Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5551/19.0T9LSB.L1-5
Relator: JOÃO CARROLA
Descritores: CRIMES DE DISCRIMINAÇÃO E INCITAMENTO AO ÓDIO E À VIOLÊNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/06/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: - Como se constata das citações feitas do artigo de opinião, em que assenta a objectividade fáctica, as afirmações feitas pela arguida, porque feitas de uma forma generalizante, dirigem-se a grupos identificados pela etnia, cor de pele ou origem nacional - “africanos” e “ciganos” - e as características que lhe são apontadas traduzem-se em juízos de valor, como seja e mormente, «não fazem parte de uma entidade civilizacional e cultural milenária “que dá pelo nome de Cristandade’», «”não descendem dos “Direitos Universais do Homem decretados pela Grande Revolução Francesa de 1789”», «os ciganos são “inassimiláveis”», «possuem um “modo disfuncional" de se “comportam nos supermercados, que “desrespeitam as mais elementares regras de civismo que presidem à habitação nos bairros sociais e no espaço público em geral"», «Africanos e afro-descendentes também se auto-excluem, possivelmente de modo menos agressivo, da comunidade nacional. Odeiam ciganos. Constituem etnias irreconciliáveis», «Os africanos são abertamente racistas: detestam os brancos sem rodeios; e detestam-se uns aos outros quando são oriundos de tribos ou “nacionalidades” rivais».

- Esta adjectivação generalista não deixa de revelar uma manifestação de uma pretensa inferioridade de “ciganos” e “africanos” apresentando-os como inferiores a um outro grupo colocado a uma distância civilizacional e intelectual que partilha de “crenças", “códigos de honra" e “valores" moralmente superiores.

- Não deixamos de concluir que esta apreciação se apresenta de teor explícito e inequivocamente discriminatório e ofensivo desse grupos identificados como “ciganos” e “africanos”, estendendo-a a factos que aponta e que se apresentam como lesivos do seu direito à igualdade, à honra e à consideração, no propósito de difamar ou injuriar pessoas por causa da sua raça ou origem étnica, visando a discriminação de grupos de pessoas.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I.
 
