Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2933/20.9T8LSB-A.L1-8
Relator: CARLA SOUSA OLIVEIRA
Descritores: NÃO ADMISSÃO DO RECURSO
RECLAMAÇÃO
NULIDADE DA DECISÃO RECLAMADA
CONFIRMAÇÃO EM CONFERÊNCIA DA DECISÃO
IMPUGNAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/27/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECLAMAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I - Não constituindo objecto da reclamação, deduzida ao abrigo do art.º 643º do NCPC, o conhecimento da nulidade da decisão proferida pelo tribunal “a quo”, não existe qualquer omissão de pronúncia no acórdão que se limitou a decidir sobre a inadmissibilidade do recurso interposto daquela mesma decisão.
II - O acórdão do tribunal da Relação que se pronuncia em conferência sobre a admissibilidade do recurso de apelação, no âmbito do incidente de reclamação do despacho do juiz da 1ª instância que não admitiu o recurso interposto (art.ºs 643º, nº 4, 2ª parte, e 652º, nº 3, do NCPC), julga em definitivo a questão da inadmissibilidade ou da subida do recurso de apelação (únicos resultados decisórios admitidos pelo art.º 643º, nº 4, 1ª parte, do NCPC) e é insusceptível de qualquer outra impugnação.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I. Relatório
Na acção declarativa, com processo comum, que corre termos com o nº 2933/20.9T8LSB e em que é autora S…, Lda e ré Z… – Sucursal em Portugal, foi atribuído à causa o valor de €2.337,10, tendo a final sido proferida sentença que julgou parcialmente procedente a acção e condenou a ré a pagar à autora a quantia de €897,10 e respectivos juros desde a citação até integral pagamento.
Inconformada, a autora apresentou requerimento a arguir a nulidade da aludida sentença, requerendo a reforma da sentença, ao abrigo do disposto no art.º 617º, nº 6, do NCPC.
Sobre tal pedido recaiu despacho a julgar não verificada qualquer nulidade e a indeferir a requerida reforma da sentença.
Novamente inconformada, a autora interpôs recurso desta decisão, alegando, em síntese, que o tribunal “a quo” violou por errada aplicação e interpretação o disposto nos art.ºs 483º e seguintes, 562º e 563º do CC e cometeu a nulidade referida no art.º 615º, nº 1, al. d) do NCPC.
Todavia, foi proferido despacho a não admitir o recurso.
Na sequência, a autora veio apresentar o presente incidente de reclamação ao abrigo do disposto no art.º 643º do NCPC do despacho que não admitiu o recurso.
Foi proferida decisão sumária ao abrigo do disposto no art.º 656º do NCPC negando provimento à reclamação e mantendo o despacho reclamado.
Notificada da decisão singular proferida veio a autora reclamar da aludida decisão sumária para a conferência nos termos do disposto no art.º 652º, nº 3 do NCPC.
Em 31.01.2023, foi proferido acórdão em conferência, que julgou improcedente a reclamação e confirmou a decisão singular de não admissão da apelação, constando da respectiva fundamentação o seguinte:
“A reclamante veio defender na reclamação para a conferência que a decisão sumária padece de omissão de pronúncia – por não ter atendido à nulidade invocada no recurso interposto -, sem que, contudo, tenha invocado qualquer nulidade da própria decisão sumária, nomeadamente, ao abrigo do disposto no art.º 615º, nº 1, al. d), do NCPC.
De todo o modo, e salvo o devido respeito, é por demais evidente que a decisão sumária não padece de qualquer omissão, sendo manifesto o equívoco da reclamante quanto ao objecto da reclamação prevista no art.º 643º, do NCPC.
Na verdade, e conforme decorre expressamente da decisão sumária proferida, não está em causa nos presentes autos de reclamação aferir se assiste ou não razão à reclamante quanto ao objecto do recurso e às questões que aí se suscitam, cabendo, nesta sede, apenas decidir se o recurso interposto pela reclamante é ou não admissível, como passaremos a demonstrar.
O art.º 643º, do NCPC, com a epígrafe “Reclamação contra o indeferimento” estabelece o seguinte:
“1 - Do despacho que não admita o recurso pode o recorrente reclamar para o tribunal que seria competente para dele conhecer no prazo de 10 dias contados da notificação da decisão.
