Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2286/22.0YRLSB-2
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: ESCRITURA PÚBLICA
UNIÃO ESTÁVEL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/22/2022
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: As escrituras públicas de divórcio ou de união estável brasileiras podem e devem ser objecto de uma acção de revisão de sentença estrangeira para que possam ser averbadas no registo civil dos requerentes, independentemente da sentença de revisão poder ser irrelevante para efeitos de aquisição da nacionalidade portuguesa.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Decisão singular na 2ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:



C e M instauraram a presente acção especial, pedindo que seja revisto e confirmado o reconhecimento da união estável entre ambos, o qual resulta de ter sido elaborada a 28/06/2022 uma escritura pública no 22.º Tabelião de Notas da Capital, São Paulo, da República Federativa do Brasil, contendo as declarações de ambos nesse sentido, isto é, de união estável que perdura desde 05/05/2012 e onde, para além do mais, estabelecem que, durante a união, o regime de bens será da comunhão parcial de bens (tudo como resulta da certidão de tal escritura que apresentaram e está junta aos autos; o requerente tem o seu nascimento registado sob o assento n.º 0000 de 2010 do Consulado Geral de Portugal em São Paulo, Brasil, integrado em 11/05/2010 na Conservatória dos Registos Centrais de Lisboa).

A Srª. Procuradora-Geral Adjunto emitiu parecer favorável ao pedido, com referência ao dito pelo acórdão do STJ de 09/03/2021, proc. 241/20.4YRPRT.S1: “A decisão que consta do art. 978.º do CPC deve ser entendida de forma ampla, de modo a abranger decisões proferidas quer por autoridades judiciais quer por autoridades administrativas’, concluindo que, por isso, é de considerar que a escritura pública através da qual se declara a existência e se convencionam os termos da união estável, em conformidade com as normas dos artigos 1.723.º a 1.727.º do Código Civil Brasileiro, consubstancia um ato que deve ser equiparado a uma decisão sobre direitos privados, abrangida pela previsão do art. 978.º do CPC, carecendo, por isso, de revisão para produzir efeitos em Portugal.”

Os factos relevantes para a decisão são os acima consignados e estão provados pelos documentos referidos.

A revisão pedida é necessária (art. 978 do CPC) e, parafraseando o decidido no acórdão do TRL de 21/11/1983, BMJ 338/471, o conteúdo deste artigo tem amplitude suficiente para abranger decisões, ainda que não provindas de tribunal, quando no país estrangeiro seja outra a entidade a quem competem essas decisões (mesmo que essas decisões, acrescenta-se agora, sejam dos próprios particulares, que a tomam na forma de declarações de vontade conjuntas exaradas em escritura pública, com uma qualquer intervenção de uma autoridade não jurisdicional [neste sentido, veja-se agora também, por exemplo, os acórdãos do TRL de 21/11/2019, processo 1429/19.6YRLSB-2: O processo de revisão e confirmação de sentença estrangeira dos arts. 978 e seguintes do CPC é aplicável também a actos relativos a direitos privados resultantes de um procedimento da ordem jurídica estrangeira em que esteja prevista uma qualquer intervenção de uma autoridade não jurisdicional (por exemplo, uma entidade administrativa ou religiosa), como a tomada ou a aceitação das declarações dos interessados (caso das escrituras públicas brasileiras declaratórias do divórcio, dos divórcios acordados perante os notários colombianos ou aceites e registados pelos presidentes de câmara japoneses ou das escrituras públicas brasileiras declaratórias das uniões estáveis); e de 07/10/2021, proc. 2068/18.4T8LSB-2: Uma escritura pública declaratória de união estável brasileira pode ser objecto de um processo de revisão e confirmação de sentença estrangeira dos artigos 978 e seguintes do CPC), cujos fundamentos se dão por reproduzidos nesta sentença].

Estes dois acórdãos do TRL representam a corrente maioritária dos TRL (por onde correm a maior parte dos processos de revisão) e parte significativa da jurisprudência do STJ e, como o MP a segue, nada mais haveria a dizer, a não ser remeter para eles e para as dezenas de outras decisões neles referidas no mesmo sentido.

No entanto, impõe-se dizer algo mais visto que, entretanto, o Prof. Rui Manuel Moura Ramos, no estudo sobre o Reconhecimento em Portugal de acto (escritura pública) declaratório de união estável de direito brasileiro (Lex Familiae, Ano 18, N.º 35 (2021)), veio concordar com o ac. do STJ de 10/12/2019, proc. 249/18.0YPRT.S2 que segue a corrente contrária que passou a existir desde inícios de 2019 – diz o acórdão que “a declaração dos requerentes numa Escritura Pública Declaratória de União Estável, perante uma autoridade administrativa estrangeira (tabelião) de que vivem em união de facto desde Julho de 2013, não deve ser considerada como abrangida pela previsão do artigo 978º nº 1, do CPC, não podendo ser revista e confirmada para produzir efeitos em Portugal – dizendo o referido Professor, entre o mais, que:
“A escritura pública declaratório da união estável “trata-se […], de um acto autêntico, no sentido de que é exarado por oficial público, maxime por notário, ou, nas palavras da nossa lei civil, de um «documento exarado, com as formalidades legais, pelas autoridades públicas nos limites da sua competência ou, dentro do círculo de actividade que lhe é atribuído, pelo notário ou outro oficial público provido de fé pública». […D]e um acto que foi exarado no estrangeiro por uma autoridade estrangeira, o que não exclui a sua eficácia em Portugal, como meio de prova; na verdade, e segundo o n.º 1 do artigo 365.º do nosso Código Civil, «os documentos autênticos ou particulares passados em país estrangeiro, na conformidade da respectiva lei, fazem prova como o fariam os documentos da mesma natureza exarados em Portugal». […]
O nosso direito reconhece, pois, em geral, eficácia em Portugal aos documentos autênticos estrangeiros, limitando, porém, essa eficácia a uma eficácia probatória. Na circunstância, e tendo o documento em questão sido emitido no âmbito do sistema jurídico brasileiro, há apenas que considerar o regime geral, que se limita a prever uma eficácia probatória dos documentos estrangeiros. […]” (páginas 117-118).

Desde logo, impõe-se a seguinte observação.

Esta corrente de alguns acórdãos dos Tribunais da Relação e do STJ, com a qual não se concorda pelas razões assinaladas abaixo, deve ser levada em conta pelos interessados nestes tipos de processos pelo seguinte:

Podendo dizer-se que a escritura pública brasileira declaratória da união estável é um documento autêntico com, só por si, eficácia probatória em Portugal, pode-se reafirmar o que já se disse naqueles acórdãos do TRL, ou seja, que a revisão de tal escritura pode ser inútil (para os requerentes) se com tal revisão se visar apenas a utilização da escritura pública para fins de obter a nacionalidade portuguesa no processo próprio para o efeito.

Pois que, ao menos numa primeira leitura das normas respeitantes a tal processo (e sem se saber o que é que de facto se tem passado, como regra, em tais processos), não se vê que haja diferença entre a apresentação de tal escritura, sem mais, ou a apresentação da escritura homologada/ratificada por uma sentença estrangeira brasileira revista e depois por uma sentença do tribunal da relação português, ou a apresentação da escritura revista pelo tribunal da relação português num processo de revisão. Parece – mas já se disse que não se sabe o que é que de facto se passa nesse tipo de processos – que a revisão destas escrituras significa apenas um gasto de dinheiro e uma perda de tempo para os interessados, que se diria poderem limitar-se a juntar a escritura pública na acção judicial portuguesa de reconhecimento da união de facto para prova/formação da convicção do juiz sobre a existência desta união de facto.     
*

Posto isto,

O apoio do Prof. Rui Moura Ramos ao acórdão do STJ de Dez2019 inclui a adesão (pág. 118) a um fundamento que está errado, ou seja, a consideração de que há uma diferença entre uma escritura pública do divórcio e a escritura da união estável; naquela, segundo o acórdão, os outorgantes «não declaram a dissolução do vínculo conjugal», que é pelo contrário decidida e declarada pela entidade pública depois de verificados e preenchidos os requisitos legais; em razão do que, em tal situação, estaríamos perante uma decisão, o que não se passaria na escritura pública declaratória da união estável.

