Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
19171/19.6T8LSB.L1-2
Relator: ARLINDO CRUA
Descritores: LEGITIMIDADE PASSIVA
CONVENÇÕES ANTENUPCIAIS
NULIDADE DA DOAÇÃO
CESSÃO DE QUOTAS
PROCURAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/07/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I– a lei civil admite a existência de doações entre casados – o artº. 1761º, do Cód. Civil -, excepto se vigorar entre os cônjuges, de forma imperativa, o regime de separação de bens – o artº. 1762º, do mesmo diploma -, estatuindo-se que apenas podem ser objecto de doação bens próprios do doador, sendo que tais bens não se comunicam, seja qual for o regime matrimonial – o artº. 1764º, nºs. 1 e 2, ainda do mesmo diploma ;

 II– tais doações são susceptíveis, a todo o tempo, de revogação, por parte dos doadores, sem que estes possam sequer renunciar a tal direito – o artº. 1765º, nº. 1, do Cód. Civil ;

 III–mesmo na adopção do entendimento mais amplo ou abrangente do princípio da imutabilidade das convenções antenupciais e do regime de bens resultante da lei, inscrito no artº. 1714º, do Cód. Civil, que implicasse que, com excepção dos contratos de compra e venda e sociedade, expressamente enunciados no nº. 2 de tal normativo, os demais negócios jurídicos celebrados entre os cônjuges deveriam ser objecto de uma apreciação que, casuisticamente, determinasse se se encontram vedados pelo n.º 1, por importarem uma alteração da qualificação dos bens que integram os patrimónios próprios dos cônjuges ou o património comum do casal, tal entendimento nunca seria extensível às doações entre cônjuges casados no regime não imperativo de separação de bens ;

  IV– efectivamente, admitindo a lei a doação entre os cônjuges, nomeadamente a transformação de bens próprios de um cônjuge em bens próprios do outro (ainda que para alguns dos entendimentos tal contradiga a enunciada regra da imutabilidade das convenções antenupciais), quando o regime em equação é o da separação, não imperativamente imposto, inexistem quaisquer impedimentos legais às doações entre os cônjuges ;

 V– o nº. 2, do artº. 228º, do Cód. das Sociedades Comerciais, donde resulta a legal admissibilidade da cessão de quotas entre cônjuges, deva ser interpretado em conjugação com as normas do Código Civil que prevêem acerca da compra e venda e doação entre aqueles ;

 VI– assim, aquele normativo apenas dispensa o consentimento da sociedade quando está em equação uma cessão de quotas entre cônjuges que seja considerada válida em face da lei civil, ou seja, a cessão de quotas, e o juízo de ponderação a efectuar, deve ter por regulador o negócio que lhe é subjacente, pelo que as restrições relativas à compra e venda e às doações entre os cônjuges, civilisticamente previstas, são igualmente válidas quando tais negócios têm por objecto uma cessão de quotas ;

 VII–estando na base das cessões do direito à nua propriedade das quotas, doações entre os Réus cônjuges, casados no regime de separação de bens,  tais cessões são válidas, pois as quotas em equação constituíam bens próprios dos cônjuges doadores, passando a figurar como bens próprios das cônjuges donatárias ;

 VIII– inexistindo , em tal situação, qualquer violação do princípio de imutabilidade dos regimes de bens e das convenções antenupciais consagrado em termos gerais no nº 1 do referido artº 1714º do Cód. Civil (e concretizado no nº. 2, do mesmo normativo), susceptível de determinar a nulidade das doações realizadas, por força do prescrito no artº. 294º, do mesmo diploma ;

 IX– o impedimento de voto inscrito no artº. 251º, do Cód. das Sociedades Comerciais destina-se às situações em que, existindo outros sócios, a matéria da deliberação implique com a posição pessoal de determinado sócio, em confronto com os interesses da própria sociedade ;

 X– e não para aquelas situações em que a matéria de deliberação é praticada pelos únicos sócios da sociedade, ou seja, por aqueles a quem competia a deliberação, pois, entender-se de outro modo conduziria à necessária paralisação societária ;

 XI– para que se possa concluir pela outorga de procuração no interesse comum (conferida também no interesse do representante/procurador), deve concluir-se pela existência de um interesse primário deste na conclusão de um qualquer negócio ou acto jurídico que constitua a relação subjacente á procuração ;

 XII– não se descortinando ou vislumbrando aquele interesse próprio, específico, objectivo e directo na execução do negócio que constitui a relação subjacente à outorga da procuração, isto é, que o se pudesse afirmar como possuindo uma posição própria e autónoma no âmbito da relação de representação, distinta da posição dos representados, necessariamente se deve concluir não estarmos perante a outorga de procuração outorgada no interesse do procurador e, como tal, irrevogável ;

 XIII–a procuração outorgada no interesse do procurador/representante e, como tal, irrevogável, deve ser outorgada mediante instrumento público notarial adequado e objecto do devido arquivamento no cartório notarial, conforme prescreve o nº. 2, do artº. 116º, do Cód. do Notariado ;

 XIV–tais exigências – outorga mediante instrumento público cujo original é arquivado no cartório notarial – constituem uma formalidade ad substantiam, pelo que a sua preterição determina a nulidade da declaração negocial, isto é, a nulidade da própria procuração.
 
   Sumário elaborado pelo Relator – cf., nº. 7 do artº. 663º, do Cód. de Processo Civil

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM os JUÍZES DESEMBARGADORES da 2ª SECÇÃO da RELAÇÃO de LISBOA o seguinte [1]:

              
I–RELATÓRIO


1V....., com domicílio profissional na Avenida....., Lisboa ;
–EU....., S.A., com sede na Avenida....., em Lisboa ;
–T....., LDA., com sede na Avenida....., Lisboa,
vieram instaurar acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra:
A..... e mulher MARIA....., residentes na Rua....., em Lisboa ;
JOSÉ..... e mulher ANA....., residentes na Avenida....., Lisboa ;
EU....., LDA., com sede na Avenida....., Lisboa ;
Q....., LDA., com sede na Avenida....., Lisboa ;
G....., LDA., com sede na Rua....., em Algés ;
P....., LDA., com sede na Avenida....., em Lisboa ;
C....., LDA., com sede em ....., Albufeira ;
SANTA....., S.A., com sede na Avenida....., em Lisboa,
deduzindo petitório no sentido de ser julgada totalmente procedente, por provada, a acção e, consequentemente:
a)-Seja declarada a nulidade e sem qualquer efeito do negócio jurídico celebrado entre os Réus A..... e José..... e as suas mulheres Rés Maria..... e Ana.....s, em 30 de Julho de 2018, correspondente à cessão, por doação, da nua propriedade das quotas que compõem o capital social da sociedade Ré EU....., Lda.;
b)-Seja declarada a nulidade e sem qualquer efeito do negócio jurídico celebrado entre os Réus A..... e José..... e as suas mulheres Rés Maria..... e Ana....., em 30 de Julho de 2018, correspondente à cessão, por doação, da nua propriedade das quotas que compõem o capital social da sociedade Ré Q....., Lda.;
c)-Seja declarada a nulidade e sem qualquer efeito do negócio jurídico celebrado entre a sociedade Ré SANTA....., SGPS, S.A., representada pelo Réu A....., na qualidade de seu administrador, e os Réus A..... e José....., em 30 de Julho de 2018, correspondente à divisão e cessão das quotas que aquela detinha no capital social da sociedade Ré G....., Lda.;
d)-Seja declarada a nulidade e sem qualquer efeito do negócio jurídico celebrado entre os Réus A..... e José..... e as suas mulheres Rés Maria..... e Ana....., em 30 de Julho de 2018, correspondente à cessão, por doação, da nua propriedade das quotas que compõem o capital social da sociedade Ré G....., Lda.;
e)-Seja declarada a nulidade e sem qualquer efeito do negócio jurídico celebrado entre os Réus A..... e José..... e as suas mulheres Rés Maria..... e Ana....., em 30 de Julho de 2018, correspondente à cessão, por doação, da nua propriedade das quotas que compõem o capital social da sociedade Ré P....., Lda.;
f)-Seja declarada a nulidade e sem qualquer efeito do negócio jurídico celebrado entre a sociedade Autora T....., Lda., representada pelo Réu A..... 19 Santos, na qualidade de seu gerente, e os Réus A..... e José....., em 11 de Julho de 2018, correspondente à cessão das quotas que aquela detinha no capital social da sociedade Ré C....., Lda.;
g)-Seja declarada a nulidade e sem qualquer efeito do negócio jurídico celebrado entre os Réus A..... e José..... e as suas mulheres Rés Maria..... e Ana....., em 11 de Julho de 2018, correspondente à cessão, por doação, da nua propriedade das quotas que compõem o capital social da sociedade Ré C....., Lda.;
Cumulativamente, requer-se que:
h)-Seja ordenado o registo da sentença que vier a ser proferida nos presentes autos junto das entidades e autoridades competentes, nomeadamente junto da Conservatória do Registo Comercial;
i)-Seja ordenado o cancelamento dos registos sobre as transmissões das mencionadas quotas nas sociedades Rés EU....., Lda., correspondentes às Menções de Depósito nºs 2...5 e 2...6, ambas de 2018-08-01; Q....., Lda., correspondentes às Menções de Depósito nºs 2...3 e 2...4, ambas de 2018-08-01; G....., Lda., correspondentes às Menções de Depósito nºs 4..1, 4..2, 4..3, 4..4, 4..5 e 4..6, todas de 2018-08-01; P....., Lda., correspondentes às Menções de Depósito nºs 2...1 e 2...2, ambas de 2018-08-01 e C....., Lda., correspondentes às Menções de Depósito nºs 1..7, 1..8, 1..9 e 1..0, todas de 2018-08-01; bem como de todos os registos que hajam sido feitos após as referidas transmissões de quotas a favor de terceiros;
j)- Sejam os Autores dispensados do pagamento do remanescente da taxa de justiça, nos termos e para os efeitos do disposto no nº 7 do artigo 6º do Regulamento das Custas Processuais;
k)- Sejam os Réus pessoas singulares condenados no pagamento das custas judiciais, incluindo as custas de parte que vierem a ser suportadas pelos Autores”.

Fundamentam como sustento de tal petitório três razões conducentes ao deduzido pedido de nulidade, nomeadamente:
1.–as doações são inválidas por violação do disposto no art.1714, nº2, do Cód. Civil que possui natureza imperativa, na medida em que os primeiros Réus são casados no regime de separação de bens e aquelas cessões importaram uma alteração da qualificação dos bens ;
2.–a cessão a terceiro, por doação, não foi autorizada pelas sociedades cujas quotas foram objecto dos negócios, gozando estas de direito de preferência, sendo as deliberações respectivas inválidas por existência de conflito de interesses na pessoa dos RR A..... e José....., pois figuram naqueles negócios como parte, estando por isso impedidos de votar – cf., art.251º, nº 1 do CSC ;
3.–os negócios são inválidos por o seu fim ser contrário à lei e ofensivo aos bons costumes, porquanto foram realizados por doação com reserva de usufruto a favor dos cedentes, tendo como único fim afastar a possibilidade do Autor V....., através das procurações que lhe haviam sido outorgadas pelos RR José e A....., transmitir a titularidade das quotas daqueles, tal como o fizera relativamente a outras sociedades.

Alegaram, em súmula, o seguinte:
  • o Autor V..... é pai dos Réus José..... A....., sendo também o actual administrador único da sociedade comercial Autora EU....., S.A. e gerente único da sociedade comercial Autora T....., Lda. ;
  • no decurso da sua vida empresarial, o Autor V..... construiu um verdadeiro grupo familiar de empresas, conhecido e reconhecido na Banca, entre outras entidades públicas e privadas, como “GRUPO ECONÓMICO V.....”, as quais gozavam de enorme prestígio, confiança e crédito
  • os seus filhos José..... e A....., ora Réus, sempre estiveram formalmente ligados às empresas do denominado “GRUPO ECONÓMICO V.....”, com excepção de uma breve passagem do Réu José....., no início da sua vida profissional, entre 1997/99, como funcionário bancário, nunca tendo tido, qualquer deles, outra actividade ;
  • as sociedades comerciais Rés EU....., Lda. e Q....., Lda., que haviam sido constituídas, em 29 de Julho de 1997, por cisão, mediante destaque patrimonial da sociedade comercial “Manuel J. Monteiro & Cª., Lda.”, foram adquiridas pelo Autor V....., em 16 de Maio de 2000, mediante cessões das respectivas quotas, na proporção de metade do capital social, a favor de cada uma das sociedades comerciais SOCIEDADE ....., Lda. e EU....., Lda., ao tempo ambas detidas maioritariamente e representadas pelo seu gerente, ora Autor, V..... ;
  • para além de ter passado a ser gerente das sociedades comerciais Rés EU..... e Q....., era também o Autor V..... quem sempre representava as respectivas sócias destas, as sociedades comerciais SOCIEDADE..... e EU..... nas respectivas assembleias gerais, aí tomando todas as decisões, até ao ano de 2004 ;
  • em virtude da notoriedade que lhe veio a ser reconhecida enquanto famoso sócio e adepto benfiquista, tendo apoiado pública e financeiramente o clube, tornou-se alvo de “invejas” e “perseguições”, passando a figurar como alvo, a partir dessa altura, entre outras, de várias inspecções promovidas pela Autoridade Tributária, que redundaram em diversos processos tributários, graciosos e judiciais, envolvendo quer a sua pessoa, quer algumas das suas empresas, implicando a contingência do pagamento de elevadas quantias ;
  • motivo pelo qual, em 04 de Março de 2004, o Autor V....., na altura Presidente do Conselho de Administração daquelas sociedades, celebrou, em nome e representação das mesmas, duas Cessões de Quotas a favor dos seus filhos, os ora Réus A..... e José....., transferindo para a titularidade destes, na proporção de metade para cada um, a totalidade das quotas que as sociedades SOCIEDADE....., Lda. e EU....., LDA. detinham nas sociedades comerciais Rés EU..... e Q....., como forma de proteção patrimonial ;
  • tendo sido igualmente a situação da existência de vários processos tributários, graciosos e judiciais, envolvendo directamente a pessoa do Autor V....., que motivou que este fosse colocando progressivamente os seus filhos, os ora Réus A..... e José....., na titularidade formal de todas as participações sociais (quotas e/ou ações) das diversas sociedades comerciais por aquele detidas, bem como passassem, também progressivamente, a ocupar os cargos estatutários de gerentes e/ou administradores dessas sociedades comerciais do denominado “GRUPO ECONÓMICO V.....” ;
  • tendo tal ocorrido, atendendo, naturalmente, ao elevado grau de proximidade familiar e extrema confiança que o Autor V..... depositava nos filhos, ora Réus A..... e José....., bem como ao facto de estes se encontrarem ambos casados sob o regime da separação de bens, como forma de protecção do seu património e sem o recebimento de qualquer contrapartida financeira por parte destes ;
  • sempre tendo o Autor V..... mantido, todavia, a administração de facto e a gestão corrente de todas essas empresas, entre as quais as sociedades Rés, sendo ele quem lidava com os principais responsáveis dos Bancos, das Câmaras Municipais, arquitectos, engenheiros, fornecedores e clientes diversos, entre os quais os inquilinos de certos imóveis pertencentes àquelas sociedades, entre muitas outras pessoas e/ou entidades públicas e privadas ;
  • a situação pessoal do Autor V..... foi entretanto agravada pela circunstância de, em 2013, ter sofrido um problema de saúde grave, do foro oncológico, suficientemente motivador para manter o “status quo” criado ;
  • todavia, a partir do momento em que adoeceu com “cancro”, o Autor V..... começou a andar desconfiado sobre o comportamento dos seus referidos filhos, ora 8 Réus A..... e José....., quanto à gestão do património, motivo pelo qual estes outorgaram a favor daquele, em Cartório Notarial, duas Procurações, datadas de 05 de Fevereiro de 2014, quer a título pessoal, quer em representação das quatro sociedades comerciais com maior movimentação e actividade imobiliária na altura, entre as quais a sociedade Autora EU....., com os mais amplos poderes e para sua salvaguarda ;
  • sendo que tais instrumentos jurídicos de representação voluntária pretendiam conferir ao Autor V..... todos os poderes necessários para continuar a administrar e a dispor de todo o património imobiliária e mobiliário como se fosse seu, isto é, em igualdade de condições como se estivesse na sua titularidade formal ;
  • porém, na sequência de desentendimentos ocorridos, em final de Junho de 2018, entre o Autor V..... e os seus filhos, os ora Réus A..... e José....., quanto à titularidade das participações sociais (quotas e ações) de diversas sociedades comerciais, que estavam, como se disse, nominalmente em nome destes, os referidos Réus outorgaram juntamente com as suas respectivas mulheres, as ora Rés Maria..... e Ana....., os seguintes “Títulos de Cessão de Quotas Com Reserva de Usufruto”, referentes às cinco sociedades comerciais Rés:
a)-Em 30 de Julho de 2018, o Réu A..... cedeu, por doação, à sua mulher, a Ré Maria....., a nua propriedade da quota no valor nominal de € 68.509,89, que tinha em seu nome, na sociedade Ré EU....., Lda., mantendo o direito de usufruto vitalício sobre aquela quota e o Réu José..... cedeu, por doação, à sua mulher, a Ré Ana ....., a nua propriedade da quota no valor nominal de € 68.509,89, que tinha em seu nome, na mesma sociedade Ré EU....., Lda., mantendo o direito de usufruto vitalício sobre aquela quota, tendo ambos declarado, em representação da Sociedade, que esta autorizava a referida cessão com reserva de usufruto, mais declarando não exercer qualquer direito de preferência.
Estes atos foram inscritos no Registo Comercial da sociedade Ré EU..... sob as Menções de Depósito nºs 2...5 e 2...6, ambas de 2018-08-01; - Cf. Documentos nºs 17 e 56.
b)-Na mesma data de 30 de Julho de 2018, o Réu A..... Santos cedeu, por doação, à sua mulher, a Ré Maria....., a nua propriedade da quota no valor nominal de € 47.884,60, que tinha em seu nome, na sociedade Ré Q....., Lda., mantendo o direito de usufruto vitalício sobre aquela quota e o Réu José..... cedeu, por doação, à sua mulher, a Ré Ana....., a nua propriedade da quota no valor nominal de € 47.884,60, que tinha em seu nome, na mesma sociedade Ré Q......, Lda., mantendo o direito de usufruto vitalício sobre aquela quota, tendo ambos declarado, em representação da Sociedade, que esta autorizava a referida cessão com reserva de usufruto, mais declarando não exercer qualquer direito de preferência.
Estes atos foram inscritos no Registo Comercial da sociedade Ré Q..... sob as Menções de Depósito nºs 2...3 e 2...4, ambas de 2018-08-01; - Cf. Documentos nºs 18 e 57.
c)-Também a 30 de Julho de 2018, o Réu A..... cedeu, por doação, à sua mulher, a Ré Maria....., a nua propriedade da quota no valor nominal de € 25.000,00, que tinha em seu nome, na sociedade Ré G....., Lda., mantendo o direito de usufruto vitalício sobre aquela quota e o Réu José..... cedeu, por doação, à sua mulher, a Ré Ana ....., a nua propriedade da quota no valor nominal de € 25.000,00, que tinha em seu nome, na mesma sociedade Ré G....., Lda., mantendo o direito de usufruto vitalício sobre aquela quota, tendo ambos declarado, em representação da Sociedade, que esta autorizava a referida cessão com reserva de usufruto, mais declarando não exercer qualquer direito de preferência.
Para o efeito de lograrem realizar a mencionada cessão de quotas, o Réu A....., no mesmo documento, na qualidade de administrador e em representação da sociedade Ré SANTA....., S.A., igualmente sócia da 10 sociedade Ré G....., operou previamente a divisão da quota que aquela sociedade detinha nesta, no valor nominal de € 48.000,00, em duas novas quotas, no valor nominal de € 24.000,00 cada, que transmitiu a cada um dos outros dois sócios, os Réus A..... e José....., pelo respetivo valor nominal, postergando o pagamento dos respetivos preços.
Estes atos foram inscritos no Registo Comercial da sociedade Ré G..... sob as Menções de Depósito nºs 4..1, 4..2, 4..3, 4..4, 4..5 e 4..6, todas de 2018-08-01; - Cf. Documentos nºs 42 e 58.
d)-Ainda em 30 de Julho de 2018, o Réu A..... cedeu, por doação, à sua mulher, a Ré Maria....., a nua propriedade da quota no valor nominal de € 10.000,00, que tinha em seu nome, na sociedade Ré P....., Lda., mantendo o direito de usufruto vitalício sobre aquela quota e o Réu José..... cedeu, por doação, à sua mulher, a Ré Ana ....., a nua propriedade da quota no valor nominal de € 10.000,00, que tinha em seu nome, na mesma sociedade Ré P....., Lda., mantendo o direito de usufruto vitalício sobre aquela quota, tendo ambos declarado, em representação da Sociedade, que esta autorizava a referida cessão com reserva de usufruto, mais declarando não exercer qualquer direito de preferência.
Estes atos foram inscritos no Registo Comercial da sociedade Ré P..... sob as Menções de Depósito nºs 2...1 e 2...2, ambas de 2018-08-01; - Cf. Documentos nºs 44 e 59.
e)-E, em 11 de Julho de 2018, o Réu A..... cedeu, por doação, à sua mulher, a Ré Maria....., a nua propriedade da quota no valor nominal de € 2.500,00, que tinha em seu nome, na sociedade Ré C....., Lda., mantendo o direito de usufruto vitalício sobre aquela quota e o Réu José..... cedeu, por doação, à sua mulher, a Ré Ana ....., a nua propriedade da quota no valor nominal de € 2.500,00, que tinha em seu nome, na mesma sociedade Ré C....., Lda., mantendo o direito de usufruto vitalício sobre aquela quota, tendo ambos declarado, em representação da Sociedade, que esta autorizava a referida cessão com reserva de usufruto, mais declarando não exercer qualquer direito de preferência.
Para o efeito de lograrem realizar a mencionada cessão de quotas, o Réu A....., no mesmo documento, na qualidade de gerente e em representação da sociedade Autora T....., Lda., que era a sócia única da sociedade Ré C....., transmitiu previamente as duas quotas que aquela sociedade detinha nesta, no valor nominal de € 2.500,00 cada, a favor de cada um dos Réus A..... e José....., pelo respetivo valor nominal, postergando o pagamento dos respectivos preços
Estes actos foram inscritos no Registo Comercial da sociedade Ré C..... sob as Menções de Depósito nºs 1..7, 1..8, 1..9 e 1..0, todas de 2018- 08-01; - Cf. Documentos nºs 46 e 60 ;
  • todas as cessões de quotas realizadas pelos Réus A..... e José ....., primeiramente a favor de si próprios, no caso das sociedades Rés G..... e C....., bem como a favor das respectivas mulheres, as ora Rés Maria..... e Ana....., no caso de todas as sociedades Rés, não obtiveram o consentimento válido das sociedades comerciais em causa, nem lhes foi dado a exercer validamente o seu respectivo direito de preferência nessas cessões de quotas ;
  • tendo as mesmas visado, única e exclusivamente, de forma concertada entre todos os Réus, prejudicar o pai dos Réus maridos, o Autor V....., pretendendo afastá-lo da possibilidade de agir sobre o património mobiliário e imobiliário que foi construído e angariado por este ao longo de muitos anos de trabalho e que, pelos motivos acima explicados, se encontrava apenas, fiduciariamente, na titularidade dos filhos ;
  • bem  sabendo os Réus A..... e José..... que as respectivas mulheres, ora Rés Maria..... e Ana....., não têm a mínima capacidade profissional, em termos de formação ou experiência, para administrar ou gerir as mencionadas sociedades comerciais, no exercício da actividade corrente destas, de promoção, construção e gestão imobiliária, com activos no valor de vários milhões de euros.
Juntaram vários documentos, tendo a acção sido proposta em 24/09/2019.
2Citados os Réus, vieram os demais apresentar contestação, fazendo-o, em resumo, nos seguintes termos:
  • procederam à revogação da procuração que havia sido outorgada a favor do Autor V..... por quebra de confiança, tendo o mesmo tido conhecimento dessa revogação a 20 de Julho de 2018 ;
  • pelo que, a partir dessa data, estava impedido de celebrar negócios em representação dos RR, dissipando o seu património. ;
  • tal revogação é válida e o facto de o A ficar sem poderes de representação não constitui qualquer ilícito, nem os negócios efectuados pelos RR visaram qualquer fim contrário à lei ou ofensivo aos bons costumes ;
  • por outro lado, a cessão, por doação, aos cônjuges de quotas que constituíam bens próprios dos cedentes, é permitida, não depende de consentimento da sociedade, e não visou qualquer fim contrário à lei ou ofensivo aos bons costumes ;
  • em termos de excepção, enunciam, ainda, a falta de interesse em agir dos Autores, o que consideram ser gritante relativamente às Autoras Eu..... e T.....;
  • não possuindo os Autores legitimidade processual activa na presente demanda, o que deve determinar a verificação da correspondente excepção dilatória, conducente à absolvição dos Réus da instância ;

Concluem, no sentido de que:
a)-Seja julgada procedente, por provada, a exceção de falta de legitimidade dos Autores e de revogação das procurações e, consequentemente, sejam os Réus absolvidos do pedido;
b)-Sejam julgadas procedentes, por provadas, as excepções deduzidas de falta de interesse em agir dos Autores e de Ilegitimidade processual dos Autores e, consequentemente, sejam absolvidos os Réus da instância;
Caso assim não se entenda,
c)-Seja a ação julgada totalmente improcedente, por não provada, e, por conseguinte, sejam os Réus absolvidos dos pedidos formulados, com todas as consequências legais”.

3Por despacho de 19/02/2020 – cf., fls. 279 -, determinou-se a notificação dos Autores para, querendo, responderem à matéria de excepção invocada na contestação.
O que os Autores vieram fazer a fls. 281 e 282, concluindo no sentido de serem julgadas totalmente improcedentes, por não provadas, as excepções de “falta de legitimidade processual e material dos AA., falta de interesse em agir dos AA. e de revogação das procurações,invocadas pelos RR. na contestação”.
4Designada data para a realização de audiência prévia, e após várias tentativas, veio esta a efectivar-se, conforme acta de fls. 597 e 598 – em 26/04/2021 -, no âmbito da qual veio a ser proferido o seguinte DESPACHO:
“Convido os AA a esclarecerem melhor, aperfeiçoando a sua petição inicial, os fundamentos de facto que são pressuposto da invocação da nulidade dos negócios jurídicos em questão por o seu fim ser contrários à lei e ofensivo aos bons costumes, porquanto não resulta claro daquela peça processual qual a disposição legal em causa e quais os bons costumes que os AA consideram que foram ofendidos pelo fim do negócio”.

Em resposta, os Autores, através do seu Ilustre Mandatário, referenciaram o seguinte:
"Relativamente à invocação dos negócios jurídicos que estão em causa nestes autos serem contrários à lei a mesma baseia-se nos factos alegados nos artº 43º a 47º e, tem como justificação a circunstância de as cessões de quotas, cuja nulidade é peticionada não terem visado colocar as cessionárias na posição de sócias de pleno direito, isto é; com a possibilidade de exercerem todos os direitos sociais inerentes às quotas, mas apenas a de provocar um alteração formal da titularidade sobre as quotas visando impedir que o Autor V..... pudesse alterar essa titularidade através da Procuração que lhe tinha outorgado em 5 de Fevereiro de 2014 a título pessoal pelos 1º e 2º réus homens, seus filhos, à semelhança do que em Junho de 2018 se verificara quanto a outras sociedades do mesmo grupo empresarial, designadamente, Quinta ....., Lda.; S....., Lda; P....., Lda. e T....., Lda. .
Esta situação decorre de, conforme também alegado na petição, a detenção das quotas pelos RR referidos, ser dentro do quadro factual apresentado pelos Autores meramente fiduciário em relação ao 1º Autor, pai daqueles e de se entender que a referida Procuração foi conferida no interesse do Procurador, não podendo assim ser revogada sem o acordo do interessado nos termos do artº 265º nº 3 do Código Civil, pelo que não deve proceder o argumento de que a revogação daquela Procuração operada em 28.06.2018 e comunicada a 20.07.2018, naquilo que foi exposição dos réus, obstacularizar à possível conduta do Autor, independentemente das cessões de quotas em causa terem sido celebradas em 30 de Julho de 2018, com excepção da cessão de quotas da T....., para o 1º e 2º Réus homens, a qual foi celebrada em 11.07.2018 e por isso anterior à alegada comunicação de revogação da Procuração.
Atendendo ao exposto e à circunstância de as cessionárias, serem as esposas dos cedentes, conhecerem toda a situação relativa à constituição, aquisição e detenção das referidas participações sociais ou das referidas quotas por estes, bem como ao litígio, já à data existente entre aqueles e o 1º Autor, entende-se que se trata de uma ilicitude do fim dos negócios jurídicos comum aos intervenientes no mesmo e, por isso, este fundamento de direito, deve ser, com todo o respeito por diferente e superior decisão, pelo menos contemplado na apreciação jurídica da causa.
Relativamente à ofensa aos bons costumes, a mesma decorre da base legal do artº 281º do Código Civil, não só como tópico argumentativo jurídico, mas na senda da doutrina maioritária da qual se respiga o entendimento exposto pelo Professor Doutor António Meneses Cordeiro, no seu Tratado de Direito Civil Português (Vol.II) - Tomo sobre os negócios jurídicos - a noção de bons costumes, em ou assume um conteúdo específico de papel moderador no plano dos negócios jurídicos de que é exemplo, precisamente, as liberalidades com fim contrário, aos costumes, neste caso enquanto prática comercial, societária, uma vez que se trata de negócios sobre participações sociais e porque as cessões de quotas em causa foram todas elas celebradas por doação, com reserva de usufruto a favor dos cedentes e entre cônjuges, casados sob o regime da separação de bens, motivo pelo qual, com todo o respeito por diferente e superior decisão, se entende que também este fundamento jurídico, deve ser contemplado no julgamento da causa e decisão a proferir.".

Após exercício do contraditório por parte dos Réus, através da sua Ilustre Mandatária, foi proferido DESPACHO com o seguinte teor:
"Tendo os AA respondido ao convite formulado, exercido o contraditório quanto a este e já tendo as partes nos seus articulados se pronunciado sobre as excepções invocadas, considero que – ponderados os argumentos apresentados naqueles articulados e os expostos nesta audiência – será mais adequado proferir decisão por escrito sobre os pressupostos processuais. Mais considero que, compulsados os documentos que constam dos autos e ponderados os argumentos expostos pelas partes nesta audiência, o Tribunal poderá estar apto a proferir decisão sobre o mérito da causa”.

5– De acordo com fls. 599 a 609:
I)-foi fixado o valor da causa ;
II)-foram declaradas parte ilegítima na presente causa as Rés “EU....., Lda (5), Q....., Lda. (6), G....., Lda (7), P....., Lda (8), C....., Lda.” e, consequentemente, foram absolvidas da instância ;
III)-foi declarada parte ilegítima a Autora EU....., S.A. ;
IV)-no âmbito do saneamento efectuado, foi apreciada a (não) verificação dos demais pressupostos processuais ;

V)-conheceu-se acerca do mérito da acção, concluindo-se com a prolação do seguinte DISPOSITIVO:
“Destarte, o Tribunal decide:
Absolver da instância, por ilegitimidade, as RR EU....., Lda (5), Q....., Lda. (6), G....., Lda (7), P....., Lda (8), C....., Lda (9).
Julgar a presente acção totalmente improcedente por não provada e consequentemente, absolver os restantes RR do pedido.
Custas pelos AA.
Registe.
Notifique”.

6–Inconformados com o decidido, os Autores interpuseram recurso de apelação, em 21/01/2022, por referência ao saneador sentença prolatado.

Apresentaram, em conformidade, os Recorrentes as seguintes CONCLUSÕES (que ora se transcrevem, na íntegra):
A)–Na decisão sobre a matéria de facto dada como assente, o tribunal “a quo” deu como provado, por resultar de documento não impugnado, no ponto 3.1 alínea p) que: “No dia 20 de Julho de 2018 os Réus A..... e José..... comunicaram novamente ao Autor V....., por carta registada com aviso de recepção e por mensagem de correio electrónico, a revogação da Procuração.”; contudo a palavra novamente deve ser retirada porque contrária ao teor do documento nº 5 junto com a contestação relativo à mensagem de correio electrónico e à carta registada com aviso de recepção enviadas pelos RR. A..... e José..... ao A. V....., em 20 de Julho de 2018 (“vimos por este meio enviar em anexo a revogação de procurações realizada em 28 de Junho de 2018”), não resultando demonstrado nos autos que tal comunicação de revogação da Procuração tivesse sido feita anteriormente por aqueles RR ao referido A.

B)–O tribunal a quo deveria ter dado também como assente a matéria de facto vertida nos artigos 6º, 7º, 11º e 12º da petição inicial, a qual deve ser aditada à decisão de facto, porque provados nos autos por documentos autênticos com força probatória plena (artigos 363º, nº 2 e 371º, nº 2, ambos do Código Civil), como sejam os documentos nº 17 correspondente a certidão do registo comercial, nº 38 correspondente a notificação judicial e nºs 39 e 40 correspondentes a escrituras públicas notariais de cessão de quotas; ou a documentos particulares não impugnados quanto à sua genuinidade, autenticidade e veracidade (artigo 376º do Código Civil e artigos 444º e 446º do Código de Processo Civil), como sejam os documentos nºs 30, 31 e 32 correspondentes a actas societárias.

C)–A mencionada matéria de facto vertida nos artigos 6º, 7º, 11º e 12º da petição inicial reveste-se de interesse quanto à decisão da causa no que respeita, em particular, à decisão sobre a legitimidade da A. EU....., S.A. para a presente acção, a qual teria sido diferente caso aqueles factos constassem da decisão de facto, como de seguida se demonstrará; bem como para a decisão de fundo sobre o mérito causa em termos de Direito, e uma vez que na decisão de facto apenas não se encontra espelhada a constituição ou aquisição das duas primeiras sociedades RR. EU....., Lda. e Q....., Lda., ao contrário das restantes sociedades RR.

D)–Nos termos do artigo 607º, nº 4 do Código de Processo Civil, na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados, devendo tomar em consideração, entre outros, os factos que estão provados por documentos, o que não se verificou relativamente aos referidos artigos 6º, 7º, 11º e 12º da petição inicial, sendo que, por seu turno, de acordo com o disposto no artigo 662º, nº 1 do Código de Processo Civil, o Tribunal da Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documento superveniente, impuserem decisão diversa.

E)–Desta forma, face ao supra exposto e atendendo ao disposto no artigo 640º do Código de Processo Civil, deve o Tribunal da Relação ordenar que: (i) seja eliminada da alínea p) do ponto 3.1 da decisão de facto a palavra “novamente” porque não demonstrada através da prova documental produzida nos autos qualquer comunicação dos RR. A..... e José..... ao A. V....., anterior a 20 de Julho de 2018, a revogar a Procuração; (ii) seja aditada à decisão de facto o vertido nos artigos 6º, 7º, 11º e 12º da petição inicial porque com interesse quanto à decisão da causa e demonstrados nos autos através de documentos autênticos com força probatória plena (artigos 363º, nº 2 e 371º, nº 2, ambos do Código Civil), ou de documentos particulares não impugnados quanto à sua genuinidade, autenticidade e veracidade (artigo 376º do Código Civil e artigos 444º e 446º do Código de Processo Civil), os quais deviam ter sido tomados em consideração pelo tribunal “a quo” na fundamentação da sentença (artigo 607º, nº 4 do Código de Processo Civil).

F)–Sendo verdadeiro que a declaração de invalidade dos negócios jurídicos de cessão de quotas celebrados entre os RR. A..... e mulher Maria....., e José..... e mulher Ana....., em relação às sociedades RR. EU....., Lda. e Q....., Lda. não faria regressar as quotas em causa à esfera patrimonial da A. EU....., S.A., mas sim à dos RR. A..... e José.....; todavia, a A. EU....., S.A., em caso de procedência da presente acção, poderia sempre reclamar dos mencionados RR. A..... e José....., em ulterior acção judicial a intentar, o retorno das referidas quotas nas sociedades RR. EU....., Lda. e Q....., Lda. à sua esfera patrimonial, atendendo à factualidade exposta nos artigos 6º, 7º, 11º e 12º da petição inicial, não considerada na sentença recorrida e cujo aditamento à decisão de facto foi acima requerida, situação que não poderá ocorrer caso aquelas quotas estejam inscritas na titularidade das mulheres do RR. A..... e José..... .

G)–De acordo com o disposto no artigo 30º, nº 1 do Código de Processo Civil:O autor é parte legítima quando tem interesse directo em demandar, (…).”, sendo que nos termos do nº 3 daquele artigo; Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.”, disposição legal que o tribunal a quo, ao julgar a A. EU....., S.A. parte ilegítima, violou manifestamente, devendo, por isso, a sentença recorrida ser revogada.

H)–Não estando em causa nestes autos a invalidade de qualquer deliberação tomada pelas sociedades RR. EU....., Lda., Q....., Lda., G....., Lda., P....., Lda., C....., Lda., a violação de normas legais imperativas do Código das Sociedades Comerciais, como base ou fundamento da ilicitude dos negócios jurídicos de cessão de quotas em questão, pode e deve ser sempre considerada nesta sede em que se aprecia a validade jurídica daqueles negócios, atendendo ao disposto no artigo 294º do Código Civil.

I)–A legitimidade passiva das RR. EU....., Lda., Q....., Lda., G....., Lda., P....., Lda., C....., Lda. funda-se no previsto no artigo 33º, nºs 2 e 3 do Código de Processo Civil, que prevê a figura do litisconsórcio necessário natural, sendo necessária a intervenção de todos os interessados quando, pela própria natureza da relação jurídica, ela seja necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal.

J)–A decisão produz o seu efeito útil normal sempre que, não vinculando embora os restantes interessados, possa regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado, o que tem plena acuidade e aplicação nos presentes autos, uma vez que estando em causa a validade dos negócios jurídicos de cessão de quotas entre os RR. A..... e José ..... e suas respectivas mulheres, em relação às sociedades RR. EU....., Lda., Q....., Lda., G....., Lda., P....., Lda., C....., Lda., em causa estará também a titularidade sobre essas quotas e a definição de quem assume a posição de sócio nas e perante as mencionadas sociedades.

K)–Face ao exposto, a sentença recorrida, ao julgar as RR. EU....., Lda., Q....., Lda., G....., Lda., P....., Lda., C....., Lda. partes ilegítimas, absolvendo-as da instância, violou manifestamente o previsto no artigo 33º, nºs 2 e 3 do Código de Processo Civil, devendo, por isso, ser revogada.

L)–Estando provado nos autos que os RR. A..... e José..... são casados sob o regime da separação de bens, é claro que as cessões de quotas em causa, feitas por doação, a favor das suas respectivas mulheres, importaram uma alteração da qualificação dos bens, nomeadamente das quotas, enquanto participações sociais nas sociedades RR. Eu....., Q....., G....., P..... e C....., que antes integravam os patrimónios próprios daqueles RR., passaram a integrar os patrimónios próprios das respectivas mulheres.

M)–Não obstante as cessões de quotas feitas por doação entre cônjuges possam ser livremente revogadas pelo doador (artigo 1765º, nº 1 do Código Civil) e possam caducar com a morte do donatário antes do doador (artigo 1766º, nº 1, alínea a) do Código Civil) ou ocorrendo divórcio ou separação judicial de pessoas e bens (artigo 1766º, nº 1, alínea c) do Código Civil), a verdade é que aquelas não caducam se o doador falecer antes do donatário e tendo os bens doados passado a integrar o património próprio do donatário, os mesmos não farão parte do acervo patrimonial hereditário para os sucessores do doador.

N)–Acresce, ainda, que o donatário é livre de transmitir em vida os bens doados (vg. as quotas das sociedades RR. Eu....., Q....., G....., P..... e C.....) a quem muito bem entender, sem necessidade do consentimento do cônjuge doador, porque casados sob o regime da separação de bens, podendo dessa forma frustrar, a todo o momento, as salvaguardas acima referidas previstas nos mencionados artigos 1765º, nº 1 (livre revogação da doação) e 1766º, nº 1, alíneas a) e c) do Código Civil (caducidade da doação).
O)–Pelo que todas as cessões de quotas realizadas pelos RR. A..... e José..... a favor das respectivas mulheres, em causa nestes autos, violaram o disposto no artigo 1714º, nºs 1 e 2, do Código Civil, norma de natureza imperativa, que consagra o princípio da imutabilidade das convenções antenupciais e do regime de bens resultantes da lei.

P)–O princípio da imutabilidade previsto no artigo 1714º, nºs 1 e 2 do Código Civil assume um sentido amplo, podendo, assim, considerar-se proibidos todos os negócios que impliquem uma modificação na composição das massas patrimoniais, pertencentes ao casal. Desta feita, inclui “não só as cláusulas constantes da convenção ou as normas do regime legalmente fixado, relativas à administração ou disposição de bens, mas também, como se conclui da leitura do nº 2 do artigo 1714º, a situação concreta dos bens dos cônjuges que interessa às relações entre estes”.

Q)–Assim, os cônjuges não podem celebrar entre si contratos que impliquem transferências de bens de uma das massas patrimoniais para a outra, dado que “o regime matrimonial inclui soluções relativamente à composição dos patrimónios de cada cônjuge que têm incidência sobretudo quanto ao destino dos bens no momento da dissolução do regime. As alterações que os cônjuges introduzam na repartição dos bens pelas várias massas patrimoniais envolvem obviamente a modificação do regime inicialmente aplicável”.

R)–Pese embora alguns autores entendam que a proibição do artigo 1714º, nº 2 do Código Civil foi derrogada pelo artigo 228º do Código das Sociedades Comerciais, que admite a cessão de quotas entre cônjuges; no entanto, a melhor doutrina será a que defende que a norma contida no nº 2 do mencionado artigo 228º do CSC deve ser interpretada como reportada apenas às situações em que, de acordo com o previsto nas normas do Código Civil, a cessão de quotas entre cônjuges deve ter-se como válida, como acontecerá se os cônjuges estiverem separados judicialmente de pessoas e bens; fora destes casos, a cessão de quotas entre os cônjuges terá de considerar-se nula porque viola o princípio da imutabilidade.

S)–Aliás, neste sentido, veja-se o decidido no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 04/02/2016, disponível em www.dgsi.pt:
II–Assim, se a cessão de quotas se concretizar através de um contrato de compra e venda entre cônjuges, a mesma apenas será válida se os cônjuges estiverem separados de pessoas e bens. Se o negócio que está na base da cessão de quotas for uma doação entre cônjuges casados num dos regimes de comunhão, tal cessão será válida se a quota cedida for bem próprio do cônjuge doador e a doação for revogável.
III– Fora destas situações em que existe disposição expressa da lei a considerar, excepcionalmente, a validade da transmissão inter vivos, e entre cônjuges, da quota da sociedade comercial, a cessão de quotas entre cônjuges terá de considerar-se nula porque em violação do princípio de imutabilidade dos regimes de bens e das convenções antenupciais.”

T)–Desta forma, os negócios jurídicos celebrados contra disposição legal de carácter imperativo, como é o caso do artigo 1714º, nºs 1 e 2 do Código Civil, são nulos, segundo o estatuído no artigo 294º do Código Civil, consequência que é aplicável às cessões de quotas realizadas pelos RR. A..... e José..... a favor das respectivas mulheres, de quem não estavam separados judicialmente de pessoas e bens, em causa nestes autos.

U)–Ao ter considerado que o disposto no artigo 228º, nº 2 do Código das Sociedades Comerciais dispensa o consentimento da sociedade para a cessão de quotas entre cônjuges, o tribunal “a quo” cometeu um manifesto erro de julgamento, dado que todas as cessões de quotas realizadas pelos RR. A..... e José....., primeiramente a favor de si próprios, no caso das sociedades RR. G..... e C....., Lda., bem como a favor das respectivas mulheres, em causa nestes autos, são manifestamente contrárias aos regimes previstos nos Pactos Sociais das respectivas sociedades RR.

V)–O tribunal “a quo” não teve, primeiramente, em consideração os factos dados como provados nas alíneas i), j), l), m) e n) da decisão de facto, na medida em que, de acordo com as regras constantes dos Pactos Sociais das Sociedades RR. Eu....., Q....., G....., P..... e C..... só a cessão e divisão de quotas, no todo ou em parte, entre os sócios, era livremente permitida, sendo que a cessão a terceiros dependia sempre do prévio consentimento ou autorização da sociedade, gozando esta do direito de preferência na cessão de qualquer quota, em conjugação com o disposto no artigo 229º, nº 3 do Código das Sociedades Comerciais, que prevê que o contrato de sociedade pode exigir o consentimento desta para todas ou algumas das cessões referidas no artigo 228º, nº 2, parte final do mesmo CSC, incluindo as cessões entre cônjuges.

W)–O tribunal “a quo” também não teve em consideração que o artigo 246º, nº 1, alínea b) do Código das Sociedades Comerciais estabelece que depende de deliberação dos sócios o consentimento para a divisão e cessão de quotas e que o nº2, alínea d) do mesmo artigo estatui que compete também aos sócios deliberar sobre a alienação de participações noutras sociedades, não sendo, por isso, tais matérias da competência da gerência, cujas declarações são, assim, inválidas, não vinculando as sociedades RR. representadas pelos RR. A..... e José..... face ao disposto no nº 1 do artigo 260º do Código das Sociedades Comerciais (“Os actos praticados pelos gerentes, em nome da sociedade e dentro dos poderes que a lei lhes confere, (…)”).

X)–Pelo que não foi prestado um válido consentimento pelas sociedades comerciais em causa, uma vez que os RR. A..... e José ..... não podiam deliberar quer a prestação do mencionado consentimento ou autorização das referidas sociedades RR. para as aludidas cessões de quotas, quer o exercício do respectivo direito de preferência por parte dessas sociedades, por estarem em conflito de interesses com a celebração dos negócios jurídicos em causa, nos quais figuram, simultaneamente, como partes adquirentes (cessionários) no caso das sociedades RR. G..... e C..... em relação às sócias cedentes SANTA..... S.A. e T....., Lda., e como partes alienantes (cedentes) em relação às sociedades RR. Eu..... Q....., G....., P..... e C....., de acordo com o disposto no artigo 251º, nº 1, todos do Código das Sociedades Comerciais.

Y)–Acresce ainda que, em relação à sociedade A. T....., Lda., a cessão das quotas que esta detinha na sociedade R. C....., a favor dos RR. A..... e José....., por corresponder à alienação, por parte de uma sociedade por quotas, de participações sociais noutra sociedade, dependia de deliberação dos sócios, nos termos do artigo 246º, nº 2, alínea d), do Código das Sociedades Comerciais, para a qual os RR. A..... e José..... estavam igualmente impedidos de votar, por estarem em conflito de interesses com a celebração dos negócios jurídicos em causa, nos quais figuram, simultaneamente, como partes adquirentes (cessionários), de acordo com o disposto no artigo 251º, nº 1, do Código das Sociedades Comerciais.

Z)–Conclui-se, portanto, que esses negócios jurídicos (cessões de quotas) ao violarem o disposto nos artigos 229º, nº 3; 246º, nº 1, alínea b) – parte final e nº 2, alínea d); e 251º, nº 1, todos do Código das Sociedades Comerciais são nulos, segundo o estatuído no artigo 294º do Código Civil, e de nenhum efeito quanto aos cedentes das respectivas quotas, designadamente os RR. A..... e José..... em relação a todas as sociedades RR. EU....., Q....., G....., P..... e C....., assim como quanto à sociedade R. SANTA......, S.A. e à sociedade A. T....., Lda. em relação, respectivamente, à cedência das suas quotas nas sociedades RR. G..... e C....., Lda. a favor dos RR. A..... e José..... .

AA)–Ao entender que as cessões de quotas realizadas pelos RR. A..... e José..... a favor das respectivas mulheres, em causa nestes autos, não tiveram um fim ilícito nem um fim ofensivo dos bons costumes, na medida em que a Procuração outorgada por aqueles a favor do A. V....., em 05 de Fevereiro de 2014, não foi conferida no interesse do procurador porque não observadas as exigências de forma prescritas pelo artigo 116º, nº 2 do Código do Notariado e, por isso, era livremente revogável, o tribunal “a quo” cometeu também um manifesto erro de julgamento, porquanto decorre linearmente do teor dos instrumentos de representação voluntária – Procurações – outorgadas pelos RR. A..... e José..... a favor do A. V....., em 05 de Fevereiro de 2014, no Cartório Notarial em L..... de MCSFG, a que correspondem os documentos nºs 54 e 55 juntos com a petição inicial, tal como se encontra assente na alínea f) da decisão de facto, que aquelas Procurações foram lavradas por instrumento público notarial, observando assim a primeira parte do nº 2 do artigo 116º do Código do Notariado quanto à forma legal prescrita para as procurações conferidas também no interesse de procurador e, por conseguinte, não violando o disposto nos artigos 220º e 364º do Código Civil, contrariamente ao decidido na sentença recorrida.

BB)–Sendo que a segunda parte do nº 2 do artigo 116º do Código do Notariado, quando dispõe que o original da procuração conferida também no interesse de procurador deve ser arquivado no cartório notarial, respeita a uma mera formalidade legal e não à forma legal propriamente dita, enquanto modo mais solene de exteriorização da vontade (através de documento escrito autêntico, artigo 363º, nº 2 do Código Civil), pelo que a inobservância dessa mera formalidade legal, tal como sucedeu no caso sub judice”, não afecta a validade e eficácia das ditas Procurações conferidas também no interesse de procurador em face dos citados artigos 220º e 364º do Código Civil, não sendo, portanto, aquelas Procurações livremente revogáveis, sem o acordo do interessado, segundo o previsto no artigo 265º, nº 3 do Código Civil.

CC)–Para uma melhor interpretação e aplicação, no caso concreto, quanto à apontada ilicitude do fim dos negócios jurídicos de cessão de quotas em causa nestes autos, por contrariedade à lei e aos bons costumes, é fundamental ter presente, tal como se encontra provado da alínea g) da decisão de facto, que todas as cessões de quotas realizadas pelos RR. A..... e José..... a favor das respectivas mulheres foram feitas por doação, com reserva de usufruto a favor dos cedentes doadores.

DD)–Assim sendo, os direitos dos RR. A..... e José....., enquanto usufrutuários daquelas participações sociais (quotas) são, de acordo com o previsto no artigo 23º, nº 2 do Código das Sociedades Comerciais, os indicados nos artigos 1466º e 1467 do Código Civil, atribuindo este último àqueles o direito aos lucros; o direito a votar nas assembleias gerais, salvo quando se trate de deliberações que importem alteração dos estatutos ou dissolução da sociedade, caso em que o voto pertence conjuntamente ao usufrutuário e ao titular da raiz; e o direito a usufruir dos valores que, no ato de liquidação da sociedade ou da quota, caibam à parte social sobre que incide o usufruto.

EE)–Desta forma, não obstante a celebração das mencionadas cessões de quotas dos RR. A..... e José..... a favor das respectivas mulheres ter passado a titularidade sobre as mesmas para aquelas, passando a pertencer e a integrar o património próprio das mesmas, aqueles continuaram a manter nas suas esferas jurídicas os principais direitos sociais, quer de natureza pessoal (direito de voto), quer patrimonial (direito aos lucros e direito à quota de liquidação).

FF)–Face ao exposto, parecer curial concluir que os RR. A..... e José..... e respectivas mulheres tiveram como único fim comum, com a celebração das mencionadas cessões de quotas, afastar a possibilidade do A. V....., através dos instrumentos de representação voluntária (procurações) que lhe tinham sido outorgados pelos RR. A..... e José....., em 05 de Fevereiro de 2014, agir sobre o património mobiliário e imobiliário afecto à esfera jurídica das sociedades RR. Eu....., Q....., G....., P..... e C....., o qual foi construído e angariado pelo A. V..... ao longo de muitos anos de trabalho e que se encontrava apenas fiduciariamente na titularidade dos filhos, os RR. A..... e José..... .

GG)–Perante o quadro factual e jurídico acima traçado, podemos concluir, em suma, que a circunstância das cessões de quotas em causa nos autos não terem visado colocar as cessionárias na posição de sócias de pleno direito, isto é, com a possibilidade de exercerem todos os direitos sociais inerentes à detenção das quotas, mas apenas a de provocar uma alteração formal na titularidade sobre essas quotas, visando impedir que o A. V..... pudesse alterar essa titularidade, através da Procuração que lhe tinha sido outorgada, em 05 de Fevereiro de 2014, a título pessoal pelos RR. A..... e José....., conferida no interesse do procurador, é de molde a afirmar que aquelas cessões de quotas revestem-se de uma ilicitude do fim, porque contrário à lei, o qual por ser comum a ambas as partes (cedentes e cessionárias) conduz à nulidade destes negócios jurídicos, atendendo ao previsto no artigo 281º do Código Civil.

HH)–Relativamente à invocada ofensa aos bons costumes, a mesma decorre da base legal do artigo 281º do Código Civil, na senda da doutrina maioritária, não só como tópico argumentativo jurídico, destinado a reforçar decisões apoiadas noutros lugares normativos, mas porquanto a noção dos bons costumes assume um conteúdo específico de papel moderador no plano dos negócios jurídicos de que são exemplo, precisamente, as liberalidades com fim contrário aos costumes, neste caso enquanto prática comercial societária, uma vez que se trata de negócios sobre participações sociais (compra e venda comercial prevista no artigo 463º, nº 5 do Código Comercial como acto de comércio objectivo absoluto nos termos do artigo 2º - 1ª parte do mesmo Código) e porque as cessões de quota em causa foram todas elas celebradas por doação, com reserva de usufruto a favor dos cedentes, e entre cônjuges casados sob o regime da separação de bens.

II)–Contrariamente ao referido na sentença recorrida, os AA. ora Recorrentes, convidados pelo tribunal a quo a esclarecerem melhor os fundamentos de facto que são pressuposto da invocação da nulidade dos negócios jurídicos em questão, por o seu fim ser contrário à lei e ofensivo aos bons costumes, tiveram o ensejo de proceder a esse esclarecimento, concretização e aperfeiçoamento em sede da audiência prévia realizada, em 26 de Abril de 2021, conforme consta expressamente da Ata da mesma, devendo, por isso, a sentença recorrida ser totalmente revogada”.

Conclui, requerendo que o recurso seja julgado totalmente procedente, por provado, com consequente revogação da sentença recorrida.

7As Apeladas/Recorridas Rés apresentaram contra-alegações, referenciando, em súmula, o seguinte:
1.-Por despacho saneador sentença proferido a 13 de dezembro de 2021 com a referência citius 406862363, decidiu, e bem, o Digníssimo Tribunal a quo declarar parte ilegítima a A. EU....., S.A., absolvendo da instância por ilegitimidade passiva as RR. EU....., Lda., Q....., Lda., G....., Lda., P....., Lda. e C....., Lda. e, conhecendo do mérito da causa, julgar a ação totalmente improcedente por não provada e, em conformidade, absolver os Réus dos pedidos contra si formulados.
2.-Andou bem o Digníssimo Tribunal a quo ao decidir nos termos em que o fez, impondo-se a manutenção da sentença recorrida e a consequente improcedência da presente apelação, porquanto a sentença recorrida espelha uma correta aplicação do direito e subsunção a este dos factos.
3.-Os factos que os Recorrentes procuram sejam incluídos na matéria de facto dada por assente, foram expressamente impugnados pelos Réus na contestação, não podendo, assim, ser julgados como provados.
4.-Os factos constantes dos artigos 6.º, 7.º, 11.º e 12.º da petição inicial são in totum irrelevantes para o conhecimento e decisão da causa, não sendo essenciais e tampouco instrumentais face à causa de pedir apresentada pelos Autores, ora Recorrentes.
5.-Dúvidas não podem existir que tal matéria, por ter sido impugnada e por irrelevante para a decisão da causa, não poderá constar do elenco da matéria assente. Termos em que deve ser indeferida a modificação da decisão de facto requerida pelos Recorrentes.
6.- Da factualidade julgada como provada, e não impugnada pelos Recorrentes, importa destacar a aceitação pelos Recorrentes – que com ela se conformam – que, a 28 de junho de 2018 os Recorridos A..... e José..... procederam à revogação da procuração pessoal que haviam outorgado no dia 05 de fevereiro (cfr. alínea o) dos factos assentes).
7.-Na sequência do decurso de acontecimentos que conduziram à necessidade de os Recorridos A..... e José..... procederem à revogação da procuração, i.e. a total dissipação do património dos Recorridos pelo Recorrente V..... e consequente quebra total de confiança, os Recorridos, comunicaram de imediato às instituições bancárias relevantes e, bem assim, ao Recorrente V....., que a procuração tinha sido revogada.
8.-No final do dia de 28 de junho de 2018, após a revogação da procuração perante notário, os Recorridos José..... e A..... deixaram o referido documento em cima da secretária do Recorrente V.....–facto esse que o Recorrente V....., conscientemente e deliberadamente, procurou e procura convenientemente olvidar.
9.-O Recorrente V..... continuou a transmitir para terceiros as participações sociais e cargos de gerência e administração de que eram os Recorridos titulares, com base nas procurações, entretanto revogadas, e cuja revogação era do seu conhecimento. E, foi perante esta conjetura de factos que os Recorridos, se viram obrigados a comunicar novamente a V..... a revogação das procurações, desta feita a 20 de julho de 2018, através de carta registada com aviso de receção.
10.–Termos em que improcede in totum a invocada modificação de matéria de facto, devendo ser indeferida, como se requer, a retirada da palavra “novamente” do facto assente constante da alínea p) do douto despacho saneador sentença.
11.–No saneador sentença ora recorrido o Tribunal a quo considera, e bem, ser a Recorrente EU....., S.A. parte ilegítima.
12.–A Recorrente EU....., S.A. não foi interveniente em nenhum dos negócios jurídicos que os Recorrentes procuram (injustificadamente) declarar inválidos.
13.–O facto de a Recorrente EU....., S.A. ter sido titular das quotas das Sociedades RR. EU..... Lda. e Q....., Lda. até ao ano de 2004, não justifica o interesse da Recorrente EU....., S.A. na procedência da ação, nem torna a sua intervenção legítima.
14.–Desde logo, porque a eventual procedência da presente ação ou de ação ulterior por si instaurada – cenário que não se concebe, mas se coloca por mero dever de patrocínio, - nunca faria regressar as quotas à sua esfera patrimonial.
15.–Pelo presente recurso, limitaram-se os Recorrentes a fundar a sua pretensão numa (im)possibilidade de intentar ulterior ação judicial com vista ao “retorno das referidas quotas nas sociedades RR. Sociedades EU....., Lda. e Q....., Lda.” – pretensão que não encontra colhimento legal.
16.–A legitimidade ativa para a causa tem subjacente o interesse em demandar que se exprime pela vantagem jurídica que resultará para o autor da procedência da ação, tendo-se em consideração o pedido e a causa de pedir nos termos em que são por ele configurados.
17.–Do pedido e causa de pedir, como configurados pelos Autores, ora Recorridos, não se retira qual a vantagem jurídica da procedência da ação para a Recorrente EU....., S.A., que deixou de ser sócia de 50% do capital social das RR. em 2004.
18.–A Recorrente EU....., S.A., não é, nem podia ser, sujeito da relação controvertida in casu, porquanto não teve a sociedade qualquer tipo de intervenção no negócio jurídico objeto de discussão, nem era, à data da celebração do negócio jurídico, titular das quotas das Sociedades EU.....,Lda. e Q....., Lda..
19.–A este propósito, veja-se o sumário do Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, proferido a 17 de dezembro de 2019, Juiz Relator José Alberto Moreira Dias, no âmbito do Processo n.º 5834/17.4T8BRG.G1, disponível para consulta em www.dgsi.pt.
20.–Para que o autor disponha de legitimidade ativa não lhe basta um interesse indireto, reflexo ou derivado na procedência da ação. O interesse e a expectativa invocados pelos Autores na ação, não conferem à Recorrente EU....., S.A., a titularidade do interesse direto, efetivo, e com consistência prática, para demandar os Réus que satisfaça a noção de parte legitima, no sentido processual exigido pelo artigo 30.º do Código de Processo Civil.
21.–O suporte em que se sustenta a ação, tal como os Autores a apresentam, é insuficiente para legitimar a Recorrente EU....., S.A. como parte ativa na mesma ação.
22.–Termos em que, considerou – e bem! – o Digníssimo Tribunal a quo a Autora EU....., S.A. parte ilegítima, decisão que deverá ser confirmada por este Venerando Tribunal.
23.–Entendeu (e bem!) igualmente o Digníssimo Tribunal a quo que, considerando os efeitos da declaração de nulidade, e considerando que a relação material controvertida é a que corresponde à relação que está subjacente ao negócio que se quer anular, a ação correspondente tem de ser proposta contra os intervenientes no negócio que se quer ver anulado.
24.–Não foram as Rés EU....., Lda., Q......., Lda., G....., Lda., P....., Lda. e C....., Lda. parte em qualquer dos negócios, as quotas destas sociedades é que foram objeto de cessão, cessão esta que os Recorrentes querem ver anulada.
25.–As sociedades não se confundem com os seus sócios, resultando claríssimo dos autos e, bem assim, da ação como formulada pelos Autores que, o que está em causa é a nulidade dos negócios e não qualquer invalidade da deliberação da sociedade – nem esta seria a sede para a mesma ser impugnada.
26.–O objeto dos negócios, aqui em causa, foram as quotas destas sociedades, não sendo as sociedades parte neles e o facto de estas terem deliberado sobre os mesmos não modifica a sua posição.
27.–O litisconsórcio necessário natural é o imposto pela realização do efeito útil normal da decisão do tribunal (artigo 33.º, nº 2 do Código de Processo Civil). De harmonia com a definição legal, o efeito útil normal da decisão é atingido quando sobrevém uma regulação definitiva da situação concreta das partes – e só delas – quanto ao objeto do processo e, por isso, o efeito útil normal pode ser conseguido ainda que não estejam presentes todos os interessados e em que, portanto, a ausência de um deles nem sempre constitui um obstáculo a que esse efeito possa ser atingido, conclusão que é imposta pelo facto de a lei admitir expressamente a não vinculação de todos os interessados (artigo 33.º, nº 2, 2ª parte do Código de Processo Civil).
28.–O litisconsórcio natural verifica-se, seguramente, quando sem a participação de todos os interessados, não é possível uma composição definitiva dos seus interesses. Veja-se, a este propósito, o Acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, proferido a 08 de novembro de 2011, no âmbito do Processo n.º 39/10.8TBMDA.C1, Juiz Relator Henrique Antunes, disponível para consulta em www.dgsi.pt.
29.–Face à natureza da relação material controvertida, a intervenção das sociedades não releva nem se mostra necessária para que a decisão produza o seu efeito útil normal. Razão pela qual não se constata na situação sub judice um litisconsórcio natural, ao contrário do que alegam os Recorrentes.
30.–Pelo que, e em qualquer caso, não poderá este Venerando Tribunal deixar de confirmar o despacho saneador sentença proferido pelo Digníssimo Tribunal a quo e, consequentemente, confirmar o julgamento realizado quanto à ilegitimidade passiva das Rés EU....., Lda., Q....., Lda., G....., Lda., P....., Lda. e C....., Lda., e consequente absolvição da instância das aqui Recorridas.
31.–Ao encontro daquele que foi o entendimento do Douto Tribunal a quo, a correta aplicação do direito ao caso sub judice, dita, indubitavelmente que a pretensão dos Autores, ora Recorrentes é manifestamente improcedente, porquanto falecem todos os fundamentos de nulidade invocados pelos Autores.
32.–Resulta do artigo 1714.º do Código Civil que:1. Fora dos casos previstos na lei, não é permitido alterar, depois da celebração do casamento, nem as convenções antenupciais nem os regimes de bens legalmente fixados. 2. Consideram-se abrangidos pelas proibições do número anterior os contratos de compra e venda e sociedade entre os cônjuges, excepto quando estes se encontrem separados judicialmente de pessoas e bens. 3. É lícita, contudo, a participação dos dois cônjuges na mesma sociedade de capitais, bem como a dação em cumprimento feita pelo cônjuge devedor ao seu consorte.
33.–O princípio da imutabilidade das convenções antenupciais e do regime de bens resultantes da lei resulta, em primeiro lugar, do n.º 1 do artigo 1714.º do Código Civil, que proíbe a alteração depois da celebração do casamento.
34.–Na fundamentação do despacho saneador sentença recorrido, entendeu – e bem – o Digníssimo Tribunal a quo que os Recorridos A..... e José..... e suas mulheres, também Recorridas, são casados sob o regime de separação de bens e que as quotas cedidas, que eram bens próprios dos Recorridos maridos passaram a ser bens próprios das Recorridas mulheres. Sendo que, em momento algum passaram a integrar qualquer património comum dos casais.
35.–Não foi celebrado entre os cônjuges qualquer contrato de compra e venda ou de sociedade, mas antes uma doação e, quanto às doações entre casados, nos termos do artigo 1761.º e seguintes do Código Civil, estas são permitidas dentro de determinados condicionalismos, ou seja, são-no quanto a bens próprios e são-no desde que o regime de separação de bens não vigore de forma imperativa (no caso, esse regime não é imperativo).
36.–Concluindo, corretamente, o Digníssimo Tribunal a quo que, através da cessão de quotas por doação não se introduziu no regime de bens em vigor qualquer alteração. Termos em que, impõe-se concluir que não foi violada disposição legal de natureza imperativa.
37.–Nos casos em que a cessão de quotas é admissível – como é o caso dos presentes autos, porque se trata de bens próprios do doador e porque foi feita por doação, – o artigo 228.º, nº2 do Código das Sociedades Comerciais dispensa a mesma de consentimento prévio ou autorização das respetivas sociedades (“2- A cessão de quotas não produz efeitos para com a sociedade enquanto não for consentida por esta, a não ser que se trate de cessão entre cônjuges, entre ascendentes e descendentes ou entre sócios”).
38.–Veja-se a este propósito o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido a 04 de fevereiro de 2016, no âmbito do Processo n.º 2977/14.0TBMAI.P1, Juiz Relator Freitas Vieira, disponível para consulta em www.dgsi.pt.
39.–Constatando-se que estamos perante cessões de quotas que foram efetuadas por doação – e não por contrato de compra e venda, a qual se encontre vedada nos termos do artigo 1714. n.º 2 do Código Civil – impõe-se concluir que estamos perante uma forma negocial admissível à luz do direito português para operar as cessões de quotas entre cônjuges.
40.–Da interpretação conjugada dos artigos 1714.º e 1764.º do Código Civil com o artigo 228.º n.º 2 do Código das Sociedades Comerciais impõe-se concluir, sem margem para dúvidas, que são válidos e eficazes os contratos de cessões de quotas sub judice por terem sido celebrados em conformidade com todos os trâmites legais.
41.–O preceituado no artigo 228.º n.º 2 do Código das Sociedades Comerciais dispensa a necessidade de a sociedade prestar o seu consentimento quando se trata de cessão de quotas operada entre os cônjuges, conforme ocorreu nas cessões aqui em causa. E, do n.º 2 primeira parte, a contrario, resulta claro que as cessões de quotas sub judice produziram efeitos em toda a sua plenitude.
42.–Nos contratos de cessão de quotas sub judice é referido que as Sociedades em causa dão consentimento às mesmas e que não pretendem exercer a preferência – vide cláusula 3.ª dos contratos de cessões de quotas celebrados entre os Réus A..... e José..... para as esposas, e aqui Recorridas, Maria..... e Ana....., e cláusula 4.ª dos contratos de cessões de quotas celebrados entre os Recorridos A….. e José..... para as esposas, e aqui Recorridas, Maria..... e Ana..... com intervenção da Sociedade Autora T..... e da Sociedade Recorrida Santa....., conforme Documentos n.º 56 a 60 juntos com a Petição Inicial.
43.–Apesar de o mencionado contrato de cessão de quotas ter sido celebrado pelos Recorridos A..... e José....., que intervieram como parte alienantes (cedentes), quer como parte adquirentes (cessionários), não se verifica uma situação de negócio consigo mesmo, porquanto está excluída a possibilidade de um conflito de interesses no negócio em causa, segundo o previsto na parte final do nº 1 do art.º 261º do Código Civil, atendendo que os mesmos eram gerentes e administradores de todas as sociedades em causa.
44.–Conforme o Douto Tribunal a quo sublinhou, os Recorridos fizeram as declarações em causa na qualidade de gerentes, porque o eram e lhes cabia fazê-lo. Sendo, ademais, dispensável o consentimento da sociedade.
45.–O Recorrente V..... não alega que existiram essas deliberações, nem as identifica, não alega ter impugnado qualquer deliberação das sociedades em questão, pelo que, entendeu (e bem) o Digníssimo Tribunal a quo não caber nesta sede apreciar da validade de eventuais deliberações.
46.–Os contratos de cessões de quotas com reserva de usufruto tiveram como finalidade salvaguardar o património pertencente aos Recorridos A..... e José....., na sequência da procuração outorgada e evitar que o Procurador V....., aqui Recorrente, munido dessa procuração, celebrasse negócios em representação dos Recorridos contra os seus interesses e das empresas de que são sócios.
47.–Os Recorridos A..... e José..... eram os únicos titulares das quotas que compunham o capital social das sociedades Recorridas e exerciam os seus direitos sobre as mesmas com total liberdade. E, enquanto legítimos titulares das participações sociais em causa, podiam ceder, vender, doar, hipotecar, onerar por qualquer modo e delas dispor como bem entenderem.
48.–A doação entre cônjuges é um meio usual e não viola qualquer direito, princípio ou costume, bem pelo contrário.
49.–A doação é um negócio privilegiado na família S....., já que o aqui Recorrente V..... doou ações aos seus filhos, nomeadamente da sociedade Recorrente Eu....., S.A., sendo normal que estes cedessem às suas esposas, as quais estão ligadas às sociedades como sócias ou como administradoras, desde o ano de 2000 – Conforme contratos de doação juntos com a Contestação como Documentos n.º 6 a 8.
50.–O fim dos negócios sub judice não são contrários à lei e, muito menos, ofensivos aos bons costumes. Conforme constatou o Digníssimo Tribunal a quo, os Recorridos A..... e José..... eram titulares das quotas e, como tal, eram livres de disporem delas.
51.–A procuração que outorgaram a favor do Recorrente V..... e que estes revogaram não os impedia de o fazer, e – tendo em conta o que o próprio Recorrente alega – tentar evitar que o Recorrente, munido dessa procuração, celebrasse negócios em representação dos Recorridos contra os seus interesses e das empresas de que são sócios não é um fim nem ilegítimo nem ofensivo aos bons costumes.
52.–Em face do texto da procuração, resulta que a mesma era livremente revogável, não existindo qualquer interesse do procurador a acautelar, pelo que os Recorridos podiam, como fizeram, revogar a mesma e na posse dos poderes de disposição sobre os seus bens e direitos, proceder às doações que entenderam fazer.
53.–Não se vislumbrando, por isso, que a celebração dos negócios em causa tenha – mesmo seguindo a perspetiva dos Recorrentes, cenário que não se concede, mas se concebe por mero dever de patrocínio – prosseguido um fim ilícito, contrário à lei ou ofensivo aos bons costumes. Fim esse que, mesmo depois do convite ao aperfeiçoamento endereçado pelo Digníssimo Tribunal a quo – os Autores, ora Recorrentes não concretizaram.
54.–Ainda que assim não se entendesse, cenário que não se concede, mas se concebe por mero dever de patrocínio, mesmo que o Recorrente V..... conseguisse demonstrar que a procuração foi passada também no seu interesse – o que não fez – e que, por isso, era irrevogável, sempre se constataria que – a assim ser – não tinha observado a exigência de forma.
55.–A este propósito veja-se o Acórdão do Insigne Supremo Tribunal de Justiça, proferido a 29 de setembro de 2020, no âmbito do Processo n.º 97/17.4T8STC.E1.S1, Juiz Relator Jorge Dias, disponível para consulta em www.dgsi.pt.