No processo n.º 5551/19.0T9LSB que, em fase de instrução, corre termos no Juízo de Instrução Criminal de Lisboa, Comarca de Lisboa, o assistente Movimento SOS Racismo veio interpor recurso da decisão do Mmo. J.I.C. constante de fls. 252 e seguintes dos autos que rejeitou o requerimento de abertura de instrução requerida por aquele, com os fundamentos constantes das respectivas motivações que aqui se dão por reproduzidas e as seguintes conclusões:
A)-O Movimento SOS Racismo apresentou queixa contra a denunciada, arguida nos autos supra identificados, com fundamento na publicação de um artigo de opinião da autoria desta, no dia 06.07.2019, no Jornal Público, com o título “Podemos? Não, não podemos”, junto aos autos com a participação criminal, sob Doc. n.° 4 e disponível em https://www.publico.pt/2019/07/06/sociedade/opiniao/podemos- nao-nao-podemos-1878726.
B)-Mas que por facilidade transcrevemos:
Podemos? Não, não podemos
As quotas para negros e ciganos não passam de uma farsa multicultural igualitarista. Não, não podemos integrar por decreto.
6 de Julho de 2019, 6:15
[Nota: este texto motivou um editorial do director do PÚBLICO, MC , no qual se rejeita o teor do artigo e as expressões usadas pela autora]
Segundo o PÚBLICO de 29 de Junho, o “PS quer discriminação positiva_para as minorias étnico- raciais”. Em causa estão sobretudo africanos e ciganos, independentemente de terem nascido em Portugal ou não. Estas minorias excluídas da Cidade, a sua suposta ou real marginalização, constitui a prova de que Portugal “continua a ter um problema de racismo e xenofobia”, independentemente do efeito - que de resto não sofremos - do drama dos refugiados, com o seu pico mais trágico em 2015.
O entrevistado pelo PÚBLICO, RP, sociólogo e secretário nacional do Partido Socialista, lamenta “a falta de diversidade no espaço público”, que continua atulhado de homens brancos e mulheres brancas. E, em conformidade com a ideia, grata à esquerda, de que a sociedade e respectiva mentalidade podem ser mudadas por decreto, RP saúda a possibilidade de que o problema da exclusão de negros e ciganos do espaço público se resolva, ou comece a resolver, estabelecendo quotas para deputados coloridos, de forma a conferir à futura Assembleia da República uma dimensão representativa mais conforme com a composição étnico-racial da sociedade portuguesa. Se as quotas tinham impulsionado a emancipação e igualização de direitos das mulheres, se lhes haviam aberto o espaço público, porque não aplicar a mesma receita às minorias étnicas?
A comparação com a igualdade ou paridade de género é inteiramente falaciosa. As mulheres, que sem dúvida têm nos últimos anos adquirido uma visibilidade sem paralelo com o passado, partilham, de um modo geral, as mesmas crenças religiosas e os mesmos valores morais: fazem parte de uma entidade civilizacional e cultural milenária que dá pelo nome de Cristandade. Ora isto não se aplica a africanos nem a ciganos. Nem uns nem outros descendem dos Direitos Universais do Homem decretados pela Grande Revolução Francesa de 1789. Uns e outros possuem os seus códigos de honra, as suas crenças, cultos e liturgias próprios.
Os ciganos, sobretudo, são inassimiláveis: organizados em famílias, clãs e tribos, conservam os mesmos hábitos de vida e os mesmos valores de quando eram nómadas. E mais: eles mesmos recusam terminantemente a integração. É só ver a quantidade de meninas ciganas que são forçadas pelos pais a abandonar a escola a partir do momento em que atingem a puberdade; é só ver a quantidade de meninas e meninos ciganos que abandonam os estudos, apesar dos subsídios estatais de que os pais continuam a gozar para financiar (ou premiar!) a ida dos filhos às aulas; é só ver o modo disfuncional como se comportam nos supermercados; é só ver como desrespeitam as mais elementares regras de civismo que presidem à habitação nos bairros sociais e no espaço público em geral. Os ciganos não praticam a bárbara excisão genital das mulheres. Mas, em vez desta brutal mutilação, vulgar e imperativa nas tribos muçulmanas, aos casamentos entre ciganos segue-se, no dia seguinte, obrigatoriamente, a humilhante demonstração da virgindade da noiva, cujo sangue de desfloramento, estampado nos lençóis, é orgulhosamente exibido perante a comunidade. O que temos nós a ver com este mundo? Nada. O que tem o deles a ver com o nosso? Nada.
Africanos e afro-descendentes também se auto-excluem, possivelmente de modo menos agressivo, da comunidade nacional. Odeiam ciganos. Constituem etnias irreconciliáveis, e desta mútua aversão já nasceram, em bairros periféricos e em guetos que metem medo, batalhas campais só refreadas pela intervenção policial. Os africanos são abertamente racistas: detestam os brancos sem rodeios; e detestam-se uns aos outros quando são oriundos de tribos ou “nacionalidades ” rivais. Há pouco tempo, uma empregada negra do meu prédio indignou-se: “Senhora, eu não sou preta, sou atlântica, cabo-verdiana. ” Passou-se comigo. A cabo-verdiana desprezava as angolanas porque eram africanas, não atlânticas, e muito mais pretas...
Os partidos, nomeadamente o PS, confessam que, para o fim inconfesso de conquistar mais alguns votos, se vêem hoje obrigados a “assegurar a representatividade das diferentes origens étnico-raciais ”. Não por acaso, na entrevista com RP, a visibilidade dessas diferentes origens aparece imediatamente relacionada com a facilitação do acesso ao ensino superior, que deveria abrir-se a todos os alunos, “independentemente da sua nota final” no 12. ° ano. “Se fizermos uma política de alargamento de acesso ao ensino superior, já resolvemos parte do problema.
§Não faz sentido ter um ensino virado para os melhores alunos, mas sim para todos os que têm as condições mínimas para entrar. ”
RP não explica que condições são essas. Possivelmente, o simples facto de existirem jovens que, apesar de incapazes e preguiçosos, aspiram a um diploma universitário! Pelos vistos, o facilitismo que já reina hoje em dia nas universidades ainda não chega: para resolver “os problemas de racismo e xenofobia” que afligem a esquerda bem-pensante da nossa democracia, teremos de criar um passe de livre-trânsito entre o secundário e a universidade. Quando esta política for oficialmente consagrada e der os seus resultados, teremos um Parlamento ainda mais ignorante e incompetente do que já temos - sem que o País deixe de “ter um problema de xenofobia e racismo”.
A título de complemento do acesso irrestrito ao ensino superior, RP recomenda também a criação de “um observatório do racismo e da discriminação junto a uma universidade”. Mas como é que se observa o racismo e a discriminação a partir dos gabinetes almofadados onde se sentariam os observadores? A única maneira de observar uma matéria tão fugidia e evanescente é frequentar feiras e supermercados baratos, é entrar nos bairros em que nem a polícia se atreve a pôr os pés. Mas isto é tremendamente maçador e, sobretudo, exige muita coragem física. O observatório não observaria nada e seria perfeitamente inútil, a não ser - isso sim - para criar mais alguns jobs for the boys.
Bem-vindos os analfabetos - lusitanos, africanos ou ciganos - à “visibilidade ” no espaço público. De facto, só por uma cabeça de esquerda passaria a ideia peregrina de um acesso irrestrito e incondicional à universidade. E, quanto à melhoria da representatividade parlamentar, o recrutamento de meia dúzia de indivíduos africanos ou ciganos em nada, mas nada, promoveria a integração destas comunidades “invisíveis”, pelo singelo motivo de que a sua “inclusão” não passaria de uma farsa multicultural igualitarista. Por um lado, os eleitos não tardariam a ser vistos pelos seus como desertores, e por outro seriam olhados pelos seus colegas de bancada como forasteiros coloridos. Acontece que a xenofobia e o racismo são um fenómeno universal, e não um problema especificamente português. Por mais que se escancarem as portas da universidade, por mais que se criem srs. doutores de aviário, nunca se dissolverão na comunidade autóctone as minorias exóticas em que uma selvajaria como a excisão genital feminina seja moeda corrente.
Mais extraordinário e mais eloquente é que, na entrevista de RP, nunca surja a palavra “mérito”. Não, não podemos integrar por decreto.
Historiadora
C)Entende o assistente que, com o artigo da autoria da arguida, esta praticou um crime de discriminação e incitamento ao ódio e à violência, previsto e punido pelo art. 240.°, n.° 2, al. b) do Código Penal (doravante, apenas CP).
D)No entanto, assim não entendeu o Ministério Público que proferiu despacho de arquivamento, razão pela qual se requereu a abertura de instrução, nos termos e com os fundamentos constantes do requerimento e abertura de instrução junto aos autos.
E)porém, que o tribunal recorrido indeferiu totalmente o requerimento de abertura de instrução, baseando- se, sobretudo, nos seguintes fundamentos:
i)-O requerimento de abertura de instrução não contém a descrição dos factos cuja prática integre a prática de qualquer crime, nomeadamente da incriminação prevista no art. 240°, n.° 2, b) do Código Penal; e que,
ii)-Dos factos alegados pelo assistente, não resulta que a arguida tenha praticado factos que integrem o crime estabelecido no art.° 240.°, n.° 2, b) do Código Penal, nomeadamente que tenham visado livremente difamar ou injuriar pessoas por causa da sua raça ou origem étnica, mas, pelo contrário, que a arguida apenas visou expressar o seu pensamento ou entendimento sobre a integração social de pessoas, ou da falta dela, em resultado da percepção que tem, ou que escolheu ter, para a sustentar, acompanhando assim o entendimento do Ministério Público vertido no seu despacho de arquivamento.
F)Consideramos existirem na decisão recorrida vários erros de avaliação, de facto e de direito, que justificam o presente recurso.
G)Desde logo, é manifesto que, quer a denúncia apresentada nos autos, quer o requerimento de abertura de instrução contêm a descrição de factos suficientes cuja prática integre a prática do crime previsto no art. 240.°, n.° 2, b) do Código Penal. Senão vejamos:
H)A arguida é autora de um artigo publicado no dia 06.07.2019, no Jornal Público, com o título “Podemos? Não, não podemos”, cujo teor se encontra reproduzido nos autos, o que foi assumido pela própria.
I)A arguida agiu, assim, publicamente, tendo o seu texto sido divulgado através de meio de comunicação social, da imprensa escrita e de tiragem nacional.
J)Nesse artigo, que acima se reproduziu na íntegra, a arguida proferiu expressões, frases e ideias que consubstanciam, sem sombra para dúvida, difamações e injúrias, ao coligir ataques violentos a dois grupos populacionais, que a mesma descreve como “africanos” e “ciganos”.
K)A denunciada afirma, categoricamente, que existe uma diferença civilizacional entre estes grupos populacionais “africanos” e “ciganos” e aqueles que entende que, tal como ela, partilham de “crenças”, “códigos de honra” e “valores” moralmente superiores, imputando-lhes a prática de comportamentos desviantes e criminosos, tratando-os como seres que não fazem parte do mundo civilizado.
L)Ao longo do texto, a denunciada usa expressões como:
i)-“A comparação com a igualdade ou paridade de género é inteiramente falaciosa. As mulheres, que sem dúvida têm nos últimos anos adquirido uma visibilidade sem paralelo com o passado, partilham, de um modo geral, as mesmas crenças religiosas e os mesmos valores morais: fazem parte de uma entidade civilizacional e cultural milenária que dá pelo nome de Cristandade. Ora isto não se aplica a africanos nem a ciganos. Nem uns nem outros descendem dos Direitos Universais do Homem decretados pela Grande Revolução Francesa de 1789. Uns e outros possuem os seus códigos de honra, as suas crenças, cultos e liturgias próprios."
ii)-“Os ciganos, sobretudo, são inassimiláveis: organizados em famílias, clãs e tribos, conservam os mesmos hábitos de vida e os mesmos valores de quando eram nómadas. E mais: eles mesmos recusam terminantemente a integração. É só ver a quantidade de meninas ciganas que são forçadas pelos pais a abandonar a escola a partir do momento em que atingem a puberdade; é só ver a quantidade de meninas e meninos ciganos que abandonam os estudos, apesar dos subsídios estatais de que os pais continuam a gozar para financiar (ou premiar!) a ida dos filhos às aulas; é só ver o modo disfuncional como se comportam nos supermercados; é só ver como desrespeitam as mais elementares regras de civismo que presidem à habitação nos bairros sociais e no espaço público em geral. [...] aos casamentos entre ciganos segue-se, no dia seguinte, obrigatoriamente, a humilhante demonstração da virgindade da noiva, cujo sangue de desfloramento, estampado nos lençóis, é orgulhosamente exibido perante a comunidade. O que temos nós a ver com este mundo? Nada. O que tem o deles a ver com o nosso? Nada."
iii)-“Africanos e afro-descendentes também se auto-excluem, possivelmente de modo menos agressivo, da comunidade nacional. Odeiam ciganos. Constituem etnias irreconciliáveis, e desta mútua aversão já nasceram, em bairros periféricos e em guetos que metem medo, batalhas campais só refreadas pela intervenção policial. Os africanos são abertamente racistas: detestam os brancos sem rodeios; e detestam-se uns aos outros quando são oriundos de tribos ou “nacionalidades” rivais.
iv)-“Quando esta política for oficialmente consagrada e der os seus resultados, teremos um Parlamento ainda mais ignorante e incompetente do que já temos - sem que o País deixe de “ter um problema de xenofobia e racismo”;
v)-“Mas como é que se observa o racismo e a discriminação a partir dos gabinetes almofadados onde se sentariam os observadores? A única maneira de observar uma matéria tão fugidia e evanescente é frequentar feiras e supermercados baratos, é entrar nos bairros em que nem a polícia se atreve a pôr os pés ";
vi)-“E, quanto à melhoria da representatividade parlamentar, o recrutamento de meia dúzia de indivíduos africanos ou ciganos em nada, mas nada, promoveria a integração destas comunidades “invisíveis”, pelo singelo motivo de que a sua “inclusão” não passaria de uma farsa multicultural igualitarista. [...] Por mais que se escancarem as portas da universidade, por mais que se criem srs. doutores de aviário, nunca se dissolverão na comunidade autóctone as minorias exóticas em que uma selvajaria como a excisão genital feminina seja moeda corrente
M)Estabelece a alínea b) do n.º 2 do art. 240.° do Código Penal que, “Quem, publicamente, por qualquer meio destinado a divulgação [...] b) Difamar ou injuriar pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional, ascendência, religião, sexo, orientação sexual, identidade de género ou deficiência física ou psíquica; [... ] é punido com pena de prisão de 6 meses a 5 anos. ”.
N)Pelas expressões e conclusões supra referidas, a arguida procurou difamar e injuriar um grupo de pessoas por causa da sua raça, ascendência, cor da pele, origem étnica ou nacional, utilizando, para o efeito, um jornal.
O)Todos estes factos constam quer da denúncia, quer do requerimento de abertura de instrução, pelo que, são suficientes para preencher o tipo legal de crime em apreço e, bem assim, para determinar a acusação contra a denunciada relativamente ao crime de discriminação racial praticado pela denunciada, p.p. no artigo 240°, n.° 2, alínea b) do Código Penal, pelo que não assiste razão ao tribunal recorrido nesta matéria.
P)O único juízo que competia ao Ministério Público e ao Tribunal de Instrução Criminal seria analisar o artigo em causa e verificar se as expressões e conclusões constantes do mesmo são, pelo menos indiciariamente, difamatórias ou injuriosas para um grupo de pessoas por causa da sua raça, cor origem étnica ou nacional - no caso, para ciganos e africanos, grupos de pessoas a quem a arguida se dirige.
Q)Não cabe neste particular saber se a arguida atuou ao abrigo da sua liberdade de expressão - para saber se o crime foi ou não praticado, esta conclusão é absoluta e inequivocamente inútil.
R)É evidente que a arguida se exprimiu livremente e sem qualquer censura - o seu artigo foi publicado nos termos exactos que a mesma pretendia.
S)O n.º 1 do artigo 37.° da CRP consagra o direito à liberdade de expressão, mas os n.° 3 e o n.° 4 do artigo 37.° da CRP também referem que: “As infrações cometidas no exercício destes direitos ficam submetidas aos princípios gerais de direito criminal ou do ilícito de mera ordenação social, sendo a sua apreciação respetivamente da competência dos tribunais judiciais ou de entidade administrativa independente, nos termos da lei”, e “A todas as pessoas, singulares ou coletivas, é assegurado, em condições de igualdade e eficácia, o direito de resposta e de retificação, bem como o direito a indemnização pelos danos sofridos”.
T)Em 2017, o artigo 240.° do Código Penal, que prevê e pune o crime de discriminação racial, sofreu uma importante alteração: para que este se considere praticado, deixou de ser necessário que a declaração pública de injúria e difamação seja efetuada com a intenção de incitar à discriminação ou de a encorajar, bastando que alguém, publicamente, por qualquer meio destinado a divulgação, venha a difamar ou injuriar pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional, ascendência, religião, sexo, orientação sexual, identidade de género ou deficiência física ou psíquica.
U)Concluímos que, se a apreciação dos factos constantes da denúncia e do requerimento de abertura de instrução fossem apenas analisados na óptica da invocada “liberdade de expressão”, nunca o crime previsto no artigo 240°, n.º 2, alínea b) do Código Penal seria praticado, nem tão pouco os crimes de injúria e difamação.
V)Na verdade, qualquer texto escrito num jornal que refira que judeus, negros, homossexuais, ciganos ou mulheres, são pessoas intelectual, social ou culturalmente inferiores a cristãos seria, nesse sentido, sempre uma manifestação de um entendimento pessoal e da liberdade de expressão, no entanto, são punidos por Lei.
W)E é punida por Lei, porque no confronto entre os bens jurídicos em conflito - a liberdade de expressão, por um lado, e a liberdade, dignidade, honra e consideração, por outro - o Legislador tomou uma opção: a liberdade de expressão deve ceder perante outros direitos de terceiros, que merecem proteção legal, sob pena de serem letra morta.
X)Assim, o que importava apreciar neste caso era se as expressões usadas pela arguida no texto que publicou no jornal referido (supra transcrito e para onde se remete por ser ocioso repetir), eram difamatórias e/ou injuriosas para um grupo de pessoas por causa da sua raça, cor origem étnica ou nacional.
Y)Entende o assistente que afirmar que os “africanos” e “ciganos” não fazem parte de uma entidade civilizacional e cultural milenária “que dá pelo nome de Cristandade" é difamatório e injurioso;
Z)Entende o assistente que afirmar que os “africanos” e “ciganos” não descendem dos “Direitos Universais do Homem decretados pela Grande Revolução Francesa de 1789” é difamatório e injurioso - é afirmar categoricamente que são pessoas “menores”.
AA)Entende o assistente que afirmar que os ciganos são “inassimiláveis”, que vivem “organizados em famílias, clãs e tribos, conservam os mesmos hábitos de vida e os mesmos valores de quando eram nómadas”, que as meninas ciganas “são forçadas pelos pais a abandonar a escola a partir do momento em que atingem a puberdade’, que as meninas e meninos ciganos “abandonam os estudos, apesar dos subsídios estatais de que os pais continuam a gozar para financiar (ou premiar!) a ida dos filhos às aula F’ que possuem um “modo disfuncional” de se “comportam nos supermercados, que “desrespeitam as mais elementares regras de civismo que presidem à habitação nos bairros sociais e no espaço público em geral”, que. “[...] aos casamentos entre ciganos segue-se, no dia seguinte, obrigatoriamente, a humilhante demonstração da virgindade da noiva, cujo sangue de desfloramento, estampado nos lençóis, é orgulhosamente exibido perante a comunidade’ é injuriar e difamar um grupo de pessoas em função de uma categoria étnico-racial. É afirmar que estas pessoas assumem comportamentos desviantes e criminosos, que são sub-humanas.
BB) Entende o assistente que afirmar dizer que os “Africanos e afro-descendentes também se auto- excluem, possivelmente de modo menos agressivo, da comunidade nacional. Odeiam ciganos. Constituem etnias irreconciliáveis, e desta mútua aversão já nasceram, em bairros periféricos e em guetos que metem medo, batalhas campais só refreadas pela intervenção policial. Os africanos são abertamente racistas: detestam os brancos sem rodeios; e detestam-se uns aos outros quando são oriundos de tribos ou “nacionalidades” rivais.” é injuriar e difamar um conjunto de pessoas em função da sua ascendência, raça ou cor da pele.
CC)Entende o assistente que afirmar que os “africanos” e “ciganos” farão “um Parlamento ainda mais ignorante e incompetente do que já temos”, é injuriar e difamar um grupo de pessoas.
DD)Entende o assistente que afirmar que os “africanos” e “ciganos” são “minorias exóticas em que uma selvajaria como a excisão genital feminina seja moeda corrente.”, é injuriar e difamar um grupo de pessoas em função das características acima referidas.
EE)O que emerge como a verdadeira tese do artigo é a pretensa inferioridade de “ciganos” e “africanos” e a defesa de uma distância inequívoca que, segundo afirma a denunciada, separa civilizacionalmente “estes” daqueles que entende que, tal como ela, partilham de “crenças”, “códigos de honra” e “valores” moralmente superiores.
FF)Entre as considerações que tece encontram-se afirmações graves, pelas generalizações abusivas e estigmatizantes, de teor explícita e inequivocamente discriminatório e ofensivo, além de infundadas, insultuosas, ofensivas e lesivas da honra e dignidade de milhões de pessoas.
GG)Revelam uma intenção inequívoca em ofender e humilhar os grupos visados, em função da cor da sua pele, da sua origem, pertença cultural ou étnica, e como tal lesivos do seu direito à igualdade, além de que promove o ódio e a discriminação racial e étnica.
HH)Com a tipificação do crime previsto na alínea b) do n.º 2 do artigo 240° do Código Penal o legislador quis, precisamente, punir estes actos.
II)Haveria assim que concluir que os factos descritos na participação e no requerimento de abertura de instrução integram todos os elementos típicos de crime imputado à denunciada, previsto e punido pelo artigo 240.°, n.° 2, alínea b), do Código Penal.
JJ)Salvo melhor opinião, a tipificação do crime prevista no artigo 240.°, n.º 2 do Código Penal, esclarece o alegado conflito entre direitos fundamentais, in casu, o direito ao bom nome e à reputação e o direito à liberdade de expressão.
KK)Antes de mais importa referir que a não discriminação (prevista no 240.° do CP), como dimensão do princípio da igualdade, significa a proibição de diferenciações destituídas de fundamento racional ou arbitrárias e, aplicada à condição humana, pressupõe o reconhecimento da identidade essencial de todos os homens e da irrelevância dos elementos diferenciadores individuais.
LL)O artigo 240.° do CP encontra-se sistematicamente integrado nos crimes contra a identidade cultural e integridade pessoal e, conforme ensina Paulo Pinto de Albuquerque (Comentário do Código Penal, 2010, 2.a Ed., Universidade Católica, pp. 727), encerra dois crimes, sendo que no seu n.° 2 prevê os crimes de “actos discriminatórios”, que engloba as acções previstas nas respectivas alíneas, todas determinadas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional, ascendência, religião, sexo, orientação sexual, identidade de género ou deficiência física ou psíquica. - António Latas, As alterações ao Código Penal introduzidas pela Lei 19/2913 de 21 de Fevereiro, disponível em http://www.tre.mj.pt.
MM)Os bens jurídicos protegidos pela incriminação são a igualdade entre todos os cidadãos, a integridade física, a honra e a liberdade de outra pessoa.
NN)O Conselho Superior de Magistratura, a propósito do Projecto de Lei n.° 251/XIV/1.a (CHEGA), emitiu parecer (Parecer n.º    2020/GAVPM/1137, de 20.03.2020, disponível em
https://www.csm.org.pt/wp-content/uploads/2020/06/039-GP-Proieto-de-Lei-n.%C2%BA-251-XIV- 1.%C2%AA-CH.pdf) no qual, a propósito da proposta para alteração do art. 240.°, n.º 2, al. b) do Código Penal para passar a ter a seguinte redacção:
b)-Difamar ou injuriar pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional, ascendência, religião, sexo, orientação sexual, identidade de género ou deficiência física ou psíquica, sem prejuízo da liberdade de expressão que deve ser assegurada no âmbito do pluralismo de opinião que o Estado de Direito democrático deve necessariamente salvaguardar., esclarece o seguinte: (...)
Vale dizer que o direito de liberdade de expressão, inserido no quadro dos direitos, liberdades e garantias pessoais com dignidade constitucional (artigo 37. °), não se afirma como um direito absoluto, pois a lei ordinária restringe-o nos casos expressamente previstos na Constituição, limitando-o ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses também eles constitucionalmente assegurados, como sejam o direito à honra, ao bom nome, à reputação e à imagem (artigo 26. ° n.° 1, da Constituição da República Portuguesa).
Existem, pois, limites ao exercício da liberdade de expressão que se prendem com essa necessidade de salvaguarda de outros valores constitucionalmente protegidos, conduzindo a sua violação à punição criminal, como sucede com a situação prevista no n.° 2, al. b) do artigo 240." do Código Penal, que pune quem (...)
Neste caso, a conduta assume carácter antijurídico, reclamando a tutela penal de dissuasão e repressão desse comportamento, uma vez que, sendo difamatória ou injuriosa, ultrapassa o limite do socialmente tolerável e deixa de estar inscrita entre o que a liberdade de expressão autoriza.
(...)
Acresce que o objectivo que se visa atingir com a alteração proposta já o garante o próprio texto legislativo na medida em que a difamação ou injúria (aqui com o conteúdo típico dos crimes de difamação e injúria definidos, respectivamente, nos artigos 180.° e 181. °) aí previstas pressupõem que a liberdade de expressão não merece, no caso concreto, ser salvaguardada. A conduta só constituirá crime quando ultrapassar a liberdade de expressão. (negrito e sublinhado nosso)
OO)Ou seja, o art. 240.° do Código Penal, comporta em si mesmo uma restrição ao direito à liberdade de expressão, quando esta liberdade de expressão violar os bens jurídicos que o mesmo visa proteger. O que vale por dizer que, a liberdade de expressão tem e deve ser restringida quando através dela (e no que ao caso concreto importa) se violar o direito à igualdade, aqui concretizado no direito à honra e consideração de pessoa ou grupos de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional, religião, sexo, orientação sexual ou identidade de género.
PP)Acresce que o comportamento da denunciada, na nossa opinião subsumível ao crime previsto e punido pelo art. 240.°, n.º 2, al. b) do CP, importaria a análise do direito à liberdade de expressão por contraponto com o também constitucionalmente protegido direito à igualdade (art. 13.° da CRP), pois o bem jurídico protegido pelo art. 240.° do CP é também o direito à igualdade.
QQ)O que resulta à evidência, salvo melhor opinião, é que os alegados factos e juízos de valor constantes do artigo da autoria da denunciada são altamente ofensivos da honra e consideração dos visados, que enquanto comunidade se vêm expostos sem qualquer cautela, base factual e/ou científica, a preconceitos profundamente atentatórios da sua honra.
RR)Que não passam de generalizações abusivas, fundadas em preconceitos raciais e étnicos, em práticas discriminatórias, e atentatórias da igualdade que qualquer ser humana merece e legalmente tutelada.
SS)Não está em causa o direito à liberdade de expressão da denunciada, que na verdade usa o seu artigo para manifestar a sua opinião racista e discriminatória e não para discutir ou contribuir para a discussão pública de um sistema de quotas.
TT)O que está em causa, e é exactamente neste ponto que se deve centrar a questão da análise do direito à liberdade de expressão (e tem sido essa a linha de raciocínio da jurisprudência), é se a denunciada poderia manifestar a sua opinião alegadamente sobre o sistema de quotas, sem que para isso necessitasse de ofender as comunidades visadas - ciganos e africanos. E a resposta é simples e inequívoca, sim podia, mas escolheu não o fazer!
UU)As expressões e considerações dirigidas a estas comunidades pela denunciada, com as palavras que usou escolher, com a forma como foram transmitidas, são susceptíveis de ofender qualquer pessoa, lesando a sua honra e consideração. Tratando-se de uma opinião racista e discriminatória, e como tal anti- jurídica, pelo que merece tutela penal.
VV)Conforme jurisprudência dos tribunais superiores, a liberdade de expressão não se traduz na faculdade do seu exercício sem quaisquer limites, mormente, quando tal exercício colida com outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, de igual ou superior dignidade. Sendo ponto assente que, o direito à crítica, a expressar uma opinião, uma ideia, não comporta o direito de insultar e de denegrir, de manifestar ódio, intolerância e preconceitos contra determinados grupos, manifestar um pensamento que inferioriza e humilha minorias e indivíduos, que promova a exclusão social.
WW)Nestes casos, a liberdade de expressão pode (e deve) ceder perante outros valores constitucionais relevantes como seja o do princípio da igualdade ínsito no artigo 13.° da CRP, no qual se proclama que todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei, proibindo a discriminação em razão, entre outras, da ascendência, raça, língua, território de origem, religião, a todos reconhecendo o direito ao bom nome e reputação, à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação (art. 26.°, n.° 1 da CRP).
XX)A ofensa à dignidade humana, o incitamento ao ódio através de discursos de teor xenófobo ou discriminatório não podem estar protegidos pela liberdade de expressão, e é exactamente isso que o nosso ordenamento jurídico acolhe na previsão do art. 240.°, n.º 1, al. a) do CP.
YY)Assim, sempre que uma determinada conduta - seja a manifestação de uma opinião, seja a adopção de actos ou de comportamentos - vise unicamente exprimir ofensa, humilhação, discriminar ou estigmatizar pessoas ou certos grupos de indivíduos, deve entender-se que a sua admissibilidade é proibida e punida, não sendo reconduzível ao exercício da liberdade de expressão.
ZZ)Mas um escrito (como o da denunciada) com juízos de valor negativos e gratuitos sobre duas comunidades, dando a entender a quem ler o escrito que essas comunidades (como um todo) reúnem características desvaliosas para qualquer cidadão e praticam actos que os tornam indignos, de modo absolutamente desadequado aos dados de facto e com intenção de denegrir a imagem pública dos mesmos, é claramente desproporcionado face ao alegado fim de discussão pública de uma proposta política actual, não merecendo a protecção da ordem jurídica considerada na sua totalidade.
AAA)Segundo os acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 81/84 (publicado no Diário da República, II Série, n.º 26, de 31 de Janeiro de 1985, p. 1025) e n.º 384/03 (in www.tribunalconstitucional.pt), “a liberdade de expressão [...] não é um direito absoluto nem ilimitado” e, não obstante o artigo 37.°, n.º 2, da Constituição proibir toda a forma de censura, “é lícito reprimir os abusos da liberdade de expressão".
BBB)Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira, o direito ao bom nome e reputação consiste, essencialmente, em "não ser ofendido ou lesado na sua honra, dignidade ou consideração social mediante imputação feita por outrem, bem como no direito a defender-se dessa ofensa e a obter a consequente reparação (...). Neste sentido, este direito constitui um limite para outros direitos (designadamente a liberdade de informação e de imprensa (...)".
CCC)A Declaração Universal dos Direitos Humanos, dispõe no seu artigo 12.° que “[n]inguém sofrerá [...] ataques à sua honra e reputação. Contra tais intromissões ou ataques toda a pessoa tem direito a protecção da lei”, sendo aqui de lembrar que o art. 16.°, n.º 2 da nossa Constituição impõe deverem os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais ser interpretados e integrados de harmonia com esta DUDH.
DDD)A Convenção Europeia dos Direitos Humanos também pressupõe a tutela do direito à honra no n.° 2 do seu artigo 10.° (preceito dedicado à liberdade de expressão) ao estabelecer justamente os limites da liberdade de expressão e informação. Estabelece esta norma que: "O exercício destas liberdades, porquanto implica deveres e responsabilidades, pode ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam providências necessárias numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e da prevenção do crime, a protecção da saúde e da moral, a protecção da honra ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou para garantir a autoridade e imparcialidade do Poder Judicial''.
EEE)A denunciada (com o seu artigo) coloca em situação de inferioridade, na sua pretensa opinião sobre o sistema de quotas, duas comunidades (ciganos e africanos) apenas em função da sua origem racial ou étnica, ofendendo o seu direito à igualdade, à honra e à consideração.
FFF)Acresce que, o teor do artigo da autoria da denunciada é susceptível de contribuir para a perpetuação de estereótipos negativos na sociedade, relativamente a estas comunidades, sendo um discurso que é e foi percebido como discriminatório pelo público.
GGG)O artigo em questão potencia uma cadeia de estigmatização e de reforço de preconceitos contra estrangeiros, minorias ou imigrantes, que poderão, eventualmente, colocar graves problemas sociais, como seja a intensificação de situações de potencial violência ou incremento de ideologias.
HHH)Em face de tudo quanto antecede, resulta evidente que deveria ter sido proferido despacho de acusação nos termos definidos no requerimento de abertura de instrução.
III)Encontram-se preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo previsto no artigo 240.°, n.º 2, al. b) do CP, como supra bastante demonstrado, sendo típico o comportamento da denunciada no que diz respeito às considerações/factos desonrosos que imputa às comunidades visadas e, como tal, o referido comportamento é igualmente ilícito.
JJJ)A denunciada agiu livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
KKK)Pelo exposto, a denunciada cometeu um crime de Discriminação Racial, previsto e punido pelo art. 240.°, n.º 2, al. b) do Código Penal, pelo que deveria ter sido proferido despacho de acusação, o que ora se requer."
Termina no sentido de ser revogada a decisão recorrida e substituída por outra que pronuncie a arguida pela prática de um crime de discriminação racial, p.p. no artigo 240.°, n.º 2, alínea b) do Código Penal..