Ora, isto não corresponde à realidade das coisas, como já se demonstrou naqueles acórdãos do TRL citados acima, bastando para assim se concluir ler o conteúdo de qualquer escritura pública de divórcio, onde não consta qualquer decisão do divórcio pelo notário, como aliás não podia constar porque é a própria lei brasileira a dizer expressamente que nem sequer há lugar a homologação (CPC brasileiro [LEI Nº 13.105, DE 16 DE MARÇO DE 2015.]: Art. 733. O divórcio consensual, a separação consensual e a extinção consensual de união estável, […] poderão ser realizados por escritura pública […]. § 1º A escritura não depende de homologação judicial e constitui título hábil para qualquer ato de registro […].)    
          
Assim, por exemplo, na RSEst 1800/22.6YRLSB consta: neste cartório do 1° Oficio de Justiça, […] compareceram […] como outorgantes […] para realizar o divórcio, falando cada um por sua vez, me foi […] declarando o seguinte: […] Que os outorgantes e reciprocamente outorgados declaram neste ato, […] sua espontânea vontade, livre de qualquer coacção, sugestão ou induzimento o seguinte; […] 5) Que por esta escritura e na melhor forma de direito, livremente e sem hesitações, resolveram dissolver o ALUDIDO CASAMENTO, convertendo-o para DIVORCIO o qual ora fazem, estabelecendo: […] Assim em cumprimento ao pedido e vontade dos outorgantes reciprocamente outorgados, atendidos os requisitos legais, pela presente escritura […] fica dissolvido o vínculo conjugal entre eles, que passam a ter o estado civil de divorciados […].

Na RSEst 1851/22, consta o seguinte: “[…] lavro esta escritura de Divórcio Extrajudicial Consensual, […] perante mim, Tabeliã, comparecem as partes, entre si, justas e contratadas, adiante denominadas e qualificadas, a saber: […] Sem qualquer vício de consentimento, uma vez não desejando mais os interessados manter o vínculo matrimonial, declaram de livre e espontânea vontade o seguinte: […] 6.1.1. Inexiste possibilidade de reconciliação; 6.1.2. O divórcio que ora requerem preserva os interesses dos cônjuges e não prejudica terceiros; […] e, por esta razão, os interessados declaram de forma livre, consciente e sem hesitação, perante mim, Tabeliã, e o advogado constituído, que estão cientes das consequências do divórcio, firmes no propósito de pôr fim ao vínculo matrimonial, sem hesitação, com recusa de reconciliação. 8. DIVÓRCIO. Logo, em cumprimento à manifestação de vontade dos interessados e atendidos os requisitos legais, […] fica dissolvido o casamento entre eles, que passam a ter o estado civil de divorciados […]”
Na RSEs 2641/22 consta: “[…] comparecem para realizar o divórcio consensual, declarando o seguinte: […] E, perante mim, […] pelos outorgantes e reciprocamente outorgados, […] me foi dito que compareceram para realizar o divórcio consensual, declarando o seguinte: […] 3º) – Que, assim sendo, em cumprimento do pedido e vontade deles, outorgantes […] firmados que estão no propósito de se divorciaram consensualmente, uma vez que não mais lhes convém restabelecer a sociedade conjugal […], pela presente escritura […] declaram que, a partir da efectiva averbação desse instrumento no cartório do registo civil competente, passarão a usar o estado civil de divorciados, acordando no seguinte: 3.1 […] que esta decisão de se divorciarem […]; […] 5º) - Que em decorrência deste divórcio ficam extintos todos os deveres do casamento; […] Foi-me entregue e ficam arquivados […]. Desta forma os outorgantes e reciprocamente outorgados declaram que têm por firmado o divórcio consensual do casamento ora dissolvido e aceitam a presente escritura como se encontra redigida […].”

Uma outra escritura, também clara neste seu conteúdo, foi transcrita pelo acórdão do TRP de 22/10/2020, proc. 241/20.4YRPRT, o qual, apesar de inserido na corrente jurisprudencial contrária, chega, nesta parte e com razão, exactamente ao mesmo resultado: “O divórcio «directo consensual» que a lei brasileira permite que seja celebrado extrajudicialmente por escritura pública é um acto cujo efeito jurídico se produz naquele ordenamento sem a intervenção de uma autoridade, judicial ou administrativa, chamada a controlar, homologar ou decidir sobre a produção do efeito da extinção do casamento, o qual se produz ali por mero efeito potestativo da vontade dos cônjuges.”

É assim claro que na escritura de divórcio, tal como na escritura de união estável, ao contrário do que diz aquele acórdão do STJ e é aceite pelo Prof. Moura Ramos, são os declarantes que declaram e decidem a dissolução do vínculo conjugal e que o tabelião se limita a tomar as declarações e dar-lhes redacção, nada decidindo nem declarando. Nunca ninguém se lembraria de dizer que numa escritura de compra e venda, que é no essencial redigida nos mesmos termos, a venda foi decidida pelo notário ou que este a homologou.

Não há pois como fugir à questão: se aquilo que justifica a não revisibilidade de uma escritura de união estável é o facto de ela não conter uma decisão, nem uma homologação, então as escrituras de divórcio, que não contém uma decisão nem homologação, também não são passíveis de revisão, tal como aliás é defendido pelo Professor Luís de Lima Pinheiro, em DIP vol. III, tomo II, Reconhecimento de decisões estrangeiras, AAFDL, Junho de 2019, 3.ª edição, páginas 203 e 204, pois que todas elas são escrituras declarativas e não constitutivas, e os acórdãos dos TR e do STJ que, desde 1983, pelo menos, e até 2019, sempre as reviram, estariam errados.

Daí que, coerentemente, aquele acórdão do TRP, com um voto de vencido, tenha vindo defender a não revisibilidade das escrituras de divórcio, no essencial com base em três argumentos: (i)-em tais escrituras não há qualquer decisão a rever nem os requisitos previstos no processo de revisão se aplicam a elas, (ii)-elas não formam caso julgado e (iii)-o problema que se pretende resolver com a revisão tem solução nos artigos 6 e 7 do Código Registo Civil.

Ora, não é assim:

(i)-tais escrituras têm uma decisão, que é a decisão dos interessados em divorciaram-se e o divórcio verifica-se por força desta decisão; e isto permite a inclusão da situação no âmbito de abrangência do art. 978 do CPC;
(ii)-não há qualquer necessidade de uma decisão que dê origem a caso julgado, como aliás acaba por reconhecer Luís de Lima Pinheiro, o autor a quem normalmente se vai buscar tal exigência (numa passagem da obra citada, pág. 199, em que diz que “por “decisão” entende-se qualquer acto público que segundo a ordem jurídica do Estado de origem tenha força de caso julgado); como logo a seguir o mesmo autor explica: “O regime dos artigos 978 e seguintes do CPC também deve ser aplicado analogicamente aos actos constitutivos de autoridades administrativas ou religiosas estrangeiras que não formem caso julgado, mas devam valer como título de registo ou que, eventualmente, careçam de ser registados.” (pág. 203 e também na pág. 199 da obra citada);
Estes dois pontos ((i) e (ii)) também resultam do caso paralelo da Convenção da Haia sobre Reconhecimento de Divórcios e Separações de Pessoas (Aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 23/84, de 27/11), cujo artigo 1 dispõe que “A presente Convenção aplica-se ao reconhecimento num Estado contratante de divórcios e separações de pessoas obtidas noutro Estado contratante na sequência de um processo judicial ou outro oficialmente reconhecidos neste último Estado e que aí produzam efeitos legais”, com o que se dá cobertura a um divórcio privado (caucionado administrativamente pela ordem jurídica), sem fazer qualquer referência da uma decisão que leve a um caso julgado (como aliás é reconhecido por Luís de Lima Pinheiro e explicado por João Gomes de Almeida, em passagens já citadas no ac. do TRL de 07/10/2021, proc. 2068/18.4T8LSB-2, referido acima;
(iii)-o problema dos interessados não tem solução nos artigos 6 e 7 do CRC, porque, pelo contrário, é o artigo 6/1 do CRC que (natural e logicamente) cria o problema ao exigir a prova de que os actos de registo não contrariam os princípios fundamentais da ordem pública internacional do Estado Português. Ora, naturalmente, as Conservatórias não se julgam competentes para estarem a decidir a verificação deste requisito e daí que se imponha a intervenção dos tribunais com os processos de revisão da sentença estrangeira.

Repare-se, por exemplo, que hoje se admite que divórcios privados europeus, aqueles que não resultam de decisões judiciais, mas antes de documentos autênticos ou eventualmente simples acordos registados, sejam inscritos no registo civil português mas, depois, dando solução à questão que está subjacente à parte final do art. 6/1 do CRC, se admite que o conservador que considere que se verifica um dos fundamentos de não reconhecimento, intente uma acção pedindo o não reconhecimento daquele documento ou acordo (é o que resulta dos artigos 30/3, 38, 39, 40/1, 64, 65/1 e 68/1 do Regulamente UE 2019/1111). Ou seja, estamos perante o regime pretendido pelo ac. do TRP, mas com uma solução para acautelar o mesmo problema que o art. 6/1 do CRC coloca e que aqui se resolve com o recurso aos processos de revisão de sentença estrangeira.

Quanto aos acabados de referir divórcios privados europeus, veja-se João Gomes de Almeida, Âmbito de aplicação, definições e relações com outros actos do Regulamento Bruxelas ter, pág. 17, revista Julgar, nº. 47, Maio-Agosto de 2022, pág. 17: “Assinala-se que, acompanhando um processo de "desjudicialização" do divórcio na União Europeia, o Regulamento Bruxelas II ter admite o reconhecimento de actos autênticos e acordos em matéria de divórcio e separação judicial. O âmbito de aplicação material do Regulamento Bruxelas II ter abrange assim divórcios privados, definidos por alguma doutrina como aqueles em que não há uma intervenção constitutiva de uma autoridade. Pela nossa parte preferimos distinguir recorrendo ao conceito de autoridade. No âmbito de aplicação material do Regulamento Bruxelas II ter incluem-se agora, adicionalmente, divórcios e separações judiciais em que há uma intervenção de uma autoridade (seja ela constitutiva ou não); os divórcios puramente privados, isto é, os divórcios efectuados sem necessidade da presença de qualquer autoridade, continuam excluídos do âmbito de aplicação material do Regulamento.”);

Quanto à competência do conservador e acção, ainda o mesmo autor, João Gomes de Almeida, Reconhecimento de decisões, actos autênticos e acordos em matéria matrimonial no Regulamento Bruxelas ter, páginas 104-105 e nota 33, na revista Julgar n.º 47, Maio - Agosto de 2022, esclarece que o conceito de parte interessada pode também incluir autoridades públicas, como […] as autoridades públicas responsáveis pelo registo civil, em protecção de um interesse público – por exemplo, nos casos em que a autoridade pública considere verificado um dos fundamentos de não reconhecimento da decisão [ou acto autêntico] estrangeira[/o]”].

Conclui-se assim que o acórdão do TRP citado acima, de 2020, que é o único que procura encontrar solução para o problema que está subjacente a tudo isto, tal como a posição dos Professores Rui Moura Ramos e Luís de Lima Pinheira, ao sugerirem, no mesmo sentido, que os divórcios privados (notariais) podem ser inscritos no registo civil português, sem o processo especial de reconhecimento e confirmação [: “esses actos podem produzir, no nosso ordenamento, os efeitos jurídicos que lhe sejam reconhecidos pela lei considerada competente pelo sistema português de direito internacional privado, devendo ser sujeitos a registo (que é de resto obrigatório entre nós na matéria)” - estudo de Moura Ramos, páginas 116-117; e de Luís de Lima Pinheiro, DIP, vol. III, tomo II, 2019, 3.ª edição, AAFDL, páginas 203-204 e 259-260], esquecem-se, que é precisamente o problema da impossibilidade de registo [pois que conservatórias de registo civil não aceitam fazer o averbamento da escritura sem a revisão pelo tribunal da relação, baseadas no art. 6/1 do CRC], a que não dão solução, pois que, por exemplo, o acórdão do TRP nem fala da forma de ultrapassar a necessidade de verificação do requisito previsto no art. 6/1 do CRC, que levou à formação da jurisprudência actual - que estava estabilizada desde pelo menos 1999 [depois da discussão gerada pelo voto de vencido no ac. do TRL de 28/01/1999] e renasceu temporariamente em 2013 [com o acórdão do TRL de 17/01/2013], para estabilizar novamente até 2020, desestabilizada agora por esse acórdão do TRP de 2020 (mas só a nível das relações, já que, ao menos quanto a esta questão, o STJ se tem mantido firme) – que se decide pela necessidade da aplicação às escrituras brasileiras “declaratórias” de divórcio – depois estendido a muitos outros casos, como, por exemplo, os divórcios japoneses constantes de um simples escrito que, passando pelo crivo de um presidente de câmara, é feito constar do registo civil – da solução dos processos de revisão de sentenças estrangeiras.

Para além disso, o TRP também não disse nada sobre outro argumento utilizado pela corrente contrária, nem o fazem aqueles Professores: porque é que um divórcio “consensual” decretado por um tribunal estrangeiro teria que ser submetido a um processo de revisão estrangeira para se apurar, pelo menos, o requisito da não violação da OPI do EP, e uma simples escritura de divórcio “consensual” poderia ser registada sem mais (ou depois da sua prova no registo civil estrangeiro)?

Repare-se, por exemplo, que, no Brasil, já se verifica a situação inversa de uma sentença – não naturalmente de uma escritura – poder ir directamente ao registo civil sem precisar de passar pelo crivo de um processo de reconhecimento e confirmação, conforme notícia dada pelo Ministério das Relações Exteriores brasileiro, publicada em 12/07/2022 17h53, actualizado em 19/07/2022 14h51: O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por meio de Provimento Nº 53 publicado em 16/5/2016, definiu que a sentença estrangeira de divórcio consensual, desde que simples ou puro (quando define apenas a dissolução do matrimônio) deverá ser averbada diretamente perante Oficial de Registro Civil no Brasil, sem a necessidade de prévia homologação pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) e/ou de prévia manifestação de qualquer outra autoridade judicial brasileira. A desnecessidade de homologação e/ou manifestação judiciais aplica-se, também, aos casos de decisão estrangeira de divórcio consensual simples ou puro, não judicial, que pela lei brasileira possua natureza jurisdicional (o Provimento Nº 53 de 16/05/2016 foi consultado aqui a 22/09/2022).

No sentido acabado de referir, para além do já citado no anterior acórdão deste TRL de 2021, que é o acórdão do STJ que revogou o acórdão do TRP referido acima e que já foi citado pelo MP no parecer que deu nestes autos, veja-se o ac. do STJ de 07/06/2022, proc. 1181/21.5YRLSB-A.S1, que revoga um outro acórdão do TRL (embora, como decorre do que antecede, não se concorde com a insistência na ideia de que, na escritura de divórcio, há uma intervenção homologatória do notário brasileiro):
I.–No processo especial de revisão de sentença estrangeira devemos atribuir um sentido amplo ao termo decisão sobre direitos privados, proferida por tribunal estrangeiro, e considerar aqui abrangidos quer as decisões dos tribunais, quer as decisões de entidades administrativas, caso a lei do país de origem atribua relevância jurídica à referida entidade e considere admissível essa forma de dissolução do casamento, e que essa decisão se mostre conforme aos requisitos do artigo 980.º do Código de Processo Civil.
II.–O reconhecimento de decisão estrangeira de divórcio por mútuo consentimento cometido a autoridade administrativa deve ser sujeito ao regime de revisão e confirmação de sentença estrangeira quando tiver os mesmos efeitos que uma decisão judicial, porque, em última instância o que importa não é a natureza do órgão que profere a decisão mas os efeitos que ela produz segundo o Direito do Estado de origem.
III.–Da certidão da Escritura Pública de Divórcio Directo Consensual verifica-se uma efectiva decisão homologatória do tabelião, que, após as declarações dos cônjuges de não pretender mais a convivência conjugal, atesta a verificação dos requisitos legais do divórcio à luz da lei brasileira, e declara o divórcio entre as partes, o que também se mostra conforme com a já referida legislação do Brasil.
IV.–Sendo o nosso sistema de revisão de sentenças estrangeiras um sistema de delibação, em que ocorre tão só uma revisão meramente formal, na medida em que o tribunal se limita a verificar se a sentença estrangeira satisfaz certos requisitos de forma, não conhecendo do fundo ou mérito da causa, verificando-se que estamos perante uma verdadeira sentença, porquanto constitutiva de direitos, a extinção do vínculo conjugal, e mostrando-se conforme com os requisitos do artigo 980.º do Código de Processo Civil, impõe-se a sua confirmação judicial.
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Tendo em conta tudo o que antecede, conclui-se que não é um problema de obtenção dos requisitos da nacionalidade eventualmente visado pelos requerentes que tem de ser apreciado neste processo de revisão, mas apenas a potencial utilidade do processo para o fim que este tipo de processos em geral, isto é, em abstracto, se destina, qual seja, o do averbamento da união estável brasileira, inclusive com um certo regime de bens, no registo civil português, de forma a dar publicidade a tal situação perante terceiros.

Ou seja, do que se trata é da necessidade do reconhecimento da escritura para efeitos de actualização do registo civil do requerente, fazendo dele constar o averbamento da união estável sem ou com um certo regime de bens, nem que seja para dar a conhecer a terceiros, através da forma mais solene do registo, de que cada um dos requerentes é parte de uma família constituída com o outro.

E quanto a isto, repete-se, a corrente oposta à que se segue aqui, não deu, nem tentou dar, até hoje qualquer resposta, nem solução, ou seja, não explicou como é que este reconhecimento, através do registo civil, pode ser obtido, se não for pela revisão da escritura.

Ora, como já se disse naqueles acórdãos do TRL, se não aceitar que a escritura pública declaratória da união estável seja revista para estes efeitos (sendo que o TRL não tem de saber nem deve averiguar se é outro o fim mediato visado pelos requerentes), está-se, pelo menos, a negar a um português a possibilidade de dar publicidade registal à família que tem constituída com um brasileiro – através da união estável (hoje não há já qualquer dúvida de que também em Portugal é possível constituir família pela união de facto, figura que, nessa medida, é equiparável à união estável brasileira). O que representaria, pelo menos, uma violação do princípio constitucional da igualdade, já que, pelo contrário, um português que constitui família pelo casamento pode dar essa publicidade à sua família.
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Posto isto,

Este tribunal é o competente para o efeito (art. 979 do CPC).

Não existem dúvidas sobre a autenticidade da escritura de que consta a decisão nem sobre a inteligibilidade desta, nem o seu reconhecimento conduz a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português (o que se declara tendo em vista o disposto nas alíneas a e f do art. 980 do CC).

Não existem dados que indiciem que a escritura provenha de órgão cuja competência tenha sido provocada em fraude à lei, ou que esteja pendente ou já tenha sido elaborada outra escritura em Portugal (o que se declara tendo em vista o disposto nas alíneas b a e do art. 980 do CC).

Pelo que, nada obsta à revisão e confirmação do reconhecimento revidendo.
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Pelo exposto, julga-se procedente a pretensão dos requerentes e, em consequência, decide-se rever e confirmar o reconhecimento da união estável entre os requerentes, com o apontado regime de bens, que resulta da escritura pública declaratória em causa, que assim passará a ter eficácia na ordem jurídica portuguesa.                                     
Valor da causa: 30.000,01€.
Tendo em conta o disposto no art. 14-A/1c) do RCP, não há lugar ao pagamento da 2ª prestação da taxa de justiça. Isto é, tudo o que havia a pagar por este processo são os 306€, já pagos.
Transitada esta decisão, comunique-a ao registo civil.


Lisboa, 22/09/2022


Pedro Martins