Concluem, no sentido da total improcedência do recurso, com consequente confirmação do saneador sentença.

8-O recurso foi admitido por despacho datado de 18/03/2022, como apelação, com subida nos próprios autos, de imediato e com efeito meramente devolutivo.

9-Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar, valorar, ajuizar e decidir.
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IIÂMBITO DO RECURSO DE APELAÇÃO

Prescrevem os nºs. 1 e 2, do artº. 639º do Cód. de Processo Civil, estatuindo acerca do ónus de alegar e formular conclusões, que:

1– o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.
2– Versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar:
a)-As normas jurídicas violadas ;
b)-O sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas ;
c)-Invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada”.

Por sua vez, na esteira do prescrito no nº. 4 do artº. 635º do mesmo diploma, o qual dispõe que “nas conclusões da alegação, pode o recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objecto inicial do recurso”, é pelas conclusões da alegação dos recorrentes Apelantes que se define o objecto e se delimita o âmbito dos recursos, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto dos interpostos recursos.

Pelo que, no sopesar das conclusões expostas, a apreciação a efectuar na presente sede determina o conhecimento das seguintes questões:

1.–da (I)LEGITIMIDADE ACTIVA da Autora EU....., S.A. - Conclusões alegacionais F) e G) e Conclusões contra-alegacionais 11. a 22. ;
2.– da (I)LEGITIMIDADE PASSIVA das Rés:
  • EU….., Lda. ;
  • Q….., Lda. ;
  • G….., Lda. ;
  • P….., Lda. ;
  • C….. Lda. ;
a)-Da existência de litisconsórcio necessário natural - Conclusões alegacionais H) a K) e Conclusões contra-alegacionais 23. a 31. ;
3.– da IMPUGNAÇÃO da MATÉRIA de FACTO, o que implica conhecer DA EVENTUAL PERTINÊNCIA DA MODIFICABILIDADE DA DECISÃO PROFERIDA SOBRE A MATÉRIA DE FACTO, nos quadros do artº. 662º, do Cód. de Processo Civil, por referência:
à alínea p) da factualidade provada, no sentido da eliminação da palavra “novamente ;
à matéria de facto vertida nos artigos 6º, 7º, 11º e 12º da p. i., no sentido da sua inclusão na matéria factual provada ;
o que implica a REAPRECIAÇÃO DA PROVA – Conclusões alegacionais A) a E) e Conclusões contra-alegacionais 3. a 10. ;
4.–da SUBSUNÇÃO JURÍDICA EXPOSTA NA DECISÃO RECORRIDA, TENDO EM CONSIDERAÇÃO OS FACTOS APURADOS, o que implica apreciação do ENQUADRAMENTO JURÍDICO DA CAUSA, nomeadamente:
a)-da violação do princípio da imutabilidade das convenções antenupciais e do regime de bens resultante da lei (o artº. 1714º, nºs. 1 e 2, do Cód. Civil) - Conclusões alegacionais L) a T) e Conclusões contra-alegacionais 32. a 36. ;
b-da falta do prévio consentimento ou autorização das sociedades na cessão das quotas efectuada a terceiros, e do direito de preferência das sociedades na cessão de qualquer quota (os artigos 228º, nº. 2, 229º, nº. 3, 246º, nº. 1, alín. b) e 2, alín. d), 251º, nº. 1 e 260º, nº. 1, todos do Cód. das Sociedades Comerciais e artº. 261º, nº. 1, do Cód. Civil) - Conclusões alegacionais V) a Z) e Conclusões contra-alegacionais 37. a 45. ;
c)-da outorga de negócios jurídicos com fim contrário à lei e ofensivos dos bons costumes:
  • do facto das procurações terem sido lavradas por instrumento público notarial, nos termos da 1ª parte, do nº. 2, do artº. 116º, do Cód. do Notariado ;
  • da circunstância do enunciado na 2ª parte, do nº. 2, do artº. 116º, do Cód. do Notariado, configurar uma mera formalidade legal, não reportando à forma legal ;
  • do disposto nos artigos 23º, nº. 2, do Cód. das Sociedades Comerciais e 1466º e 1467º, ambos do Cód. Civil - Conclusões alegacionais AA) a II) e Conclusões contra-alegacionais 46. a 55..

***

da (I)LEGITIMIDADE ACTIVA da Autora EU....., S.A.

A decisão apelada, no âmbito do operado saneamento e apreciando acerca do pressuposto processual da legitimidade das partes, raciocinou nos seguintes termos:
  • através da presente acção pretende-se que o Tribunal declare a nulidade de determinados negócios jurídicos ;
  • a Autora Eu....., S.A. não é interveniente em nenhum dos negócios questionados ;
  • o facto de já ter sido titular das quotas objecto dos negócios cuja nulidade se pretende operar não justifica qualquer interesse na procedência da acção ;
  • pois tal putativa procedência nunca fará regressar as quotas à sua esfera patrimonial ;
  • pelo que tal Autora deve ser considerada parte ilegítima.

Questionando tal entendimento, invocam os Recorrentes Autores, basicamente, o seguinte:
  • corresponde à verdade que a pretendida declaração de invalidade dos negócios jurídicos de cessão de quotas celebrados entre os RR. A..... e mulher Maria....., e José...... e mulher Ana....., em relação às sociedades RR. EU....., Lda. e Q....., Lda. não faria regressar as quotas em causa à esfera patrimonial da A. EU....., S.A., mas sim à dos RR. A..... e José.....;
  • todavia, a Autora Eu....., em caso de procedência da presente acção, sempre poderia vir a reclamar dos citados Réus cedentes, em ulterior acção judicial a intentar, o retorno das referidas quotas nas sociedades RR. EU......, Lda. e Q....., Lda. à sua esfera patrimonial, atendendo à factualidade exposta nos artigos 6º, 7º, 11º e 12º da petição inicial ;
  • tal matéria factual não foi considerada na sentença recorrida, mas o seu aditamento é ora reclamado ;
  • o que não poderá fazer, caso aquelas quotas estejam inscritas na titularidade das mulheres do RR. A..... e José..... ;
  • pelo que a decisão proferida, ao considerar a Eu....., S.A., parte ilegítima, violou o disposto no nº. 1, do artº. 30º, do CPC, devendo, como tal, ser revogada.

Em sede contra-alegacional, os Apelados Réus defendem, no essencial, que:
a decisão é acertada, pois a Autora, ora Recorrente, Eu....., S.A., não foi interveniente em nenhum dos negócios jurídicos cuja invalidade é reclamada ;
efectivamente, o facto da mesma Autora Recorrente ter sido titular das quotas das sociedades Eu....., Lda. e Q....., Lda., até ao ano de 2004, não justifica o interesse de tal recorrente na procedência da acção, nem legitima a sua pretendida intervenção ;
pois, quer a eventual procedência da presente acção, quer da aduzida posterior acção, nunca faria regressar as quotas à sua esfera patrimonial ;
limitam-se, assim, os Recorrentes a fundar a sua pretensão recursória “numa (im)possibilidade de intentar ulterior ação judicial com vista ao “retorno das referidas quotas nas sociedades RR. Sociedades EU..... Lda. e Q....., Lda.” – pretensão que não encontra acolhimento legal” ;
a legitimidade activa para a acção tem por pressuposto o interesse em demandar, sendo este aquilatado “pela vantagem jurídica que resultará para o autor da procedência da ação, tendo-se em consideração o pedido e a causa de pedir nos termos em que são por ele configurados” ;
ora, aferindo estes, na forma como foram configurados pelos Autores, “não se retira qual a vantagem jurídica da procedência da ação para a Recorrente EU....., S.A., que deixou de ser sócia de 50% do capital social das RR. em 2004” ;
pelo que a Eu....., para além de não interveniente no negócio jurídico ora pretendido invalidar, e em discussão, também não era, à data da outorga do negócio, titular das quotas daquelas sociedades ;
sendo que para dispor de legitimidade activa, não basta ao autor que disponha de um interesse indireto, reflexo ou derivado na procedência da ação”, antes devendo deter um interesse directo, efectivo e com consistência prática ;
sendo que o suporte em que se sustenta a acção configura-se como insuficiente para legitimar a ora Recorrente Eu..... a figurar como parte activa na acção.

Apreciando:

Prevendo acerca do conceito de legitimidade, estatui o artº. 30º, nºs. 1 e 2, do Cód. de Processo Civil, que o autor é parte legítima quando tem interesse em demandar”, sendo que este interesse exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação”.
Acrescenta o nº. 3, do mesmo normativo, que “na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor”.
Referenciam João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa [2] definir-se a legitimidade processual como “a possibilidade de estar em juízo quanto a certo objecto e, concretizando, a legitimidade ad causam é a faculdade de demandar (legitimidade activa) e a sujeição a ser demandado (legitimidade passiva) quanto a determinado objecto”, destinando-se a assegurar que estão em juízo, como autor e como réu, sujeitos que têm uma relação com esse objecto. Noutros termos: a legitimidade processual define quem pode exercer e contra quem pode ser exercido o direito de acção”.
Efectuando a destrinça entre as noções de legitimidade directa e legitimidade indirecta, acrescentam que a mesma pode pertencer quer a quem é o alegado titular, activo ou passivo, da situação subjectiva invocada em juízo (legitimidade directa), quer a quem, apesar de não ser esse titular, está autorizado, por lei ou por acto negocial, a estar em juízo como parte (legitimidade indirecta)”.
Aduzem, ainda, que em comparação com a substituição processual, sancionada pela 1ª parte do nº. 3, do transcrito artº. 30º, do Cód. de Processo Civil, que assenta sempre na lei ou num negócio jurídico, a aferição da legitimidade directa deve ser apreciada em função de dois elementos:
“o interesse em demandar e em contradizer, ou seja, o interesse da parte na obtenção de uma tutela favorável através de uma decisão de procedência ou de improcedência; a faculdade em que se traduz a legitimidade activa tem por base um interesse em demandar e a sujeição que decorre da legitimidade passiva assenta num interesse em contradizer;
O poder de produção, pela parte, dos efeitos que podem decorrer da decisão de procedência ou de improcedência da acção; isto significa que, para ser parte legítima, não basta ter interesse em demandar ou em contradizer, pois que é ainda necessário que a parte, activa ou passiva, possa produzir, sem a presença na acção de qualquer outra parte que a acompanhe, os efeitos substantivos que decorrem da procedência ou improcedência da acção”.
Assim, procedendo à delimitação da legitimidade, no âmbito da denominada regra de coincidência entre o titular do direito subjectivo e o titular do interesse em demandar, acrescentam que tal coincidência é o critério utilizado no art. 30.º, n.º 1, para aferir a legitimidade singular: o autor é parte legítima quando tiver interesse directo em demandar e o réu possui legitimidade quando tiver interesse directo em contradizer.
O art. 30.°, n.º 3, concretiza a aferição da legitimidade singular através da titularidade desses interesses, afirmando que são partes legítimas os titulares da relação material controvertida, ou seja, os titulares do direito subjectivo. Em conclusão: os (alegados) titulares do direito possuem um interesse em demandar e em contradizer que decorre da titularidade do direito e são, por isso, partes legítimas numa acção cujo objecto seja esse mesmo direito”.
Ou seja, nesta situação, o que conta para a aferição desse interesse legalmente equacionado é a relação, que o art. 30º, nº 1 exige que seja directa – entre a parte e o objecto litigioso”, enquanto que a avaliação no interesse da tutela enunciada no nº. 2 do mesmo normativo pressupõe uma comparação das situações que existem antes e depois da concessão daquela tutela jurisdicional”, pelo que o autor tem interesse em demandar quando, relativamente à situação em que se encontra antes do processo, aquela tutela lhe atribuir uma vantagem (…)”.
Nas situações em que inexiste coincidência entre o titular do direito subjectivo e o titular do interesse em demandar, nomeadamente pelo facto daquele não poder ser considerado titular de um direito subjectivo (desde logo pelo facto do objecto da acção não se traduzir ou fundar num direito desta natureza), o critério prevalecente é o do interesse em obter a procedência ou improcedência da acção, através do qual se pode determinar a parte que pode demandar”. Concretizando, referenciam que um exemplo típico do reconhecimento pela lei de um interesse em demandar é aquele pelo qual se afere a legitimidade para pedir a declaração de nulidade ou a anulação de um acto jurídico: a legitimidade para instaurar esta acção pertence a qualquer interessado (art. 286.º e 287.º, n.º 1, CC), o que significa que é parte legítima quem retirar alguma vantagem da decisão que reconhece a invalidade do acto jurídico (sublinhado nosso).

