribunal colectivo sobre questões de direito e bem assim as dadas sobre factos que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes.”) não se encontrar no CPC em vigor, certo é que, da fundamentação da sentença devem constar factos, o que, desde logo, deriva da previsão do artigo 607.º, n.º 4, do CPC.
De facto, ao invés dos factos essenciais (os que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas) que devem ser alegados pelas partes, nos termos do n.º 1 do artigo 5.º do CPC e, além dos factos que sejam considerados pelo juiz, de harmonia com o previsto no n.º 2 do mesmo artigo, há determinada alegação que comporta a invocação de factos irrelevantes ou conclusivos, ou conter matéria de direito, aspetos que não devem ser transpostos para a seleção factual realizada pelo Tribunal em sede de sentença: “A matéria conclusiva (que não se reconduza a juízos periciais de facto) e/ou de direito é contrária à matéria estritamente factual que, como decorre do art. 607º nº4 do CPC, deve ser seleccionada para a fundamentação de facto da sentença” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 08-02-2021, Pº 701/19.0T8PFR.P1, rel. MENDES COELHO). De tal sorte que, “a selecção da matéria de facto só pode integrar acontecimentos ou factos concretos, que não conceitos, proposições normativas ou juízos jurídico-conclusivos. Caso contrário, as asserções que revistam tal natureza devem ser excluídas do acervo factual relevante- artº 607º, nº 4, NPCP” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23-11-2017 (Pº 3811/13.3TBPRD.P1, rel. MADEIRA PINTO).
Contudo, nem sempre, na prática, se torna evidente se estamos perante absoluta matéria conclusiva ou de direito ou ainda em face de matéria de facto.
Conforme se escreveu – ainda no âmbito do precedente CPC - no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22-01-2003 (Pº 8271/03, rel. MARIA JOSÉ MOURO, CJ, 2003, t. I, pp. 79-87): “A distinção entre aquilo que conforma matéria de facto e aquilo que corresponde a matéria de direito é uma questão deveras complexa e delicada. A linha divisória não tem carácter fixo, dependendo muito dos termos da causa, bem como da estrutura das normas aplicáveis.
Alberto dos Reis, no «Código de Processo Civil Anotado», vol. III, pags. 206-207 referia: «a) É questão de facto tudo o que tende a apurar quaisquer ocorrências da vida real, quaisquer eventos materiais e concretos, quaisquer mudanças operadas no mundo exterior. b) É questão de direito tudo o que respeita à interpretação e aplicação da lei.”
Mas, como o ilustre professor advertia, se é fácil enunciar critérios gerais de orientação, abundam as dificuldades de ordem prática.
Efectivamente, se relativamente a certas expressões podemos concluir seguramente que correspondem a matéria de facto ou a matéria de direito, outras são susceptíveis de integração ambivalente: consoante o contexto, ora se integram no campo dos factos, ora nos aparecem como categorias jurídicas.
As dificuldades de delimitação verificam-se, também, no que concerne aos juízos de valor que tanto integram normas jurídicas como se poderão, por vezes, situar no plano dos factos.
Antunes Varela (no comentário ao acórdão do STJ de 8-11-84, Rev. Leg. e Jurisp. Ano 122º, pags. 209 e segs.) considera que os factos, no campo do direito processual, abrangem, principalmente embora não exclusivamente, as ocorrências concretas da vida real. Nos juízos de facto (juízos de valor sobre a matéria de facto) haverá que distinguir entre aqueles cuja emissão se há-de apoiar em simples critérios do bom pai de família, do homem comum, e aqueles que na sua formulação apelam essencialmente para a sensibilidade ou intuição do jurista, para a formação especializada do julgador. Enquanto os primeiros estão fundamentalmente ligados à matéria de facto, os segundos estão mais presos ao sentido da norma aplicável ou aos critérios de valorização da lei”.
Na mesma linha e também no âmbito do CPC de 1961, decidiu-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02-12-1992 (Pº 003400, rel. DIAS SIMÃO) que: “Nem sempre é fácil a distinção entre a matéria de facto e a matéria de direito, podendo mesmo afirmar-se que a linha divisória entre facto e direito não tem carácter fixo, dependendo em larga medida da estrutura da norma aplicável e dos termos da causa (…). Como critério geral de distinção pode dizer-se que é de facto tudo o que vise apurar ocorrências da vida real, eventos materiais e concretos ou quaisquer mudanças operadas no mundo exterior, se o apuramento dessas realidades se realiza à margem da aplicação directa da lei, ou seja, tratando-se de averiguar factos cuja existência não dependa da interpretação a dar a qualquer norma jurídica. Acontecendo, porém, que o conceito normativo mencionado na lei seja igual ao conceito empírico, utilizando aquela expressão de uso corrente na linguagem comum, nesse caso, poder-se-á quesitar empregando-se as palavras da lei, na medida em que, tomando-se esse conceito no seu sentido vulgar para este reservado”.
Em termos gerais, com referência aquilo que se verteu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07-05-2009 (Pº 08S3441, rel. VASQUES DINIS) pode considerar-se que: “Para efeitos processuais, tudo o que respeita ao apuramento de ocorrências da vida real é questão de facto e é questão de direito tudo o que diz respeito à interpretação e aplicação da lei. No âmbito da matéria de facto, processualmente relevante, inserem-se todos os acontecimentos concretos da vida, reais ou hipotéticos, que sirvam de pressuposto às normas legais aplicáveis: os acontecimentos externos (realidades do mundo exterior) e os acontecimentos internos (realidades psíquicas ou emocionais do indivíduo), sendo indiferente que o respectivo conhecimento se atinja directamente pelos sentidos ou se alcance através das regras da experiência (juízos empíricos). No mesmo âmbito, como realidades susceptíveis de averiguação e demonstração, se incluem os juízos qualificativos de fenómenos naturais ou provocados por pessoas, desde que, envolvendo embora uma apreciação segundo as regras da experiência, não decorram da interpretação e aplicação de regras de direito e não contenham, em si, uma valoração jurídica que, de algum modo, represente o sentido da solução final do litígio”.
Assim, como princípio, não deve enunciar-se, em sede de fundamentação da sentença, no segmento dos factos apurados (provados/não provados), matéria conclusiva ou de direito, designadamente, quando esta se reporte ao cerne do objeto da questão a decidir.
Contudo, tem-se admitido que a mesma seleção factual possa conter expressões de cariz fático-jurídico com um significado socialmente consensual, se não forem objeto de discussão entre as partes, nem carecerem de interpretação jurídica, devendo ser tomadas na sua aceção corrente ou mesmo jurídica, se for coincidente, ou estiver já consolidada como tal na linguagem comum, caso em que ainda estaremos perante matéria factual.

