Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4474/12.9TBVFX.L1-1
Relator: MARIA ADELAIDE DOMINGOS
Descritores: MEIOS DE PROVA
ADMISSÃO DO RECURSO
VERIFICAÇÃO JUDICIAL QUALIFICADA
TAXA DE ALCOOLÉMIA
PRESUNÇÃO JUDICIAL
NEXO DE CAUSALIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/08/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. O despacho que não admitiu a realização de inspeção ao local é autonomamente impugnável no prazo de 15 dias após ter sido proferido, sob pena de transitar em julgado, não podendo ser impugnável com o recurso interposto da decisão final.

2. A diligência prevista no artigo 494.º do CPC – verificação judicial qualificada – só é admissível quando o for a inspeção ao local. Pode ser realizada oficiosamente ou a requerimento da parte na fase de apresentação dos articulados. Nada tendo sido requerido pela parte, a não realização oficiosa de tal diligência insere-se no âmbito do poder discricionário do julgador, consequentemente irrecorrível.

3. A constatação do facto em si – taxa de alcoolemia – pode funcionar como uma base de presunção (facto conhecido), da qual se pode inferir o facto desconhecido (nexo de causalidade entre a alcoolemia e o acidente), por aplicação dos artigos 349.º e 351.º do Código Civil, desde que conexionado com a apreciação crítica dos demais factos relevantes sobre a dinâmica do acidente e circunstâncias envolventes das quais resulte, de forma plausível e razoável, a existência do referido nexo de causalidade.

4. Infere-se, nesses termos, a existência de nexo de causalidade adequada entre o estado etílico do condutor e o acidente quando aquele conduzia com uma TAS de 1,36g/l e embateu na traseira veículo que se encontrava parado, à sua frente, por não se ter apercebido que o trânsito se encontrava parado.

(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:



I – RELATÓRIO:


A - Companhia de Seguros, S.A. intentou ação declarativa de condenação sob a forma de processo ordinário contra MB, pedindo a condenação deste no pagamento da quantia de € 24.242,72, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação até integral pagamento.

Para fundamentar a sua pretensão, alegou, em síntese, que no âmbito da sua actividade comercial celebrou um contrato de seguro com o réu para cobertura da responsabilidade civil do veículo automóvel de matrícula ..-..-MT.

Em 24/08/2009, pelas 20h20, na A1, na via direita no sentido Lisboa/Alverca, ao Km 12, o réu conduzia o referido veículo e embateu na traseira do veículo de matrícula ..-..-XU, que, projetado por sua vez, foi embater no veículo ..-..-ZL.

Os veículos embatidos encontravam-se parados, não tendo o réu conseguido travar o seu veículo por força da velocidade imprimida e por conduzir com uma taxa de álcool no sangue de 1,63 g/l, o que determinou que ficasse com reflexos lentos, não conseguindo parar o veículo nem evitar o embate.

Do acidente de viação resultaram danos materiais nos veículos automóveis ..-..-XU e ..-..-ZL, e bem assim ferimentos no condutor e passageiro do primeiro e ferimentos no condutor do segundo.

O acidente ficou-se a dever única e exclusivamente a culpa do réu.
A quantia peticionada corresponde aos valores pagos pela autora aos lesados.

Contestou o réu, reconhecendo o embateu por antes não ter conseguido efetuar a imobilização do veículo que conduzia. Porém, negou que o acidente se tenha ficado a dever a culpa sua, não só por não ter conduzido de forma imprudente e descuidada, mas também por não circular em excesso de velocidade.

Também nega que o acidente se tenha ficado a dever à circunstância de circular com taxa de alcoolemia superior ao limite legalmente permitido.

Concluiu, pedindo a improcedência da acção.

Foi proferida sentença que julgou a ação procedente, condenando o réu no pedido.

Inconformados, apelou o réu apresentando as conclusões de recurso abaixo transcritas.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Conclusões da apelação:
            (…)
 
II- FUNDAMENTAÇÃO:

A- Objeto do Recurso:

Considerando as conclusões das alegações, as quais delimitam o objeto do recurso sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC 2013), as questões a decidir são:
- Rejeição de um meio de prova;
- Impugnação da decisão sobre a matéria de facto;
- Direito de regresso e nexo causalidade adequada entre o estado de alcoolemia apresentado pelo réu no momento do acidente e a ocorrência do mesmo.

B- De Facto:

A 1.ª instância deu como provada a seguinte matéria de facto:

Factos Provados:
1) A Autora exerce a actividade de seguradora;
2) No exercício da sua actividade, a Autora celebrou com MB um contrato de seguro obrigatório de responsabilidade automóvel titulado pela apólice n.º ..., para cobertura dos prejuízos causados a terceiros pela circulação do veículo de matrícula ..-..-MT;
3) Ao abrigo de tal contrato, foi participado à ora Autora a ocorrência de um embate de viaturas ocorrido na A1 na via da direita, sentido Lisboa/Alverca, ao Km 12, envolvendo os veículos de matrícula ..-..-MT e os de matrículas ..-..-XU e ..-..-ZL;
4) Efectivamente, no dia 24 de Agosto de 2009, pelas 20.20 horas, na A1, na via mais à direita, sentido Lisboa/Alverca (sul/norte), ao Km 12, o trânsito encontrava-se parado e o Réu, que conduzia o veículo ..-..-MT, não se apercebendo dessa situação, veio a embater na traseira do veículo ..-..-XU que, por sua vez, foi projectado para a frente e acabou por embater no veículo ..-..-ZL;
5) Sendo que tanto o veículo ..-..-XU como o veículo ..-..-ZL estavam no momento do embate parados;
6) O local do embate é uma estrada com separador, com três faixas de rodagem em cada um dos sentidos, e com o limite de velocidade de 120 Km/hora;
7) À data do embate, o tempo estava limpo e o piso seco;
8) No momento do embate, o Réu conduzia com uma taxa de álcool no sangue de 1,63 g/l;
9) O que fez com que durante a condução o Réu tivesse os seus reflexos diminuídos e o seu tempo de reacção mais lento, para além de ter as suas capacidades visual e de concentração diminuídas e a sua percepção das distâncias às bermas da estrada e a outros veículos reduzida;
10) Como consequência dos factos 8) e 9) deu-se o embate do veículo automóvel conduzido pelo Réu na traseira do veículo ..-..-XU;
11) Em resultado do embate, a condutora do veículo ..-..-XU sofreu ferimentos no corpo e teve de ser transportada de ambulância para o Hospital, como hematomas no corpo e dores musculares;
12) E bem assim a sua filha — que no momento do embate viajava como passageira no veículo ..-..-XU — teve de ser transportada para o Hospital com suspeita de fractura craniana;
13) Em virtude do embate, resultaram ainda dores e traumatismos na coluna cervical para a condutora que conduzia o veículo ..-..-ZL, que a obrigaram a receber assistência hospitalar;
14) Em consequência dos factos referidos em 11), 12) e 13), e por via do contrato acordado com o Réu, a Autora pagou às vítimas do acidente o montante total de € 24.242,72, a título de pagamento de indemnizações, tratamentos e assistência médica, deslocações, medicamentos, incapacidades e perdas de salários daquelas.

Resultaram não provados os seguintes factos:

a) Perante a paragem súbita do veículo que seguia à sua frente (XU), o Réu de imediato tentou a imobilização em segurança do veículo automóvel por si conduzido;
b) Não conseguindo, apesar do esforço, a imobilização do veículo;
c) Nem tão-pouco desviar o veículo da faixa de rodagem;
d) Porquanto no ponto da via onde ocorreu o embate inexistia faixa de emergência com largura que permitisse tal manobra;
e) O embate ocorreu imediatamente a seguir ao cume de uma lomba, que reduziu a visibilidade do Réu;
f) Circunstâncias que vieram a determinar o embate na traseira do veículo XU;
g) No momento do embate, o veículo ZL encontrava-se parcialmente fora da faixa de rodagem, com activação dos quatro piscas.


III- DO CONHECIMENTO DO RECURSO:

Identificadas as questões a decidir, passemos à sua análise.

1. Rejeição de um meio de prova:

O apelante invoca nas conclusões de recurso sob os números 8 a 9 que o tribunal recorrido rejeitou a realização da inspeção ao local, impedindo-o de produzir prova sobre as caraterísticas do local em que ocorreu o acidente, sem substituir a inspeção ao local pela verificação através de técnico ou pessoa qualificada, violando o tribunal, no seu entender, o disposto nos artigos 490.º e 494º do CPC.

Vejamos.

Conforme consta da contestação, o ora recorrente requereu a inspeção ao local do acidente para prova dos factos alegados nos artigos 11, 26, 27, 29 e 31 da contestação. Nestes artigos o réu alegou que no ponto da via onde ocorreu o embate não havia faixa de emergência com largura que permitisse a imobilização da viatura na mesma, que o acidente ocorreu imediatamente a seguir ao cume de uma lomba, pouco pronunciada, mas que determinou uma redução significativa da sua visibilidade, o que não lhe permitiu, como não permitiria a outro condutor, confrontado com um obstáculo na via, parar em segurança.

Aquando da realização da audiência de discussão e julgamento – momento para o qual foi relegada a apreciação da necessidade da realização da requerida inspeção ao local- cfr. fls. 195 -, o tribunal recorrido indeferiu a realização da inspeção ao local pelos fundamentos que consta do despacho de fls. 212 (proferido em 23/09/2014), basicamente por já terem decorrido mais de cinco anos da data do acidente, não se afigurando tal diligência meio de prova idóneo para fazer prova de qualquer dos factos alegados pelo réu em sede de contestação.

A sentença veio a ser proferida em 10/10/2014 e o presente recurso interposto da sentença foi apresentado em juízo em 25/11/2014.

Conforme estipula o artigo 644.º, n.º 2, alínea d), do CPC, cabe recurso de apelação das decisões do tribunal de 1.ª instância referentes à “rejeição de algum articulado ou meio de prova.”

A inspeção ao local é um meio de prova, conforme decorre dos artigos 490.º a 493.º do CPC.

O despacho que não admite um meio de prova é impugnável autonomamente, no prazo de 15 dias a contar da sua notificação, conforme decorre do artigo 644.º, n.º 2, alínea d), conjugado como o n.º 3 do mesmo artigo e n.º 1 do artigo 638.º do CPC.

No sistema de recurso monista introduzido em 2007 e mantido em 2013, em regra, as decisões intercalares proferidas ao longo do processo não formam caso julgado formal após serem proferidas (artigos 620.º e 628.º do CPC). São, porém, excluídas as decisões que se reportam às situações elencadas no n.º 2 do citado artigo 644.º.

Como é entendimento interpretativo que se nos afigura consensual, desde 2007 que a lei processual civil lei prevê dois regimes diversos: são imediatamente recorríveis as decisões previstas nas várias alíneas do n.º 1 e 2 do artigo 644.º e as restantes decisões, independentemente da sua natureza, que apenas podem ser impugnadas com o recurso da decisão final (n.º 3 do artigo 644.º) ou, se este não existir (por não se verificarem os pressupostos gerais de recorribilidade ou por não ter sido deduzido), em recurso único a interpor depois de a mesma ter transitado em julgado, se a impugnação tiver interesse autónomo para a parte (n.º 4 do artigo 644.º).

Donde resulta, que a impugnação do despacho que não admitiu a inspeção ao local transitou em julgado por não ter sido impugnado atempada (nos 15 dias após a sua prolação) e autonomamente (não podendo ser objeto de apreciação em conjunto com o recurso interposto pelo recorrente da decisão final).

Encontra-se, pois, prejudicada a apreciação desta questão suscitada apenas em sede da presente apelação.

Refere em acrescento o recorrente que o tribunal a quo não substituiu a requerida, mas indeferida, inspeção ao local, pela realização da diligência prevista no artigo 494.º do CPC – verificação não judicial qualificada – o que permitiria igualmente trazer probatoriamente aos autos as características do local do acidente e valoração da demais prova produzida, mormente a testemunhal.

Este meio de prova, inserido no capítulo V do CPC referente à inspeção judicial, foi introduzido no novo CPC, em 2013. Só é admissível quando seja legalmente admissível a inspeção judicial, i.e, quando seja possível a perceção direta dos factos.

Trata-se de meio probatório de caráter oficioso, embora nada impeça que a parte também a possa requerer, o que deve ocorrer na fase da apresentação dos articulados (cfr. 1.ª parte do n.º 1 do artigo 490.º conjugado com a 1.ª parte do n.º 1 do artigo 494.º do CPC).

No caso, o ora recorrente nada requereu nesse sentido no momento processual adequado.

Portanto, nesta fase a alegação do recorrente apenas se pode enquadrar na não determinação oficiosa da realização da mencionada diligência. Ou seja, a não prolação de um despacho que seria proferido ao abrigo de um poder discricionário (artigo 630.º, n.º 1, do CPC), o qual seria, por essa razão, irrecorrível. Razão pela qual, também não pode tal circunstância – não determinação oficiosa de uma verificação não judicial qualificada – ser objeto de impugnação em sede de impugnação da sentença proferida nos presentes autos.

2. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto:
(…)

3. Direito de regresso e nexo de causalidade:

Estipula o artigo 27.º, n.º 1, alínea c), do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21/07, aplicável ao caso dos autos, que “satisfeita a indemnização, a empresa de seguros apenas tem direito de regresso contra o condutor, quando este tenha dado causado acidente e conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida (…).”

O artigo 81.º, n.ºs 1 e 2, do Código da Estrada estipula que é proibido conduzir sob a influência do álcool, considerando-se sob a influência de álcool o condutor que apresente uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 0,5g/l.

No âmbito da vigência do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31/12, o revogado artigo 19.º, alínea c), igualmente prescrevia que satisfeita a indemnização pela seguradora, esta tinha direito de regresso contra o condutor que tivesse agido sob a influência do álcool.

A jurisprudência uniformizada pelo Acórdão Uniformizador n.º 6/2002, publicado no DR, I Série de 18/07/2002, interpretando o preceito, fixou jurisprudência no seguinte sentido:
“A alínea c) do artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, exige para a procedência do direito de regresso contra o condutor por ter agido sob a influência do álcool o ónus da prova pela seguradora do nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente.”

Na sequência da referida uniformização, a jurisprudência passou a entender que, para além do ónus de prova sobre a ilicitude e a culpa do condutor, impendia igualmente sobre a seguradora o ónus de provar o nexo de causalidade adequada entre a TAS e o acidente, correspondendo todos estes requisitos a factos constitutivos do alegado direito de regresso (artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil).

A demonstração do nexo de casualidade ao nível do facto impunha-se precisamente como um dos pressupostos da efetivação do direito de regresso, já que a falta de prova do referido nexo de causalidade, mesmo por recurso a presunções judiciais, arredava o referido direito da seguradora.

Com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 291/2007, desde que provada a ilicitude da conduta, a culpa do condutor e a taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida, há quem defenda agora que se encontram preenchidos os pressupostos do direito de regresso, independentemente da prova da relação causal entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente.[1]

Não se trata, porém, de jurisprudência consensual, defendendo alguns que continua a exigir-se a prova do referido nexo de causalidade, na esteira da citada jurisprudência uniformizadora.[2]
A sentença recorrida dá precisamente nota dessa discussão jurídica.

Porém, e como também ali é referenciado, a discussão jurídica sobre essa questão irreleva no caso dos autos, porquanto a “Autora alegou e provou não só que o Réu conduzia com uma taxa de álcool no sangue superior à legalmente admitida por lei (ou seja, superior a 0,5g/l), como também alegou e logrou provar o nexo causal entre a condução sobre o efeito do álcool e o acidente de viação verificado.”

O apelante centrou a sua discordância quanto ao decidido na impugnação da decisão sobre a matéria de facto relacionada com a falta de demonstração probatória do referido nexo de causalidade. Sem êxito, como se viu. Pelo que a apelação não pode deixar de improceder na sua totalidade.

Dado o decaimento, as custas ficam a cargo do apelante (artigo 527.º do CPC), sendo a taxa de justiça do recurso fixada pela tabela referida no n.º 2 do artigo 6.º do RCP.

IV- DECISÃO:

Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas nos termos sobreditos.


Lisboa, 08 de setembro de 2015


(Maria Adelaide Domingos - Relatora)
(Eurico José Marques dos Reis - 1.º Adjunto)
(Ana Grácio - 2.ª Adjunta)


[1] Cfr. Ac. STJ, de 09.10.2014, proc. 582/11.1TBSTB.E1.S1, www.dgsi.pt.
[2] Ac. STJ, de 28/11/2013, proc. 995/10.6TVPRT.P1.S1, www.dgsi.pt.

Decisão Texto Integral: