Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1344/14.0TTLSB.L1-4
Relator: ISABEL TAPADINHAS
Descritores: AÇÃO DE RECONHECIMENTO DA EXISTÊNCIA DE CONTRATO DE TRABALHO
INTERESSE EM AGIR
AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO
DECLARAÇÕES DO TRABALHADOR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/10/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Sumário: Analisando o regime legal condensado na Lei nº 63/2013, de 27 de agosto, que veio alterar a Lei nº 107/2009, de 14 de setembro e o Cód. Proc. Trab., observamos que o escopo, essencial e exclusivo, intencionalmente querido pelo legislador e por ele explicitado no art. 1.º foi o de instituir mecanismos de combate à utilização indevida do contrato de prestação de serviços em relações de trabalho subordinado.
II – Com o mecanismo instituído o legislador não visou apenas combater a precaridade de emprego: caso a ação seja julgada procedente, o empregador não só terá de garantir ao colaborador, com efeitos retroativos e também para o futuro, os mesmos direitos que a lei confere aos trabalhadores vinculados por contrato de trabalho sem termo (tais como pagamento de férias, subsidio de férias e Natal, trabalho suplementar, etc.) como terá de se confrontar com uma contingência fiscal e contributiva, designadamente a liquidação de taxa contributiva prevista para o regime geral dos trabalhadores por conta de outrem.
III - Sempre que a pretensão em concreto formulada pelas partes não assume uma verdadeira dignidade jurisdicional, seja por falta de um direito subjetivo ou interesse legítimo a salvaguardar, ou quando estes possam ser salvaguardados por uma intervenção não judiciária, a jurisprudência tem defendido e reconhecido a falta de interesse em agir como pressuposto processual, de natureza atípica, que constitui uma exceção dilatória inominada, de conhecimento oficioso conducente à absolvição da instância ou, quando superveniente, uma causa de extinção da lide, por inutilidade.
IV - Frustrada a conciliação na audiência de partes, o facto de o trabalhador, no início do julgamento ter declarado não aderir ao articulado do Ministério Público, antes confirmando a posição da ré, segundo a qual existe um verdadeiro contrato de prestação de serviços não retira o escopo ou utilidade à ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho não constituindo tal declaração fundamento quer para a extinção da lide por inutilidade quer – menos ainda - para a absolvição da instância.

            (Elaborado pela Relatora)

Decisão Texto Parcial:Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa:
      Relatório
      No seguimento da participação prevista no nº 3 do art. 15.º-A da Lei nº 107/2009, de 14 de setembro, que deu entrada nos Serviços do Ministério Público em 30.04.2014, o Ministério Público apresentou petição inicial nos presentes autos peticionando que seja declarada a existência de um contrato de trabalho entre a ré AA CRL e BB desde 21 de fevereiro de 2011.
  Regularmente citada a ré apresentou contestação defendendo-se por exceção - inaplicabilidade da ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho (erro na forma de processo) e ilegitimidade ativa ou falta de interesse em agir – e por impugnação, concluindo pela improcedência da ação com a sua absolvição.
      Posteriormente invocou ainda a caducidade da participação da ACT.
      Dando-se como notificado da petição inicial e da contestação, o trabalhador não constituiu mandatário nem aderiu à posição do Ministério Público ou apresentou articulado próprio mas em audiência de discussão e julgamento, após frustrada a tentativa de conciliação, veio repetir o já expresso em requerimento anterior declarando não aderir ao articulado do Ministério Público, antes confirmando a posição da ré, segundo a qual existe um verdadeiro contrato de prestação de serviços.
      Foi, então, proferida sentença que julgou verificada a exceção dilatória inominada de falta de interesse em agir do Ministério Público e, em consequência, absolveu a ré da instância.
      Inconformado com a decisão da mesma interpôs o Ministério Público recurso tendo sintetizado a sua alegação nas seguintes conclusões:
(...)
      A ré contra-alegou pugnando pela manutenção do julgado.
      Colhidos os vistos legais cumpre apreciar e decidir.