Isso mesmo tem sido assinalado, em diversos arestos, pela jurisprudência, exemplificativamente se citando os seguintes (por ordem cronológica decrescente):
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-01-2021 (Pº 2999/08.0TBLLE.E2.S1, rel. PEDRO DE LIMA GONÇALVES): “Em sede de fundamentação de facto (traduzida na exposição descritivo-narrativa tanto da factualidade assente, quer por efeito legal da admissão por acordo, quer da eficácia probatória plena de confissão ou de documentos, como dos factos provados durante a instrução), a enunciação da matéria de facto deve ser expurgada de valorações jurídicas, de locuções metafóricas ou de excessos de adjetivação, mas pode conter pode conter referência quer a situações jurídicas consolidadas, desde que não hajam sido postas em causa, quer a termos jurídicos portadores de alcance semântico socialmente consensual (portadores de uma significação na linguagem corrente) desde que não sejam objeto de disputa entre as partes e não requeiram um esforço de interpretação jurídica, devendo ser tomados na sua aceção corrente ou mesmo jurídica, se for coincidente, ou estiver já consolidada como tal na linguagem comum”;
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13-10-2020 (Pº 2124/17.6T8VCT.G1.S1, rel. GRAÇA AMARAL): “Factos conclusivos traduzidos na consequência lógica retirada de outros factos uma vez que, ainda assim, constituem matéria de facto, devem permanecer na factualidade provada quando facilitem a apreensão e compreensão da realidade visando uma melhor adequação e ponderação de todas as circunstâncias na resolução do litígio”;
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 09-03-2020 (Pº 3789/15.9T8VFR.P1, rel. JERÓNIMO FREITAS): “As afirmações de natureza conclusiva devem ser excluídas do elenco factual a considerar, se integrarem o thema decidendum, entendendo-se como tal o conjunto de questões de natureza jurídica que integram o objeto do processo a decidir, no fundo, a componente jurídica que suporta a decisão. Daí que sempre que um ponto da matéria de facto integre uma afirmação ou valoração de factos que se insira na análise das questões jurídicas a decidir, comportando uma resposta, ou componente de resposta àquelas questões, tal ponto da matéria de facto deve ser eliminado”;
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 18-11-2019 (Pº 3875/18.3T8MTS.P1, rel. RITA ROMEIRA): “As afirmações de natureza conclusiva devem ser excluídas do elenco factual a considerar, se integrarem o “thema decidendum”, entendendo-se como tal o conjunto de questões de natureza jurídica que integram o objecto do processo a decidir, no fundo, a componente jurídica que suporta a decisão”;
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 01-10-2019 (Pº 109/17.1T8ACB.C1.S1, rel. FERNANDO SAMÕES): “Apenas os factos concretos podem integrar a selecção da matéria de facto relevante para a decisão, embora lhe sejam equiparáveis os conceitos jurídicos geralmente conhecidos e utilizados na linguagem comum, desde que não integrem o objecto do processo”;
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 07-12-2018 (Pº 338/17.8YRPRT, rel. FILIPE CAROÇO): “O desaparecimento da previsão do nº 4 do art.º 646º do antigo Código de Processo Civil não significa que a fundamentação de facto da sentença, tal como delineada na primeira parte do n° 3 e no n° 4 do artigo 607º do atual Código de Processo Civil tenha passado a poder incidir também sobre matéria conclusiva e de direito. Em termos gerais, o facto corresponde a um estado ou acontecimento que se configura como uma realidade passível de constatação e apreensão, seja ele um facto do mundo exterior (facto externo) ou um facto da vida psíquica (facto interno: o dolo, o conhecimento de determinadas circunstâncias, uma determinada intenção)”;
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18-10-2018 (Pº 3499/11.6TJVNF.G1.S2, rel. ROSA TCHING): “No âmbito da matéria de facto, processualmente relevante, inserem-se todos os acontecimentos concretos da vida, reais ou hipotéticos, que sirvam de pressuposto às normas legais aplicáveis, não obstando, por conseguinte, que se considere, como realidades suscetíveis de averiguação e demonstração, as ocorrências virtuais ou factos hipotéticos quando constituem uma consequência lógica retirada de factos simples e apreensíveis, não decorram da interpretação e aplicação de regras de direito e não contenham, em si, uma valoração jurídica que, de algum modo, represente o sentido da solução final do litígio”;
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23-11-2017 (Pº 3811/13.3TBPRD.P1, rel. MADEIRA PINTO): “Face ao Novo Código de Processo Civil é na sentença que o juiz declara quais os factos que julga provados e os que julga não provados. A selecção da matéria de facto só pode integrar acontecimentos ou factos concretos, que não conceitos, proposições normativas ou juízos jurídico-conclusivos. Caso contrário, as asserções que revistam tal natureza devem ser excluídas do acervo factual relevante- artº 607º, nº 4, NPCP (…)”;
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28-09-2017 (Pº 809/10.7TBLMG.C1.S1, rel. FERNANDA ISABEL PEREIRA):A questão de saber se um concreto facto integra um conceito de direito ou assume feição conclusiva ou valorativa constitui questão de direito de que cumpre ao STJ conhecer, porquanto a sua apreciação não envolve um juízo sobre a idoneidade da prova produzida para a demonstração ou não desse facto enquanto realidade da vida ou sobre o acerto ou desacerto da decisão que o teve por provado ou não provado. Muito embora o art. 646.º, n.º 4, do anterior CPC tenha deixado de figurar expressamente na lei processual vigente, na medida em que, por imperativo do disposto no art. 607.º, n.º 4, do CPC, devem constar da fundamentação da sentença os factos julgados provados e não provados, deve expurgar-se da matéria de facto a matéria susceptível de ser qualificada como questão de direito, conceito que, como vem sendo pacificamente aceite, engloba, por analogia, os juízos de valor ou conclusivos”;
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10-09-2015 (Pº 819/11.7TBPRD.P1.S1, rel. JOÃO TRINDADE): “Em face do NCPC (2013), haverá que considerar, de uma forma inovadora, que a abolição da base instrutória e a opção pela enunciação de temas de prova dá aos tribunais de instância maior liberdade na circunscrição da matéria de facto, já não valendo argumentos de pendor formalista. É possível agora ao juiz optar por uma formulação mais genérica, desde que não seja pura matéria de direito em face do caso concreto, tal como existe uma maior liberdade na consideração de factos que não foram alegados mas que resultaram da discussão da causa, nos termos do art. 5.º, n.º 2, do NCPC”;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23-04-2015 (Pº 185/14.9TBRGR.L1-2, rel. ONDINA CARMO ALVES): “É hoje admissível que a enunciação dos Temas da Prova prevista no nº 1 do artigo 596º do nCPC assuma um carácter genérico e por vezes aparentemente conclusivo - ao invés do que sucedia com a Base Instrutória elaborada, nos termos do artigo 511º do aCPC – encontrando-se apenas balizada pelos limites decorrentes da causa de pedir e das excepções invocadas na lide. A decisão da matéria de facto não deverá, todavia, conter formulações genéricas, de direito ou conclusivas, impondo o artigo 607º do nCPC, no seu nº 4, que na sentença o julgador declare provados ou não provados os factos e não os temas da prova”;
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13-03-2013 (Pº 400/09.0PAOVR.C1.P1, rel. EDUARDA LOBO): “Os factos conclusivos são ainda matéria de facto quando constituem uma consequência lógica retirada de factos simples e apreensíveis, apenas devendo considerar-se não escritos se integrarem matéria de direito que constitua o thema decidendum”;
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22-04-2004 (Pº 04B652, rel. FERREIRA GIRÃO): “O vocábulo janela pertence ao mundo dos vocábulos ou expressões, que, traduzindo embora determinado conceito técnico-jurídico, têm também um significado de uso corrente, fácil e inequivocamente identificável; Consequentemente, não se deve dar como não escrito, ao abrigo do nº. 4 do artigo 646º do Código de Processo Civil, o vocábulo janela, quando incluído na decisão da matéria de facto sem qualquer discriminação das suas características - tal como, aliás, foi alegado”.
Assim: “Se relativamente a certas expressões podemos concluir seguramente que correspondem a matéria de facto ou a matéria de direito, outras são susceptíveis de integração ambivalente: consoante o contexto, ora se integram no campo dos factos, ora nos aparecem como categorias jurídicas”, estendendo-se as dificuldades de delimitação também no que concerne aos juízos de valor que tanto integram normas jurídicas como se poderão, por vezes, situar no plano dos factos” (cfr., o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11-07-2019 (Pº 4372/09.3TTLSB-A.L1-4, rel. DURO CARDOSO).

Noutros arestos tentou-se mais uma aproximação:
- “É matéria conclusiva toda aquela que não consiste na percepção de uma ocorrência da vida real, trate-se de um facto externo ou interno, mas antes constitui um juízo acerca de certa realidade factual. Dentro da matéria conclusiva devem distinguir-se os juízos de facto periciais, dos juízos de facto comuns passíveis de serem emitidos por qualquer pessoa com base nos seus conhecimentos” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 03-02-2014, Pº 2138/10.7TBPRD.P1, rel. CARLOS GIL); e
- “Não são meros “juízos conclusivos” as expressões que têm um sentido perfeitamente apreensível na linguagem comum e cujo significado é totalmente apreendido na linguagem corrente, podendo até dizer que hoje em dia são os mesmos utilizados muitas vezes na vox populi” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 09-09-2021 (Pº 145/18.0T8SRP.E1, rel. ELISABETE VALENTE).
Que dizer da expressão: “A Ré omitiu o dever de se certificar de que o prédio referido em 3) estava licenciado”?
Conforme resulta da pretensão deduzida pelos autores, a mesma reporta-se à imputação de responsabilidade à ré pela inobservância do dever de certificação desta sobre a existência de licença de utilização relativamente ao imóvel objeto da aquisição levada a efeito pelos autores.
No caso, atenta a alegação produzida pelos autores - cfr. artigos 40.º e ss. da petição inicial – foi, nomeadamente, elaborado em sede de saneamento dos autos, o tema da prova n.º 1, segundo o qual cabia apurar “[s]e a Ré se se certificou, antes da data referida em E), se o prédio referido em C) podia ser transacionado e, em que termos o fez”.

E, de facto, esse foi um dos temas sobre que incidiu a instrução realizada em sede de audiência de discussão e julgamento.

Perante a prova produzida, o Tribunal elencou sobre o aludido facto não provado n.º 1 a seguinte motivação decisória:
“Quanto ao facto não provado, a convicção do Tribunal estribou-se na circunstância de não ter sido efectuada prova do mesmo.
Importa referir que neste âmbito considerado, relevou o depoimento da testemunha LO, solicitadora que foi quem lavrou o escrito particular de compra e venda, por via do qual os AA. adquiriram o imóvel em causa nestes autos e, que de forma muito peremptória, referiu que verificou toda a documentação antes de lavrar o documento autenticado, esclarecendo que é permitida a verificação da licença de utilização por exibição da escritura pública de compra e venda dos vendedores onde é mencionada a existência dessa licença de utilização, procedimento que ocorreu no caso dos autos.
Acresce, ainda que esta testemunha referiu que ainda sugeriu que fosse questionado no cartório notarial onde tinha sido realizada a anterior escritura pública de compra e venda, sobre a licença de utilização do prédio em apreço, mas que nem o A., nem outra intermediária, pediram para ver essa licença de utilização.
O depoimento desta testemunha foi credível, porquanto a mesma limitou-se a relatar aquilo de que tinha conhecimento presencial e nada mais.
Deste depoimento resulta, sem margem para dúvidas, que não houve qualquer omissão por parte da Ré, dado que a existência da licença de utilização pode ser efectuada nos termos em que foi efectuada “in casu” e, que o A. nem sequer pediu para ver a licença de utilização, apesar da sugestão efectuada pela solicitadora em apreço.
De outra vertente apreciada, dos documentos de fls. 31 a fls. 40 verso dos autos, resulta que a Ré muniu-se e verificou todos os elementos previamente à celebração do escrito particular de compra e venda, por via do qual os AA. adquiriram o referido imóvel, necessários para a concretização desse negócio, tudo em conformidade com os elementares ditames legais”.

Ora, olhando para a matéria vertida no único facto dado como não provado não pode concluir-se senão pela natureza absolutamente conclusiva da asserção aí vertida: Na sua inclusão na seleção factual está contido o desfecho da acção, culminando na assunção da conclusão jurídica que se retiraria dos factos materiais apurados/não apurados.

A decisão positiva ou negativa sobre a realidade de uma tal afirmação dispensaria a averiguação de qualquer outra factualidade, conduzindo diretamente à procedência (se se incluísse no rol dos factos provados) ou improcedência (se se mantivesse a matéria em questão no rol dos factos não provados), respetivamente.

Conforme se referiu no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 09-03-2020 (Pº 3789/15.9T8VFR.P1, rel. JERÓNIMO FREITAS): “As afirmações de natureza conclusiva devem ser excluídas do elenco factual a considerar, se integrarem o thema decidendum, entendendo-se como tal o conjunto de questões de natureza jurídica que integram o objeto do processo a decidir, no fundo, a componente jurídica que suporta a decisão. Daí que sempre que um ponto da matéria de facto integre uma afirmação ou valoração de factos que se insira na análise das questões jurídicas a decidir, comportando uma resposta, ou componente de resposta àquelas questões, tal ponto da matéria de facto deve ser eliminado” (cfr., na mesma linha, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28-10-2021, Pº 4150/14.8TBVNG-A.P1.S1, rel. JOÃO CURA MARIANO).
Ora, sendo esse o fim da ação – o apuramento sobre se existe a responsabilidade imputada pelos autores à ré, por omissão de dever de certificação que sobre esta lhe imputam, certo é que a decisão correspondente não se consubstancia na perceção de um facto ou conjunto de factos passíveis de instrução probatória, mas antes numa operação lógica de subsunção de diversos factos materiais, a redundar na conclusão sobre o total cumprimento, ou não, do dispositivo ínsito na alínea b) do n.º 1 do artigo 17.º da Lei n.º 15/2013, de 8 de fevereiro.
Não poderá, pois, permanecer na seleção factual efetuada tal matéria conclusiva, quer no rol dos factos não provados, quer no rol dos factos provados, como se um facto se tratasse, a isso obstando os n.ºs. 3 e 4 do artigo 607.º do CPC, onde se estatui que o juízo probatório positivo ou negativo do tribunal incide sobre factos, sem prejuízo das ilações que possam ser extraídas da verificação de factos meramente instrumentais.

Pode concluir-se o referido, nas seguintes proposições:
- São os enunciados de factos, e não os temas de prova, que o artigo 607.º, n.ºs. 4 e 5, do CPC impõe que sejam discriminados e declarados provados e/ou não provados pelo juiz, na sentença;
- Assim, como princípio, não deve enunciar-se, em sede de fundamentação da sentença, no segmento dos factos apurados (provados/não provados), matéria conclusiva ou de direito, designadamente, quando esta se reporte ao cerne do objeto da questão a decidir;
- Contudo, tem-se admitido que a mesma seleção factual possa conter expressões de cariz fático-jurídico com um significado socialmente consensual, se não forem objeto de discussão entre as partes, nem carecerem de interpretação jurídica, devendo ser tomadas na sua aceção corrente ou mesmo jurídica, se for coincidente, ou estiver já consolidada como tal na linguagem comum, caso em que ainda estaremos perante matéria factual; e
- Imputando os autores (adquirentes de imóvel) à ré (mediadora imobiliária que mediou tal aquisição) responsabilidade civil por inobservância do dever previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 17.º da Lei n.º 15/2013, de 8 de fevereiro, a inclusão na selecção factual de que “a ré omitiu o dever de se certificar de que o prédio (…) estava licenciado” é indevida, por tal asserção conter matéria absolutamente conclusiva, que contém o desfecho da ação, culminando na assunção da conclusão jurídica que se retiraria dos factos materiais apurados/não apurados, não podendo ser incluída ou mantida – devendo ser eliminada - no rol dos factos provados ou não provados.
Em face do exposto, determina-se a eliminação do ponto n.º 1 dos factos não provados.
*

B)Se a decisão recorrida procedeu a errada interpretação e aplicação do art. 17º, nº. 1, alínea b) da Lei nº. 15/2013, de 8 de Fevereiro?
Na decisão recorrida concluiu-se, em face dos factos que se passaram em revista, o seguinte:
“(…) Do que se deixa elencado em termos de factualidade enunciada, resulta que os AA. adquiririam, por efeito de contrato de compra e venda – cfr. artigo 874.º do C. Civil -, um imóvel que não era suceptível de ser vendido, por não possuir licença de utilização.
O Decreto-Lei n.º 263-A/200 de 23/07 veio consagrar o procedimento especial de transmissão, oneração e registo imediato de imóveis, aplicável designadamente aos negócios de compra e venda (cfr. artigo 2.º n.º 1, alínea a) do mencionado diploma legal), como foi o caso dos autos. Ora, nos termos do artigo 7.º n.ºs 1 a 4 do mesmo diploma legal “1 - O prosseguimento do procedimento depende da verificação da identidade, da capacidade e dos poderes de representação dos interessados para os actos. 2 - A capacidade e os poderes de representação devem, sempre que possível, ser comprovados por acesso à informação constante das respectivas bases de dados. 3 - Devem ainda ser comprovadas preferencialmente pela forma prevista no número anterior, ou mediante a apresentação dos respectivos documentos, pelos interessados: a) A situação matricial do prédio; b) A existência ou dispensa de licença de utilização ou de licença de construção, nos termos legais; c) A existência de ficha técnica do prédio, quando exigível; d) A inexistência de manifestação da intenção de exercer o direito de preferência legal por parte do Estado, Regiões Autónomas, municípios, outras pessoas colectivas públicas ou empresas públicas. 4 - A mera referência à existência de licença de utilização ou a facto de que resulte a respectiva dispensa efectuada em caderneta predial, em base de dados de serviço da Administração Pública ou em documento autêntico, constitui prova bastante para os efeitos do disposto na alínea b) do número anterior. (…)”. “In casu” a comprovação da existência de licença de utilização, aquando da aquisição do imóvel em apreço pelos AA., foi efectuada com base na “Certidão de escritura de 25.06.1980, do Cartório Notarial de Arruda dos Vinhos, exarada a folhas 81, do livro 288-A, por onde verifiquei que para o prédio foi emitida a licença de habitação número 622, em 11.11.1970, pela Câmara Municipal de Loures.” e, essa escritura púbica é documento autêntico, nos termos do artigo 369.º do C. Civil, pelo que nenhuma omissão poderá ser assacada à Ré, dado que certificou-se da existência dessa licença através aquela escritura.
É certo que veio o A. a constatar que a licença mencionada naquela escritura não se reportava ao prédio que adquiriu e, mais, que esse prédio nem sequer é passível de licenciamento de edificação.
Sucede, porém, que em momento anterior ao documento particular de compra e venda, foram entregues ao A. os escritos por ele solicitados, para que os pudesse analisar, não tendo solicitado a apresentação da certidão da licença de utilização relativa ao imóvel em causa.
Daqui resulta que os AA. nem sequer solicitaram para que lhes fosse facultada a licença de utilização do imóvel, previamente à aquisição do mesmo. Importa atentar que o A. dedica-se à aquisição de imóveis para revenda, pelo que esta matéria não lhe é estranha, como não é do seu desconhecimento, os documentos necessários com vista à regularidade da concretização do negócio de compra e venda de qualquer imóvel.
Não obstante, a verdade é que a Ré pautou a sua conduta em conformidade com a lei, dado que efectuou a comprovação da existência da licença de utilização através dessa referência constante de um documento autêntico, não lhe sendo, assim, sindicável qualquer conduta negligente neste âmbito considerado.
Na realidade, e contrariamente ao alegado pelos AA., a Ré observou o disposto no artigo 17.º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/2013 de 08/02 que estabelece que “1 – A empresa de mediação é obrigada: (…) b) Certificar-se da correspondência entre as caraterísticas do imóvel objeto do contrato de mediação e a fornecidas pelos clientes; (…)”, o que se verificou, face ao que já se expôs.
Efectivamente, crê-se que tanto os AA., como a Ré e, a própria solicitadora que lavrou o documento particular de compra e venda, actuaram em erro, pois à luz dos documentos que dispunham, nada fazia crer que a licença de utilização mencionada em documento autêntico supostamente referente ao imóvel em causa nestes autos, não fosse desse mesmo imóvel.
Assim sendo, não tendo a Ré incumprido o contrato de mediação imobiliária celebrado com os AA., nenhuma responsabilidade lhe poderá ser assacada pelos danos decorrentes da menção incorrecta da existência de licença de utilização relativa ao imóvel que os AA. adquiriram.
Daí que, sem mais considerações por manifestamente despiciendas, a pretensão dos AA. terá necessariamente de naufragar.
Em face do exposto, deverá a presente acção ser julgada totalmente improcedente (…).”.

Os autores contestam este juízo levado a efeito pelo Tribunal recorrido considerando, nomeadamente, que:
“(…) Da leitura da (…) sentença recorrida, evidencia-se que, para a Mma. Juiz a quo, a negligência que conduziu à compra e venda de um prédio clandestino é imputável ao A. varão e não à sociedade de mediação imobiliária Ré, aqui apelada. Pois,
A Mma. Juiz a quo consignou o seguinte na, aliás douta, decisão aqui posta em crise:
Sucede, porém, que em momento anterior ao documento particular de compra e venda, foram entregues ao A. os escritos por ele solicitados, para que os pudesse analisar, não tendo solicitado a apresentação da certidão da licença de utilização relativa ao imóvel em causa.
Daqui resulta que os AA. nem sequer solicitaram para que lhes fosse facultada a licença de utilização do imóvel, previamente à aquisição do mesmo. Importa atentar que o A. dedica-se à aquisição de imóveis para revenda, pelo que esta matéria não lhe é estranha, como não é do seu desconhecimento os documentos necessários com vista à regularidade da concretização do negócio de compra e venda de qualquer imóvel.
Salvo o devido respeito, a problemática não pode ser assim sintetizada. Pois que,
O facto de o A. varão se dedicar à compra e venda de imóveis não faz impender sobre ele a obrigação de se certificar da correcção dos documentos apresentados pelo vendedor. Em contraponto,
A Ré tem como actividade a mediação imobiliária, estando sujeita à disciplina da Lei nº. 15/2013, de 8 de Fevereiro.
O art. 17º. desse diploma legal dispõe, na alínea b) do seu nº. 1, que, A empresa de mediação é obrigada a certificar-se da correspondência entre as características do imóvel objecto do contrato de mediação e as fornecidas pelos clientes.
Existe, assim, para a Ré (ao contrário do que se passa com os AA.) uma obrigação legal de se certificar de que o imóvel objecto do contrato tem as características fornecidas pelos interessados na venda, que são os seus clientes.
Da leitura da, aliás douta, sentença, ressalta que para a Mma. Juiz a quo “verificar” e “certificar-se” são sinónimos.
Só essa suposta identidade permitiria que a Ré, aqui apelada, se bastasse com a leitura dos documentos para ter a certeza de que o imóvel que tinha pra venda (e que os AA. vieram a comprar através dela) se encontrava licenciado. Ora,
“Certificar-se” é, na definição do “Dicionário de Língua Portuguesa Contemporânea da Academia de Ciências de Lisboa”,
Obter a certeza de que é verdade.
Já no “Lello Universal” vem definido como, Convencer-se da certeza de; averiguar, adquirir o conhecimento, a verdade.
Mais recentemente, o “Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa” dá de certificar-se a seguinte definição: Dar ou ter a certeza ou convicção de; assegurar-se.
Como está bem de ver, A certeza de que o prédio que agenciou e que foi adquirido pelos AA. dispunha da indispensável licença de utilização/habitação só era alcançável, pela Ré, através da obtenção de cópia desse documento emitido (no caso) pela Câmara Municipal de Loures e não pela referência à sua existência na escritura pela qual o seu cliente acedera à propriedade daquele imóvel. Tanto mais que, a instruir essa escritura, não ficou arquivada certidão da dita licença que apenas terá sido exibida. A verdade é que,
O prédio, por não estar licenciado, não poderia ter sido vendido aos AA., aqui apelantes.
Essa incontornável realidade foi reconhecida pela Mma. Juiz a quo na, aliás douta, sentença recorrida, como segue: Do que se deixa elencado em termos de factualidade enunciada, resulta que os AA. adquiriram, por efeito de contrato de compra e venda – cfr. artigo 874º. do C. Civil –, um imóvel que não era susceptível de ser vendido, por não possuir licença de utilização.
Quando o legislador, no preceito legal, cuja interpretação aqui está em causa, fez impender sobre a empresa de mediação a obrigação de se certificar da correspondência entre as características do imóvel que coloca no mercado para venda e os fornecidos pelos clientes, teve em vista prevenir que ocorressem erros, enganos e, por maioria de razão, que fossem transaccionados imóveis que legalmente não o pudessem ser.
O princípio da confiança que deve presidir não só às relações jurídicas mas também às jurígenas determina que, na compra e venda com mediação imobiliária, impenda sobre o agente a responsabilidade de se certificar das características – físicas e legais – do imóvel objecto do contrato.
Não existe analogia entre o dever de verificar os documentos que recai sobre o notário que celebra a escritura de compra e venda e a obrigação que impende sobre o mediador imobiliário de se certificar de que os elementos fornecidos pelo vendedor correspondem à verdade. É que,
O notário (ou o profissional habilitado a exarar “documento particular autenticado de compra e venda”) verifica, quanto ao imóvel, os documentos entregues pelo vendedor. Já o mediador imobiliário tem a obrigação de se certificar se estes mesmos elementos correspondem à realidade.
Certificar-se dessa correspondência pela verificação dos próprios documentos não passa de um exercício de tautologia.
A lei exige mais, que o mediador imobiliário averigue (que é um dos sentidos de “certificar-se”) que os documentos fornecidos pelo cliente correspondem ao prédio que lhe é dado para vender, garantindo essa correspondência ao comprador. Pois bem,
Tendo em conta – realidade incontroversa – que o prédio cuja venda foi intermediada pela Ré não podia ser objecto de negócio, por não estar (nem poder ser) licenciado, é manifesto que a Ré não cumpriu a obrigação em causa, que é prévia (e antecedente lógico e cronológico) à verificação documental a que procedeu a senhora solicitadora que elaborou o dito “documento particular autenticado de compra e venda”. Por conseguinte,
Não é verdade, ao contrário do que considerou a Mma. Juiz a quo na, alias douta, sentença recorrida, que a Ré tenha pautado “a sua conduta em conformidade com a lei”, por ter efectuado “a comprovação da existência da licença de utilização através dessa referência constante de um documento autêntico”. Esse tipo de comprovação é a que é feita pelo notário; a Ré teria de obter a própria licença de utilização (ou, pelo menos, a sua cópia), para se certificar de que ela existia e de que o elemento que lhe fora entregue pelo vendedor, seu cliente, estava em consonância com ela.
Segundo a Mma. Juiz a quo, “tanto os AA. como a Ré e a própria solicitadora que lavrou o documento particular de compra e venda actuaram em erro”. Tivesse a Ré procedido à certificação que a lei lhe impunha, esse erro não se teria verificado. Claro está que,
Se a Ré se tivesse dado ao trabalho de se certificar – como deveria ter dado –, o negócio não teria sido celebrado (por impossibilidade legal e intransponível) e a ora apelada não teria recebido a sua comissão… Ou, por outras palavras,
A Ré recebeu uma comissão por ter intermediado um negócio proibido por lei, quando lhe competia desenvolver as diligências ao seu alcance para ter a certeza de que nada obstava à celebração da compra e venda.
Julgando como julgou, a Mma. Juiz a quo procedeu, na, aliás douta, sentença recorrida, a errada interpretação e aplicação do art. 17º., nº. 1, alínea b) da Lei nº. 15/2013, de 8 de Fevereiro (…)”.

Vejamos:
A atividade de mediação imobiliária, levada a efeito pela ré, encontra-se sujeita ao regime jurídico consagrado, presentemente, na Lei n.º 15/2013, de 8 de fevereiro (diploma que estabeleceu o “regime jurídico a que fica sujeita a atividade de mediação imobiliária, conformando -o com a disciplina constante do Decreto -Lei n.º 92/2010, de 26 de julho, que transpôs para a ordem jurídica interna a Diretiva n.º 2006/123/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2006, relativa aos serviços no mercado interno”), com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 102/2017, de 23 de agosto.
Conforme salienta Fernando Baptista de Oliveira (Direito dos Contratos; O Contrato de Mediação Imobiliária na Prática Judicial – Uma abordagem jurisprudencial; e-book, CEJ, Col. Formação Contínua, Outubro 2016, p. 13, consultado em: https://blogs.sapo.pt/cloud/file/aa4ced447f00ac5becad3d5eeddd34cb/fiscalidadeonline/2016/eb_Direito_dos_Contratos_O_Contratode_Mediacao_Imobiliaria.pdf) a respeito do conceito de mediação imobiliária, “a noção que a Lei nº 15/2013 nos fornece resulta da conjugação de várias das suas normas: arts. 2.º, n.º 1 (“definições (...) – define-se aqui a actividade desenvolvida pelo mediador), e 16, n.º 2, c), e 19 (regem sobre a remuneração da empresa (mediadora), maxime sobre as condições para a sua exigibilidade: “a remuneração da empresa é devida com a conclusão e perfeição do negócio visado..., ou...», diz este último normativo). A mediação imobiliária é um contrato estruturalmente idêntico ao tipo social do contrato de mediação geral”.
No n.º 1 do artigo 2.º - com a epígrafe “Definições” – da Lei n.º 15/2013, de 8 de fevereiro, caracteriza-se que a atividade de mediação imobiliária “consiste na procura, por parte das empresas, em nome dos seus clientes, de destinatários para a realização de negócios que visem a constituição ou aquisição de direitos reais sobre bens imóveis, bem como a permuta, o trespasse ou o arrendamento dos mesmos ou a cessão de posições em contratos que tenham por objeto bens imóveis”.
Esta atividade só pode ser exercida mediante contrato (explicitação que consta expressa do n.º 1 do artigo 3.º da Lei n.º 15/2013, de 8 de fevereiro), encontrando-se o respetivo modelo contratual estabelecido pela Portaria n.º 228/2018, de 13 de agosto.

As prescrições referentes ao contrato de mediação imobiliária constam enunciadas no artigo 16.º da Lei n.º 15/2013 (na redação dada pelo D.L. n.º 102/2017, de 23 de agosto) do seguinte modo:
“1— O contrato de mediação imobiliária é obrigatoriamente reduzido a escrito.
2— Do contrato constam, obrigatoriamente, os seguintes elementos:
a)-A identificação das características do bem imóvel que constitui objeto material do contrato, com especificação de todos os ónus e encargos que sobre ele recaiam;
b)-A identificação do negócio visado pelo exercício de mediação;
c)-As condições de remuneração da empresa, em termos fixos ou percentuais, bem como a forma de pagamento, com indicação da taxa de IVA aplicável;
d)-A identificação do seguro de responsabilidade civil ou da garantia financeira ou instrumento equivalente previsto no artigo 7.º, com indicação da apólice e entidade seguradora ou, quando aplicável, do capital garantido;
e)-A identificação do angariador imobiliário que, eventualmente, tenha colaborado na preparação do contrato;
f)- A identificação discriminada de eventuais serviços acessórios a prestar pela empresa;
g)- A referência ao regime de exclusividade, quando acordado, com especificação dos efeitos que do mesmo decorrem, quer para a empresa quer para o cliente.
3— Quando o contrato for omisso quanto ao respetivo prazo de duração, considera -se celebrado por um período de seis meses.
4- Os modelos de contratos com cláusulas contratuais gerais de mediação imobiliária só podem ser utilizados pela empresa após aprovação prévia dos respetivos projetos pelo Instituto dos Mercados Públicos, do Imobiliário e da Construção, I. P. (IMPIC, I. P.).
5-Para a aprovação prévia prevista no número anterior, a empresa submete o projeto de modelo de contrato ao IMPIC, I. P., por via preferencialmente eletrónica.
6-Sempre que a empresa utilize o modelo de contrato com cláusulas contratuais gerais aprovado por portaria dos membros do Governo das áreas da justiça, do imobiliário e da defesa do consumidor, está dispensada da aprovação prévia prevista no n.º 4, devendo depositar o modelo de contrato, por via preferencialmente eletrónica, junto do IMPIC, I. P.
7- O incumprimento do disposto nos n.os 1, 2, 4 e 6 determina a nulidade do contrato, não podendo esta, contudo, ser invocada pela empresa de mediação.
8- O disposto nos números anteriores aplica -se apenas a contratos sujeitos à lei portuguesa.
9— Quando, por motivo de indisponibilidade técnica, não for possível o cumprimento do disposto nos n.ºs 5 e 6, pode ser utilizado qualquer outro meio legalmente admissível”.

Sobre os deveres para com os clientes e destinatários da prestação da mediadora imobiliária prescreve o artigo 17.º da Lei n.º 15/2013, de 8 de fevereiro o seguinte:
1 — A empresa de mediação é obrigada a:
a)- Certificar-se, no momento da celebração do contrato de mediação, que os seus clientes têm capacidade e legitimidade para contratar nos negócios que irá promover;
b)- Certificar-se da correspondência entre as características do imóvel objeto do contrato de mediação e as fornecidas pelos clientes;
c)- Propor aos destinatários os negócios de que for encarregada, fazendo uso da maior exatidão e clareza quanto às características, preço e condições de pagamento do imóvel em causa, de modo a não os induzir em erro;
d)- Comunicar imediatamente aos destinatários qualquer facto que possa pôr em causa a concretização do negócio visado.
2— Está expressamente vedado à empresa de mediação:
a)- Receber remuneração de clientes e destinatários no mesmo negócio;
b)- Intervir como parte interessada em qualquer negócio que incida sobre imóvel compreendido no contrato de mediação de que seja parte;
c)- Celebrar contratos de mediação imobiliária quando as circunstâncias do caso permitirem, razoavelmente, duvidar da licitude do negócio cuja promoção lhe for proposta;
d)- Proceder à avaliação imobiliária dos imóveis objeto da mediação, bem como de todos os imóveis integrados nas carteiras das mediadoras imobiliárias com as quais mantenha qualquer relação de domínio ou de grupo ou daquelas que se apresentem no mercado sob a mesma marca comercial.
3— A proibição contida na alínea b) do número anterior aplica-se igualmente no caso de o interessado no negócio ser sócio ou representante legal da empresa de mediação, ou ser cônjuge, ascendente ou descendente no 1.º grau de qualquer daqueles.
4— O disposto nos números anteriores aplica -se apenas a contratos sujeitos à lei portuguesa.”.

Acerca deste normativo, considerou-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 28-02-2019 (Pº 427/15.3T8SSB.E1, rel. ANA MARGARIDA LEITE) que, “destinando-se as obrigações impostas nas diversas alíneas do artigo 17.º, n.º 1, da Lei n.º 15/2013, de 08-02, a proteger interesses alheios, no caso, dos clientes e dos destinatários do serviço de mediação imobiliária, a violação pela empresa mediadora imobiliária destes deveres poderá fazê-la incorrer em responsabilidade civil, desde que verificados os demais pressupostos da obrigação de indemnizar”.

Também em moldes semelhantes, com referência ao dever da alínea a) do n.º 1, do mencionado artigo 17.º, se referiu no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 08-09-2020 (Pº 674/17.3T8MTS.P1, rel. FÁTIMA ANDRADE) que: “A violação do dever legal imposto a uma empresa de mediação imobiliária no artigo 17º nº 1 al. a) da 15/2013 de 08/02 de se certificar “a) no momento da celebração do contrato de mediação que os seus clientes têm capacidade e legitimidade para contratar nos negócios que irá promover;” constitui esta na obrigação de indemnizar terceiros que em consequência de tal violação venham a sofrer danos”.

Assim, na decorrência da aludida previsão legal, “assiste à empresa de mediação a obrigação de certificar-se, no momento da celebração do contrato de mediação, que os seus clientes têm capacidade e legitimidade para contratar nos negócios que irá promover” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 22-11-2018 (Pº 25679/17.0YIPRT.E1, rel. MÁRIO COELHO).
Procurando caraterizar a natureza e o âmbito da prestação da mediadora imobiliária, refere Higina Castelo (O Contrato de Mediação; Almedina, Dez. 2014, p. 382) que, “os mediadores imobiliários estão vinculados a um conjunto de deveres destinadas à proteção dos terceiros com quem contactam com o objetivo de os interessarem nos negócios dos seus clientes. São normas comportamentais que derivam do dever geral de boa fé nas negociações, e cuja pormenorizada explicitação legal se justifica pelo facto de o mediador ser uma ponte nas negociações entre duas pessoas com as quais não tem a mesma relação, pois, em princípio, apenas uma é sua cliente. No entanto, entre as várias concretizações positivadas (cfr. art. 17 do RJAMI) não encontramos qualquer dever de imparcialidade.”.

De todo o modo, conforme salienta a mesma Autora (“Contrato de mediação imobiliária”, in Datavenia – Revista Jurídica Digital, n.º 6, Nov. 2016, p. 93, consultada em: https://datavenia.pt/ficheiros/edicao06/datavenia06_p087-118.pdf) mesmo “[n]os casos em que a mediadora se obriga a uma prestação (como sucede quando há cláusula de exclusividade ou sempre que assim resulte do contrato), a extensão da obrigação vai depender da interpretação do contrato concreto. As mais das vezes, e não resultando o contrário do acordo contratual, estaremos perante uma mera obrigação de meios: a mediadora obriga-se a diligenciar no sentido de encontrar interessado no contrato desejado pelo cliente; não se obriga a encontrar esse mesmo interessado”.

Certo é que, como salienta Manuel Carneiro da Frada (Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil; Almedina, 2007, p. 127, nota 105), “[o] mediador há-de sempre desenvolver a sua actividade de forma correcta e essa probidade de comportamento é-lhe exigida também em atenção ao interessado no negócio com o qual ele não tem obrigações contratuais; apesar até também da oposição de interesses dos sujeitos do negócio que promove”.
Higina Castelo, noutro local, (Contrato de mediação – Estudo das Prestações Principais; Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Set. 2013, pp. 361-366, disponível em: https://run.unl.pt/bitstream/10362/13121/1/Castelo_2013.pdf) salienta que:
“Com a definição da atividade de mediação imobiliária fornecida pelo RJAMI, nomeadamente com o inciso que refere que a atividade em causa consiste na procura de destinatários para a realização de negócios, permite-se uma mudança de entendimento sobre a atividade que o mediador desenvolve no âmbito da relação contratual com o cliente e com vista à satisfação do interesse deste. Ao abandonar a referência a uma obrigação do mediador de efetuar dadas diligências (…), amplia o leque das ocorrências comportamentais a que destina a sua aplicação direta. A vinculação contratual do mediador e a sua intensidade terão de procurar-se casuisticamente, sem que isso afete a qualificação como contrato de mediação imobiliária legalmente típico.
(…) Parece-me salutar que também o legislador português tenha deixado de descrever (embora indiretamente) a atribuição contratual do mediador como uma obrigação, permitindo uma convergência com o ambiente internacional e indo ao encontro do que parece ser a lógica do modelo contratual em questão. O mediador desenvolverá a atividade pretendida pelo seu cliente no interesse de ambos, sabendo que só será remunerado se for bem sucedido na procura e se, na sequência disso, o cliente vier a celebrar o contrato desejado, celebração que se mantém na disponibilidade deste. A faculdade do mediador tem como contraponto a liberdade do cliente relativamente à celebração do contrato desejado – sem prejuízo de casos especiais, como o contrato com cláusula de exclusividade ou o contrato de leilão, e da proibição do abuso de direito.
Se a definição legal da atividade de mediação imobiliária merece aplauso na parte em que libertou a previsão do tipo legal de uma necessária obrigação do mediador, já o trecho que refere que a procura se efetua em nome dos clientes merece a maior reserva.
No léxico jurídico, a locução em nome de implica a existência de representação, logo, da prática de atos suscetíveis de produzir efeitos jurídicos na esfera do representado (…).
Como sabemos, o contrato de mediação, por definição, não autoriza o mediador a intervir no contrato desejado em representação do cliente. A verificar-se semelhante autorização estaremos no âmbito de um mandato com poderes de representação ou de um contrato atípico com notas de mediação e mandato representativo. Repare-se que a procura de destinatários para a realização de negócios, cerne da definição de atividade de mediação, deixa de fora o momento da celebração do negócio desejado, consubstanciando-se em atos materiais, como os exemplificados no art. 2.º, n.º 2. Lê-se neste que «[a] atividade de mediação imobiliária consubstancia-se também no desenvolvimento das seguintes ações: a) Prospeção e recolha de informações que visem encontrar os bens imóveis pretendidos pelos clientes; b) Promoção dos bens imóveis sobre os quais os clientes pretendam realizar negócios jurídicos, designadamente através da sua divulgação ou publicitação, ou da realização de leilões». A palavra também introduzida no corpo da norma é uma novidade do regime de 2013 e não será a mais adequada, podendo conduzir à ideia de que as ações (prospeções, recolhas de informações e promoções) referidas no n.º 2 acrescem à procura de que fala o n.º 1, quando são concretizações desta. O também tem, naquele contexto, o significado de entre outras, nomeadamente, designadamente.
As ações mencionadas estão descritas com elevado grau de generalização e são suscetíveis de se materializar num sem número de atos que incluem recolha de dados sobre o mercado, incluindo sobre interessados no objeto hoc sensu do contrato visado, visitas a locais, inspeções dos mesmos, reuniões, telefonemas e trocas de escritos para recolha e/ou fornecimento de informações, afixação de placas, contratação de anúncios, obtenção de documentos e informações junto de entidades públicas. São todos atos que se processam em momento anterior à celebração do contrato que o cliente deseja e são, quase todos, atos ditos materiais por não produzirem efeitos jurídicos, nomeadamente, não terem repercussão direta na esfera jurídica alheia, nem haver a obrigação de gerarem uma repercussão indireta.
Pode, entre eles, haver atos jurídicos, mas sempre acessórios da prestação principal ou parte integrante do processo complexo que constitui aquela prestação. A havê-los, serão eles executados em nome dos clientes, com a inerente repercussão direta na esfera jurídica destes? Por exemplo, se a empresa mediadora efetuar um contrato de inserção de anúncio num jornal para publicitar o imóvel que o cliente pretende vender, fá-lo em nome deste? É este o responsável pelo pagamento do serviço? E se pedir uma certidão para averiguar quem são os donos de um imóvel que satisfaz o desejo de aquisição do seu cliente, pede-a em nome deste? É sobre este que recai o dever de pagar o emolumento?
A resposta impõe-se negativa. E não apenas porque jamais um contrato de mediação foi entendido como conferindo ao mediador carta-branca para efetuar as despesas que entender com vista à procura de interessado para o contrato que o cliente pretende celebrar. Não apenas porque sempre esteve subjacente a este modelo contratual que, salvo estipulação em contrário, as despesas correm por conta do mediador e a única quantia que o cliente terá de pagar é a remuneração, se vier a celebrar o contrato visado.
Mas também porque o próprio RJAMI determina que tem de constar obrigatoriamente do contrato de mediação a identificação discriminada de eventuais serviços acessórios a prestar pela empresa mediadora, sob pena de nulidade do mesmo contrato (art. 16, n.ºs 2, f), e 5984). Os serviços acessórios, nomeadamente todos os que importem despesas para o cliente, só poderão ser efetuados em nome deste se assim tiver sido previsto no contrato de mediação, e com discriminação desses serviços. De contrário, não estando previstos, as despesas deles decorrentes correrão por conta e risco do mediador. Estando previstos sem que poderes representativos tenham sido conferidos, serão assumidos em nome do mediador 985. Note-se que o RJAMI, à semelhança dos regimes que o antecederam, é omisso sobre o pagamento de despesas ao mediador, apesar de ter tido especial cuidado em regular a remuneração, à qual dedica um artigo com cinco números, além de num outro determinar ainda que as condições e forma de pagamento terão de constar obrigatoriamente do contrato escrito, sob pena de nulidade deste.
Por último, podemos questionar se a procura de um interessado não implica alguma atividade de negociação autónoma e autodeterminada pelo mediador e, na positiva, se ela é suscetível de vincular ou responsabilizar o cliente. A resposta impõe-se em geral, uma vez mais, negativa. A procura do interessado pode implicar, e normalmente implica, troca de informações e de outras declarações entre as futuras partes, por intermédio do mediador. Este, porém, intervém nessas trocas como simples núncio ou mero transmissor de declarações alheias. Estas declarações são do cliente ou do terceiro, sendo o mediador um mero veículo físico da sua transmissão. As futuras partes respondem por essas declarações (supondo que as fizeram) como se as tivessem produzido diretamente. Sem prejuízo de o mediador também poder responder, com fundamento na violação dos deveres que lhe impõe o art. 17 do RJAMI, se conhecesse a inexatidão das suas declarações ou, respeitando as normas constantes daquele artigo, devesse conhecê-la. Não respeitando o que lhe foi dado transmitir, o mediador não vincula o cliente (nem o terceiro interessado), e, causando prejuízos com as suas inexatas declarações, só ele responde por eles, porque é seu dever transmitir com exatidão as declarações alheias (dever em parte positivado no art. 17, n.º 1, do RJAMI).
Sobre o tema, são interessantes várias passagens do Acórdão do TRP de 01/06/2010, que manteve a absolvição da mediadora ré «desde logo porque se não pode considerar que ela tenha sido sujeito autónomo e independente da relação de negociações – ou seja, que nas negociações estivesse em posição de independência, liberdade ou autonomia que lhe permitisse determinar ou influenciar o processo negocial e que fosse, nessa medida, um sujeito autónomo da relação de negociações».
O acórdão reporta-se à situação concreta, na qual «não resulta (…) apurado, e não pode ser judicialmente presumido, que à imobiliária ré tivessem sido concedidos poderes de representação». Essa impossibilidade de presunção judicial prende-se com o facto de, em geral, o mediador não atuar nas negociações como representante:
«Característico desta figura [representação] é o facto de o representante prestar ao representado não uma atividade material (intelectual ou técnica) mas antes uma atividade volitiva – o representante empresta ao representado, exercitando-o por ele, o seu poder de volição, de determinação de vontade (exerce o poder de autodeterminação de outrem).
Por isso se distingue o representante do simples núncio, que é um simples transmissor da vontade do dominus negotii, que não exercita o poder de querer e deliberar da pessoa que dessa transmissão o encarrega.
Também a simples colaboração material ou técnica, prestada por quem intervém em negociações com o estrito objetivo de facilitar a resolução sobre a conclusão do ato ou negócio (seja através da prestação de informações, pareceres ou fornecimento de elementos) se distingue da representação, já que também nestes casos esse colaborador não exercita o poder de autodeterminação da pessoa a quem presta a colaboração».
Em conclusão: a atividade de mediação não incorpora a celebração do contrato visado, nem em representação do cliente, nem em nome próprio; os eventuais atos jurídicos acessórios da atividade mediadora só poderão ser efetuados em representação do cliente se tiverem sido expressamente solicitados e se o poder representativo tiver sido conferido no contrato de mediação; o mediador age como simples transmissor de informações e outras declarações das futuras partes. Consequentemente, a expressão em nome dos seus clientes contida no art. 2.º, n.º 1, não pode ser entendida em sentido jurídico, mas num sentido corrente, ou talvez económico, significando que a atividade se destina à satisfação do interesse do cliente, não sendo portanto neutra ou imparcial (…)”.
Em regra, “a mediação caracteriza-se pela intermediação entre o comprador e o vendedor, ou entre as partes num outro negócio que não a compra e venda, em que o intermediário – o mediador – aproxima as partes no negócio, põe-nas em presença, por vezes até intervém na negociação para o promover, mas não participa no negócio. (…) Na sua versão mais típica – no cerne do tipo – o mediador não atua por conta de nenhuma das partes embora seja contratado por uma delas, por instrução de quem procura e encontra a outra; sucede também que atue por conta de ambas as partes. Mas o mediador nunca representa qualquer delas e não intervém no negócio que vem a ser celebrado.” (assim, Pais de Vasconcelos, Direito Comercial, Vol. I, 2011, p. 197).
Distingue Menezes Cordeiro (“Do contrato de mediação”, in O Direito, 2007, III, p. 541), a respeito do contrato de mediação em geral, entre a mediação pura e a mediação mista ou combinada. Na primeira “o mediador obriga-se, simplesmente e numa situação de independência e de equidistância em relação às partes, a conseguir a celebração de certo negócio definitivo”. Por seu turno, na mediação mista ou combinada, “o mediador, para além dos serviços de mediação propriamente dita, exerce ainda uma actuação por conta de outrem (mandato), podendo igualmente assumir outros serviços: desde publicidade à prestação de apoio jurídico”, admitindo o mesmo Autor que “a mediação mista pode ser uma actuação interessada, no sentido do solicitador ao qual, inclusive, o mediador poderá estar ligado, institucionalmente ou por contrato, incluindo, até poderes de representação. Já não será uma verdadeira mediação: poderemos falar em mediação imprópria”. Neste último caso, já não se está perante um contrato de mediação puro, mas num contrato misto ou união de contratos (cfr., neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11-02-2016, Pº 8727/06.7TBCSC.L1.S1, rel. MARIA DA GRAÇA TRIGO).
Cumpre salientar que, no caso dos autos, não resulta assumida pela ré – na falta de subscrição da cláusula 6.ª do contrato de mediação (de preenchimento facultativo, nos termos da Portaria n.º 228/2018, de 13 de agosto) - uma mediação mista ou combinada, que determinasse para a ré a assunção de outros serviços, como, porventura, a prestação de apoio jurídico, para além de envidar esforços para conseguir a celebração de um determinado negócio definitivo.
A ré não assumiu também, perante os autores, alguma especial garantia de conformidade da licença de utilização mencionada no contrato de medição com o imóvel em questão.
A questão que os autores pretendem que seja respondida afirmativamente é no sentido de saber se a ré, mediadora imobiliária, em face do normativo constante da alínea b) do n.º 1 do artigo 17.º da Lei n.º 15/2013, de 8 de fevereiro, violou o seu dever de certificação da correspondência entre as características do imóvel objeto do contrato de mediação e as fornecidas pelos clientes?
Relativamente a este dever da mediadora imobiliária, Fernando Baptista de Oliveira (Direito dos Contratos; O Contrato de Mediação Imobiliária na Prática Judicial – Uma abordagem jurisprudencial; e-book, CEJ, Col. Formação Contínua, Outubro 2016, pp. 130-131, https://blogs.sapo.pt/cloud/file/aa4ced447f00ac5becad3d5eeddd34cb/fiscalidadeonline/2016/eb_Direito_dos_Contratos_O_Contrato_de_Mediacao_Imobiliaria.pdf) enquadra-o no conjunto de deveres lealdade e de colaboração, considerando ser “frequente o caso de responsabilização da mediadora por ausência de informação do comprador sobre a situação do imóvel, nomeadamente no que tange às características do mesmo e aos ónus e encargos que sobre o mesmo recaem (cfr. art. 17.º/1/b) do RJAMI – deve a mediadora, no mínimo, visitar o imóvel e conferir se o mesmo coincide com a descrição do Imóvel no Registo Predial, ou, não estando descrito, com a que consta da matriz predial (…)”.

Vejamos:
O princípio geral em matéria de responsabilidade por factos ilícitos resulta do artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil, norma que impõe a quem, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, a obrigação de indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.

Daqui se extrai que são pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos: o facto voluntário do agente, a ilicitude, a imputação do facto ao lesante, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.

O artigo 486.º do CC estabelece, por seu turno, que as simples omissões dão lugar à obrigação de reparar os danos, quando, independentemente dos outros requisitos legais, havia, por força da lei ou do negócio jurídico o dever de praticar o acto omitido. Assim, neste caso, para a imputação da omissão exige a lei que o agente se encontre onerado com “um dever específico de praticar o acto omitido” (cfr. Luís Menezes Leitão; Direito das Obrigações; Vol. I, 5.ª ed., 2006, p. 286).

O artigo 17.º, n.º 1, al. b) da Lei n.º 15/2013, de 8 de fevereiro – no âmbito dos deveres para com os clientes e os destinatários - determina que a empresa de mediação deve certificar-se da correspondência entre as características do imóvel objeto do contrato de mediação e as fornecidas pelos clientes, pelo que, imputando os autores responsabilidade civil à contraparte por inobservância de tal dever, cabe-lhes, nomeadamente, o ónus de alegação e prova dos pressupostos da responsabilidade civil inerente, entre os quais a ilicitude imputada – no sentido da demonstração do incumprimento de tal dever - por se tratar de facto constitutivo da pretensão que deduziram, quer no âmbito do artigo 483.º do CPC, quer no âmbito de atuação do normativo do artigo 486.º do mesmo Código (inexistindo presunção legal que transfira tal ónus para a contraparte), em conformidade com o disposto no n.º 1 do artigo 342.º do CC.

No sentido de que os factos integradores dos pressupostos da responsabilidade civil enunciados no n.º 1 do artigo 483.º do CC, incluindo a ilicitude, são constitutivos do direito de indemnização dela emergente, devendo ser demonstrados pelo lesado, vd., entre outros, os seguintes arestos: STJ de 15-05-2003, Pº 03B535, rel. LUCAS COELHO; STJ de 30-05-2003, Pº 2209/08.0TBTVD.L1.S1, rel. GRANJA DA FONSECA; STJ de 02-11-2010, Pº 2290/04 – 0TBBCL.G1. S1, rel. SEBASTIÃO PÓVOAS, Relação de Lisboa de 03-12-2009, Pº 2425/08.4YXLSB.L1-2, rel. ONDINA CARMO ALVES; Relação do Porto de 08-02-2021, Pº 274/17.8T8AVR.P1, rel. EUGÉNIA CUNHA.

Ao abrigo do DL n.º 116/2008, de 4 de julho, o solicitador tem competência para praticar atos relativos a imóveis, como a sua compra e venda, por documento particular autenticado, passando a estar obrigado a promover o registo predial deste ato que tem intervenção.

A licença de utilização foi criada pelo RGEU (Regime Geral das Edificações Urbanas, aprovado pelo Decreto-Lei nº 38382, de 7 de agosto de 1951) sendo exigível em relação a edifícios construídos ou alterados a partir da entrada em vigor daquele diploma, ocorrida em 1951.

De acordo com o prescrito no artigo 1.º do D.L. n.º 281/99, de 26 de julho (alterado pelo D.L. n.º 116/2008, de 4 de julho):
1- Não podem ser realizados actos que envolvam a transmissão da propriedade de prédios urbanos ou de suas fracções autónomas sem que se faça prova da existência da correspondente autorização de utilização, perante a entidade que celebrar a escritura ou autenticar o documento particular.
2- Nos actos de transmissão de imóveis é feita sempre menção do alvará da autorização de utilização, com a indicação do respectivo número e data de emissão, ou da sua isenção.
3- Nos prédios submetidos ao regime da propriedade horizontal, a menção deve especificar se a autorização de utilização foi atribuída ao prédio na sua totalidade ou apenas à fracção autónoma a transmitir.
4- A apresentação de autorização de utilização nos termos do n.º 1 é dispensada se a existência desta estiver anotada no registo predial e o prédio não tiver sofrido alterações”.
“A norma do Decreto-Lei nº 281/99, é imperativa, e por isso, sem licença de utilização ou prova da sua existência, não pode ser celebrada a escritura pública” (assim, o Acórdão da Relação de Lisboa de 09-07-2015, Pº 372-11.1TBALM.L1-8, rel. MARIA AMÉLIA AMEIXOEIRA).

Ou seja: Proíbe este preceito a realização de actos de alienação de imóvel, cujo objeto seja a transmissão da propriedade de prédio urbano, ou de frações autónomas, sem que se prove a existência da respetiva licença de utilização, à qual se refere o artigo 8.º do RGEU.
Conforme se deu conta no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18-09-2003 (Pº 03B2355, rel. FERREIRA DE ALMEIDA), “a determinação contida no DL 281/99 de 26/7 da obrigatoriedade de apresentação da licença de utilização para a celebração de qualquer escritura de compra e venda relativa a imóveis habitacionais não se destina tão-somente a combater a venda de edificações clandestinas, construídas sem a necessária licença municipal de loteamento ou de construção, mas também a garantir a conformidade da obra concluída com o projecto aprovado, as condições do seu licenciamento e o uso previsto no alvará de licenciamento”.
Ora, atentos os factos apurados, neles não se divisa que a ré tenha, por ação ou por omissão, empreendido alguma conduta ilícita relativamente à obrigação a que se reporta a alínea b) do n.º 1 do artigo 17.º da Lei n.º 15/2013, no que concerne à licença de utilização indicada pelo respetivo cliente, nem que tenha omitido a observância de algum comportamento que devesse ter observado para o cumprimento de tal obrigação, não sendo caracterizada ou apurada qualquer conduta demonstrativa de tal falta de cuidado, negligência ou atuação desconforme ao direito e à boa fé exigível na mediação imobiliária em questão.
Dos factos apurados resulta manifesto que, do instrumento de venda ficou a constar que “Para o prédio supra identificado foi emitida em 11.11.1971, a licença de habitação número 622, pela Câmara Municipal de Loures.”, elemento este que foi fornecido e ficou a constar no contrato de mediação imobiliária (documento junto aos autos com a contestação), tendo ali sido indicado que a licença em questão respeitaria ao imóvel pretendido vender.
Ora, não resultou apurada, nem foi alegada pelos autores, ter ocorrido alguma circunstância que permitisse ou viabilizasse à ré suspeitar ou ter dúvidas sobre se tal elemento, indicado no contrato de mediação, correspondia, ou não, à verdade nos respetivos elementos identificativos e se correspondia, com efeito, ao prédio dos autos, elemento que poderia, eventualmente, desencadear alguma indagação ou diligência da parte da mediadora.
Note-se que, neste contexto, a obrigação de certificação dos elementos indicados pelo vendedor, não parece importar para a mediadora a obrigação de obter elementos ou documentos adicionais – designadamente, a obtenção de licença de utilização junto da câmara competente – se nenhuma questão se colocou, nem foi colocada pelos autores, acerca da congruência ou conformidade dos elementos recebidos do seu cliente e destinados à celebração da compra e venda.
Neste ponto, parece-nos que o dever de certificação da mediadora imobiliária, na falta de específica estipulação contratual sobre a matéria, se molda pelo ónus que também impende sobre qualquer pessoa que pretende adquirir um imóvel, de indagação sobre a conformidade e consistência jurídica do bem que pretende adquirir face ao constante do contrato de mediação imobiliária, sendo que, no círculo de elementos disponíveis em repartições públicas, de acesso público aos pretendentes adquirentes, o dever de fornecimento de elementos – e da correspondente certificação – por banda da mediadora imobiliária é claramente mitigado, podendo reconduzir-se ao fornecimento (ou retransmissão) de elementos e prestação de esclarecimentos que o potencial interessado na aquisição venha a solicitar, em face de alguma questão que venha a colocar.
Repare-se que, no âmbito do procedimento especial de transmissão, oneração e registo imediato de prédio urbano em atendimento presencial único, criado pelo D.L. n.º 263-A/2007, de 23 de julho, e utilizado no caso dos autos, para o prosseguimento desse processo basta a mera referência à existência de licença de utilização, para prova da sua existência (cfr. artigo 7.º, n.ºs. 3, al. b) e 4) e que, não sendo possível a verificação da existência ou dispensa de licença de utilização, a conservatória deverá desenvolver todas as diligências necessárias para essa comprovação (cfr. artigo 16.º, n.º 1, do mesmo diploma).
No caso, o elemento em questão foi apurado por referência a outra escritura pública, onde estava mencionada a licença de utilização identificada no contrato de mediação, circunstância que não tornou inválida a compra e venda realizada, nem permite colocar em crise a certificação de compatibilidade de elementos empreendida, não resultando, em face de tal conduta, inobservado pela ré o dever de certificação que sobre si impendia, dado que, em face de tais elementos, não se patenteava algum erro, lapso ou omissão, estando apurada a existência da licença de utilização e mencionados os elementos respeitantes à mesma.
As partes da compra e venda, embora sugerida a indagação prévia ao negócio, junto do cartório notarial onde tinha sido realizada a anterior escritura de compra e venda sobre a licença de utilização (conforme afirmado pela testemunha LO e referenciado na página 8 da sentença recorrida), não entenderam pertinente tal indagação, o que tornaria dispensável algum outro comportamento da ré no sentido da aferição da realidade da correspondência entre a licença indicada e a de o imóvel negociado ter ou não licença.
Neste contexto, não se afigura que à ré, no cumprimento do dever de certificação da correspondência entre as características do imóvel e as fornecidas pelo cliente em sede de contrato de mediação devesse fazer algo mais ou lhe incumbisse outro comportamento que não, o de assegurar que, na cláusula 1.ª do contrato de mediação imobiliária, o cliente preenchia todos os elementos identificativos do imóvel, que os mesmos eram congruentes com o imóvel pretendido vender – o que, aparentemente, em face da licença de utilização e da circunstância de a licença indicada no contrato de mediação coincidir com a menção de licença de utilização, como respeitante ao imóvel e já “utilizada” ou mencionada em precedente acto de transmissão, sucedia - e que seriam fornecidos os documentos e elementos comprovativos dos factos descritos, o que terá ocorrido.
De facto, tal fornecimento terá tido ocorrência, pois, o contrato de compra e venda veio a ser celebrado, nos termos de que dão conta os autos e, em face dos documentos fornecidos, não resulta ter sido suscitada alguma reticência, dúvida ou questão (que desencadeasse para a ré uma obrigação de informação – cfr. artigo 573.º do CC – ou de esclarecimento ou de indagação subsequente), quer por banda da ré, quer por banda dos compradores, ora recorrentes, quer aquando da outorga do documento que titula a compra e venda, quer em todo o período em que terão tido lugar, antes dessa ocasião, as relações entre as partes.
Como se viu, em sede de instrumento de compra e venda, a existência de licença de utilização (aquela que tinha sido indicada no contrato de mediação) veio a ser certificada no aludido instrumento de venda, por “Certidão de escritura de 25.06.1980, do Cartório Notarial de Arruda dos Vinhos, exarada a folhas 81, do livro 288-A, por onde” foi verificado “que para o referido prédio foi emitida a licença de habitação número 622, em 11.11.1971, pela Câmara Municipal de Loures”.
Tal atestação, legalmente admissível, satisfazia suficientemente a obrigação de certificação a cargo da solicitadora que procedeu à celebração do termo de autenticação aquando da contratação da compra e venda pelos autores (cfr. doc. 8 junto com a contestação) e, nessa medida, mostrou-se cabalmente observado o dever de verificação, certificação, averiguação pela ré da documentação necessária para a transmissão, antes de ser lavrado o documento autenticado de compra e venda, sendo legitima a certificação por exibição da escritura pública de compra e venda dos vendedores onde é mencionada a existência da licença de utilização n.º 622.
Mas, para além disso, mostrou-se apurado que, antes da celebração da compra e venda – ocorrida em 08-02-2018 – foram entregues ao autor os escritos que este solicitou, para que pudesse analisar, não tendo solicitado a apresentação da certidão da licença de utilização.
Diga-se que, poderiam então – tal como o veio a fazer o autor posteriormente à aquisição (cfr. facto provado n.º 13) – desde logo, os autores dirigir-se à Câmara Municipal de Loures e requerer certidão da licença de utilização, ou então, em alternativa, solicitar ao vendedor ou à mediadora ré, a comprovação de tal elemento, para aferir da sua congruência e veracidade das indicações existentes sobre a licença de utilização, com o imóvel que pretendiam adquirir. Tal, contudo, não fizeram, não se afigurando que à ré possa ser assacada responsabilidade, na decorrência da verificação ulterior empreendida pelos autores (cfr., factos provados n.ºs. 14, 15, 17 e 18).
Importa sublinhar que, entre as obrigações da mediadora ou do angariador não se compreende alguma atinente ao aconselhamento jurídico dos destinatários, não incidindo sobre a mesma, nomeadamente, algum especial dever de aconselhar ou de informar (cfr. artigo 485.º, n.º 2, do CC) os potenciais compradores no sentido de obter a licença de utilização, antes da outorga da compra e venda (elemento que só, após a compra e venda, estes vieram a requerer à Câmara Municipal de Loures).
Sobre os autores incidia, como se viu, enquanto facto constitutivo do respetivo direito invocado (cfr. artigo 342.º, n.º 1, do CC), o ónus de demonstração da violação que imputaram à ré, ónus esse que, todavia, não lograram observar.

Assim, não tendo sido apurada a violação pela ré dos deveres que resultam da respectiva atividade de mediação imobiliária que empreendeu, não se configurando violado o disposto no artigo 17.º, n.º 1, al. b) da Lei n.º 15/2013, de 8 de fevereiro, não se constituiu na obrigação de indemnizar os autores, juízo que, confluindo na improcedência da pretensão formulada por estes, coincide com o alcançado pela decisão recorrida.
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A apelação deduzida deverá, em consequência, ser julgada improcedente, mantendo-se, salvo quanto à eliminação do ponto 1 dos factos não provados antes determinada, a decisão recorrida.
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De acordo com o estatuído no n.° 2 do art. 527.º do CPC, o critério de distribuição da responsabilidade pelas custas assenta no princípio da causalidade e, apenas subsidiariamente, no da vantagem ou proveito processual.

Entende-se que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for. “Vencidos” são todos os que não obtenham na causa satisfação total ou parcial dos seus interesses.
Conforme se escreveu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06-12-2017 (Pº 1509/13.1TVLSB.L1.S1, rel. TOMÉ GOMES), cujo entendimento se subscreve: “O juízo de procedência ou improcedência da pretensão recursória não é aferível em função do decaimento ou vencimento parcelar respeitante a cada um dos seus fundamentos, mas da respetiva repercussão na solução jurídica dada em sede do dispositivo final sobre essa pretensão”.

Em conformidade com o exposto, improcedendo a apelação (não relevando para este efeito a procedência da questão atinente à impugnação de facto), a responsabilidade tributária inerente incidirá, de harmonia com o referido, in totum, sobre os autores/apelantes, que decaíram integralmente na presente instância recursória – cfr. artigo 527.º, n.ºs. 1 e 2, do CPC.

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5.Decisão:

Pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes que compõem o tribunal coletivo desta 2.ª Secção Cível, em:
a)-Determinar a eliminação do ponto n.º 1 dos factos não provados; e
b)-Julgar improcedente a apelação, mantendo-se, sem prejuízo do referido em a), a decisão recorrida, proferida em 04-01-2022.
Custas pelos autores/recorrentes.
Notifique e registe.

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Lisboa, 28 de abril de 2022.



(Carlos Castelo BrancoRelator)
(Orlando dos Santos Nascimento 1.º Adjunto)
(Maria José Mouro Marques da Silva2.ª Adjunta)