A este recurso vieram responder, com as respectivas conclusões:
1.O M.º P.º:
1-Uma das manifestações da liberdade de expressão é precisamente o direito que cada pessoa tem de divulgar a opinião e de exercer o direito de crítica.
2-A liberdade de expressão, nela incluindo o direito de crítica, é também uma forma de exercício da tão necessária participação activa na vida em sociedade.
3-Nos artigos 37° e 38.° da Constituição da República Portuguesa, é garantido a todo o cidadão o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento por qualquer meio, bem como o direito de informar sem impedimentos nem discriminações, direitos que se traduzem na liberdade de criação, discussão e crítica.
4-A Declaração Universal dos Direitos do Homem, consagra no art° 19°, o direitos dos indivíduos à liberdade de opinião e expressão.
5-Igualmente a Convenção Europeia do Direitos do Homem, estabelece no art° 10°, n° l, o direito de qualquer pessoa à liberdade de expressão, no que respeita liberdade de opinião e de receber ou transmitir ideias, sem ingerências de quaisquer autoridades públicas e sem consideração de fronteiras.
6-De relevo inquestionável será a apreciação do carácter não ofensivo da Honra ou consideração dos visados que não foi atingida, com a divulgação do artigo de opinião.
7-A liberdade de expressão da arguida, não ultrapassou os limites da proporcionalidade, da adequação e da necessidade, pelo que, não incorreu na prática do denunciado crime de discriminação e incitamento ao ódio e à violência, p. e p. pelo art° 240°, n°2 alínea b) do Código Penal.
8-Nesta conformidade, foi correcta a decisão do Mt° Juiz do Tribunal de Instrução Criminal ao proferir o despacho de indeferimento do RAI apresentado.”

2.A arguida MF formulando como conclusão que a decisão sob recurso deverá ser integralmente confirmada.

Neste Tribunal, a Exma. Procuradora-Geral Adjunto elaborou parecer em que, aderindo à resposta ao recuso apresentada em primeira instância, pugna pela manutenção da decisão.  

II.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

É do seguinte teor o despacho recorrido:
“Movimento SOS Racismo, assistente, na sequência do despacho de arquivamento, apresentou um requerimento para a abertura da instrução.
Tal requerimento não contém a descrição de factos cuja prática integre a prática de qualquer crime, nomeadamente da incriminação prevista no art. 240.°, n.°2, b), do Código Penal.
Por isso, não é admissível o requerimento para a abertura da instrução apresentada pelos mencionados assistentes.
A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação, ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (art. 286.°, n°1 do Código de Processo Penal).
A instrução não se apresenta, assim, como um novo inquérito, mas consubstancia, tão-só, um momento processual de comprovação da decisão de acusar ou não (cf. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 1996, pgs. 454). 
Da descrição apresentada pelo assistente não resulta que a arguida tenha praticado factos que integrem o disposto no art. 240.°, n.°2, b), do Código Penal, nomeadamente que tenham visado livremente difamar ou injuriar pessoas por causa da sua raça ou origem étnica, visando a discriminação de grupos de pessoas.
Resulta dos factos alegados no requerimento para a abertura da instrução que a arguida apenas visou, conforme referiu o Ministério Público no despacho de arquivamento, expressar o seu pensamento ou entendimento sobre a integração social de pessoas, ou da falta dela, em resultado da percepção que tem, ou que escolheu ter, para a sustentar.
Independentemente de tal ser ou não resultado da sua análise ou de meros preconceitos expostos de forma desenvolvida, a reflexão da questão constante do RAI, que em muito extrapola os concretos factos descritos, demonstra isso mesmo.
Estamos, por isso, perante meras opiniões.
Se estivéssemos perante uma tentativa de incitamento ao ódio racial ou étnico através das características expostas não se mostraria sequer relevante a contra-análise apresentada.
Por serem meras opiniões, as afirmações da arguida em causa no RAI não extravasam a liberdade de expressão do pensamento, designadamente pela imprensa, na medida em que estes actos integram-se no direito fundamental dos cidadãos a uma informação livre e pluralista, essencial à prática da democracia (além de expressamente consagradas, em geral, no artigo 37° da Constituição, constituem princípios de direito internacional, reconhecidos, designadamente, pelo artigo 19° da Declaração Universal dos Direitos do Homem e pelo artigo 10°, n° 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e nessa medida integrados no direito português por força do artigo 8° da Lei Fundamental).
A oposição que consta do RAI é, na mesma medida, algo que pode/deve ser difundido pelo mesmo meio de resposta.
Nesta medida, há que lembrar que, conforme se decidiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Junho de 2011 (processo n.º 1272/04.7TBBCL.G1.S1) "A liberdade de expressão constitui um dos pilares fundamentais do Estado democrático e uma das condições primordiais do seu progresso e, bem assim, do desenvolvimento de cada pessoa. As excepções [a tal liberdade] devem ser interpretadas de modo restrito. Tal liberdade abrange, com alguns limites, expressões ou outras manifestações que criticam, chocam, ofendem, exageram ou distorcem a realidade [...]'.
Esta posição segue de perto o critério da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, que, aliás, é mencionada no desenvolvimento daquele aresto (leia-se, por exemplo, a Sentença do Caso Campos Damaso c. Portugal, que consta, em português, na base jurídica daquele Tribunal).
Qualquer opinião ainda que tenha o conteúdo que o assistente lhe atribui, não pode, assim, preencher a incriminação em análise neste processo, com vista a permitir a mais ampla expressão de pontos de vista sobre a vida pública.
A regra é a de que opiniões, nessa qualidade, não podem ter implicações criminais sob pena de restrição absurda da liberdade de expressão (art. 37.° da Constituição da República Portuguesa).
Resulta da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (por exemplo, nos casos de Tavares de Almeida Fernandes e Almeida Fernandes contra Portugal e Carmo de Portugal e Castro Câmara contra Portugal, ambos constantes da base de decisões HUDOC) que há que distinguir entre a referência a factos e a juízos de valor; ao passo que os factos podem ser demonstrados, a verdade sobre os juízos de valor ou opiniões não pode ser demonstrada.
Tendo sido apresentado um requerimento para a abertura da instrução pelo assistente sem a descrição de factos que integrem a prática de crimes, e não podendo o tribunal ultrapassar tal omissão (art. 309.°, n.°1 do 1.°, f), do Código de Processo Penal), o objecto do processo sobre o qual este Tribunal se podia debruçar mostra-se inútil, porque nunca dele derivaria a pronúncia da arguida, o que torna inadmissível este procedimento.
A rejeição por inadmissibilidade legal da instrução (prevista no art. 287.°, n.°3, do Código de Processo Penal) inclui, assim, os casos em que aos factos não corresponde infracção criminal - falta de tipicidade - e aqueles em que exista um obstáculo que impeça o procedimento criminal ou a abertura da instrução ou que possam conduzir a uma pronúncia (cf. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado - 1996, 7a Ed., pgs. 455).
E que, no caso de a instrução ser requerida pelo assistente, o seu requerimento deve, a par dos requisitos exigidos pelo n°2 do art. 287.°, incluir os necessários a uma acusação (por referência ao disposto no art. 283.°, n.°3, b) do Código de Processo Penal), os quais serão necessários para possibilitar a realização da instrução, particularmente no tocante à elaboração da decisão instrutória (cf. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado - 1996, 7a Ed., pgs. 455), sob pena de a instrução ser, a todos os títulos, inexequível.

II.
Nestes termos, a instrução pretendida pelo assistente é legalmente inadmissível, assim se indeferindo totalmente o requerimento de abertura de instrução apresentado.”

Passando a apreciar.  

O despacho recorrido assenta o decretado indeferimento em dois motivos:
- o requerimento não contém a descrição de factos cuja prática integre a prática de qualquer crime, nomeadamente da incriminação prevista no art. 240.°, n.°2, b), do Código Penal;
- não resulta que a arguida tenha praticado factos que integrem o disposto no art. 240.°, n.°2, b), do Código Penal.
Começamos por frisar que nos termos do disposto no art.º 286.º n.º 1 do CPP a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
Estatui depois o art.º 287.º n.º 1 b) do mesmo Código que a abertura de instrução pode ser requerida pelo assistente, se o procedimento criminal não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o M.º P.º não tenha deduzido acusação.
Como se mencionou no ac. desta Relação de Lisboa datado de  25/10/2016, disponível em www.gde.mj.pt: “… embora a afirmação algo enganadora com que o art. 287.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, abre a sua estatuição, proclamando que o requerimento para abertura da instrução “não está sujeito a formalidades especiais”, a verdade é que deverá conter, por um lado, uma súmula “das razões de facto de direito, de discordância relativamente à (…) não acusação” (art. 287.º, n.º2).
Mas porque lhe é também aplicável o disposto no art.º 283.º, n.º 3, al.ªs b) e c), do mesmo diploma (que rege a acusação formulada pelo Ministério Público), terá que incluir, por outro, “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deva ser aplicada e a indicação das disposições legais aplicáveis”.
Ora por via da alteração legislativa conferida pela Lei 59/98, de 25 de Agosto, do desenvolvimento da estrutura acusatória do processo penal consagrada pelo art. 32.º, n.º 5, da CRP, e das suas implicações directas na definição do objecto do processo e nas questões adjectivas colocadas pela sua eventual alteração, esta é uma matéria que, nos tempos mais recentes, conheceu uma significativa evolução Doutrinal e Jurisprudencial apontando sempre no sentido do reforço da exigências colocadas na sua satisfação.
Nas situações, como as presentes, em que o Ministério Público se absteve de acusar, é correcto afirmar-se que o requerimento de abertura de instrução deverá equivaler a uma acusação alternativa, ou como o refere o Prof. Germano Marques da Silva (Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, pág.ª 139), deverá conter “uma verdadeira acusação”.
E isto porquê?
Porque “na instrução a requerimento do assistente, o juiz investigará os factos descritos no requerimento instrutório e se os julgar indiciados e nada mais obstar ao recebimento da acusação pronunciará o arguido por esses factos (art.ºs 308.º e 309.º). Não há lugar a uma nova acusação; o requerimento do assistente actuou como acusação e, assim, se respeita formal e materialmente a acusatoriedade do processo” (obra citada, pág.ª 140).
Dito por outras palavras, nem a Instrução traduz um novo inquérito para colmatar eventuais faltas investigatórias que tenham ocorrido naquela fase, nem após a realização das diligências instrutórias se abre a possibilidade de formulação da acusação.
Ora ainda que nos termos do art. 283.º, n.º 3, al.ª b), do Cód. Proc. Penal, a narração dos factos possa ser sintética, a verdade é que terá que ser suficiente para albergar a consequência de poder fundamentar a aplicação de uma pena.
Essa suficiência mede-se pois, não só pela possibilidade do libelo acusatório conter todos os elementos subjectivos e objectivos indispensáveis à perfectibilização subsuntiva da infracção, como também, num outro domínio, o de poder funcionar como uma peça processual autónoma, ou seja, sem que para definição desses mesmos elementos se tenha de recorrer a outras peças do processo.”
São assim lógicas e compreensíveis as exigências de conteúdo constantes dos preceitos acima consignados, impostas pela evidente premência, num tal contexto, de demarcar os factos concretos susceptíveis de integrar o ilícito que o assistente pretende indiciado.
Com efeito, regendo-se o processo penal pelos princípios do acusatório e do contraditório, a necessidade de uma tal demarcação tem subjacentes duas ordens de fundamentos:
- Um, inerente ao objectivo imediato da instrução: a comprovação judicial da pretensa indiciação (que, para que se possa demarcar o âmbito do objecto específico desta fase do processo e para que o arguido se possa defender, tem que reportar-se a imputação de factos concretos delimitados) e  
- Outro, implícito a uma finalidade mediata mas essencial no caso de se vir a decidir pelo prosseguimento do processo para julgamento: a demarcação do próprio objecto do processo, reflexo da sua estrutura acusatória com a correspondente vinculação temática do Tribunal, que, por sua vez, na medida em que impede qualquer eventual alargamento arbitrário daquele objecto, constituindo uma garantia de defesa do arguido, possibilita a este a preparação da defesa, assim salvaguardando o contraditório.
Como refere o acórdão da Relação do Porto de       04/02/2015 em que foi relatora a Exma. Desembargadora Élia São Pedro, disponível em www.gde.mj.pt/jtrp : “Contudo, daí não se pode concluir que o requerimento para abertura da instrução (formulado pelo assistente) seja imutável. Na verdade, se é certo que não é permitida nunca uma alteração substancial dos factos, o mesmo já não acontece com uma possível alteração não substancial dos factos da acusação – cfr. art. 303º do CPP, regulando a “alteração dos factos descritos na acusação ou no requerimento para abertura da instrução. Nesta última hipótese, isto é, se dos actos de instrução ou do debate instrutório resultar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação, ou da respectiva qualificação jurídica, o juiz procederá de acordo com o disposto nos n.ºs 1 e 5 do citado art. 303º do CPP. Cumprida a ritologia prevista no n.º 1 do art. 303º do CPP (comunicação da alteração, audição do arguido sempre que possível e concessão de prazo para preparação da defesa), a pronúncia respectiva poderá validamente conter factos não constantes da acusação (desde que não comportem uma alteração substancial) ou alterar a sua qualificação jurídica.
Do exposto decorre que pode não haver completa identidade entre os factos descritos no requerimento para abertura de instrução e a pronúncia, como pode não haver identidade entre a qualificação jurídica feita nesse requerimento e a respectiva pronúncia.
Por outro lado, não exigindo a lei formalidades especiais na elaboração do requerimento para abertura da instrução, deve admitir-se a possibilidade de o elemento subjectivo dos crimes imputados ao arguido poder ser descrito através de factos que inequivocamente o revelem. O que importa, no essencial, é que o objecto do processo esteja bem delimitado e que os dados de facto susceptíveis de evidenciarem elementos psicológicos, como o dolo e a consciência da ilicitude, sejam de tal modo claros e evidentes que não tenha sentido algum pôr em causa a sua imputação.”
Retomando o caso concreto e por relação ao requerimento de abertura de instrução formulado pelo agora recorrente, constatamos que, independentemente de alguns comentários apreciativos dirigidos ao teor do escrito da lavra da arguida e das reacções que o artigo provocou, nos pontos 123 e seguintes, mostram-se elencados os factos que, na perspectiva do assistente, considera como indiciados na sequência da investigação feita na fase processual do inquérito e que se traduzem na menção relativa à publicação em jornal diário e conteúdo do artigo de opinião cuja autoria se mostra atribuída à arguida.
Naqueles factos mostra-se, para além de inserido o conteúdo integral do artigo de opinião, posto em destaque os segmentos que o assistente manifesta revelarem preconceitos e discursos injuriosos e difamatórios dirigidos a grupos ali referidos/identificados pela sua etnia, cor de pele, origem ou pertença cultural.
Mais se constata que naqueles factos se mostram incluídos os relativos aos elementos subjectivos – não sendo aqui necessária a menção a qualquer intenção específica por parte da arguida, mormente intenção de discriminação racial – acerca da natureza injuriosa da prosa, voluntariedade da acção e a consciência da ilicitude bem como a respectiva qualificação jurídico-penal.
Concluímos assim que o primeiro dos fundamentos invocados no despacho para o indeferimento do requerimento não tem respaldo no RAI apresentado pelo assistente.