      A apreciação e decisão do presente recurso, delimitado pelas conclusões do recorrente - arts. 635.º, nº 3, e 639.º, nº 1 do Cód. Proc. Civil concitam a análise, apreciação e resolução da seguinte questão jurídica:
      Falta de interesse em agir do Ministério Público.
      Fundamentação
      Os factos que interessam à questão que nos ocupa são os que constam do antecedente Relatório.
      Falta de interesse em agir do Ministério Público
      Na decisão sindicada depois de largos considerandos sobre o que seja o interesse em agir escreveu-se o seguinte:
   Em 21 de Fevereiro de 2011, AA C R L, ora Ré, e BB subscreveram o escrito designado por “Contrato de Docência” junto a fls. 11 e seguintes destes autos e cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido.
    Em sede desta audiência de discussão e julgamento BB de forma livre e consciente, declarou que pretende manter o relacionamento com a Ré nos moldes em que livremente contratou, isto é, num contrato de prestação de serviços.
  Pese embora o impulso processual pertença ao Ministério Público, dúvidas não existem que o interesse que se pretende proteger é o do “alegado trabalhador”, não podendo por isso deixar de atender a este.
      Ora, para que haja interesse em agir é necessário que haja uma incerteza objectiva e grave sendo que essa gravidade se mede pelo prejuízo moral e patrimonial que a situação de incerteza possa, no caso, criar ao titular do interesse que interessa proteger.
   Ou seja, o interesse em agir surge quando o direito seja contestado ou insatisfeito e quando o titular do direito ou do interesse que se pretende proteger, sem a intervenção do órgão jurisdicional, sofra um dano.
      No caso, o titular do interesse que se pretende proteger nunca pretendeu celebrar qualquer contrato de trabalho com a Ré, antes querendo manter a alegada prestação de serviços que com esta mantém, não se sentindo lesado nem tendo existido qualquer dano.
      Não existe incerteza objectiva sobre a sua situação jurídica, nem está demonstrada a necessidade de lançar mão da acção para acautelar os interesses que se pretendem proteger, pelo que carece o Ministério Público de interesse em agir.
     Acresce que estamos perante direitos disponíveis, reforçando-se aqui que não pode deixar de se atender à vontade do titular do interesse que se pretende proteger com a propositura da acção. Este, no âmbito da sua liberdade contratual, deve poder escolher o contrato que quer celebrar sem que o mesmo seja imposto pelo estado num claro atropelo daquela.
Com tais fundamentos julgou verificada a exceção dilatória inominada de falta de interesse em agir do Ministério Público e, em consequência, absolveu a ré da instância.
      Vejamos, então, se assim é, de facto.
A lei processual estabelece determinados requisitos, indispensáveis, para que o tribunal possa pronunciar-se e decidir sobre o mérito da causa e portanto para que possa alcançar o fim principal imediato do processo.
      Trata-se dos “pressupostos processuais”, isto é, de condições cujo preenchimento a lei faz depender, para a prolação por um tribunal de uma decisão de mérito.
      Os pressupostos processuais são, pois, “questões prévias” que ao juiz importa resolver para poder ajuizar da possibilidade de conhecer de mérito, pelo que têm de ser apreciadas prioritariamente como condição de admissibilidade da apreciação do mérito da causa José João Baptista, “Processo Civil I, Parte Geral e Processo Declarativo”, 6ª edição, pág. 84).
      Isto é assim, porque, como regra, eles constituem requisitos impostos pelo interesse público da correcta administração da justiça, ou condições do exercício da função jurisdicional e, como tal, não podem ser postergados pela vontade das partes.
      E são de interesse público porque a sua verificação é uma garantia de uma decisão idónea e útil sobre o mérito, aspecto essencial para uma justa composição do conflito de interesses privados e portanto essencial também para a prossecução da paz social (fim principal e mediato do processo, de interesses público (autor e obra citada págs. 84/85).
Consequentemente, a grande maioria dos pressupostos processuais são do conhecimento oficioso do tribunal.
      Um desses pressupostos é o interesse em agir.
Este interesse processual desdobra-se em interesse em demandar (do autor) e num interesse em contradizer (do réu): o interesse em demandar é o interesse na tutela judicial e afere-se pelas vantagens decorrentes dessa tutela para a parte activa; o interesse em contradizer é o interesse na não concessão dessa tutela e avalia-se pelas desvantagens impostas ao réu pela atribuição dessa tutela à contraparte (Miguel Teixeira de Sousa, “O Interesse Processual na Acção Declarativa”, 1989, pág. 6).
As ações declarativas podem ser de simples apreciação, de condenação ou constitutivas - art. 10.º, nº2 do Cód. Proc. Civil.
As ações de simples apreciação visam obter unicamente a declaração da existência ou inexistência de um direito ou de um facto - art. 10.º, nº3, alínea a) do Cód. Proc. Civil.
Na ação declarativa de simples apreciação, não se exige do réu prestação alguma, porque não se lhe imputa a falta de cumprimento de qualquer obrigação. O autor tem simplesmente em vista pôr termo a uma incerteza que o prejudica: incerteza sobre a existência de um direito (Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, pág. 15) .
Como justificação das ações de simples apreciação, escreve ainda Alberto dos Reis (RLJ Ano 80.º, pág. 231): o estado de incerteza sobre a existência de um direito ou de um facto é susceptível de causar prejuízo a uma pessoa; deve, por isso, pôr-se à disposição dessa pessoa um meio de se defender contra tais prejuízos. Esse meio é a acção declarativa. Quer dizer, o prejuízo inerente à incerteza do direito ou do facto legitima e justifica o uso da acção de simples declaração positiva ou negativa.
      As acções desta espécie destinam-se a acabar com a incerteza, obtendo uma decisão que declare se existe ou não certa vontade da lei (...) . Mas  a incerteza a que nos referimos deve ter carácter objectivo; não interessa a simples dúvida existente no espírito do autor, desde que se não projecte no exercício normal dos seus direitos (Rodrigues Bastos, “Notas ao Código de Processo Civil”, vol. I, edição, Lisboa, 1999, pág.51, em anotação ao art.4.º).
Pois bem.
No nosso caso, trata-se de uma ação de simples apreciação sob a forma positiva.
O facto cuja existência se pretende seja declarada não pode ser um facto qualquer.
Tem de ser, obviamente, um facto jurídico, ou seja, um facto juridicamente relevante (Antunes Varela, “Manual de Processo Civil”, 2.ª ed, pág. 21).
É facto jurídico todo aquele de que promanam efeitos jurídicos, sendo juridicamente irrelevante todo o que nenhuma alteração produz na ordem jurídica (Galvão Telles, “Manual dos Contratos em Geral”, 2002, págs. 9, 11 e 17).
      Analisando o regime legal condensado na Lei nº 63/2013, de 27 de agosto, que veio alterar a Lei nº 107/2009, de 14 de setembro e o Cód. Proc. Trab., observamos que o escopo, essencial e exclusivo, intencionalmente querido pelo legislador e por ele explicitado no art. 1.º foi o de instituir mecanismos de combate à utilização indevida do contrato de prestação de serviços em relações de trabalho subordinado.
        Em causa está a sempre atual problemática dos designados “falsos recibos verdes”, isto é, o enquadramento de colaboradores como independentes quando as características da atividade por eles exercida, confrontada com a moldura legal aplicável, impõe antes a sua qualificação como trabalhadores subordinados.
      É neste contexto jurídico-processual que assiste ao Ministério Público legitimidade para a instaurar ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho – art. 15.º-A, nº 3.
      Como se disse, numa ação deste tipo - de simples apreciação -, verifica-se o pressuposto do interesse em agir se o direito cuja existência ou inexistência se pretende que seja judicialmente declarada se encontrar numa situação de dúvida suscetível de causar prejuízos graves e objetivos ao seu titular.
      Decorre, por indicação da própria lei, em face da natureza específica da ação, que o impulso processual cabe ao Ministério Público.
      Questão distinta e aqui em causa é a de apurar se a declaração do trabalhador ao não aderir ao articulado do Ministério Público, antes confirmando a posição da ré, segundo a qual existe um verdadeiro contrato de prestação de serviços, retira o escopo ou utilidade à presente ação, utilidade que, definindo o conceito de legitimidade é também ele determinante de outro pressuposto processual, o interesse em agir, ou mesmo, quando superveniente, uma causa de extinção da lide, por inutilidade.