2 - O recorrido pode responder à reclamação apresentada pelo recorrente, em prazo idêntico ao referido no número anterior.
3 - A reclamação, dirigida ao tribunal superior, é apresentada na secretaria do tribunal recorrido, autuada por apenso aos autos principais e é sempre instruída com o requerimento de interposição de recurso e as alegações, a decisão recorrida e o despacho objecto de reclamação.
4 - A reclamação, logo que distribuída, é apresentada ao relator, que, em 10 dias, profere decisão que admita o recurso ou o mande subir ou mantenha o despacho reclamado, a qual é susceptível de impugnação, nos termos previstos no n.º 3 do artigo 652.º.
5 - Se o relator não se julgar suficientemente elucidado com os documentos referidos no n.º 3, pode requisitar ao tribunal recorrido os esclarecimentos ou as certidões que entenda necessários.
6 - Se a reclamação for deferida, o relator requisita o processo principal ao tribunal recorrido, que o fará subir no prazo de 10 dias.” (o sublinhado é nosso).
Do regime que deixamos ora transcrito resulta, pois, que o art.º 643º do NCPC somente regula o meio de reacção do recorrente face a um despacho de não admissão do recurso pelo tribunal recorrido.
Como vimos, dispõem os nºs 1 e 3, deste artigo, que o recorrente pode reclamar para o tribunal de recurso, onde o relator a quem a reclamação foi distribuída profere unicamente decisão de admissão do recurso ou de manutenção do despacho de não admissão, sendo esta decisão, por sua vez, passível de reclamação para a conferência, nos termos do art.º 652º, nº 3, do NCPC.
E só no caso de ser admitido o recurso é que o relator requisita o processo principal ao tribunal recorrido a fim de conhecer do objecto do recurso (nº 6, do citado normativo).
Nestes termos, e não obstante ser admissível, no caso, a reclamação para a conferência da decisão singular proferida, está vedado ao tribunal ad quem conhecer nesta sede do objecto do recurso interposto pela autora. Ou seja, não cabe apreciar e decidir, no âmbito desta reclamação, da nulidade apontada à sentença proferida pelo tribunal a quo, nulidade essa que fundamenta o aludido recurso.
Tal apreciação (da dita nulidade da sentença) só poderia ocorrer no caso do recurso interposto ser julgado admissível, tendo-se ainda que previamente solicitar a subida dos autos principais para aí ser proferida decisão sobre o recurso (anteriormente admitido), mas nunca nos presentes autos de reclamação.
Veja-se quanto à tramitação da reclamação deduzida ao abrigo do disposto no art.º 643º, do NCPC, os sempre esclarecidos e esclarecedores ensinamentos de Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 6ª Edição Actualizada, p. 224 a 232.
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Assim sendo, resta-nos decidir se deve ser mantido o despacho que não admitiu o recurso interposto pela autora -, adiantando desde já, conforme posição expressa na decisão sumária proferida, que, em nosso entender, o despacho reclamado deve ser mantido, reiterando-se aqui todos os argumentos já expendidos na decisão sumária e que aqui passamos a transcrever:
«Dispõe o nº 1 do art.º 643º do NCPC que do despacho que não admita o recurso pode o recorrente reclamar para o tribunal que seria competente para dele conhecer no prazo de dez dias contados da notificação da decisão.
Importa começar por referir que não cabe nos presentes autos de reclamação aferir se assiste ou não razão à reclamante quanto ao objecto do recurso e às questões que aí se suscitam.
Com efeito, na presente reclamação importa apenas decidir se a decisão recorrida admite ou não recurso.
No caso concreto, como resulta do despacho reclamado acima transcrito, o tribunal de 1ª Instância não admitiu o recurso por entender, no essencial, que a decisão em causa não é recorrível, atento o disposto no art.º 617º, nº 6 do NCPC.
Vejamos.
Conforme estabelece o art.º 629º, nº 1 do NCPC “[o] recurso ordinário só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal, atendendo-se, em caso de fundada dúvida acerca do valor da sucumbência, somente ao valor da causa.” (o sublinhado é nosso).
Não sendo a sentença recorrível - nomeadamente, em função do valor da causa -, a parte vencida pode ainda assim arguir nulidades ou pedir a reforma perante o juiz que proferiu a decisão.
Dispõe sobre isto o art.º 615º, nº 4 do NCPC, no qual se poder ler o seguinte: “As nulidades mencionadas nas alíneas b) a e) só podem ser arguidas perante o tribunal que proferiu a decisão se esta não admitir recurso ordinário, podendo o recurso, no caso contrário, ter como fundamento qualquer dessas nulidades.”.
E o art.º 616º, nº 2 que estabelece que: “Não cabendo recurso da decisão, é ainda lícito a qualquer das partes requerer a reforma da sentença quando, por manifesto lapso do juiz: (…).”.
O processamento subsequente à arguição da nulidade ou ao pedido de reforma encontra-se presente no art.º 617º, do NCPC:
“1- Se a questão da nulidade da sentença ou da sua reforma for suscitada no âmbito de recurso dela interposto, compete ao juiz apreciá-la no próprio despacho em que se pronuncia sobre a admissibilidade do recurso, não cabendo recurso da decisão de indeferimento.
2- Se o juiz suprir a nulidade ou reformar a sentença, considera-se o despacho proferido como complemento e parte integrante desta, ficando o recurso interposto a ter como objeto esta nova decisão.
3- Neste caso, pode o recorrente, no prazo de dez dias, desistir do recurso interposto, alargar ou restringir o respetivo âmbito, em conformidade com a alteração sofrida pela sentença, podendo o recorrido responder a tal alteração no mesmo prazo.
4- Se o recorrente, por ter obtido o suprimento pretendido, desistir do recurso, pode o recorrido, no mesmo prazo, requerer a subida dos autos para decidir da admissibilidade da alteração introduzida na sentença, assumindo, a partir desse momento a posição de recorrente.
5- Omitindo o juiz o despacho previsto no n.º 1, pode o relator, se o entender indispensável, mandar baixar o processo para que seja proferido; se não puder ser apreciado o objeto do recurso e houver que conhecer da questão da nulidade ou da reforma, compete ao juiz, após a baixa dos autos, apreciar as nulidades invocadas ou o pedido de reforma formulado, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o previsto no nº 6.
6- Arguida perante o juiz que proferiu a sentença alguma nulidade, nos termos da primeira parte do n.º 4 do artigo 615.º, ou deduzido pedido de reforma da sentença, por dela não caber recurso ordinário, o juiz profere decisão definitiva sobre a questão suscitada; porém, no caso a que se refere o n.º 2 do artigo anterior, a parte prejudicada com a alteração da decisão pode recorrer, mesmo que a causa esteja compreendida na alçada do tribunal, não suspendendo o recurso a exequibilidade da sentença.” (o sublinhado é, mais uma vez, nosso).
Conforme decorre da leitura desta norma, os nºs 1 a 5 dirigem-se aos casos em que é admissível interpor recurso ordinário da sentença, já o nº 6 regula as situações em que, não sendo admissível de recurso da sentença, a questão da nulidade ou da reforma da decisão é colocada ao próprio juiz, cabendo a este a respectiva apreciação.
Ora, “Nos casos em que os incidentes de arguição de nulidade ou de reforma tenham sido deduzidos autonomamente, por não caber recurso ordinário da sentença, a decisão então proferida pelo juiz será definitiva em caso de indeferimento.” - cfr. Abrantes Geraldes, Paulo Pimento e Luís Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, vol. I, p. 740, sendo o sublinhado da nossa autoria.
Só no caso de ser deferida a nulidade ou a reforma é que a parte prejudicada com a alteração poderá impugná-la por via de recurso, fora das regras da alçada do tribunal (autores e obra citada).
Revertendo ao caso concreto, o valor da causa é inferior a €5.000,00, pelo que a sentença proferida não admitia recurso ordinário (cfr. art.º 629º, nº 1, do NCPC e art.º 44º, da LOSJ). Por isso mesmo foi arguida a nulidade e pedida a reforma da sentença junto do tribunal da 1ª instância.
Uma vez que o incidente de arguição de nulidade e de reforma da sentença foi deduzido autonomamente e foi indeferido, tendo em consideração o regime legal acima explanado, a decisão que recaiu sobre tal incidente não é, pois, recorrível.
E é exactamente isto que é salientado no despacho reclamado ao fazer menção a que A autora deduziu pedido de reforma de sentença, que foi indeferido, por decisão que é definitiva sobre a questão suscitada, ou seja, que não admite recurso, nos termos do n.º 6, do artigo 617.º do Código do Processo Civil.”.
Neste caso, a autora também só podia impugnar o despacho recorrido junto do tribunal de 1ª instância – veja-se o regime previsto no nº 5, do art.º 617º, do NCPC.
Pelo exposto, não podemos deixar de concordar com o tribunal a quo, desatendendo, por isso, a reclamação apresentada.».
Ora, não tendo a reclamante aduzido qualquer novo argumento no sentido da admissibilidade do recurso e considerando o exposto, por razões de economia processual e a fim de evitar repetições desnecessárias, aderimos e reiteramos os fundamentos já constantes da decisão singular proferida pela relatora, que entendemos ser de confirmar.
Destarte, temos de concluir que a decisão proferida pelo tribunal a quo que o recurso não é admissível.
As custas são da responsabilidade da reclamante atento o seu decaimento (art.º 527º do NCPC).”.
Veio, então, a autora apresentar recurso de revista excepcional para o Supremo Tribunal da Justiça, nos termos previstos no art.º 672º, nº 1, al. a), do NCPC, do acórdão proferido em 31.01.2023, argumentando que o acórdão proferido padece de nulidade, concluindo nestes termos:
1ª – A recorrente arguiu a nulidade frente o M. Juiz “a quo” por este ter condenado na reparação da viatura e não ter condenado em tempo de paralisação para que a mesma fosse reparada.
2ª – Tendo a recorrente arguido a nulidade conforme supra se transcreveu, para o qual se remete os Exmos. Senhores Juízes Conselheiros, idem doc. 1.
3ª – A M. Juiz “a quo” não deu seguimento à arguição de nulidade conforme douto despacho que se junta como doc. 2.
4ª – A recorrente apresentou recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, alegando o acima transcrito, para o qual se remete os Exmos. Senhores Juízes Conselheiros, idem doc. 3.
5ª – A M. Juiz “a quo” não deu seguimento ao recurso, conforme despacho que se junta doc. 4.
6ª – Tendo a recorrida apresentado reclamação para o Tribunal da Relação, alegando o acima transcrito, para o qual se remete os Exmos. Senhores Juízes Conselheiros, idem doc. 5.
7ª – O douto Tribunal da Relação proferiu o presente acórdão, cujo documento se junta como doc. 6, tendo proferido o seguinte sumário:
SUMÁRIO
I - Não cabe nos autos de reclamação do despacho que não admitiu o recurso, ao abrigo do disposto no art.º 643º, do NCPC, aferir se assiste ou não razão ao reclamante quanto ao objecto do recurso e às questões que aí se suscitam.
II - Nos casos em que os incidentes de arguição de nulidade ou de reforma tenham sido deduzidos autonomamente, por não caber recurso ordinário da sentença, a decisão então proferida pelo juiz será definitiva em caso de indeferimento, não sendo passível de recurso.
8ª – Ora, as instâncias quer a primeira, quer a segunda, não deram provimento à reclamação que arguiu a nulidade levantada no Tribunal de primeira instância.
9ª – Esta atitude prejudica gravemente a indústria do táxi, dá uma má imagem na aplicação do direito.
10ª – Isto é, a M. Juiz “a quo” de primeira instância condena a R. a pagar a reparação da viatura, mas não condena em tempo para a mesma ser reparada, e todos nós sabemos que ainda não existe nenhum veículo táxi em Portugal ou no mundo que possa ser reparado e a circular.
11ª – É aqui que a M. Juiz “a quo” comete a nulidade a que se refere o artigo 615.º, n.º 1, al. d) do CPC e viola os artigos 483.º, 562.º e 563.º do CC.
12ª – No presente caso as instâncias, primeira e segunda, deviam ter acolhido a reclamação apresentada, alegando ter havido nulidade por parte do M. Juiz da primeira instância, por o mesmo não ter considerado o tempo de paralisação para que o veículo fosse reparado e o mesmo se diga sobre o Tribunal de segunda instância.
13ª – Não o tendo feito foi violado por errada interpretação e aplicação o disposto nos artigos 615.º, n.º 1, al. d) do CPC e os artigos 483.º, 562.º e 563.º do CC.
Devendo a sentença e acórdão referenciados serem revogados e admitida a arguida nulidade por parte dos Tribunais de primeira e segunda instância, com as legais consequências.”.
A contra-parte nada disse.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II. Questões a decidir
As questões que ora se colocam são as seguintes:
- da nulidade do acórdão proferido em conferência por omissão de pronúncia, nos termos previstos no art.º 615º, nº 1, al. d), do NCPC;
- da recorribilidade de acórdão do tribunal da Relação que se pronuncia em conferência sobre a admissibilidade do recurso de apelação, no âmbito do incidente de reclamação deduzido ao abrigo do disposto no art.º 643º, do NCPC.
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III. Fundamentação:
2.1. Fundamentos de facto
As incidências fáctico-processuais a considerar são as descritas no relatório.
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2.2. Apreciação de direito
2.2.1. Da nulidade do acórdão
Importa começar por referir que as decisões judiciais se podem encontrar viciadas por causas distintas, sendo a respectiva consequência também diversa: se existe erro no julgamento dos factos e do direito, a respectiva consequência é a revogação, se foram violadas regras próprias da sua elaboração e estruturação, ou que respeitam ao conteúdo e limites do poder à sombra do qual são decretadas, são nulas nos termos do art.º 615º, do NCPC.
As causas de nulidade taxativamente enumeradas no art.º 615º não visam o chamado erro de julgamento e nem a injustiça da decisão, ou tão pouco a não conformidade dela com o direito aplicável, sendo coisas distintas, mas muitas vezes confundidas pelas partes, a nulidade da sentença e o erro de julgamento, traduzindo-se este numa apreciação da questão em desconformidade com a lei.
Não deve por isso confundir-se o erro de julgamento e muito menos o inconformismo quanto ao teor da decisão com os vícios que determinam as nulidades em causa.
Com efeito, as causas de nulidade de sentença (ou de outra decisão), conforme se escreve no ac. do STJ de 17.10.2017 (relatado por Alexandre Reis e disponível em www.dgsi.pt) “visam o erro na construção do silogismo judiciário e não o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, ou a não conformidade dela com o direito aplicável, nada tendo a ver com qualquer de tais vícios a adequação aos princípios jurídicos aplicáveis da fundamentação utilizada para julgar a pretensão formulada: não são razões de fundo as que subjazem aos vícios imputados, sendo coisas distintas a nulidade da sentença e o erro de julgamento, que se traduz numa apreciação da questão em desconformidade com a lei”.
Segundo o ora invocado pela recorrente a decisão recorrida incorreu na nulidade prevista na al. d) do referido preceito.
Tal normativo estabelece, para o que agora interessa, que a decisão é nula quando o juiz deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar.
Esta nulidade decorre da exigência prescrita no nº 2 do art.º 608º do NCPC, nos termos do qual o “juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras”.
Verifica-se, pois, a omissão de pronúncia quando o juiz deixe de conhecer, sem prejudicialidade, de todas as questões que devesse apreciar e cuja apreciação lhe foi colocada (cfr. ac. do STJ de 28.02.2013, relatado por João Bernardo, in www.dgsi.pt).
Doutrinária e jurisprudencialmente tem sido entendido de que só há nulidade quando o juiz não se pronuncia sobre verdadeiras questões não prejudicadas invocadas pelas partes, e não perante a argumentação invocada pelas partes (cfr., entre outros, António Júlio Cunha, Direito Processual Civil Declarativo, 2ª ed., Quid Juris, p. 364 e ac. do STJ de 8.11.2016, relator Nuno Cameira, disponível in www.dgsi.pt).
O juiz não tem, por isso, que esgotar a análise da argumentação das partes, mas apenas que apreciar todas as questões que devam ser conhecidas, ponderando os argumentos na medida do necessário e suficiente (vide, ac. do STJ de 30.04.2014, relator Mário Belo Morgado, acessível in www.dgsi.pt).
Feitas estas considerações, vejamos a sua pertinência no caso concreto, tendo presente que estamos perante um incidente de reclamação interposto ao abrigo do disposto no art.º 643º, do NCPC.
Conforme resulta das conclusões recursivas, a recorrente defende que o acórdão proferido em 31.01.2023 incorreu na nulidade prevista no art.º 615º, nº 1, al. d), do NCPC por não ter dado provimento à reclamação que arguiu a nulidade levantada no Tribunal de primeira instância.
Porém, e também conforme expressa e repetidamente se explicou, quer no acórdão ora recorrido, quer na decisão sumária anteriormente proferida nos presentes autos de reclamação, não cabe nesta sede aferir e decidir se assiste ou não razão à reclamante quanto ao objecto do recurso interposto e às questões que aí se suscitam – mormente, não cabia averiguar e decidir na presente reclamação se se verificava ou não a nulidade da decisão proferida pelo tribunal “a quo” ao abrigo do disposto no art.º 617º, nº 6, do NCPC, cabendo no âmbito deste incidente, apenas e tão somente decidir se o recurso interposto pela reclamante dessa decisão era ou não admissível.
Na verdade, a especificidade da situação não se coaduna com as pretensões delineadas pela ora recorrente manifestadas e elencadas nas conclusões do recurso (que a recorrente também pretendia ver conhecidas no recurso de apelação que interpôs e que não foi admitido, uma vez que as mesmas extravasam o âmbito da questão que processualmente se mostra passível de conhecimento nesta sede e que se reconduz, unicamente à admissibilidade legal do próprio recurso inicialmente interposto).
Face a tal excurso é manifesto que, não constituindo objecto da reclamação, deduzida ao abrigo do art.º 643º do NCPC, o conhecimento da dita nulidade da decisão proferida pelo tribunal “a quo”, não existe qualquer omissão de pronúncia no acórdão que se limitou a decidir sobre a inadmissibilidade do recurso interposto daquela mesma decisão.
Cfr., a este propósito o ac. do STJ de 13.10.2021, relatado por Maria Paula Sá Fernandes e disponível in www.dgsi.pt.
Termos em que se conclui pela inexistência da invocada nulidade.
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2.2.2. Da recorribilidade do acórdão
Decorre do acima exposto que a autora veio apresentar recurso de revista excepcional para o Supremo Tribunal da Justiça, nos termos previstos no art.º 672º, nº 1, al. a), do NCPC, do acórdão proferido nestes autos, em 31.01.2023.
Tal acórdão, proferido em conferência, confirma o despacho singular da aqui relatora de não admissão do recurso de apelação, em sede de incidente de reclamação do despacho do juiz de 1ª instância que rejeitou esse mesmo recurso de apelação.
Ora, atenta a natureza da decisão ali proferida afigura-se-nos evidente que a mesma não é susceptível de recurso.
Na verdade, e como muito bem se decidiu, em situação idêntica à dos autos, no ac. do STJ de 17.11.2021, relatado por Ricardo Costa e disponível in www.dgsi.pt “O acórdão do tribunal da Relação que se pronuncia em conferência sobre a admissibilidade do recurso de apelação, no âmbito do incidente de reclamação do despacho do juiz da 1.ª instância que não admitiu o recurso interposto (art.ºs 643.º, n.º 4, 2.ª parte, e 652.º, n.º 3, do CPC), julga em definitivo a questão da inadmissibilidade ou da subida do recurso de apelação (únicos resultados decisórios admitidos pelo art.º 643.º, n.º 4, 1.ª parte, do CPC).”.
Com efeito, tal é o entendimento que vem sendo adoptado pelo Supremo Tribunal de Justiça em vários arestos e com o qual não podemos deixar de concordar.
Com relevo para o que acabamos de dizer, pode ler-se no citado acórdão do STJ de 17.11.2021 o seguinte (desde já nos penitenciando pela extensa, mas esclarecedora citação):
«Um acórdão da Relação que confirma a decisão da 1.ª instância e do Relator em 2.ª instância, ligados pelo resultado decisório comum de rejeição do recurso de apelação dessa decisão de 1.ª instância, segue a disciplina e a lógica do regime do incidente de reclamação, estabelecido no art.º 643º do CPC, assim como os seus desfechos possíveis e excludentes: “ou o recurso é admitido e o relator requisita o processo ao tribunal recorrido; ou o despacho de não recebimento de recurso é mantido e[,] então, o processo incidental é remetido ao tribunal reclamado, para o processo prosseguir aí os seus termos” [ac. do STJ de 24/10/2013, processo n.º 7678/11.8TBCSC-A.L1.S1, Rel. OLIVEIRA VASCONCELOS, in www.dgsi.pt].
(…)
Uma vez proferido tal acórdão, a decisão recorrida não pode ser enquadrada em qualquer das situações previstas para a revista, normal ou excepcional, tal como previstas nos art.ºs 671º, 1, 2, e 672º, 1 e 2, do CPC.
O STJ, em Decisão Singular de 12/2/2018 (art.º 652º, 1, h), ex vi art.º 679º, CPC) [Processo n.º 181/95.7TMSTB-E-E1.S2, Rel. ANA PAULA BOULAROT, in www.dgsi.pt.], asseverou tal conclusão, com clareza e argumentação plural que merecem concordância, uma vez que a recorribilidade nos termos gerais prevista nesse normativo – com especial atendibilidade do art.º 671º, 1 e 2, do CPC – não pode ser de todo e aqui admitida.
(…)
“Ora, não sendo possível a Revista, por o Tribunal da Relação não ter admitido o recurso interposto, o Acórdão produzido em Conferência não se afigura impugnável, nos termos do artigo 671º, nº1 do CPCivil, por o mesmo não ter conhecido do mérito da causa.
De outra banda, também se não verifica qualquer das situações a que se referem as várias alíneas do nº 2 do artigo 671º, do CPCivil, já que não estamos perante uma decisão interlocutória, de estrita natureza incidental e que verse unicamente sobre a relação processual, mas antes face a uma decisão final proferida no âmbito de procedimento de reclamação.”
Estas mesmas razões foram sufragadas pelos recentes Acs. do STJ (nomeadamente desta Secção), de 19/12/2019 [Processo nº 2589/17.6T8VCT-A.G1-A-S1, Rel. MARIA DA GRAÇA TRIGO, in www.dgsi.pt], 19/5/2020 [Processo n.º 361/04.2TBSCD-S.C1.S1, Rel. MARIA DA ASSUNÇÃO RAIMUNDO, in https://jurisprudencia.csm.org.pt], 13/10/2020 [Processo n.º 4044/18.8T8STS-B.P1, Rel. GRAÇA AMARAL, in www.dgsi.pt4], 26/1/2021 [Processo n.º 19477/16.6T8SNT-B.L1.S1, Rel. MARIA OLINDA GARCIA, in www.dgsi.pt.] e de 28/4/2021 [Processo n.º 206/14.5T8OLH-W.E1.S1, Rel. RICARDO COSTA, in www.dgsi.pt].
Julgaram consensualmente que, consistindo o presente objecto recursivo, exclusivamente, na reapreciação do acórdão da Relação de confirmação do despacho singular de não admissão do recurso de apelação, tal objecto está manifestamente excluído de pronúncia nesta sede, nomeadamente por via do art.º 671º, 1, do CPC – e muito menos por via do art.º 672º, pois de revista ainda se trata, ainda que na modalidade excepcional para a dupla conformidade das decisões das instâncias, que aqui não se discute: não é de nenhum acórdão da Relação que reaprecie a decisão de 1.ª instância que se interpõe revista –, ao qual se pudesse chegar por via do art.º 652º, 5, b), do mesmo CPC, justamente por, independentemente das razões que fundaram a decisão do acórdão recorrido, assumir o carácter jusprocessual da definitividade decisória.
Em suma, como se concluiu no Acórdão do STJ de 10/11/2020 [Processo n.º 2657/15.9T8LSB-S.L1-A.S1, Rel. RICARDO COSTA, in www.dgsi.pt]:
(i) o incidente da reclamação prevista no artigo 643.º do CPC apresenta-se como um expediente de impugnação que versa sobre a não admissão de recurso e visa em exclusivo o efeito adjectivo-processual de modificação pelo tribunal ad quem do despacho de não admissão do recurso pelo tribunal a quo; uma vez proferido acórdão em Conferência, por efeito de nova reclamação da decisão do Relator que confirmara o despacho de 1.ª instância de não admissão do recurso de apelação, de acordo com o previsto nos art.ºs 643º, 4, 2.ª parte, e 652º, 3, do CPC, estamos perante decisão definitiva e insusceptível de qualquer outra impugnação; na medida em que também concorre para esta conclusão;
(ii) a esta decisão inserida no incidente de reclamação e tomada a final em Conferência não se aplica a previsão do art.º 652º, 5, b), do CPC («recorrer nos termos gerais»), enquanto faculdade de recurso de revista permitida nos termos gerais do art.º 671º para as decisões proferidas no âmbito do art.º 652º, 3, do CPC, pois nem estamos perante o elenco de decisões da Relação abrangidas pelo n.º 1 – em particular, às que se referem como colocando nesse campo «termo ao processo» [Concordante, ABRANTES GERALDES, Recursos no novo Código de Processo Civil, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, sub art.º 671º, nt. 507 – pág. 353.] –, nem sequer perante uma decisão da Relação que aprecie decisão interlocutória proferida pela 1.ª instância que incida exclusivamente sobre a relação processual (como parece ter sido a base da pretensão dos Reclamantes) – antes uma decisão final e definitiva de 2.ª instância no âmbito restrito do incidente de Reclamação.”» (o sublinhado é nosso).
Posto isto, e vertendo para o caso em apreço todas as considerações acabadas de expor, não podemos deixar de concluir que o recurso de revista excepcional interposto pela autora não é admissível, dado que o acórdão proferido nestes autos, em 31.03.2023 não é impugnável, quer por via de recurso de revista normal, quer por via de recurso de revista excepcional.
Diga-se, ainda, que a circunstância de o fundamento do recurso consistir igualmente numa nulidade e também por omissão de pronúncia, não torna a decisão recorrível. Com efeito, no caso, se a decisão em causa não é susceptível de recurso ordinário ou extraordinário, está igualmente vedado à autora suscitar as ditas nulidades, por via de tal forma recursiva.
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As custas ficam a cargo da autora/reclamante/recorrente (art.º 527º do NCPC).
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SUMÁRIO (artigo 663º, nº 7 do NCPC):
I - Não constituindo objecto da reclamação, deduzida ao abrigo do art.º 643º do NCPC, o conhecimento da nulidade da decisão proferida pelo tribunal “a quo”, não existe qualquer omissão de pronúncia no acórdão que se limitou a decidir sobre a inadmissibilidade do recurso interposto daquela mesma decisão.
II - O acórdão do tribunal da Relação que se pronuncia em conferência sobre a admissibilidade do recurso de apelação, no âmbito do incidente de reclamação do despacho do juiz da 1ª instância que não admitiu o recurso interposto (art.ºs 643º, nº 4, 2ª parte, e 652º, nº 3, do NCPC), julga em definitivo a questão da inadmissibilidade ou da subida do recurso de apelação (únicos resultados decisórios admitidos pelo art.º 643º, nº 4, 1ª parte, do NCPC) e é insusceptível de qualquer outra impugnação.
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IV. Decisão:
Pelo exposto, acordam em conferência os juízes desta Relação de Lisboa:
- julgar improcedente a arguição de nulidade do acórdão proferido em 31.01.2023, por omissão de pronúncia;
- julgar inadmissível o recurso de revista excepcional interposto pela autora.
Custas pela autora/reclamante/recorrente.
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Lisboa, 27.04.2023
Carla Maria da Silva Sousa Oliveira
Ana Paula Nunes Duarte Olivença
Rui Manuel Pinheiro Oliveira