Como se conclui da citação feita do despacho recorrido, o Mmo. JIC fundou a rejeição do RAI na consideração de que da descrição apresentada pelo assistente não resulta que a arguida tenha praticado factos que integrem o disposto no art. 240.°, n.°2, b), do Código Penal, nomeadamente que tenham visado livremente difamar ou injuriar pessoas por causa da sua raça ou origem étnica, visando a discriminação de grupos de pessoas, ou seja, que os factos não se mostram susceptíveis de preenche o ilícito imputado.
Como acima já indicámos, o assistente formulou uma acusação alternativa contendo todos os requisitos legalmente exigidos em termos de narrativa dos factos e da imputação jurídica.
Deslocando a questão para a avaliação que agora deverá ser posta: verificar se as expressões e conclusões constantes do artigo publicado são, pelo menos indiciariamente, difamatórias ou injuriosas para um grupo de pessoas por causa da sua raça, cor origem étnica ou nacional (para ciganos e africanos) a quem a arguida se dirige e da aferição do juízo de probabilidade razoável de condenação enunciado no n.º 2 do art.º 283.º do CPP.
O essencial da argumentação desenvolvida na decisão recorrida, no aspecto substantivo, assenta no confronto entre, por um lado, o direito à honra e bom nome e, por outro, a liberdade de expressão em cujo exercício a arguida apenas visou expressar o seu pensamento ou entendimento sobre a integração social de pessoas, ou da falta dela, em resultado da percepção que tem, ou que escolheu ter, para a sustentar e as afirmações da arguida em causa no RAI não extravasam a liberdade de expressão do pensamento, designadamente pela imprensa, na medida em que estes actos integram-se no direito fundamental dos cidadãos a uma informação livre e pluralista, essencial à prática da democracia. 
Mostram eloquentemente os autos, pela invocação de jurisprudência e até de doutrina, o constante confronto entre a liberdade de expressão e a necessidade de salvaguarda do direito ao bom nome à honra pessoais, enquanto emanações de direitos liberdades e garantias constitucionalmente garantidas e tuteladas.
Sem pretender entrar nessa análise pois na fase processual em que nos encontramos importa apenas aferir, estabilizada a questão relativa à suficiência factual inserida na acusação alternativa vertida no RAI, se a finalidade perseguida com a instrução ainda pode ser atingida.
O juízo de probabilidade razoável de condenação enunciado no n.º 2 do art. 283.º do CPP, aplicável à pronúncia ou não pronúncia, não equivale a um juízo de certeza exigido ao Juiz na condenação. Quer a doutrina, quer a jurisprudência, vêm entendendo aquela «possibilidade razoável» de condenação como uma possibilidade mais positiva que negativa: o juiz só deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido ou, os indícios são os suficientes quando haja uma alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição.
Como se constata das citações feitas do artigo de opinião em que assenta a objectividade fáctica as afirmações feitas pela arguida, porque feitas de uma forma generalizante, dirigem-se a grupos identificados pela etnia, cor de pele ou origem nacional - “africanos” e “ciganos” - e as características que lhe são apontadas traduzem-se em juízos de valor, como seja e mormente, «não fazem parte de uma entidade civilizacional e cultural milenária “que dá pelo nome de Cristandade’», «”não descendem dos “Direitos Universais do Homem decretados pela Grande Revolução Francesa de 1789”», «os ciganos são “inassimiláveis”», «possuem um “modo disfuncional" de se “comportam nos supermercados, que “desrespeitam as mais elementares regras de civismo que presidem à habitação nos bairros sociais e no espaço público em geral"», «Africanos e afro-descendentes também se auto- excluem, possivelmente de modo menos agressivo, da comunidade nacional. Odeiam ciganos. Constituem etnias irreconciliáveis», «Os africanos são abertamente racistas: detestam os brancos sem rodeios; e detestam-se uns aos outros quando são oriundos de tribos ou “nacionalidades” rivais».
Esta adjectivação generalista não deixa de revelar uma manifestação de uma pretensa inferioridade de “ciganos” e “africanos” apresentando-os como inferiores a um outro grupo colocado a uma distância civilizacional e intelectual que partilha de “crenças", “códigos de honra" e “valores" moralmente superiores.
Não deixamos de concluir que esta apreciação se apresenta de teor explícito e inequivocamente discriminatório e ofensivo desse grupos identificados como “ciganos” e “africanos”, estendendo-a a factos que aponta e que se apresentam como lesivos do seu direito à igualdade, à honra e à consideração.
Nesta ponderação, a inadmissibilidade legal da instrução alegada na decisão que levou ao indeferimento do requerimento de abertura de instrução não se configura tão evidente, pelo que importaria admitir tal requerimento e determinar a abertura de instrução.
Contrariamente ao pretendido pelo recorrente, não estamos, agora e já, perante a possibilidade de produzir ou determinar a prolação de um despacho de pronúncia na medida em que a instrução tem actos processuais obrigatórios que não se mostram ainda cumpridos – art.º 289º n.º 1 CPP.
Cingindo-nos ao conteúdo do despacho recorrido, a procedência do recurso apenas se pode reflectir na substituição do despacho de indeferimento do RAI e na determinação de abertura de instrução, o que se declara.

III.
Face ao exposto, acordam os Juízes desta Secção Criminal em julgar procedente o recurso do assistente Movimento SOS Racismo e, consequentemente, revogar o despacho recorrido que deverá ser substituído por outro que determine a abertura de instrução e os ulteriores termos desta.
Sem custas.
Elaborado e revisto pelo primeiro signatário.


Lisboa, 6 de Julho de 2021.



João Carrola
Luís Gominho