      O interesse processual não se confunde com o pressuposto processual legitimidade: pode ter-se o direito de ação por se ser o titular da relação material, ou por a lei especialmente permitir a intervenção processual a quem não é o titular daquela relação e, todavia, perante as circunstâncias concretas do caso, não existir qualquer necessidade de recorrer ao tribunal para definir, reconhecer ou fazer valer o direito. Neste sentido, o Ac. do STJ de 05.02.2013, Revista nº 684/10.1YXLSB.L1.S1, relator Moreira Alves, disponível no respetivo site.
   Pese embora o nosso legislador não haja concretizado a projeção processual do interesse em agir, o certo é que sempre que a pretensão em concreto formulada pelas partes não assume uma verdadeira dignidade jurisdicional, seja por falta de um direito subjetivo ou interesse legítimo a salvaguardar, ou quando estes possam ser salvaguardados por uma intervenção não judiciária, a jurisprudência tem defendido e reconhecido a falta de interesse em agir como pressuposto processual, de natureza atípica, que constitui uma exceção dilatória inominada, conducente à absolvição da instância. Neste sentido cfr. Ac. STJ de 3.05.1985, CJ/STJ, 1985, Tomo II, pág. 61.
      De conhecimento oficioso como já antes referimos.
Em nosso entender a referida declaração é perfeitamente irrelevante uma vez que o trabalhador não apresentou articulado próprio nem constituiu mandatário, restringindo-se, assim, a sua intervenção processual à participação da tentativa de conciliação – art. 186.º-O, nº 1 do Cód. Proc. Trab. -, que, como se disse se frustrou, o que significa que trabalhador e entidade patronal não se conciliaram.
      Tal não sucederia se em sede própria fossem produzidas as demais provas e exercido o contraditório.
      De resto, é bom não esquecer que a Lei nº 63/2013 ao instituir mecanismos de combate à utilização indevida de contratos de prestação de serviços não visou apenas combater a precaridade de emprego: caso a ação seja julgada procedente, o empregador não só terá de garantir ao colaborador, com efeitos retroativos e também para o futuro, os mesmos direitos que a lei confere aos trabalhadores vinculados por contrato de trabalho sem termo (tais como pagamento de férias, subsidio de férias e Natal, trabalho suplementar, etc.) como terá de se confrontar com uma contingência fiscal e contributiva, designadamente a liquidação de taxa contributiva prevista para o regime geral dos trabalhadores por conta de outrem.
      Procedem, assim, as conclusões do recurso.
      Uma vez que o juiz a quo invocando o disposto no art. 186.º-N, nº 1 do Cód. Proc. Trab. não analisou as demais exceções dilatórias suscitadas por entender não merecerem ser já conhecidas e designou dia para audiência de discussão e julgamento (despacho proferido em 27.05.2014 - Não ocorrendo, de forma manifesta, excepções dilatórias que mereçam ser já conhecidas, não obstante o erro na forma de processo e a ilegitimidade activa invocados pelo R, nada há agora a decidir) no decurso da qual ditou para a ata a sentença sindicada, não é este seguramente o caso de se deitar mão do disposto no art. 665.º, nº 2 do Cód. Proc. Civil: aquelas exceções e eventuais outras suscitadas ou do conhecimento oficioso deverão ser conhecidas na audiência de discussão e julgamento e caso improcedam deverá ser conhecido do mérito da causa com elenco dos factos provados e não provados.
De resto, conhecer-se, agora dessas exceções sempre representaria uma preterição do duplo grau de jurisdição reduzindo a uma só, as duas instâncias admitidas no nosso ordenamento jurídico processual.
      Decisão
Pelo exposto, acorda-se em julgar o recurso procedente, revogando a sentença recorrida e julgando improcedente a exceção de falta de interesse em agir.
Custas pelo vencido a final, de custas estando isento o Ministério Público.
      Lisboa, 10 de setembro de 201

Isabel Tapadinhas
Leopoldo Soares
José Eduardo Sapateiro
Decisão Texto Integral: