Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
8979/2008-1
Relator: ANA GRÁCIO
Descritores: EXEQUATUR
DIREITO COMUNITÁRIO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
EXECUÇÃO DE DECISÃO ESTRANGEIRA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/17/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Sumário: I - O Regulamento (CE) nº 44/2001, de 22-12-2000 (publicado no J.O.C., nº L 12, de 16-01-2001) e que entrou em vigor em 01-03-2002, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução das decisões em matéria civil e comercial, veio criar um instrumento normativo de direito comunitário que visa facilitar o bom funcionamento do mercado interno através da prossecução de um duplo objectivo: por um lado, unificar as regras de conflitos de jurisdições em matéria civil e comercial; por outro, assegurar o reconhecimento e a execução rápidos e simples das decisões judiciais dos Estados-Membros.
II - As decisões proferidas num Estado-Membro são reconhecidas nos outros Estados-Membros, sem necessidade de recurso a qualquer processo, depois de noutro Estado-membro “ter sido declarada executória, a requerimento de qualquer parte interessada” (cfr. art 38º nº 1).
III - O pagamento coercivo em Portugal de determinadas quantias por incumprimento culposo de um contrato, mediante a competente acção executiva, harmoniza-se com a ordem pública portuguesa.
IV - Os objectivos Regulamento 44/2001 não podem ser alcançados à custa de um enfraquecimento, seja qual for a forma que assuma, dos direitos de defesa, como resulta do considerando 18º, nos termos do qual o respeito pelos direitos de defesa impõe, que o requerido possa interpor recurso, examinado de forma contraditória, contra a declaração de executoriedade de uma decisão, se entender que é aplicável qualquer fundamento para a não execução.
V – Resulta da aplicação conjugada dos arts 26° n°2 do citado Regulamento e 19° nº1 do Regulamento n° 1348/2000 que o juiz deve sobrestar na decisão, no processo inicial no Estado de origem, enquanto não se verificar que o requerido revel teve oportunidade de receber o acto que determinou o início da instância ou acto equivalente em tempo útil para apresentar a sua defesa ou que foram feitas todas as diligências nesse sentido.
VI - No processo de reconhecimento e execução no Estado requerido, se o requerido interpuser recurso da decisão que confere força executiva à decisão proferida no Estado de origem, o tribunal que decide esse recurso pode ter que examinar um motivo de recusa de reconhecimento ou de execução como o previsto no artigo 34° n°2 do Regulamento44/2001 (art 45º nº1 do referido Regulamento).
VII - Visa-se, deste modo, impedir a livre circulação no espaço comunitário de decisões proferidas sem a efectiva observância do princípio do contraditório. O que significa que também aqui a ordem pública processual pode constituir obstáculo à declaração de executoriedade, ficando a ordem pública material compreendida no art 34º nº1.
VIII - O simples conhecimento da existência da decisão proferida à revelia não é suficiente para considerar que essa pessoa tinha a possibilidade, na acepção do art 34° n°2 do Regulamento, de interpor recurso da referida decisão, porque, segundo a sentença, só havia hipótese de recurso se o réu tivesse contestado a acção.
IX - O art 34° n°2 destina-se, nomeadamente, a impedir que o requerido revel aguarde o processo de reconhecimento e execução no Estado requerido para invocar a violação dos direitos de defesa quando teve a possibilidade de invocar os seus direitos interpondo recurso da decisão em causa no Estado de origem.
X - Não pode ter força executória uma sentença proferida por Tribunal Inglês, se foi violado o princípio do contraditório, o principio da igualdade substancial da partes e o direito ao recurso, uma vez que foi coarctado à recorrente, em Inglaterra, o direito a contradizer o que contra si alegou a ora recorrida, então A., e o direito de recorrer.
(F.G.)
Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I – RELATÓRIO
1 – Em 03-10-2005, S Limited, empresa com sede em Londres, Reino Unido, requereu, no Tribunal Judicial de Oeiras, que fosse declarada força executória à sentença proferida pelo Queen’s Bench Division of the High Court of Justice, Inglaterra, em 05-05-2005, que condenou a R. V, Televisão, S.A., com sede em Oeiras, Portugal, a pagar-lhe a quantia de £34.160,20, acrescida de juros.
Mais alega que a Requerida não procedeu ao pagamento daquela quantia, que foi citada do acto que determinou o início da instância no tribunal inglês e que foi notificada da sentença condenatória.
A Requerente juntou dois documentos em língua inglesa, devidamente traduzidos:
- sentença do Queen’s Bench Division of the High Court of Justice
proferida em 05-05-2005;
- certidão segundo o formulário do Anexo V do Regulamento (CE) nº
44/2001, de 22-12-2000, emitida pelo Royal Court of Justice, de Inglaterra e País de Gales.

2 – A força executiva da sentença proferida à revelia pelo Queen’s Bench Division of the High Court of Justice, Inglaterra, foi reconhecida por decisão de 03-04-2006.

3 – Notificada daquela decisão, a Requerida veio arguir a nulidade de citação realizada nos termos e para os efeitos previstos no art 41º, 42º e 43º do Regulamento (CE) nº 44/2001 do Conselho, ao que a Requerente veio responder que tal nulidade deverá ser liminarmente indeferida.
Conhecendo de tal arguição, o Tribunal de 1º Instância julgou procedente a nulidade de citação, determinando a sua repetição com observância das formalidades previstas no art 235º nº2 do CPC.

4 - Cumprido o determinado, a Requerida, inconformada com a sentença que declarou executória a decisão proferida pelo Tribunal inglês, interpôs recurso para este Tribunal, o qual foi admitido como de apelação, com subida imediata e efeito meramente devolutivo.
Alegou a apelante, a qual finalizou a sua alegação com as seguintes conclusões:
“a) No início de 2004, foi celebrado entre a Requerente Screentime Partners Limited, e a ora Recorrente V, S.A., um contrato de direitos autorais sobre o guião do programa audiovisual denominado “Soccastars Show”, para produção de um programa televisivo que foi comercializado pelo canal português RTP, propriedade da Radiotelevisão Portuguesa, S.A.
b) Tal guião estava incompleto e deficientemente elaborado dando origem a diversos problemas na produção e gravação do programa português.
c) Situação que provocou graves prejuízos à Recorrente, nomeadamente, por se ver obrigada a conceder Radiotelevisão Portuguesa, S.A., um crédito e um desconto em valores muito superiores ao crédito reclamado pela Requerente.
d) Em Março de 2005, a Recorrente recebeu do “Queen’s Bench Division of the High Court of Justice”, um documento que, de acordo com a tradução fornecida, a informou de que: “Se não fizer nada, pode dar entrada no tribunal um processo contra si” e “Se não responder, poderá dar-se início a um processo judicial contra si”.
e) Em face do teor da tradução fornecida, a Recorrente concluiu, como não poderia deixar de o fazer, que aquele documento continha apenas uma interpelação para o pagamento, e, caso o mesmo não fosse efectuado, ou não fosse dada qualquer resposta, iniciar-se, então, um processo judicial contra si.
f) Pelo que, optou por nada dizer e aguardar pelo início do “processo judicial contra si”, conforme constava da tradução que recebeu.
g) A Recorrente pretendia (e pretende), contestar o pedido da Requerente e deduzir contra ela pedido reconvencional, por entender ter direito a ser indemnizada em montante substancialmente superior ao peticionado, em virtude do cumprimento defeituoso do contrato que as uniu e da utilização ilícita de imagens da sua propriedade feita pela Recorrente, mas, devidamente assistida por advogados ingleses.
h) Por ter sido informada de que o seu silêncio teria como consequência apenas o início de um processo judicial contra si, no qual pretendia apresentar a sua defesa, foi com total surpresa que a Recorrente recebeu do Tribunal inglês a comunicação de que contra ela havia sido proferida sentença condenatória.
i) A notificação da decisão condenatória do Tribunal inglês não mencionava qualquer possibilidade de oposição ou recurso à mesma.
j) O mandatário da Recorrente informou o Tribunal inglês, por carta registada com aviso de recepção, de que, segundo a tradução que acompanhava o documento que tinha sido enviado à Recorrente, iniciar-se-ia contra ela um processo judicial caso esta não apresentasse resposta ao pedido, e que esta estava a aguardar o início desse processo judicial para, então, apresentar a sua defesa.
k) O Tribunal inglês não teve em consideração o teor de tal carta.
l) Não foi dada à ora Recorrente a possibilidade de exercer o seu direito de defesa, direito que ficou prejudicado, face à forma pela qual a Recorrente foi “citada”, bem como pela forma como lhe foi dada a conhecer a decisão condenatória contra si proferida pelo Tribunal inglês.
m) No âmbito do processo que correu termos pelo Tribunal inglês, verificou-se uma grosseira nulidade da citação da ora Recorrente, por fornecimento de uma tradução errada dos seus direitos de defesa.
n) Essa tradução errada foi fornecida ao Tribunal inglês pela Requerente, desconhecendo-se se esta assim agiu por negligência ou deliberadamente.
o) Tal facto é violador dos mais elementares princípios jurídicos que vigoram num estado de Direito que faz parte da União Europeia.
q) A Recorrente deveria ter sido informada, designadamente, do prazo dentro do qual poderia oferecer a sua defesa, assim como da necessidade de patrocínio judiciário, e ainda das cominações em que incorria em caso de revelia, tanto mais que estava em causa uma comunicação a um particular e não a mandatário judicial.
r) Na “citação” feita pelo Tribunal inglês, não se referiu que se tratava de um verdadeiro processo judicial, que a Recorrente podia oferecer a sua defesa, o prazo dentro do qual o devia fazer, quais as cominações em que incorreria em caso de revelia, e que devia assegurar patrocínio judiciário.
s) Todas essas omissões acarretam a nulidade desta citação.
t) Essa nulidade de citação deverá ser atendida, pelo facto de os referidos erros e omissões terem efectivamente impedido a defesa da Recorrente.
u) Com efeito, ao ser informada de forma errónea que “Se não fizer nada, pode dar entrada no tribunal um processo contra si” e “Se não responder, poderá dar-se início a um processo judicial contra si”, a Recorrente foi impedida de exercer cabalmente os seus direitos de defesa.
v) A Requerente Screentime Partners Limited veio a intentar acção de declaração de executoriedade, em Portugal, da decisão estrangeira, proferida pelo “Queen’s Bench Division of the High Court of Justice”, de Inglaterra, contra a ora Recorrente, ao abrigo dos artigos 38º a 52º do Regulamento CE nº 44/2001, do Conselho.
w) Para o efeito alegou que a Recorrente foi devidamente citada do acto que determinou o início da instância no Tribunal inglês, facto que não corresponde à verdade.
x) A Recorrente não foi regularmente citada para o procedimento que correu em Inglaterra, para poder contestá-lo, sendo-lhe apenas dada a conhecer a sentença que veio a se proferida à sua revelia, sem ter sido informada da possibilidade de contra ela reagir.
y) O Tribunal “a quo”, atentas as especificidades do processo em causa e a falsa alegação da Requerente, não podia ter detectado os vícios que enfermam a decisão cuja executoriedade foi requerida.
z) Foi pressuposto da declaração, pelo Tribunal “a quo”, da executoriedade, em Portugal, da decisão do “Queen’s Bench Division of the High Court of Justice”, de Inglaterra, a alegação pela Screentime Partners Limited, de que a ora Recorrente foi devidamente citada do acto que determinou o início da instância no Tribunal inglês e que foi igualmente notificada da sentença condenatória, o que não corresponde à verdade.
aa) Deverá ser declarada a nulidade da citação da Recorrente, devendo, consequentemente, serem declarados nulos todos os actos subsequentes que dependam da mesma citação.
bb) Não poderá ser reconhecida a declarada com força executória, em Portugal, a decisão proferida pelo “Queen’s Bench Division of the High Court of Justice”, de Inglaterra, por violação do disposto nos nºs 1 e 2 do artigo 34º do citado Regulamento e da Ordem Pública Portuguesa, nomeadamente, o direito consagrado na Constituição da República Portuguesa, artigo 20º nº4, que a todos assiste de, numa causa em que intervenham, seja proferida decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo, o que implica sempre o assegurar do princípio do contraditório, consignado, entre outros, no artigo 3º do CPC.
cc) A decisão sob recurso violou as seguintes normas jurídicas, cujo teor impunha uma decisão de rejeição de reconhecimento e atribuição de força executória, em Portugal, à decisão proferida pelo Tribunal inglês: artigo 34º nºs 1 e 2 do Regulamento (CE) nº 44/2001, de 22 de Dezembro de 2000; artigo 20º nº4 da Constituição da República Portuguesa; artigos 3º, 198º nº1 e 235º nº2 do Código do Processo Civil.”

5 – Em contra-alegações, a recorrida defendeu a manutenção da decisão impugnada.

Foram colhidos os vistos legais, pelo que cumpre apreciar e decidir.
*
II – FUNDAMENTOS DE FACTO
Com interesse para a decisão há que salientar as seguintes ocorrências que resultam do processo:

1 – Em 05-05-2005, pelo Queen’s Bench Division of the High Court of Justice, Inglaterra, foi proferida sentença à revelia, certificada no original a fls. 8, condenando a aqui Requerida, V, S.A., a pagar à aqui Requerente, Screentime Partners Limited, segundo a tradução, “o pedido de £ 33.555,20 de débitos e juros ate à data da sentença e £ 650,00 de custas judiciais. Tem de pagar ao Autor a quantia global de £ 34.160,20”;
2 - A sentença foi notificada à R. e dela não foi interposto recurso, porque da sentença constava: ”If you did reply to the claim and believe judgment has been entered wrongly in default, you may apply to the court office giving your reasons why the judgment should be set aside”;
4 - Naquela acção, a R. não contestou, nem teve qualquer intervenção no processo até ter sido proferida sentença;
3 – A citação da R. foi ordenada e realizada nos termos do Regulamento do Conselho (CE) n.º 1348/2000, de 29-05-2000, através da Direcção-Geral da Administração da Justiça, tendo a mesma sido realizada pelo Tribunal Judicial de Oeiras, em 12-04-2005, através de documentos redigidos nas línguas inglesa e portuguesa;
4 - Nos documentos redigidos em português, encontra-se um documento com a designação de “Detalhes da Reclamação”, onde constam os nomes da partes, a causa de pedir e o valor peticionado, e um documento com a designação de “Pacote de Resposta”, com os seguintes dizeres no essencial: “Deve ler as notas para o arguido em anexo ao formulário de reclamação, que lhe dirão quando e aonde enviar os formulários. (…)
Se admitir a reclamação ou a quantia reclamada e/ou querer tempo para a pagar impresso de admissão
Se admitir parte da reclamação
impresso de admissão e impresso de defesa
Se disputar a reclamação por inteiro ou desejar fazer uma reclamação (pedido reconvencional) contra o requerente
Impresso de defesa
Se necessitar de 28 dias (em vez de 14) desde a data da notificação para preparar a sua defesa, ou desejar contestar a jurisdição do tribunal
Aviso de notificação
Se não fizer nada, pode dar entrada no tribunal um processo contra si
Notas para o arguido ao responder ao formulário da reclamação
(…)
Se o impresso da reclamação tiver sido entregue ou deixado na sua morada, a data da notificação será o dia seguinte à entrega.
Pode ou
· pagar a quantia total, ou seja a quantia reclamada, as despesas de tribunal, e gastos do advogado (se houver)
· admitir que deve toda ou parte da quantia reclamada e pedir tempo para pagar ou
· disputar a reclamação
Se não responder, poderá dar-se início a um processo contra si.
(…)
6 – No documento com a designação de “Pacote de Resposta” encontra-se uma cruz e está realçado o seguinte: “se não fizer nada, pode dar entrada no tribunal um processo contra si” e “Se não responder, poderá dar-se início a um processo judicial conta si”;
7 E, no acto de citação, a R. foi informada que “se não fizer nada, pode dar entrada no tribunal um processo contra si” e “Se não responder, poderá dar-se início a um processo judicial conta si”;
8 – Assim que recebeu a notificação da sentença, o advogado da Requerida enviou uma carta para o Tribunal Inglês explicando o porquê de não ter contestado, atendendo à tradução dos documentos.

III - AS QUESTÕES DO RECURSO
É sabido que a delimitação objectiva do recurso é feita pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo este Tribunal decidir sobre matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam do conhecimento oficioso (arts 684º nº3 e 690º nº1 do CPC).
Ora, tendo presentes essas conclusões, a questão a decidir por este Tribunal cinge-se a saber se estão reunidos os requisitos para ser concedida força executória à sentença à revelia proferida pelo Queen’s Bench Division of the High Court of Justice, Inglaterra, em 05-05-2005.
*
IV – APRECIAÇÃO
A ora apelante foi demandada pela apelada num tribunal inglês, processo esse em que a apelante não apresentou qualquer defesa, tendo culminado pela respectiva condenação, decisão que foi devidamente notificada à apelante, sem que esta a impugnasse pela via de recurso.
A apelada veio requerer a executoriedade, nos tribunais portugueses, daquela decisão, o que a apelante procura infirmar pela via do presente recurso.
Decidindo.
Estando-se no caso sub judice perante uma sentença sobre matéria civil, proferida, em 05-05-2005, por um Tribunal Inglês, em procedimento iniciado em 18-03-2005, é de todo indiscutível que, ao reconhecimento/executoriedade de tal sentença, é aplicável o Regulamento (CE) nº 44/2001, de 22-12-2000 (publicado no J.O.C., nº L 12, de 16-01-2001).
Tal Regulamento (entrado em vigor em 01-03-2002), relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução das decisões em matéria civil e comercial, veio criar um instrumento normativo de direito comunitário que visa facilitar o bom funcionamento do mercado interno através da prossecução de um duplo objectivo: por um lado, unificar as regras de conflitos de jurisdições em matéria civil e comercial; por outro, assegurar o reconhecimento e a execução rápidos e simples das decisões judiciais dos Estados-Membros (cfr. considerando 2º, 6º, 16º e 17º).
É, de facto, expresso o art 33° n°1 do citado Regulamento ao estabelecer que “[a]s decisões proferidas num Estado-Membro são reconhecidas nos outros Estados-Membros, sem necessidade de recurso a qualquer processo”, depois de noutro Estado-membro “ter sido declarada executória, a requerimento de qualquer parte interessada” (cfr. art 38º nº 1).
É na fase de recurso da decisão sobre o pedido de declaração de executoriedade e apenas e só nesta fase - recurso esse admissível para o tribunal da Relação, independentemente do valor (cfr. art 43º e Anexo III) -, que a parte contra a qual a execução é promovida terá ocasião de alegar motivos de recusa da declaração de execução, previstos nos arts 34º e 35º do mesmo Regulamento.
Daí que “O tribunal onde foi interposto o recurso ao abrigo dos arts 43º e 44º apenas recusará ou revogará a declaração de executoriedade por um dos motivos especificados nos artigos 34º e 35º...” por força do regime imposto pelo art 45º; e “as decisões estrangeiras não podem, em caso algum, ser objecto de revisão de mérito”.
Assim, os fundamentos para o não reconhecimento/não executoriedade da decisão são os que constam dos arts 34.º e 35º, mais exactamente:
- a decisão provir dum tribunal incompetente, segundo as regras do Regulamento, em matéria de seguros, de contratos com consumidores ou de competências legais exclusivas (art 35º nº1);
- ser o reconhecimento manifestamente contrário à ordem pública do Estado do reconhecimento (art 34º nº1);
- não ter o acto que iniciou a instância, ou acto equivalente, sido comunicado ou notificado ao requerido revel, em tempo útil e de modo a permitir-lhe a defesa, a menos que o requerido não tenha interposto recurso contra a decisão embora tendo a possibilidade de o fazer (art 34º nº2);
- ser a decisão incompatível com uma decisão proferida no Estado de Reconhecimento entre as mesmas partes (art 34º nº3);
- ser a decisão inconciliável com outra anteriormente proferida noutro Estado-Membro ou num Estado terceiro entre as mesmas partes, em acção com o mesmo pedido e a mesma causa de pedir, desde que a decisão proferida anteriormente reúna as condições necessárias para ser reconhecida no Estado-Membro requerido (art 34º nº4).
Ora, no caso dos autos, a recorrente interliga, todavia, a violação do direito de defesa com a violação da ordem pública do Estado Português da declaração de exequibilidade.
Importa assim perfectibilizar e preencher tal conceito da ordem pública.
Manuel de Andrade refere que, pela dificuldade em definir tal noção, se faz apelo aos interesses fundamentais que o nosso sistema jurídico procura tutelar e aos princípios correspondentes que constituem como que um substrato desse (Teoria Geral da Relação Jurídica, pag 334).
Mota Pinto define como “o conjunto dos princípios fundamentais, subjacentes ao sistema jurídico, que o Estado e a sociedade estão substancialmente interessados em que prevaleçam e que têm uma acuidade tão forte que devem prevalecer sobre as convenções privadas” e, depois de nos chamar a atenção para o facto de não podermos fixar um numerus clausus nesta matéria, aponta para exemplos acolhidos na jurisprudência francesa, como, por exemplo, convenções sobre tráfico de votos e convenções através das quais alguém se obrigue a expor o seu corpo ou de outrem a danos voluntários e não justificados (Teoria Geral do Direito Civil, pag 434).
No caso em apreço, a decisão a reconhecer e a declarar exequível em Portugal respeita a condenação da recorrente no pagamento de determinadas quantias por incumprimento culposo de um contrato de distribuição autoral, custas e despesas do processo.
Ora, o pagamento coercivo em Portugal destas quantias, mediante a competente acção executiva, harmoniza-se com a ordem pública portuguesa.
Cremos que nada mais é necessário dizer para tornar evidente a sem razão da recorrente a este respeito: nada há na ordem jurídica portuguesa que proíba que se recorra a juízo com vista à satisfação de dívidas. Pelo contrário, a nossa ordem jurídica permite o recurso à via executiva quando o devedor não cumpre voluntariamente as obrigações a que, por lei ou por decisão judicial, está adstrito.
Só que os argumentos deduzidos pela recorrente estão para além quer da sentença estrangeira quer da declaração de executoriedade daquela, defendendo que o formalismo processual anterior àquela sentença não está conforme à Ordem Pública, devido a ter-lhe sido ilegitimamente coarctado o direito do contraditório ou da defesa – o que não se contém na previsão do art 34º nº1 do Regulamento.
Mas apreciando a questão existirá in casu violação do principio do contraditório com a citação?
Os objectivos acima referidos do Regulamento 44/2001 não podem, todavia, ser alcançado à custa de um enfraquecimento, seja qual for a forma que assuma, dos direitos de defesa, como resulta do considerando 18º, nos termos do qual o respeito pelos direitos de defesa impõe, todavia, que o requerido possa interpor recurso, examinado de forma contraditória, contra a declaração de executoriedade de uma decisão, se entender que é aplicável qualquer fundamento para a não execução.
Com efeito, a Convenção Europeia de Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais reveste-se, neste contexto, de um significado particular. Como resulta desta Convenção, os direitos de defesa, que decorrem do direito a um processo equitativo consagrado no art 6°, impõem uma protecção concreta e eficaz, adequada a garantir o exercício efectivo dos direitos do demandado.
E, na ordem constitucional portuguesa vigora, consagrado como direito fundamental, o direito a todos os cidadão do acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos (art 20º), em obediência aos princípios do contraditório e da igualdade processual das partes referidos nos art 3º e 3º-A do CPC, verdadeiros direitos supraconstitucionais e, por isso, sem necessidade, para terem esse valor, de estarem concretamente previsto (art 8º nº1 da Constituição).
Na realidade, o princípio do contraditório (que implica que cada uma das partes seja chamada e admitida a expressar os seus argumentos de facto e de direito, a apresentar as respectivas provas, a controlar as provas oferecidas pela parte contrária e a discutir o resultado da respectiva produção) implica o tratamento das partes em termos de igualdade processual das partes, que “consiste em as partes serem postas no processo em perfeita paridade de condições, desfrutando, portanto, idênticas possibilidades de obter a justiça que lhes seja devida” (Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, pag 380).
"A violação do direito à tutela judicial efectiva, sob o ponto de vista da limitação do direito de defesa, verificar-se-á, sobretudo quando a não observância de normas processuais ou de princípios gerais de processo acarreta a impossibilidade de o particular exercer o seu direito de alegar, daí resultando prejuízos efectivos para os seus interesses" (Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP Anotada, pags 163 e 164).
Isto significa que o direito de acesso aos tribunais para defesa dos referidos direitos é, fundamentalmente, um direito a uma solução jurídica dos conflitos a que se deve chegar em prazo razoável e com observância das garantias de imparcialidade e de independência, possibilitando-se, designadamente, um correcto funcionamento das regras da igualdade e do contraditório
Estes princípios da igualdade, do contraditório e do processo equitativo são os garantes da participação efectiva das partes no desenvolvimento da lide.
No que diz respeito ao sistema instituído pelo Regulamento44/2001 em matéria de reconhecimento e execução, importa referir que o respeito pelos direitos do requerido revel é garantido por uma dupla fiscalização.
Por um lado, no processo inicial no Estado de origem, resulta efectivamente da aplicação conjugada dos arts 26° n°2 do citado Regulamento e 19° nº1 do Regulamento n° 1348/2000 que o juiz deve sobrestar na decisão enquanto não se verificar que o requerido revel teve oportunidade de receber o acto que determinou o início da instância ou acto equivalente em tempo útil para apresentar a sua defesa ou que foram feitas todas as diligências nesse sentido.
Por outro lado, no processo de reconhecimento e execução no Estado requerido, se o requerido interpuser recurso da decisão que confere força executiva à decisão proferida no Estado de origem, o tribunal que decide esse recurso pode ter que examinar um motivo de recusa de reconhecimento ou de execução como o previsto no artigo 34° n°2 do Regulamento44/2001 (art 45º nº1 do referido Regulamento).
Visa-se, deste modo, impedir a livre circulação no espaço comunitário de decisões proferidas sem a efectiva observância do princípio do contraditório. O que significa que também aqui a ordem pública processual pode constituir obstáculo à declaração de executoriedade, ficando a ordem pública material compreendida no art 34º nº1.
Resulta da decisão a reconhecer que a ora recorrente, ali R., foi revel, no sentido de que a sentença foi proferida à revelia da R., que não contestou; por isso, o que interessa é a comunicação à requerida revel do acto que iniciou a instância (cfr. art 34º nº 2), fundamento este que tutela o direito de defesa da requerida.
E por acto que iniciou a instância deve entender-se todo aquele acto ou actos que dão a possibilidade ao requerido de fazer valer os seus direitos de defesa antes de ser proferida no Estado de origem uma
decisão com força executiva.
Ora, para o caso em apreço, releva o Regulamento (CE) nº 1348/2000 do Conselho, de 29-05-2000 (Relativo à Citação e à Notificação dos Actos Judiciais e Extrajudiciais em Matéria Civil e Comercial nos Estados-Membros), que, no seu preâmbulo, defende que a sua eficácia passa por limitar possibilidade de recusar a citação ou notificação dos actos a situações excepcionais (considerando nº8) e que a fim de defender os interesses do destinatário, a citação ou a notificação deverá ser realizada na língua oficial ou numa das línguas oficiais do local onde deve ser cumprida ou em uma outra língua do Estado-Membro de origem que o destinatário compreenda (considerando nº10).
Por isso, importa verificar se na citação foi coarctado o direito da defesa da recorrente e quais as consequências daí resultantes.
Como decorre do art 228º nos 1 e 3 do CPC, a citação é o acto pelo qual, além do mais, se dá conhecimento ao réu de que foi intentada contra ele determinada acção e se chama ao processo para se defender, devendo ser acompanhada de todos os elementos e cópias legíveis dos documentos e peças necessários à plena compreensão do seu objecto. Trata-se do acto mais relevante de realização do princípio do contraditório, garante da transparência e do direito de defesa, consagrado, como já disse e além do mais, no art 3º do CPC.
Por isso que, nos termos do art 267º nº 2 deste diploma legal, o acto de propositura da acção só se torna, em regra, eficaz em relação ao réu, a partir do momento da citação.
Porque assim é, a lei destaca a citação dentre os actos processuais de comunicação, pormenorizando a sua disciplina de modo a assegurar ao demandado o efectivo conhecimento da instauração da acção e a garantir-lhe o pleno exercício do contraditório.
Uma das espécies de citação previstas no Regulamento é a que ocorre pela “entidade requerida” a solicitação da “entidade de origem”.
In casu, a citação foi efectuada pela “entidade requerida”, através do Tribunal Judicial de Oeiras, com intervenção auxiliar da entidade central, a Direcção-Geral da Administração da Justiça. Não estamos perante uma citação por correio, citação esta que Portugal admitiu, não exigindo a tradução do acto a transmitir para a língua portuguesa (portanto, não interessa os acórdão citados pela recorrente nas suas contra-alegações…).
De harmonia com o nº3 do art 4º do Regulamento, “o formulário deve ser preenchido na língua oficial do Estado – Membro requerido, ou, no caso de neste existirem várias línguas oficiais, na língua oficial ou em uma das línguas oficiais do local em que deve ser efectuada a citação ou a notificação, ou ainda em uma outra língua que o Estado – Membro requerido tenha indicado poder aceitar” (no caso de Portugal, português e espanhol).
Mas, o Regulamento não impõe qualquer obrigatoriedade de tradução do acto a citar (art 5º nº1): essa exigência constitui tão só um direito do destinatário do acto que, nos termos do art 8º, pode exercer, ficando a entidade requerida com o ónus de o alertar para aquele exercício, salvaguardando o princípio de defesa e do contraditório assegurado à parte que se vê colocada na posição de réu.
In casu, se era ou não necessária a tradução para a língua portuguesa do acto objecto de citação, o certo é que ela foi junta e induz claramente em erro. Para além de ser uma tradução um pouco frágil, parecendo uma tradução automática e acrítica de palavras, sem a preocupação de surpreender o sentido exacto, em português, das expressões inglesas e nem sempre apresentando, na língua portuguesa, um discurso claro, o que é certo é que houve um erro nessa tradução.
Onde está o acto de citação? Onde está a indicação à R. de que lhe foi instaurado um processo, o prazo dentro do qual pode oferecer a sua defesa e as consequências da sua não contestação?
Quem fez a tradução não devia ter colocado a cruz e realçado a hipótese que era a incorrecta. A tradução efectuada impediu que a recorrente compreendesse correctamente os actos que lhe foram comunicados e respectivos conteúdos, em frontal violação dos princípios do contraditório e da igualdade das partes, violando-se a ordem pública processual portuguesa, porque o ora recorrente não teve oportunidade de apresentar a sua defesa e não teve também oportunidade de reagir contra a sentença condenatória proferida.
(Apenas um parêntesis: alega a recorrida que “os representantes da Requerida conhecem bem a língua inglesa, toda a correspondência entre as partes era feita em língua inglesa”, mas perante a citada norma do art 8º do Regulamento, esta alegação não tem qualquer relevância jurídica).
O simples conhecimento da existência da decisão proferida à revelia não é suficiente para considerar que essa pessoa tinha a possibilidade, na acepção do art 34° n°2 do Regulamento, de interpor recurso da referida decisão, porque, segundo a sentença, só havia hipótese de recurso se o réu tivesse contestado a acção (tradução literal).
Com efeito, o art 34° n°2 destina-se, nomeadamente, a impedir que o requerido revel aguarde o processo de reconhecimento e execução no Estado requerido para invocar a violação dos direitos de defesa quando teve a possibilidade de invocar os seus direitos interpondo recurso da decisão em causa no Estado de origem.
Mas, a requerida não teve a possibilidade de interpor recurso de forma útil e efectiva de uma decisão condenatória proferida à revelia, uma vez que não contestou, por a citação do acto que iniciou a instância não foi regular.
O citado artigo leva necessariamente a estabelecer um paralelo entre o acto que determinou o início da instância e a decisão proferida à revelia. Na realidade, a comunicação dos dois actos, efectuada com regularidade e de modo a permitir ao requerido defender-se, dão-lhe a possibilidade de assegurar o respeito pelos seus direitos por parte do tribunal do Estado de origem na mesma medida.
Por tudo o que foi dito, a atribuição de força executória a esta sentença inglesa viola o princípio do contraditório, o principio da igualdade substancial da partes e o direito ao recurso, uma vez que foi coarctado à recorrente, em Inglaterra, o direito a contradizer o que contra si alegou a ora recorrida, então A., e o direito de recorrer.
V – DECISÃO
Tudo visto, acorda-se em conceder procedência à apelação e, consequentemente, revogar-se a sentença recorrida, não sendo, assim, concedida executoriedade à sentença à revelia proferida em 05-05-2005 pelo 28/01/03 pelo Queen’s Bench Division of the High Court of Justice, Inglaterra.
Custas pela apelada.
(Processado por computador e integralmente revisto pela relatora)
Lisboa, 17 de Março de 2009
(ANA GRÁCIO)
(PAULO RIJO)
(AFONSO HENRIQUE)