Ajuizando acerca do mesmo pressuposto processual, referenciam Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora [3] que ser parte legítima na acçãoé ter o poder de dirigir a pretensão deduzida em juízo ou a defesa contra ela oponível”, pelo que a parte terá legitimidade como autor, se for ela quem juridicamente pode fazer valer a pretensão em face do demandado, admitindo que a pretensão exista”.
Efectuando o confronto com os pressupostos processuais da personalidade e capacidade judiciária, acrescentam consistir a legitimidade numa posição da parte perante determinada acção”, que lhe “permite dirigir a pretensão formulada ou a defesa que contra esta possa ser oposta”.
Donde, não basta assim saber quem são as partes (em sentido formal) no processo”, importando ainda saber, para que o juiz se possa pronunciar sobre o mérito da causa, quais devem ser as partes em sentido substancial, porque só a intervenção destas em juízo garante a legitimidade para a acção”.
Assim, à legitimidade não satisfaz a existência de qualquer interesse, ainda que jurídico (não apenas moral, científico ou afectivo), na procedência ou improcedência da acção”, antes se exigindo que as partes tenham um interesse directo, seja em demandar, seja em contradizer ; não basta um interesse indirecto, reflexo ou derivado.
Todavia, como tal critério assente no conceito de interesse directo, em demandar ou contradizer, evidencia dificuldades na sua aplicação prática, a lei fixou um critério ou regra supletiva na determinação da legitimidade, no nº. 3, do citado artº. 30º, do Cód. de Processo Civil.
Assim, sempre que a lei não disponha de forma contrária, considerar-se-ão como titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação material controvertida, cumprindo, desta forma, à legitimidade, tal como a lei a concebe, determinar ou aferir quem são os sujeitos da relação controvertida.
Todavia, tal como resulta do segmento inicial do citado nº. 3, do artº. 30º, tal regra comporta excepções, existindo, assim, numerosos casos em que a lei atribui legitimidade para a acção a quem não é titular ou só em parte é titular da relação material em litígio”, designando alguns Autores tais casos como de legitimidade extraordinária.
Exemplificando, enunciam que no caso de o acto jurídico ser nulo, a lei reconhece legitimidade para a acção destinada a declarar a nulidade, se necessária, a qualquer terceiro interessado (art. 286º do Cód. Civil).
O terceiro é, neste caso, um estranho à relação controvertida, visto a impugnação não assentar num direito potestativo que a lei discriminativamente lhe reconheça, mas numa faculdade ou poder geral indiscriminadamente atribuído a todos os interessados (sublinhado nosso).  

Realçando tal admissibilidade, aduz Anselmo de Castro [4] que não poderia, porém, a lei abstrair das muitas situações em que terceiros são profundamente interessados na definição da relação jurídica de outrém. E assim venha a conferir o direito de acção não apenas aos sujeitos da relação material, mas ainda a outros que o não são. Este fenómeno da ampliação do direito de acção verifica-se sempre que o objecto da acção se apresente como algo de prejudicial em relação às pretensões de outros sujei­tos (relações conexas) ou afecte interesses públicos.
Sirva-nos como exemplo a acção de declaração de nulidade dos negócios jurídicos: a nulidade é arguível por qualquer pessoa que tenha interesse em que se não produzam em relação a si os efeitos do respectivo negócio. Interessado é aqui o sujeito de qualquer relação jurídica que de algum modo possa ser afectado pelos efeitos que o negócio tendia a produzir, afectado na sua consistência jurídica (v. g., subadquirentes) ou mesmo só na sua consistência prática (v. g. credores)” (sublinhado nosso).

Aqui chegados, procuremos aplicar tais critérios ao caso sub júdice.
Surge como evidente que a Autora Eu....., S.A., não foi, efectivamente, interveniente em nenhum dos negócios cuja nulidade é reclamada nos presentes autos.
Donde, urge aferir se a mesma possui legitimidade para peticionar a declaração de nulidade de tais negócios ou actos jurídicos, nomeadamente se é susceptível de retirar alguma vantagem ou ganho da decisão reclamada, que pretende o reconhecimento da invalidade de tais actos jurídicos.
O que implica aferir ou determinar se a perduração da validade de tais actos se configura, de alguma forma, como prejudicial, afectador ou ofensivo dos interesses e pretensões de tal sociedade Autora, ou seja, que de alguma forma macule ou inquine os seus legítimos e expectáveis interesses.
O que, no caso concreto, significa aferir se a cessão, por doação, da nua propriedade das quotas que compõem o capital social das sociedades Eu....., Lda. e Q....., Lda., se configura de alguma forma prejudicial aos interesses daquela sociedade Autora, ou que, de alguma forma, esta possa ser afectada pela subsistência daqueles actos transmissivos.
Alegam os Recorrentes que em caso de procedência da presente acção, sempre poderia tal Autora vir a reclamar dos citados Réus cedentes, em ulterior acção judicial a intentar, o retorno das referidas quotas nas sociedades RR. EU....., Lda. e Q....., Lda. à sua esfera patrimonial, atendendo à factualidade exposta nos artigos 6º, 7º, 11º e 12º da petição inicial. E que tal já não poderá ser feito, caso tais quotas estejam inscritas na titularidade das cessionárias, mulheres dos Réus A..... e José..... .
Naqueles artigos da petição inicial referencia-se que aquelas sociedades Eu....., Lda. e Q....., Lda., foram adquiridas pelo Autor V....., em 16/05/2000, mediante cessões das respectivas quotas, na proporção de metade do capital social, a favor de cada uma das sociedades comerciais Sociedade de Construções A.....,Lda. e Eu....., Lda., ao tempo detidas maioritariamente e representadas pelo seu gerente, ora Autor, V..... .
Acrescenta-se que o mesmo Autor passou a ser gerente de tais sociedades Rés - sociedades Eu.....,Lda. e Q.....,Lda. -, representando, ainda, as sócias destas, ou seja, as sociedades  Sociedade de Construções A....., Lda. e Eu....., Lda., nas respectivas assembleias gerias, o que sucedeu até ao ano de 2004.
Referenciou-se, ainda, que na sequência de acções inspectivas tributárias efectuadas a tais sociedades - sociedades  Sociedade de Construções A....., Lda. e Eu....., Lda. -, e por causa destas, em 04/03/2004, o mesmo Autor V....., na altura Presidente do Conselho de Administração de tais sociedades, celebrou, em nome e representação das mesmas, como forma de protecção patrimonial, duas cessões de quotas a favor dos seus filhos – os ora Réus A..... e José..... -, transferindo para a titularidade destes, na proporção de metade para cada um, a totalidade das quotas que aquelas duas sociedades detinham nas sociedades comerciais Rés  Eu....., Lda. e Q....., Lda..
Na decisão apelada, defendeu-se que o facto da Eu....., Lda., já ter sido titular de quotas nas sociedades Eu....., Lda. e Q....., Lda., não justifica o interesse na procedência da presente acção, pois esta eventual procedência nunca fará regressar tais quotas à sua esfera patrimonial.
O que surge como evidente e assertivo, pois tal juízo de eventual procedência apenas conduziria à invalidade das cessões, por doação, da nua propriedade de tais quotas, conducentes a que a plena propriedade sob as mesmas se radicasse na titularidade dos ora Réus cedentes.
Pelo que, fazer depender ou radicar o putativo interesse da Autora Eu.....S.A., na procedência da presente acção, num consequente juízo de eventual procedência de uma futura acção a intentar pela mesma sociedade, contra os Réus A..... e José....., com o desiderato de fazer retornar as quotas das sociedades Eu....., Lda. e Q....., Lda., à sua esfera patrimonial, não parece corresponder a uma tutela de interesse legalmente acolhida ou sustentada, de forma a conferir legitimidade activa para suportar o petitório de invalidade reclamado.
Efectivamente, a mera declaração de uma posterior intencionalidade de accionamento judicial, em contornos não minimamente precisos, e sem qualquer consubstanciação juridicamente fundada, não parece traduzir suporte suficiente e bastante no sentido de se concluir que a perduração da validade daqueles actos transmissivos gratuitos se configura, de alguma forma, como prejudicial, afectador ou ofensivo dos interesses e pretensões de tal sociedade Autora.
Ou seja, tal argumentário não se configura como suficiente no sentido de lhe ser reconhecido, por ampliação, tal direito de acção na invocada nulidade, pois não é susceptível de preencher o conceito de interesse (no sentido de daí retirar proveito ou vantagem) que subjaz ao art. 286º, do Cód. Civil.
O que determina, neste segmento, improcedência das conclusões recursórias, na confirmação do juízo de ilegitimidade processual activa da Autora Eu....., S.A..

da (I)LEGITIMIDADE PASSIVA das Rés:
  • EU....., Lda. ;
  • Q....., Lda. ;
  • G....., Lda. ;
  • P....., Lda. ;
  • C....., Lda.

Relativamente á legitimidade passiva, referencia a decisão apelada que, considerando os efeitos da declaração de nulidade e que a relação material controvertida é a que corresponde à relação que está subjacente ao negócio que se quer anular, “a acção correspondente tem de ser proposta contra os intervenientes no negócio que se quer ver anulado”. 
Assim, considera serem partes legítimas os Réus A..... e José ....., bem como as respectivas mulheres Rés Maria..... e Ana....., no que concerne aos negócios jurídicos identificados nas alíneas a), b), d), e) e g) do petitório, bem como os Réus A..... e José....., a sociedade Ré Santa....., S.A. e a sociedade T....., Lda. (que figura como Autora), no que respeita aos negócios jurídicos identificados nas alíneas c) e f) do mesmo petitório.
Consequentemente, considera que as demais Rés sociedades não foram parte ou intervenientes em quaisquer dos negócios outorgados, antes o tendo sido apenas as quotas de tais sociedades, sendo esta cessão que os Autores pretendem ver anuladas.
Acrescenta que a constatação de tal situação não é afectada pelo facto de tais sociedades terem deliberado sobre aqueles negócios, pois o que está em causa nos presentes autos “é a nulidade do negócio e não qualquer invalidade da deliberação da sociedade, nem esta é a sede para a mesma ser impugnada”.
Donde, a declaração de tais demandadas Rés como parte ilegítima na presente causa, conducente à sua absolvição da instância.

Questionando tal entendimento, enunciam os Recorrentes que não estando em causa nos presentes autos a invalidade de qualquer deliberação tomada por aqueles sociedades, “a violação de normas legais imperativas do Código das Sociedades Comerciais, como base ou fundamento da ilicitude dos negócios jurídicos de cessão de quotas em questão, pode e deve ser sempre considerada nesta sede em que se aprecia a validade jurídica daqueles negócios, atendendo ao disposto no artigo 294º do Código Civil”.
Considera, assim, que a legitimidade passiva de tais Rés funda-se no litisconsórcio necessário natural previsto nos nºs. 2 e 3, do artº. 33º, do Cód. de Processo Civil, que prevê acerca da necessidade de “intervenção de todos os interessados quando, pela própria natureza da relação jurídica, ela seja necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal”.
O que entendem aplicável no caso concreto, pois, estando em causa a validade dos negócios jurídicos de cessão de quotas entre os Réus A..... e José..... com as respectivas mulheres Maria..... a Ana....., em relação àquelas sociedades, “em causa estará também a titularidade sobre essas quotas e a definição de quem assume a posição de sócio nas e perante as mencionadas sociedades”.

Na resposta alegacional, os Apelados Réus defendem a decisão recorrida, realçando que as sociedades não se confundem com os sócios, e que sendo o litisconsórcio necessário natural imposto pela realização do efeito útil normal da decisão do tribunal, este efeito útil “é atingido quando sobrevém uma regulação definitiva da situação concreta das partes – e só delas – quanto ao objeto do processo e, por isso, o efeito útil normal pode ser conseguido ainda que não estejam presentes todos os interessados e em que, portanto, a ausência de um deles nem sempre constitui um obstáculo a que esse efeito possa ser atingido, conclusão que é imposta pelo facto de a lei admitir expressamente a não vinculação de todos os interessados (artigo 33.º, nº 2, 2ª parte do Código de Processo Civil)”.
Assim, face à natureza da relação material controvertida, a intervenção daquelas sociedades Rés não se mostra necessária a que a decisão produza o seu efeito útil normal, inexistindo, assim, qualquer situação de litisconsórcio necessário natural.

Apreciando:

No âmbito da legitimidade das partes, urge aferir acerca dos legais conceitos de litisconsórcio voluntário e litisconsórcio necessário, estatuindo o artº. 32º, do Cód. de Processo Civil, relativamente ao conceito de litisconsórcio voluntário, que:
1- Se a relação material controvertida respeitar a várias pessoas, a ação respetiva pode ser proposta por todos ou contra todos os interessados; mas, se a lei ou o negócio for omisso, a ação pode também ser proposta por um só ou contra um só dos interessados, devendo o tribunal, nesse caso, conhecer apenas da respetiva quota-parte do interesse ou da responsabilidade, ainda que o pedido abranja a totalidade.
2- Se a lei ou o negócio permitir que o direito seja exercido por um só ou que a obrigação comum seja exigida de um só dos interessados, basta que um deles intervenha para assegurar a legitimidade”.

Por sua vez, a noção de litisconsórcio necessário encontra-se tipificada no artº. 33º, do mesmo diploma, aí se plasmando que:
1-Se, porém, a lei ou o negócio exigir a intervenção dos vários interessados na relação controvertida, a falta de qualquer deles é motivo de ilegitimidade.
2-É igualmente necessária a intervenção de todos os interessados quando, pela própria natureza da relação jurídica, ela seja necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal.
3-A decisão produz o seu efeito útil normal sempre que, não vinculando embora os restantes interessados, possa regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado”.
Aduzindo o artº. 35º, ainda do CPC, acerca do litisconsórcio e a ação, que “no caso de litisconsórcio necessário, há uma única ação com pluralidade de sujeitos; no litisconsórcio voluntário, há uma simples acumulação de ações, conservando cada litigante uma posição de independência em relação aos seus compartes”.

Referenciam João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa [5] que o processo, na sua forma mais simples, tem duas partes, sendo que, quando tem mais do que duas partes (demandante e demandado), estamos perante uma cumulação subjectiva ou pluralidade de partes”.
Relativamente à situação litisconsorcial, estamos perante uma situação de litisconsórcio inicial quando o litisconsórcio se verifica logo desde o início do processo”, enquanto que existe litisconsórcio sucessivo ou subsequente quando o litisconsórcio se verifica só a partir de um momento posterior da marcha do processo”, resultando este de uma intervenção de terceiros numa acção pendente (art. 311º, 316º e 333º, nº. 1).
No que concerne à caracterização e diferenciação entre litisconsórcio voluntário e necessário, aduzem que dá-se o litisconsórcio voluntário quando existe uma pluralidade de partes principais porque a lei o permite: a lei concede "a vários sujeitos a possibilidade, sem a necessidade, de agir em conjunto num juízo único"; dá-se o litisconsórcio necessário quando existe uma pluralidade de partes principais porque a lei, o contrato que é fonte da relação controvertida ou o efeito útil da acção o impõe. O litisconsórcio voluntário é o previsto por regra permissiva, o necessário por regra técnica. Note-se que a propositura de uma acção em litisconsórcio necessário não é objecto de um dever, mas de um ónus (por isso fala-se em regra técnica, e não imperativa)”.
Por sua vez, só há só há litisconsórcio necessário quando a consequência da violação desse ónus for a absolvição da instância (ou o indeferimento liminar) por ilegitimidade (exceptio  plurium litisconsortium) (art. 33.°, n.º1  ; cf. art. 278.°, n.º 1, al. d), e 577.°, al. e)), isto  é, quando a ausência de uma parte originar a ilegitimidade do autor ou do réu presente em juízo”.
Deste modo, no litisconsórcio voluntário, a regra é, havendo uma pluralidade de interessados, a da liberdade do autor na escolha das partes da causa: este pode, em regra, intentar a acção contra todos os interessados ou contra alguns deles ou mesmo um só, e pode fazê-lo sozinho ou acompanhado por todos os interessados ou parte deles”, enquanto que no litisconsórcio necessário existe imposição na intervenção de todos os interessados, e o incumprimento do ónus de todos demandarem ou todos serem demandados”, implica a ilegitimidade da parte demandante ou demandada.  
Esta imposição de intervenção pode ter fonte legal ou contratual (o nº. 1, do artº. 33º, do CPC), ou ainda ser determinada pela necessidade de assegurar o efeito útil normal da decisão da acção: litisconsórcio necessário natural (art. 33º, nº. 2 e 3)”.
No litisconsórcio necessário natural inscrito neste nº. 2, do artº. 33º do Cód. de Processo Civil, determina-se a necessidade de intervenção de todos os interessados quando, pela própria natureza da relação jurídica, ela seja necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal”, procurando o nº. 3, do mesmo normativo, a concretização do que seja tal efeito útil normal, no sentido de que a decisão produz o seu efeito útil normal sempre que, embora não vincule todos os interessados, possa regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado”.
No que respeita ao critério a adoptar para aquilatar acerca da necessidade de observância do litisconsórcio natural, recorrem a um aspecto temporal: o litisconsórcio é necessário se tiver de haver uma decisão simultânea para todos os interessados”, ou seja, “o litisconsórcio necessário é natural quando a ausência de algum dos interessados conduziria a uma sentença que seria inutiliter data (sublinhado nosso).
Deste modo, o que conta e releva “para se exigir o litisconsórcio natural não é a definitividade de uma decisão global entre todos os interessados, mas a não definitividade de uma decisão que seja proferida apenas em relação a alguns interessados”, pelo que não é a circunstância de haver vários interessados que torna o litisconsórcio necessário ; o que impõe o litisconsórcio natural é a circunstância de uma decisão parcelar entre apenas alguns interessados correr o risco de se tornar incompatível com outra decisão igualmente parcelar obtida entre outros interessados” (sublinhado nosso).

O litisconsórcio possui, assim, duas modalidades diferenciadas, quer quanto aos pressupostos, quer quanto ao regime processual.
Numa delas – litisconsórcio voluntárioa cumulação depende exclusivamente da vontade das partes”, enquanto que no litisconsórcio necessárioa cumulação resulta de determinação da lei, da prévia estipulação dos interessados ou da natureza da relação jurídica”.
O litisconsórcio voluntário configura-se comoo regime-regra, válido para a generalidade das relações jurídicas com pluralidade de sujeitos”. Neste,os sujeitos da relação plural não têm que intervir em conjunto na acção, embora possam fazê-lo, se quiserem. Só que, intervindo isoladamente, o juiz apenas pode e deve conhecer da quota-parte que o sujeito tenha no direito ou no dever litigado”.
Diferentemente, no litisconsórcio necessário, “a falta de qualquer dos interessados determina a ilegitimidade dos intervenientes na acção”, ocorrendo o mesmosempre que a lei ou o negócio jurídico exijam a intervenção de todos os interessados, seja para o exercício do direito, seja para reclamação do dever correlativo”.
Acresce que, para além destes casos em que é imposto por lei ou negócio jurídico, o litisconsórcio é, ainda, necessário sempre que, pela natureza da relação material controvertida, a intervenção de todos os interessados seja essencial para que a decisão na obter produza o seu efeito útil normal”, ou, na terminologia do código alemão, as situações jurídicas controvertidas têm que ser decididas unitariamente (…) em face de todos os interessados”.
Efectivamente, existem situações em que, pela natureza da relação substantiva sobre a qual recai a acção, a falta de algum ou alguns dos interessados impede praticamente a decisão que nela se proferisse de produzir qualquer efeito útil”, enquanto que noutras situações a falta de algum ou de alguns dos interessados já não obstaria a que a decisão proferida na acção produzisse algum efeito útil, consubstanciado em certo resultado definitivo, mas impediria que ela alcançasse o seu efeito normal”.
E, o efeito normal da decisão, quando transitada em julgado, consiste na ordenação definitiva da situação concreta debatida entre as partes”, pelo que nestas situações em que a presença de todos os contitulares da relação é essencial ao efeito útil normal da decisão a proferir na acção, a falta de qualquer deles provoca a ilegitimidade dos restantes (para intervirem na proposição ou contestação da causa) [6].

Jurisprudencialmente, por todos, referenciemos que no campo do litisconsórcio voluntário, a acção pode ser proposta por todos ou contra todos os interessados, mas não é obrigatório que assim seja. Caso apenas um dos titulares intervier o Tribunal conhece da quota-parte do seu interesse ou responsabilidade ainda que o pedido abranja a totalidade (art. 32º nº 1 do C.P.C.). Se a lei ou o negócio permitir que o direito seja exercido por um só ou que a obrigação comum seja exigida de um só dos interessados basta que um deles intervenha para assegurar a legitimidade devendo nesse caso o Tribunal conhecer a totalidade do pedido (art. 32º nº 2 do C.P.C.)”.
Em contraponto, estando-se perante situação de litisconsórcio necessário, é mister e necessária a intervenção de todos os titulares da relação controvertida, sob pena de ilegitimidade. Tal ocorre quando a lei ou o negócio o impõe, como também quando pela própria natureza da relação jurídica a referida intervenção é necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal, i.e., seja capaz de regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado (art. 33º do C.P.C.)” [7].

Retornemos ao caso concreto e apreciemos acerca da (im)pertinência da decisão sob sindicância.
A decisão apelada considerou as identificadas Rés sociedades parte ilegítima para a presente causa e, consequentemente, absolveu-as da instância.
Fundou tal decisão no facto das mesmas não terem sido intervenientes ou parte em quaisquer dos negócios cuja nulidade é reclamada, mas antes o tendo sido apenas as quotas de tais sociedades, que foram objecto dos actos de cessão gratuita que ora os Autores pretendem que sejam declarados nulos.
Por sua vez, os Apelantes não só defendem a legitimidade de tais Rés para figurarem no lado passivo da acção, como entendem, inclusive, que a situação é de litisconsórcio necessário natural, pois só assim a decisão proferenda é susceptível de produzir o seu efeito útil normal, ou seja, só estando presentes tais Rés é que a situação concreta fica definitivamente regulada, pois está também em causa a titularidade sobre tais quotas e a definição de quem assume a posição de sócio nas sociedades e perante as sociedades.
Ora, não se nos afigura que assista razão aos Apelantes.
Efectivamente, o objecto da acção circunscreve-se à pretendida declaração de nulidade dos actos transmissivos em que foram intervenientes os Réus A..... e José....., quer relativamente às cessionárias suas mulheres Maria..... e Ana....., quer relativamente a outras duas sociedades (figurando uma como Ré e outra como Autora).
Ou seja, as Rés cujas quotas foram alvo da transmissão da nua propriedade não foram efectivamente intervenientes nos negócios que se pretendem ver anulados, pretendendo-se justificar a sua demanda pelo facto de tais quotas transmitidas reportarem-se a tais entidades colectivas, o que carece de justificação.
Acresce que o facto de tais sociedades se terem pronunciado acerca de tais negócios, no sentido de declararem que autorizavam tais cessões, e que não pretendiam exercer qualquer direito de preferência, não altera a aludida falta de legitimidade passiva, pois não está efectivamente em equação nos presentes autos a aferição da (in)validade de tais deliberações, no sentido de fundarem a sua impugnação, mas antes, e tão-só, como eventual fundamento justificativo da outorga daqueles negócios em contravenção legal, a determinarem o juízo de nulidade inscrito no artº. 294º, do Cód. Civil.
Ora, confirmando-se o juízo de ilegitimidade das enunciadas Rés Sociedades, logicamente que a situação não pode ser configurável como de litisconsórcio necessário natural.
Efectivamente, não pode aludir-se, justificadamente, que a ausência da demanda daquelas sociedades, a que se reportavam as quotas cedidas, sempre conduzirá a uma decisão não definitiva, apenas com datada utilidade e susceptível de se vir a tornar incompatível com outra futura decisão igualmente parcelar que venha a ser obtida com a intervenção de outros interessados.
O que se compreende e constata quando se conclui que os titulares do interesse juridicamente relevante para a apreciação da questão em controvérsia, pelo prejuízo que da procedência da acção advenha, encontram-se devidamente demandados na presente acção.
Donde, sem outras delongas, igualmente nesta vertente, conclui-se pela improcedência das conclusões recursórias, num juízo de confirmação da ilegitimidade passiva das identificadas Rés EU....., Lda., Q....., Lda., G....., Lda., P....., Lda. e C....., Lda., que determinou a sua absolvição da instância.


III–FUNDAMENTAÇÃO

A–FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

No saneador sentença recorrido, foi considerado como PROVADO o seguinte (assinala-se com * o ponto factual impugnado ; consta a negrito o facto objecto de alteração, figurando sob nota de rodapé a sua redacção original):

a)-O Autor V..... é pai dos Réus José..... e A....., sendo também o actual administrador único da sociedade comercial Autora EU....., S.A. e gerente único da sociedade comercial Autora T....., Lda.
b)-A sociedade comercial Ré G....., Lda. foi constituída, em 18 de Abril de 2007, entre a sociedade Ré SANTA....., S.A., devidamente representada pelo Autor V....., na qualidade de seu Presidente do Conselho de Administração, e os ora Réus A..... e José....., com o capital social de 50.000,00 euros, na proporção de 96 % do capital social para a primeira e de 2 % do capital social para cada um dos segundos.
c)-A sociedade comercial Ré P....., Lda. foi constituída, em 05 de Julho de 2010, tendo como sócios nominalmente os ora Réus A..... e José....., com o capital social de 20.000,00 euros, na proporção de metade para cada um destes.
d)-Em relação à sociedade comercial Ré C....., Lda., que havia sido constituída em 1987, sob a anterior firma “A....., Lda.”, as respectivas quotas foram inicialmente adquiridas, em 15 de Dezembro de 1994, pela sociedade Investimentos Dominais Anglo Portugueses, S.A., a qual posteriormente as cedeu, em 21 de Dezembro de 2005, à sociedade T..... Reg., correspondente à atual sociedade Autora T..... .
e)-A sociedade Autora T....., Lda. foi constituída em 2014, tendo como sócios iniciais, nominalmente, os ora Réus A..... e José ....., com o capital social de 439.603,00 euros, e corresponde à redomiciliação da sociedade T..... Limited, com sede em Malta, com representação permanente sob a firma T..... Trust Reg., NIPC 9.......9, com sede no Principado do Leichenstein, com o capital de 500.000 francos suíços.
f)-Os RR A..... e José..... outorgaram a favor do A V....., em Cartório Notarial, duas Procurações, datadas de 05 de Fevereiro de 2014, quer a título pessoal (procuração de fls.173 a 175, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido), quer em representação de quatros sociedades de quem eram administradores ou únicos sócios e gerentes (C....., SA, EU....., SA, Q....., Lda, S....., Lda. – procuração de fls.176 a 179, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido), pelas quais constituem seu procurador o A.
g)-Os Réus A..... e José..... outorgaram juntamente com as suas respetivas mulheres, as ora Rés Maria..... e Ana....., os seguintes “Títulos de Cessão de Quotas Com Reserva de Usufruto”, referentes às cinco sociedades comerciais Rés:
i)- Em 30 de Julho de 2018, o Réu A..... cedeu, por doação, à sua mulher, a Ré Maria....., a nua propriedade da quota no valor nominal de € 68.509,89, que tinha em seu nome, na sociedade Ré EU....., Lda., mantendo o direito de usufruto vitalício sobre aquela quota e o Réu José..... cedeu, por doação, à sua mulher, a Ré Ana ....., a nua propriedade da quota no valor nominal de € 68.509,89, que tinha em seu nome, na mesma sociedade Ré EU....., Lda., mantendo o direito de usufruto vitalício sobre aquela quota, tendo ambos declarado, em representação da Sociedade, que esta autorizava a referida cessão com reserva de usufruto, mais declarando não exercer qualquer direito de preferência.

ii)- Na mesma data de 30 de Julho de 2018, o Réu A..... cedeu, por doação, à sua mulher, a Ré Maria....., a nua propriedade da quota no valor nominal de € 47.884,60, que tinha em seu nome, na sociedade Ré Q....., Lda., mantendo o direito de usufruto vitalício sobre aquela quota e o Réu José..... cedeu, por doação, à sua mulher, a Ré Ana....., a nua propriedade da quota no valor nominal de € 47.884,60, que tinha em seu nome, na mesma sociedade Ré Q....., Lda., mantendo o direito de usufruto vitalício sobre aquela quota, tendo ambos declarado, em representação da Sociedade, que esta autorizava a referida cessão com reserva de usufruto, mais declarando não exercer qualquer direito de preferência.

iii)- Também a 30 de Julho de 2018, o Réu A..... cedeu, por doação, à sua mulher, a Ré Maria....., a nua propriedade da quota no valor nominal de € 25.000,00, que tinha em seu nome, na sociedade Ré G....., Lda., mantendo o direito de usufruto vitalício sobre aquela quota e o Réu José..... cedeu, por doação, à sua mulher, a Ré Ana ....., a nua propriedade da quota no valor nominal de € 25.000,00, que tinha em seu nome, na mesma sociedade Ré G.....,Lda., mantendo o direito de usufruto vitalício sobre aquela quota, tendo ambos declarado, em representação da Sociedade, que esta autorizava a referida cessão com reserva de usufruto, mais declarando não exercer qualquer direito de preferência.
O Réu A....., no mesmo documento, na qualidade de administrador e em representação da sociedade Ré SANTA..... S.A., igualmente sócia da sociedade Ré G....., operou previamente a divisão da quota que aquela sociedade detinha nesta, no valor nominal de € 48.000,00, em duas novas quotas, no valor nominal de € 24.000,00 cada, que transmitiu a cada um dos outros dois sócios, os Réus A..... e José....., pelo respetivo valor nominal, postergando o pagamento dos respetivos preços.

iv)- Ainda em 30 de Julho de 2018, o Réu A..... cedeu, por doação, à sua mulher, a Ré Maria....., a nua propriedade da quota no valor nominal de € 10.000,00, que tinha em seu nome, na sociedade Ré P....., Lda., mantendo o direito de usufruto vitalício sobre aquela quota e o Réu José..... cedeu, por doação, à sua mulher, a Ré Ana ....., a nua propriedade da quota no valor nominal de € 10.000,00, que tinha em seu nome, na mesma sociedade Ré P.....,Lda., mantendo o direito de usufruto vitalício sobre aquela quota, tendo ambos declarado, em representação da Sociedade, que esta autorizava a referida cessão com reserva de usufruto, mais declarando não exercer qualquer direito de preferência.

v)- E, em 11 de Julho de 2018, o Réu A..... cedeu, por doação, à sua mulher, a Ré Maria....., a nua propriedade da quota no valor nominal de € 2.500,00, que tinha em seu nome, na sociedade Ré C....., Lda., mantendo o direito de usufruto vitalício sobre aquela quota e o Réu José..... cedeu, por doação, à sua mulher, a Ré Ana ....., a nua propriedade da quota no valor nominal de € 2.500,00, que tinha em seu nome, na mesma sociedade Ré C.....,Lda., mantendo o direito de usufruto vitalício sobre aquela quota, tendo ambos declarado, em representação da Sociedade, que esta autorizava a referida cessão com reserva de usufruto, mais declarando não exercer qualquer direito de preferência.

h)- Todos estes actos foram inscritos:
- no Registo Comercial da sociedade Ré EU..... sob as Menções de Depósito nºs 23835 e 23836, ambas de 2018-08-01; - no Registo Comercial da sociedade Ré Q..... sob as Menções de Depósito nºs 23833 e 23834, ambas de 2018-08-01;
- no Registo Comercial da sociedade Ré G..... sob as Menções de Depósito nºs 4..1, 4..2, 4..3, 4..4, 4..5 e 4..6, todas de 2018-08-01;
- no Registo Comercial da sociedade Ré P..... sob as Menções de Depósito nºs 2...1 e 2...2, ambas de 2018-08-01;
- no Registo Comercial da sociedade Ré C..... sob as Menções de Depósito nºs 1..7, 1..8, 1..9 e 1..0, todas de 2018- 08-01;
i)-O Pacto Social da sociedade Ré EU..... estipulava no seu artigo 8º que: “A cessão e divisão de quotas, no todo ou em parte, entre sócios, é livremente permitida e não carece de autorização da sociedade.” e constava do § 1º que: “Porém, não poderá ser efectuada a cessão a estranhos sem que previamente tenha sido oferecida à sociedade, indicando preço e condições de pagamento e identificação do interessado, ficando eventual e seguidamente os sócios com o direito de exercer o seu direito de preferência, se a sociedade o não pretender.”
j)-O Pacto Social da sociedade Ré Q..... estipulava no seu artigo 8º que: “A cessão e divisão de quotas, no todo ou em parte, entre sócios, é livremente permitida e não carece de autorização da sociedade.” e constava do § 1º que: “Porém, não poderá ser efectuada a cessão a estranhos sem que previamente tenha sido oferecida à sociedade, indicando preço e condições de pagamento e identificação do interessado, ficando eventual e seguidamente os sócios com o direito de exercer o seu direito de preferência, se a sociedade o não pretender.”
l)-O Pacto Social da sociedade Ré G..... estipulava no seu artigo 11º, nº 1 que: “É livremente consentida a cessão, total ou parcial, de quotas entre os sócios, seja qual for a forma de que se revista.” e constava do nº 2 que: “A cessão a terceiros depende de prévio consentimento da sociedade, dado dentro do prazo de trinta dias a contar da recepção de carta registada com aviso de recepção dirigida à sede social da qual conste o preço e condições da transacção; a sociedade primeiro e os sócios depois gozam do direito de preferência na cessão de qualquer quota.”
m)-O Pacto Social da sociedade Ré P..... estipulava no seu artigo 6º, nº 1 que: “A cessão de quotas é livre entre os actuais sócios e destes para os seus ascendentes ou descendentes.” e constava do nº 2 que: “Em todos os demais casos a cessão de quotas carecerá sempre do consentimento prévio da sociedade, a conceder nos termos da legislação aplicável.”
n)-O Pacto Social da sociedade Ré C..... estipulava no seu artigo 5º que: “A sociedade e os sócios, por esta ordem, gozam do direito de preferência na aquisição de quotas alienadas a estranhos.”

Da contestação:
o)-Em 28 de Junho de 2018, os Réus A..... e José..... procederam à revogação da procuração pessoal que haviam outorgado no dia 5 de Fevereiro.
* p)-No dia 20 de Julho de 2018 os Réus A..... e José..... comunicaram ao Autor V....., por carta registada com aviso de recepção e por mensagem de correio electrónico, a revogação da Procuração [8].

***

B–FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

I)-Da REAPRECIAÇÃO da PROVA decorrente da impugnação da matéria de facto

Prevendo acerca da modificabilidade da decisão de facto, consagra o artigo 662º do Cód. de Processo Civil os poderes vinculados da Relação, estatuindo que:
1- A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
2- A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente:
a)-Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento;
b)-Ordenar em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova;
c)-Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta;
d)-Determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados”.

Para que tal conhecimento se consuma, deve previamente o recorrente/apelante, que impugne a decisão relativa à matéria de facto, cumprir o ónus a seu cargo, plasmado no artigo 640º do mesmo diploma, o qual dispõe que:
1.-Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a)-Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b)-Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c)-A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2.-No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a)- Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b)-Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3.-O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º”.

No caso sub júdiceestá fundamentalmente em equação a valoração da prova documental junta, nomeadamente a decorrente de documento autêntico ou não impugnado, que, juntamente com a resultante do acordo das partes, fundou a matéria factual dada como assente/provada.
Pelo que, tendo os Recorrentes/Apelantes dado cumprimento ao preceituado no supra referido artigo 640º do Cód. de Processo Civil, o presente Tribunal, prima facie, pode proceder à sua reapreciação, uma vez que dispõe dos elementos de prova que serviram de base à decisão sobre o(s) facto(s) em causa.

- Da factualidade PROVADA constante da alínea p) =» a pretensão recursória que seja eliminada a palavra “novamente

É a seguinte a redacção deste facto:
No dia 20 de Julho de 2018 os Réus A..... e José..... comunicaram novamente ao Autor V....., por carta registada com aviso de recepção e por mensagem de correio electrónico, a revogação da Procuração”.

Alegam os Impugnantes que a “palavra novamentedeve ser retirada porque contrária ao teor do documento nº 5 junto com a contestação relativo à mensagem de correio electrónico e à carta registada com aviso de recepção enviadas pelos RR. A..... José..... ao A. V.....s, em 20 de Julho de 2018 (“vimos por este meio enviar em anexo a revogação de procurações realizada em 28 de Junho de 2018”), não resultando demonstrado nos autos que tal comunicação de revogação da Procuração tivesse sido feita anteriormente por aqueles RR ao referido A.”.
Donde, deve ser eliminada tal palavra, atento o facto de não se lograr demonstrada através da prova documental produzida nos autos qualquer comunicação dos RR. A..... e José..... ao Autor V....., anterior a 20 de Julho de 2018, conducente à revogação da procuração.

Na resposta apresentada, aludiram os Apelados importar aceitar a matéria de facto feita constar sob a alínea o), ou seja, que em 28 de Junho de 2018, os Réus A..... e José..... procederam à revogação da procuração pessoal que haviam outorgado em 05 de Fevereiro.
Acrescentam que na sequência dos acontecimentos conducentes á necessidade de revogação de tal procuração, os mesmos Réus “comunicaram de imediato às instituições bancárias relevantes e, bem assim, ao Recorrente V....., que a procuração tinha sido revogada”.
Assim, no final do mesmo dia 28 de Junho de 2018, “após a revogação da procuração perante notário, os Recorridos José..... e A..... deixaram o referido documento em cima da secretária do Recorrente V..... – facto esse que o Recorrente V....., conscientemente e deliberadamente, procurou e procura convenientemente olvidar”, pois “continuou a transmitir para terceiros as participações sociais e cargos de gerência e administração de que eram os Recorridos titulares, com base nas procurações, entretanto revogadas, e cuja revogação era do seu conhecimento. E, foi perante esta conjetura de factos que os Recorridos, se viram obrigados a comunicar novamente a V..... a revogação das procurações, desta feita a 20 de julho de 2018, através de carta registada com aviso de receção”.
Pelo que deve ser negada a pretensão de retirada da palavra novamente do facto provado sob a alínea p).

Decidindo:

A matéria factual ora em equação na transcrita alínea p) foi aduzida no artº. 48º da contestação, e tem respaldo  probatório no teor do doc. nº. 5, junto com o mesmo articulado, constante de fls. 261 vº a 262 vº.
A demais matéria de facto ora invocada pelos Apelados tem correspondência nos artigos 46º e 47º, do mesmo articulado, mas não possui suporte probatório documental, tendo sido desconsiderada na matéria factual assente.
Ora, tendo-se a panóplia da matéria factual provada sustentado na prova documental junta (quer na autêntica, quer na não impugnada), bem como no acordo entre as partes litigantes, esta matéria, não considerada, não pode ser ora valorada nos termos requeridos pelos Impugnados.
Donde, apenas deverá ser considerado o teor da comunicação que logrou sustentáculo probatório documental, conducente a concluir-se que a inclusão da palavra “novamente” não encontra devida justificação, pois faz depreender acerca de uma outra pré-existente comunicação, que foi alegada, mas que não pode considerar-se provada.
O que determina, neste contexto, juízo de procedência, neste segmento, da impugnação apresentada, passando tal ponto factual, identificado sob a alínea p), a figurar, omitido da palavra “novamente”, com a seguinte redacção:
No dia 20 de Julho de 2018 os Réus A..... e José..... comunicaram ao Autor V....., por carta registada com aviso de recepção e por mensagem de correio electrónico, a revogação da Procuração”.

- Da matéria factual vertida nos artigos 6º, 7º, 11º e 12º da petição inicial =» a pretensão recursória que passe a figurar como provada

Invocam, ainda, os Recorrentes impugnantes que a matéria factual constante dos enunciados artigos da petição inicial deveria ser aditada à elencagem factual provada, em virtude de se encontrar provada “por documentos autênticos com força probatória plena (artigos 363º, nº 2 e 371º, nº 2, ambos do Código Civil), como sejam os documentos nº 17 correspondente a certidão do registo comercial, nº 38 correspondente a notificação judicial e nºs 39 e 40 correspondentes a escrituras públicas notariais de cessão de quotas; ou a documentos particulares não impugnados quanto à sua genuinidade, autenticidade e veracidade (artigo 376º do Código Civil e artigos 444º e 446º do Código de Processo Civil), como sejam os documentos nºs 30, 31 e 32 correspondentes a actas societárias”.
Acrescentam que tal matéria factual “reveste-se de interesse quanto à decisão da causa no que respeita, em particular, à decisão sobre a legitimidade da A. EU....., S.A. para a presente acção, a qual teria sido diferente caso aqueles factos constassem da decisão de facto, como de seguida se demonstrará; bem como para a decisão de fundo sobre o mérito causa em termos de Direito, e uma vez que na decisão de facto apenas não se encontra espelhada a constituição ou aquisição das duas primeiras sociedades RR. EU....., Lda. e Q....., Lda., ao contrário das restantes sociedades RR.”.

Na resposta apresentada, enunciam os Apelados terem sido tais factos expressamente impugnados pelos Réus na contestação, não podendo, assim, serem julgados como provados.
Acrescentam serem os mesmos “irrelevantes para o conhecimento da decisão da causa, não sendo essenciais e tampouco instrumentais face à causa de pedir apresentada pelos Autores, ora Recorrentes”, pelo que deve ser indeferida a modificação requerida.

Apreciando:

Os artigos em equação da petição inicial têm a seguinte redacção:


“assim, as sociedades comerciais Rés EU....., Lda. e Q....., Lda., que haviam sido constituídas, em 29 de Julho de 1997, por cisão, mediante destaque patrimonial da sociedade comercial “Manuel....., Lda.”, foram adquiridas pelo Autor V....., em 16 de Maio de 2000, mediante cessões das respectivas quotas, na proporção de metade do capital social, a favor de cada uma das sociedades comerciais SOCIEDADE....., Lda. e EU....., Lda., ao tempo ambas detidas maioritariamente e representadas pelo seu gerente, ora Autor, V..... – Cf. Documentos nºs 17 a 30” ;


“para além de ter passado a ser gerente das sociedades comerciais Rés EU...... e Q..... era também o Autor V..... quem sempre representava as respectivas sócias destas, as sociedades comerciais SOCIEDADE..... e EU..... nas respectivas assembleias gerais, aí tomando todas as decisões, até ao ano de 2004 – Cf. Documentos nºs 31 e 32” ;

11º
“e a sociedade comercial EU....., Lda. foi alvo de uma ação inspectiva à liquidação de IRC dos anos de 1997 e 1998, a qual deu origem posteriormente a um processo de reclamação graciosa, seguido de um processo de impugnação judicial, cujo recurso jurisdicional, correspondente ao processo nº. 03350/19, somente foi julgado definitivamente, por acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, proferido em 09/03/2010 – Cf Documento nº. 38” ;

12º
“foi esta situação em que se encontravam as sociedades SOCIEDADE....., Lda. e EU....., que motivou que, em 04 de Março de 2004, o Autor V....., na altura Presidente do Conselho de Administração daquelas sociedades, celebrasse, em nome e representação das mesmas, duas Cessões de Quotas a favor dos seus filhos, os ora Réus A..... e José....., transferindo para a titularidade destes, na proporção de metade para cada um, a totalidade das quotas que aquelas duas sociedades detinham nas sociedades comerciais Rés EU..... e Q....., como forma de proteção patrimonial – Cf. Documentos nºs 39 e 40”.

Conforme já conhecido supra, decidiu-se acerca da vertente recursória respeitante à (i)legitimidade da Autora Eu....., S.A., no sentido da sua improcedência.
Donde, relativamente a tal vertente, o ora requerido aditamento surge como totalmente inócuo ou inconsequente, pois, para além do mais, tal matéria factual foi ali devidamente ponderada e aferida, sem que tal determinasse diferenciado juízo do ali sindicado.
Por outro lado, e independentemente da valência documental probatória, também não descortinamos como tal matéria factual se pode rotular com o citado interesse para a decisão do fundo ou mérito da causa.
Efectivamente, o modo de constituição das sociedades Eu....., Lda. e Q....., Lda., o seu modo de aquisição em 2000, por parte do Autor V....., a favor de duas outras sociedades, a forma como operava a sua representação societária até ao ano de 2004, bem como a posterior transmissão de tais quotas societárias, ainda em 2004, a favor dos filhos do mesmo Autor V....., os ora Réus A..... Santos e José....., configura-se como totalmente irrelevante para a sorte dos presentes autos, tendo em atenção o objecto da acção.

Com efeito, não pode olvidar-se que o petitório assenta, e no que á intervenção daquelas sociedades concerne, na pretensão de declaração como nulos dos negócios transmissivos da nua propriedade das quotas que compõem o capital social daquelas, o que é sustentado em três ordens ou fundamentos de nulidade:
- violação do princípio da imutabilidade das convenções antenupciais e do regime de bens resultante da lei :
- falta do prévio consentimento ou autorização das sociedades na cessão das quotas efectuada a terceiros, e do direito de preferência das sociedades na cessão de qualquer quota ;
- outorga de negócios jurídicos com fim contrário à lei e ofensivos dos bons costume.
Ora, sendo estes os fundamentos que configuram ou balizam o objecto da acção em apreciação, aquela matéria factual, que até poderia configurar-se como relevante perante diferenciados pedido e causa de pedir (a delimitarem diferenciando objecto processual), não tem neste a relevância que os Impugnantes reclamam.

Conforme expressamente referenciado em aresto desta Relação de 24/04/2019 [9], na decisão da matéria de facto, o Tribunal apenas pode considerar os factos essenciais que integram a causa de pedir (ou as exceções), bem como os factos instrumentais, complementares ou concretizadores que resultem da instrução da causa, e os factos notórios e de que tem conhecimento por via do exercício das suas funções (art. 5.º do CPC), estando-lhe vedado, por força do princípio da limitação dos atos consagrado no art. 130.º do CPC, conhecer de matéria que, ponderadas as várias soluções plausíveis da questão de direito, se mostra irrelevante para a decisão de mérito. São manifestações do princípio dispositivo e do princípio da economia processual que se impõem ao juiz da 1.ª instância aquando da seleção da matéria de facto provada/não provada na sentença, mas também na 2.ª instância, no que concerne à apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto”.

Acrescenta-se, então, citando Acórdão desta Relação de 27/11/2018 [10], que a jurisprudência dos Tribunais Superiores vem reconhecendo que a reapreciação da matéria de facto não constitui um fim em si mesma, mas um meio para atingir um determinado objetivo, que é a alteração da decisão da causa, pelo que sempre que se conclua que a reapreciação pretendida é inútil – seja porque a decisão sobre matéria de facto proferida pela primeira instância já permite sustentar a interpretação do direito aplicável ao caso nos termos sustentados pelo recorrente, seja porque ainda que proceda a impugnação da matéria de facto, nos termos requeridos, a decisão da causa não deixará de ser a mesmaa reapreciação sobre matéria de facto não deve ter lugar, por constituir um ato absolutamente inútil, contrariando os princípios da celeridade e da economia processuais (arts. 2.º, n.º 1, 137.º, e 138.º do CPC)” (sublinhado nosso) [11].

Em consonância, refere-se expressamente no douto Acórdão do STJ de 17/05/2017 [12] que “o princípio da limitação de actos, consagrado no artigo 130º do Código de Processo Civil para os actos processuais em geral, proíbe a sua prática no processo – pelo juiz, pela secretaria e pelas partes – desde que não se revelem úteis para este alcançar o seu termo”, tratando-se de uma das “manifestações do princípio da economia processual, também aflorado, entre outros, no artigo 611º, que consagra a atendibilidade dos factos jurídicos supervenientes, e no artigo 608º n.º 2, quando prescreve que, embora deva resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, o juiz não apreciará aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras”.

Acrescenta, nada impedir “que também no âmbito do conhecimento da impugnação da decisão fáctica seja observado tal princípio, se a análise da situação concreta em apreciação evidenciar, ponderadas as várias soluções plausíveis da questão de direito, que desse conhecimento não advirá qualquer elemento factual, cuja relevância se projecte na decisão de mérito a proferir.
Com efeito, aos tribunais cabe dar resposta às questão que tenham, directa ou indirectamente, repercussão na decisão que aprecia a providência judiciária requerida pela(s) parte(s) e não a outras que, no contexto, se apresentem como irrelevantes e, nessa medida, inúteis”.
Pelo que, conclui, “para se aferir da utilidade da apreciação da impugnação da decisão fáctica importa considerar se os pontos de facto questionados se não apresentam de todo irrelevantes, se a eventual demonstração dos mesmos é susceptível de gerar um juízo diferente sobre a questão de direito, se é passível de influenciar e, porventura, alterar a decisão de mérito no quadro das soluções plausíveis da questão de direito (sublinhado nosso).

Ora, tendo por pressuposto tal entendimento, e na reafirmação do supra exposto, afigura-se-nos resultar indubitavelmente o seguinte:
- ainda que tal factualidade, partindo do princípio que possuía lastro probatório, pudesse vir a ser considerada, não resulta que da mesma pudesse resultar uma qualquer alteração do juízo a operar relativamente ao delineado objecto processual em controvérsia  ;
- donde, a sua putativa prova não releva nos presentes autos, nomeadamente para o conhecimento da controvérsia em equação, tendo em consideração a projectada solução de direito, pois esta não possui qualquer conexão com a mesma factualidade ora pretendida aditar ;
- pelo que, conhecer acerca da impugnação da matéria de facto apresentada, no que ao presente segmento concerne, na presente sede recursória, configurar-se-ia como a prática de um acto inútil, legalmente sancionado pelo artº. 130º, do Cód. de Processo Civil ;
- ou seja, ainda que lograsse obter procedência tal impugnação da matéria factual, na vertente do reclamado aditamento, e tal matéria passasse a figurar como provada, esta revelar-se-ia totalmente irrelevante e inócua para a sorte da pretensão recursória apresentada, nos termos expostos pelos Recorrentes, conforme melhor se evidenciará infra, pelo que aquela reapreciação da matéria de facto traduzir-se-ia na prática de uma acto absolutamente inútil, claramente contrário á observância dos princípios da economia e celeridade processuais ;
- pelo que, na decorrência de tal juízo, decide-se não conhecer, neste delimitado segmento, da impugnação da matéria de facto apresentada no presente recurso.

I)–DA VERIFICAÇÃO DE ERRO DE JULGAMENTO NA SUBSUNÇÃO JURÍDICA EXPOSTA NA DECISÃO RECORRIDA, TENDO EM CONSIDERAÇÃO OS FACTOS APURADOS

- DA VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA IMUTABILIDADE DAS CONVENÇÕES ANTENUPCIAIS E DO REGIME DE BENS RESULTANTE DA LEI – o artº. 1714º, nºs. 1 e 2, do Cód. Civil

O saneador sentença apelado, relativamente à presente vertente recursória, ajuizou nos seguintes termos:
- as quotas cedidas, que eram bens próprios dos Réus maridos, passaram a ser bens próprios das Rés mulheres, não tendo, em momento algum, passado a integrar qualquer património comum dos casais ;
- não foi outorgado entre os cônjuges qualquer contrato de compra e venda ou de sociedade, mas antes uma doação ;
- as doações entre casados são legalmente permitidas dentro de determinados condicionalismos, enunciados nos artigos 1761º e segs. do Cód. Civil, nomeadamente:
  • Desde que incidam sobre bens próprios (o artº. 1764º, nº. 1) ;
  • Desde que o regime de separação de bens não vigore de forma imperativa (artº. 1762º), o que sucede in casu ;
- assim, através da cessão de quotas, por doação, não se introduziu qualquer alteração no regime de bens, não se podendo assim concluir pela violação de disposição legal de natureza imperativa.

Tal entendimento é contestado pelos Recorrentes, invocando, em resumo, o seguinte:
Provando-se que os Réus cedentes A..... e José..... são casados sob o regime de separação de bens, as cessões de quotas em equação, “feitas por doação, a favor das suas respectivas mulheres, importaram uma alteração da qualificação dos bens, nomeadamente das quotas, enquanto participações sociais nas sociedades RR. Eu....., Q....., G....., P..... e C....., que antes integravam os patrimónios próprios daqueles RR., passaram a integrar os patrimónios próprios das respectivas mulheres ;
Apesar da sua livre revogação por parte do doador, e poderem caducar com a morte do donatário antes do doador (artigo 1766º, nº 1, alínea a) do Código Civil) ou ocorrendo divórcio ou separação judicial de pessoas e bens (artigo 1766º, nº 1, alínea c) do Código Civil), tal caducidade já não ocorre se o doador falecer antes do donatário, pelo que, tendo os bens doados passado a integrar o património destes, não farão parte do acervo patrimonial hereditário para os sucessores dos doadores ;
Podendo, ainda, as donatárias mulheres transmitir em vida os bens doados, sem necessidade de consentimento dos cônjuges doadores, atento o facto de estarem casados sob o regime da separação de bens, o que acaba por frustrar as salvaguardas legalmente previstas ;
Violando, deste modo, as cessões de quotas realizadas, o disposto no artº. 1714º, nºs. 1 e 2, do Cód. Civil, sendo esta uma norma de natureza imperativa, que consagra o princípio da imutabilidade das convenções antenupciais e do regime de bens resultantes da lei ;
Tal princípio assume um sentido amplo, devendo considerarem-se proibidos todos os negócios que impliquem uma modificação na composição das massas patrimoniais, pertencentes ao casal, incluindo não só as “as cláusulas constantes da convenção ou as normas do regime legalmente fixado, relativas à administração ou disposição de bens, mas também, como se conclui da leitura do nº 2 do artigo 1714º, a situação concreta dos bens dos cônjuges que interessa às relações entre estes ;
Apesar de alguns autores entenderem que aquela proibição inscrita no nº. 2, do artº. 1714º, do Cód. Civil, foi derrogada pelo artº. 228º, do Cód. das Sociedades Comerciais, que vem admitir a cessão de quotas entre os cônjuges, “ a melhor doutrina será a que defende que a norma contida no nº 2 do mencionado artigo 228º do CSC deve ser interpretada como reportada apenas às situações em que, de acordo com o previsto nas normas do Código Civil, a cessão de quotas entre cônjuges deve ter-se como válida, como acontecerá se os cônjuges estiverem separados judicialmente de pessoas e bens; fora destes casos, a cessão de quotas entre os cônjuges terá de considerar-se nula porque viola o princípio da imutabilidade” ;
Pelo que, tendo tais cessões sido efectuadas contra disposição legal de carácter imperativo, são as mesmas nulas, nos termos do artº. 294º, do Cód. Civil.

Na resposta apresentada, os Recorridos defendem a decisão impugnada, realçando que a cessão de quotas, operada por doação, não introduziu qualquer alteração no regime de bens em vigor.
Pelo que, consequentemente, não pode concluir-se pela violação de qualquer disposição legal de natureza imperativa.

Analisemos.

Prevendo acerca da imutabilidade das convenções antenupciais e do regime de bens resultantes da lei, estatui o artº. 1714º, do Cód. Civil, que:
1.Fora dos casos previstos na lei, não é permitido alterar, depois da celebração do casamento, nem as convenções antenupciais nem os regimes de bens legalmente fixados.
2.Consideram-se abrangidos pelas proibições do número anterior os contratos de compra e venda e sociedade entre os cônjuges, excepto quando estes se encontrem separados judicialmente de pessoas e bens.
3.É lícita, contudo, a participação dos dois cônjuges na mesma sociedade de capitais, bem como a dação em cumprimento feita pelo cônjuge devedor ao seu consorte”.
Por sua vez, prevendo acerca da transmissão entre vivos e cessão de quotas, aduz o nº. 2, do artº. 228º, do Cód. das Sociedades Comerciais, que “a cessão de quotas não produz efeitos para com a sociedade enquanto não for consentida por esta, a não ser que se trate de cessão entre cônjuges, entre ascendentes e descendentes ou entre sócios”.

Referenciam Pires de Lima e Antunes Varela [13]consagrar o transcrito artº. 1714º, do Cód. Civil, o princípio clássico da inalterabilidade das convenções antenupciais, na tradicional orientação dos países latinos, com base em três fundamentos principais.
Assim, “trata-se, em primeiro lugar, da solução que afasta o risco sério de um dos cônjuges se aproveitar do ascendente psicológico eventualmente adquirido sobre o outro, através do convívio uxório, para obter alterações favoráveis do regime inicialmente fixado. É certo que a lei admitiu (arts. 1178.º e segs. do Cód. de 1867), e ainda hoje permite (arts. 1761.º e segs.), doações entre casados, que podem facilmente enfermar do mesmo mal. Mas as doações entre casados eram e continuam a ser livremente revogáveis pelo doador (cfr. art. 1181.º do Cód. de 1867 e art. 1765.º do Código vigente), ao contrário do que naturalmente sucederia com as alte­rações introduzidas por acordo na convenção antenupcial anterior.
Diz-se, em segundo lugar, que, sendo as convenções antenupciais, por via de regra, verdadeiros pactos de família (chartes familiales lhes chama Savatier, est. cit., pág. 118), e não um simples ajuste de inte­resses circunscrito aos futuros nubentes, não faria grande sentido que elas pudessem, mais tarde, após a celebração do casamento, ser livremente alteradas por simples decisão dos cônjuges.
E apela-se, por fim, para a necessidade de salvaguardar os interesses de terceiros, cujas expectativas seriam bastante sacrificadas por um regime de livre modificabilidade das convenções, especialmente se as modificações introduzidas na primitiva convenção não estiverem sujeitas a um regime adequado de publicidade (Pereira Coelho, ob. cit., II, pág. 105)” (sublinhado nosso).

Relativamente ao alcance da imutabilidade, aduzem concluir-se do nº. 2 do mesmo artº. 1714º, do Cód. Civil, abranger aquela “não só as cláusulas constantes da convenção ou as normas do regime legalmente fixado, como ainda, de acordo com o verdadeiro espírito da regra, a situação jurídica de certos bens, cuja modificação envolva uma alteração concreta nos poderes ou deveres dos cônjuges.
«Todas estas regras, escreve Pires de Lima (Rev. Leg. Jur" ano 99.º, pág, 172) a propósito dos artigos 1105,°, 1096,º, 1141.º, 1564.º e 1181º do Código de 1867 (mas exprimindo um pensamento que tem perfeita apli­cação ao Código Civil em vigor), se harmonizam com a ideia geral do que não podem os cônjuges modificar o seu estatuto patrimonial depois da celebração do casamento. Não podem bens próprios entrar na comunhão; não podem bens comuns ser atribuídos em propriedade exclusiva a qualquer deles; não podem ser transmitidos, onerosa ou irrevogavelmente, os bens de um para o outro”.

Acrescentam, por fim, que a proibição de compra e venda entre os cônjuges sofreu, porém, uma séria derrogação, no que respeita à cessão de quotas entre os cônjuges, através do disposto, com algum ar de displicência, no nº. 2 do artigo 228º do Código das Sociedades Comerciais”.

Considerando que, teoricamente, é discutível a adopção do enunciado princípio da imutabilidade, mas que o mesmo foi reafirmado pelo legislador, que assim decidiu manter a orientação tradicional no nosso direito, aduz Rodrigues Bastos [14] que em seu favor costuma alegar-se a natureza de pactos de família que estas convenções habitualmente contêm, não sendo razoável admitir a sua livre modificação pela simples vontade dos cônjuges; depois, a prevenção ou cautela que a imutabilidade representa em face do even­tual ascendente psicológico de um dos cônjuges em relação ao outro, que a convivência marital quase sempre produz; finalmente, a defesa do legítimo interesse de terceiros, que podem transaccionar com os côn­juges tendo em conta um certo regime de bens destes, e não devem poder ser surpreendidos com a total subversão desse regime. Em con­trário da adopção deste princípio invoca-se a liberdade contratual dos cônjuges e seus legítimos interesses, que só poderão ser bem defen­didos, de acordo com a evolução do seu estatuto patrimonial, quando se lhe permita modificar o anteriormente convencionado a esse res­peito”.

As mesmas razões de consagração do princípio da imutabilidade encontram-se enunciadas por Rute Teixeira Pedro [15], ainda que formulando um juízo crítico quanto à sua manutenção, mas realçando a perduração do acolhimento da solução tradicional, que apenas consente as excepções inscritas no artº. 1715º, do Cód. Civil.

No que concerne ao âmbito de tal princípio, abrangerá o mesmo, inequivocamente, “as convenções matrimoniais e, consequente­mente, os regimes de bens aí escolhidos, mas também os regimes de bens que se apliquem por força da lei, seja supletiva (nos termos do art. 1717.°, aplica-se o regime da comunhão de adquiridos, na falta de convenção antenupcial, ou no caso de caducidade, invalidade ou ineficácia da mesma), seja imperativa (por força do art. 1720.°, aplica-se o regime de separação de bens)”.

Todavia, para além deste âmbito, existe divergência quanto ao exacto alcance do mesmo princípio.

Assim, à “luz de um entendimento mais amplo defendido por Antunes Varela e por Rita Lobo Xavier, o princípio da imutabilidade, para além do conteúdo preceptivo extraído da letra do nº 1, importaria a proibição da celebração pelos cônjuges de todos os negócios que, afetando a situação concreta dos bens próprios de cada um deles ou dos bens comuns do casal, importassem a sua transferência entre os vários patrimónios que podem existir no âmbito de uma relação matrimonial (patrimónios próprios dos cônjuges e património comum, quando exista). Por consequência, os cônjuges não poderiam, p. ex., celebrar contratos de compra e venda entre si, na medida em que deles decorrerá uma alteração da qualificação dos bens e, consequentemente, da composição daqueles patrimónios. O n.º 2 do art. 1714.º constituiria, assim, na esteira desta conceção, um corolário do princí­pio consagrado no n.º 1. Antunes Varela, cit., pp. 433 e 434, e Rita Lobo Xavier, cit., pp. 135 e ss.” (sublinhado nosso).

Em sentido diferenciado, acolhendo a adopção de um entendimento mais restritivo do princípio, pronunciaram-se “Pereira Coelho e Guilherme Oliveira, cit., pp. 576 e ss., segundo o qual o princípio apenas abrange o âmbito referido no n.º 1, sendo o n.º 2 uma extensão não contida no princípio, já que do mesmo não resultaria a proibição genérica da celebração, pelos cônjuges, de negócios que tenham por objeto bens concretos (sublinhado nosso).

O que parece decorrer claramente do nº. 2 é que, independentemente do regime de bens aplicável ao casamento, não podem os cônjuges celebrar, entre si, nem contratos de compra e venda, nem contratos de sociedade, ressalvando-se, apenas, a situação de ter sido decretada a separação de pessoas e bens (arts. 1794º e ss.)”.

Acrescenta a mesma Autora que, nos termos do entendimento já exposto, “as proibições contidas no n.º 2 constituem, segundo alguns (Pereira Coelho e Guilherme Oliveira, cit., p. 579, e Rute Teixeira Pedro, cit., p. 450), uma extensão das limitações resultantes do princípio consagrado no n.º 1 (que nele não caberiam) e segundo outros (Antunes Varela, Pires de Lima e Rita Lobo Xavier), meras concretizações desse princípio (que nele, portanto, já se encontravam contidas). Quanto aos partidários do último entendimento, não há unanimidade quanto à necessidade de se ter destacado a previsão normativa do n.º 2, na medida em que ela já decorreria da norma do n.º 1. Na verdade, se para Antunes Varela, se trata de um mero afloramento do n.º 1, diferentemente, Rita Lobo Xavier descobre-lhe um importante Significado. Para esta autora, os contratos de compra e venda e de sociedade (nos caso anteriormente referidos) são, sempre e necessariamente, proibidos, estando feridos de nulidade, enquanto os demais negócios jurídicos celebrados entre os cônjuges devem ser objeto de uma apreciação que, casuisticamente, determine se se encontram vedados pelo n.º 1, por importarem uma alteração da qualificação dos bens que integram os patrimónios próprios dos cônjuges ou o património comum do casal.

Assim, o desrespeito pelas proibições contidas neste normativo, cuja extensão variará em função do entendimento adoptado, importará, por força do art. 294º, a nulidade da estipulação que consubstancie a violação detetada (sublinhado nosso).

Ainda em termos doutrinários, referencia Rita Lobo Xavier [16] ter consagrado aquele artº. 1714º, do Cód. Civil, o enunciado princípio da imutabilidade dos regimes de bens, proibindo “qualquer altera­ção, posterior à celebração do casamento, às convenções antenupciais ou aos regimes de bens legalmente fixados. Ora este princípio veda, fora dos casos previstos na lei, qualquer alteração na situação concreta dos bens, e não apenas as modificações abstractas das normas do regime de bens ou da convenção antenupcial”.

Acrescenta que, independentemente do que se possa pensar ou considerar acerca da actualidade e pertinência do referenciado princípio, o certo é que ele continua a ter de ser respeitado e deve portanto ser considerado nulo qualquer acto que o ofenda, nomeadamente, a celebração de contrato de partilha dos bens do casal na vigência da relação matrimonial”.

Referencia, ainda, acerca do alcance de tal princípio, e diferenciação já supra exposta, relativamente a um âmbito mais alargado ou restrito do mesmo, perfilhar, neste ponto, a posição de Antunes Varela.

Assim, em sentido diferenciado, para Pereira Coelho, o princípio da imutabilidade em si mesmo não exclui que se modifique depois do casamento a situação concreta dos bens do casal, só não permite que depois da celebração do casamento se alterem, por nova convenção, as convenções antenupciais ou os regimes de bens legalmente fixados.
Repare-se que para quem entenda, como nós, que o princípio da imutabilidade veda qualquer alteração na situação concreta dos bens do casal, o facto de a partilha não ser um negócio translativo não obsta a que seja ofensivo de tal princípio”.

A mesma Autora, em diferenciada obra [17], referencia dispor o artº. 1764º, do Cód. Civil,  que só podem ser doados bens próprios do doador (n.° 1) e que os bens doados não se comunicam seja qual for o regime matrimonial (n.° 2). À primeira vista, ambas as proibições parecem fundar-se no respeito pelo princípio da imutabilidade. E, na verdade, a primeira impede que um dos cônjuges transmita ao outro o seu direito sobre bens comuns, ou seja, que transforme bens comuns em bens próprios do outro. A segunda não permite que um dos cônjuges transforme bens próprios em bens comuns.
Tratar-se-á assim da proibição de actos que envolveriam violações ao princípio da imutabilidade que, como vimos, não veda apenas a alteração do regime de bens dos cônjuges, mas também proscreve qualquer alteração indirecta deste regime pela mudança da composição das massas patrimoniais do casal. No entanto, repare­se que uma modificação deste tipo ocorre em qualquer doação entre cônjuges, mesmo que se trate somente da transformação de bens próprios de um em bens próprios do outro. E a lei admite esta última hipótese, em clara contradição com a regra da imutabilidade” (sublinhado nosso).

Acrescenta, reafirmando, que quando o regime escolhido é o da sepa­ração não existem quaisquer impedimentos às doações entre cônjuges. Todavia, justificar-se-iam, de igual modo, restrições derivadas do princípio da imutabilidade, já que, tendo os cônjuges optado por uma estrita separação de patrimónios, toda a transferência de bens entre eles verificada importa uma modificação no respectivo estatuto patrimonial.
E, de facto, em nosso entender, o legislador com estas normas específicas não curou de evitar violações ao princípio da imutabilidade. Esse princípio já estaria posto em causa fosse qual fosse o objecto de uma doação entre cônjuges” (sublinhado nosso).
Referencia, ainda, que se a nossa lei consagrou o princípio da imutabilidade,deveria coerentemente ter proibido as doações entre cônjuges''. Na verdade, as razões que se opõem à admissão das doações entre cônjuges são as mesmas que explicam a proibição de os cônjuges alterarem o seu regime de bens. Tais razões decorrem de uma mesma ideia: impedir um dos cônjuges de enriquecer injustamente à custa do outro. Em rigor, portanto, e como vimos atrás, a lei deveria proibir todos os actos que pudessem envolver deslocações sem contrapartida entre as várias massas patrimoniais por que se distribuem os bens do casal. Por outro lado, demonstrámos que, através de uma doação, os cônjuges podem conseguir os mesmos efeitos que resultariam de uma alteração do regime. Apesar de tudo isto, como acabámos de ver, o nosso Direito admite as doações entre pessoas casadas (sublinhado nosso).
E, realçando tal legal opção, explicita que os inconvenientes apontados às doações entre cônjuges foram devidamente ponderados pelos autores dos projectos que prepararam o actual Código Civil. Todavia, entenderam que nenhum deles era suficientemente forte para fundamentar um "corte com a tradição" portuguesa no sentido da aceitação das doações entre casados e que tinha a seu favor o facto de estas doações possibilitarem aos cônjuges a obtenção de certos resultados que só através delas podiam atingir. Além disso, julgaram que as desvantagens ligadas à admissão das doações entre casados estariam muito atenuadas se elas continuassem a ser, também de acordo com a tradição, revogáveis a todo o tempo pela simples vontade do doador”.
Por fim, ajuizando acerca do fundamento da proibição do contrato de compra e venda entre cônjuges, nos termos expressamente previstos no citado nº. 2, do artº. 1714º, ressalvada a situação de se encontrarem separados de pessoas e bens, aduz que alguns autores vêm entendendo que a proibição da compra e venda entre cônjuges foi derrogada no que respeita à cessão de quotas entre os cônjuges,através do n.° 2 do artigo 228° e do n.° 3 do artigo 229° do Código das Sociedades Comerciais”, dispondo a primeira das normas referidas dispõe que a cessão de quotas entre cônjuges não necessita do consentimento da sociedade”, enquanto na segunda “prevê-se que a exigência de tal consentimento possa ser convencionada no respectivo contrato de sociedade (neste sentido, PINTO FURTADO, Código das Sociedades Comerciais, 4' edição, p. 213, e PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado cit., p. 400)”.
Todavia, ressalva que no entendimento por si perfilhado a norma do CSC tem de ser interpretada em con­jugação com as normas do Código Civil que se referem à compra e venda e à doação entre cônjuges. Isto é, o artigo 228°, n.° 2, do CSC apenas dispensa o consentimento da sociedade para a cessão de quotas entre cônjuges que, nos termos da lei civil, for de considerar válida. Quando tal cessão se realizar através de um contrato de compra e venda, só será válida se os cônjuges estiverem separados judicialmente de pessoas e de bens (artigo 1714°, n.° 2, a contrario); se se tratar de um contrato de doação entre cônjuges casados num dos regimes de comunhão, tal cessão de quotas será válida desde que a quota cedida constitua um bem próprio do cônjuge doador (artigo 1762°) (cfr. RITA LOBO XAVIER, Reflexões..., cit., pp. 159 e 160). Neste mesmo sentido, veja-se CASTRO MENDES, Direito da Família, cit., p. 178 (este ponto deve atribuir-se a TEIXEIRA DE SOUSA, responsável pela revisão desta edição). Aí se escreve que a cessão de quotas deve ser regulada pelo negócio que lhe é subjacente, pelo que as restrições relativas à compra e venda e à doação entre cônjuges valem igualmente quando esses negócios têm por objecto uma cessão de quotas (sublinhado nosso).

Jursisprudencialmente, referencie-se o defendido no douto Acórdão da RP de 04/02/2016 [18] (citado na decisão apelada e alegações recursórias), o qual procura efectuar a articulação entre o disposto no artº. 1714º, nºs. 1 e 2, do Cód. Civil e o nº. 2, do artº. 228º, do Cód. das Sociedades Comerciais.

Enuncia que pressupondo este nº. 2, do artº. 228º, a validade da cessão de quotas entre cônjuges – ainda que fazendo depender a sua eficácia em relação à sociedade, do consentimento desta – considera algum setor da doutrina que esta norma teria derrogado, ao menos parcialmente, e no que concerne à cessão de quotas, a proibição que resultaria do nº 2 do artº 1714º do CC, sustentando por isso, ainda que em termos críticos, a validade da cessão de quotas entre cônjuges”.
Não sendo pacífica tal posição (conforme já supra sustentámos), diferenciado entendimento vai no sentidode que a norma contida no nº 2 do artº 228º do CSC deve ser interpretada como reportada apenas às situações em que, de acordo com o previsto nas normas do C.Civil, a cessão de quotas entre cônjuges deva ter-se como válida – como acontecerá se os cônjuges estiverem separados judicialmente de pessoas e bens, a que se refere a parte final do nº 2 do artº 1714º do CC - não implicando por isso derrogação, nem do disposto no nº 2 do referido artº 1714º do CC, quando prevê a proibição de compra e venda entre cônjuges, nem do princípio de imutabilidade dos regimes de bens e das convenções antenupciais consagrado em termos gerais no nº 1 do referido artº 1714º do CC. De acordo com esta posição, haveria de atender ao negócio que está na base da cessão. Se a cessão de quotas se concretizar através de um contrato de compra e venda entre cônjuges, a mesma apenas será válida se os cônjuges estiverem separados de pessoas e bens. Se o negócio que está na base da cessão de quotas for uma doação entre cônjuges casados num dos regimes de comunhão, tal cessão será válida se a quota cedida for bem próprio dos cônjuges doador (por a ter adquirido antes do casamento, por exemplo) - artº 1764º do CC e a doação for revogável. Fora destas situações em que existe disposição expressa da lei a considerar, excecionalmente, a validade da transmissão inter vivos, e entre cônjuges, da quota de sociedade comercial, a cessão de quotas entre cônjuges teria de considerar-se nula porque em violação do princípio de imutabilidade dos regimes de bens e das convenções antenupciais consagrado em termos gerais no nº 1 do referido artº 1714º do CC”.
Estas posições diferenciadas têm por base um distinto entendimento relativamente à amplitude ou abrangência do princípio da imutabilidade das convenções antenupciais e dói regime de bens.
Assim, numa aludida acepção mais ampla, este princípio implicará não só a proibição de alterar as cláusulas da convenção antenupcial, ou as regras do regime supletivo, em termos que tenham como consequência uma alteração da qualificação de bens e da sua integração no património comum ou no património de um dos cônjuges, mas também a proibição de alterar por via indireta, através da celebração de negócios jurídicos entre cônjuges sobre bens concretos, a qualificação de um qualquer bem determinado como bem próprio ou comum.
As exceções a este princípio, além das normas que expressamente se refira à possibilidade de contratos específicos entre os cônjuges - como é o caso do nº 2 do artº 1714º do CC - seriam apenas as previstas no nº 1 do artº 1715º do CC, e seriam sempre normas excecionais.
Por outro lado, e coerentemente com o princípio de imutabilidade assim entendido, seria desnecessário que o legislador incluísse normas específicas a prever a proibição de específicos contratos entre cônjuges, sendo esta previsão justificada a sua previsão pela maior probabilidade com que determinados contratos poderão de ser utilizados para alterar o estatuto patrimonial dos cônjuges.
Do princípio de imutabilidade de regime de bens e de convenções antenupciais, entendido nos termos amplos supra referidos, decorreria por sua vez a inadmissibilidade da cessão de quotas entre cônjuges, porquanto, mesmo considerando a inexistência de disposição expressa nesse sentido, implicaria sempre violação do referido princípio de imutabilidade, entendido nos termos sobreditos.
É esta, como referimos, a posição sustentada por P. Lima e A. Varela in C. Civil anotado, Vol. IV, citado pelo recorrente. Mas ao contrário do que parece ser a interpretação deste, aqueles autores entendem – ainda que em termos críticos - que a cessão de quotas entre cônjuges terá passado a ser válida com a introdução do nº 2 do artº 228º do CC, que teria vindo derrogar a proibição de compra e venda entre cônjuges – ob citada, págs. 400 – acolhendo assim a posição sustentada na decisão proferida nestes autos e conta a qual se insurgem os recorrentes”.
Já na aludida acepção mais restrita do mesmo princípio da imutabilidade do regime de bens, considera-se que do mesmo decorre apenas a proibição de alterar nos termos supra referidos o regime de bens fixado por lei ou resultante de convenção de bens, mas já não os negócios entre cônjuges que incidissem sobre bens concretos, a não ser quando essa proibição conste de normas especiais, como sejam o nº 2 do referido artº 1714º, do CC.
Este conceito restrito do princípio de imutabilidade dos regimes de bens ou das convenções antenupciais tem sido invocado para fundamentar a posição de quantos sustentam que, uma vez que o nº 2 do artº 1714º do CC não se refere a cessão de quotas entre cônjuges, mas apenas à compra e venda, não decorreria desse preceito qualquer proibição de cessão de quotas entre cônjuges, a qual seria por isso válida - a não ser quando a quota social cedida devesse considerar-se bem comum, e para quem entende que nesse caso a proibição da cessão entre cônjuges resultaria da própria natureza da comunhão enquanto património de mão comum.
À luz deste entendimento o disposto no nº 2 do artº 228º do CSC não implicaria por isso qualquer derrogação do princípio de imutabilidade ou do disposto no nº 2 do artº 1714º do CC que não abrangeriam na sua previsão a cessão de quotas entre cônjuges”.
Adrede, tendo tal aresto optado pelo conceito mais amplo do princípio da imutabilidade, e justificando tal opção, aduz que esta tem sido encontrada na necessidade de evitar que um dos cônjuges, abusando do ascendente ou influência que exerce sobre o outro e o casamento lhe deu, possa levar este a consentir numa alteração do regime de bens que lhe seja prejudicial, bem como na necessidade de acautelar os interesses de terceiros que tendo contratado com os cônjuges, poderiam ver frustrada a confiança depositada na garantia dada pelo património conjugal, se fosse admitida a alteração da massa patrimonial que o compõe.
Consequentemente com esta posição, subscrevemos também a posição de quantos sustentam que, muito embora não exista norma específica a proibir a cessão de quotas entre cônjuges, essa proibição decorre já do princípio de imutabilidade previsto no nº 1 do artº 1714º do CC.
No entanto, e no que concerne à previsão do nº 2 do artº 228º do CC, divergimos da posição dos que entendem que tal norma operou a derrogação do princípio da imutabilidade das convenções antenupciais e do regime de bens previsto no nº 1 do artº 1174º do CC, entendido nos termos sobreditos, ou da proibição constante do mesmo artº 1714º do CC,
considerando antes que tal norma terá de ser interpretada em harmonia e conjugação com aquele princípio e com esta proibição, e como tal interpretada como reportando-se apenas aquelas situações em que a cessão de quotas entre cônjuges deva ter-se como válida em face do disposto na lei civil.
Vista por este prisma a norma constante do nº 2 do artº 228º do CSC não representará uma derrogação do referido princípio de imutabilidade das convenções antenupciais e do regime de bens, consagrado no artº 1174º do CC, reportando-se apenas aquelas situações em que a cessão de quotas deva considerar-se como admissível, seja porque os cônjuges se encontram casados em regime de separação geral de bens – parte final do nº 2 do artº 1714º do CC – seja porque a cessão de quotas foi concretizada através de um contrato não proibido entre cônjuges, como é o caso da doação (sublinhado nosso) [19].

Exposto o presente enquadramento, é tempo de retornar ao caso concreto.
Assim:
- nos presentes autos está em equação a cessão da nua propriedade de quotas societárias, dos cônjuges maridos para as cônjuges mulheres, tendo tais cessões operado através de doações ;
- tais cônjuges, ainda que não imperativamente, são casados no regime de separação de bens ;
- a lei civil admite a existência de doações entre casados – o artº. 1761º, do Cód. Civil -, excepto se vigorar entre os cônjuges, de forma imperativa, o regime de separação de bens – o artº. 1762º, do mesmo diploma -, estatuindo-se que apenas podem ser objecto de doação bens próprios do doador, sendo que tais bens não se comunicam, seja qual for o regime matrimonial – o artº. 1764º, nºs. 1 e 2, ainda do mesmo diploma ;
- tais doações são susceptíveis, a todo o tempo, de revogação, por parte dos doadores maridos, sem que estes possam sequer renunciar a tal direito – o artº. 1765º, nº. 1, do Cód. Civil ;
- mesmo na adopção do entendimento mais amplo ou abrangente do princípio da imutabilidade inscrito no artº. 1714º, do Cód. Civil, que implicasse que, com excepção dos contratos de compra e venda e sociedade, expressamente enunciados no nº. 2 de tal normativo, os demais negócios jurídicos celebrados entre os cônjuges deveriam ser objecto de uma apreciação que, casuisticamente, determinasse se se encontram vedados pelo n.º 1, por importarem uma alteração da qualificação dos bens que integram os patrimónios próprios dos cônjuges ou o património comum do casal, tal entendimento nunca seria extensível às doações ora em equação ;
- efectivamente, admitindo a lei a doação entre os cônjuges, nomeadamente a transformação de bens próprios de um cônjuge em bens próprios do outro (ainda que para alguns dos entendimentos tal contradiga a enunciada regra da imutabilidade das convenções antenupciais), quando o regime em equação é o da separação, inexistem quaisquer impedimentos legais às doações entre os cônjuges ;
- o que sucede in casu, em que os bens (direitos) cedidos pelos cônjuges maridos às cônjuges mulheres são próprios, o regime dos casamentos em equação é o da separação (não imperativa) e, na sequência de tais doações, tais direitos passaram a figurar como bens próprios das cônjuges donatárias ;
- não se questiona que o citado nº. 2, do artº. 228º, do Cód. das Sociedades Comerciais, donde resulta a legal admissibilidade da cessão de quotas entre cônjuges, deva ser interpretado em conjugação com as normas do Código Civil que prevêem acerca da compra e venda e doação entre cônjuges ;
- ou seja, parece claramente dever depreender-se que aquele normativo apenas dispensa o consentimento da sociedade quando está em equação uma cessão de quotas entre cônjuges que seja considerada válida em face da lei civil ;
- precisando, a cessão de quotas, e o juízo de ponderação a  efectuar, deve ter por regulador o negócio que lhe é subjacente, pelo que as restrições relativas à compra e venda e às doações entre os cônjuges, civilisticamente previstas, são igualmente válidas quando tais negócios têm por objecto uma cessão de quotas ;
- assim, estando na base das cessões do direito à nua propriedade das quotas, doações entre os Réus cônjuges, casados no regime de separação de bens,  tais cessões são válidas, pois as quotas em equação constituíam bens próprios dos cônjuges doadores, passando a figurar como bens próprios das cônjuges donatárias ;
- inexistindo, deste modo, qualquer violação do princípio de imutabilidade dos regimes de bens e das convenções antenupciais consagrado em termos gerais no nº 1 do referido artº 1714º do Cód. Civil (e concretizado no nº. 2, do mesmo normativo), susceptível de determinar a nulidade das doações realizadas, por força do prescrito no artº. 294º, do mesmo diploma.
O que determina, neste segmento recursório, clara improcedência das conclusões recursórias.

-DA FALTA do PRÉVIO CONSENTIMENTO ou AUTORIZAÇÃO das SOCIEDADES na CESSÃO das QUOTAS EFECTUADA a TERCEIROS, e do DIREITO de PREFERÊNCIA das SOCIEDADES na CESSÃO de QUALQUER QUOTA

Relativamente ao presente segmento decisório, a decisão apelada ajuizou nos seguintes termos:
A cessão de quotas é admissível in casu, em virtude de se tratarem de bens próprios dos doadores, efectuada mediante a outorga de doações ;
Nesta situação, o nº. 2, do artº. 228º, do Cód. das Sociedades Comerciais dispensa o consentimento prévio ou a autorização da sociedade, em virtude de se tratar de cessão entre cônjuges ;
Todavia, e ademais, nas cessões outorgadas consta que tais sociedades dão consentimento às mesmas, tendo declarado, ainda, não pretenderem exercer a preferência ;
o Relativamente ao aludido conflito de interesses na pessoa dos Réus A..... e José....., estes efectuaram tais declarações na qualidade de gerentes das sociedades, em virtude de terem tal qualidade, incumbindo-lhes tal declaração ;
Porém, sendo dispensável o consentimento das sociedades, não é relevante saber se tais declarações tiveram ou não por subjacente uma declaração dos sócios ;
Ademais, os Autores não alegam que existiram tais deliberações, não as identificam e nem alegam ter procedido à sua impugnação, pelo que não cabe nesta sede apreciar da validade de eventuais deliberações.

Questionando tal entendimento, enunciam os Recorrentes, no essencial, que:
  • Foi cometido um manifesto erro de julgamento, pois “todas as cessões de quotas realizadas pelos RR. A..... e José....., primeiramente a favor de si próprios, no caso das sociedades RR. G..... e C....., Lda., bem como a favor das respectivas mulheres, em causa nestes autos, são manifestamente contrárias aos regimes previstos nos Pactos Sociais das respectivas sociedades” ;
  • Efectivamente, não foi tomada em consideração a factualidade considerada provada nos factos i), j), l), m) e n), pois, de acordo com as regras constantes dos pactos sociais de tais sociedades, só a cessão e divisão de quotas, no todo ou em parte, entre os sócios, era livremente permitida, sendo que a cessão a terceiros dependia sempre do prévio consentimento ou autorização da sociedade, gozando esta do direito de preferência na cessão de qualquer quota, em conjugação com o disposto no artigo 229º, nº 3 do Código das Sociedades Comerciais, que prevê que o contrato de sociedade pode exigir o consentimento desta para todas ou algumas das cessões referidas no artigo 228º, nº 2, parte final do mesmo CSC, incluindo as cessões entre cônjuges” ;
  • Não considerou, ainda, o Tribunal a quo o disposto no artº. 246º, nº. 1, alín. b), do Cód. das Sociedades Comerciais, o qual estabelece depender “de deliberação dos sócios o consentimento para a divisão e cessão de quotas e que o nº2, alínea d) do mesmo artigo estatui que compete também aos sócios deliberar sobre a alienação de participações noutras sociedades, não sendo, por isso, tais matérias da competência da gerência, cujas declarações são, assim, inválidas, não vinculando as sociedades RR. representadas pelos RR. A..... e José..... face ao disposto no nº 1 do artigo 260º do Código das Sociedades Comerciais” ;
  • Assim, não foi prestado um válido consentimento pelas sociedades comerciais em causa, pois os Réus A..... e José..... “não podiam deliberar quer a prestação do mencionado consentimento ou autorização das referidas sociedades RR. para as aludidas cessões de quotas, quer o exercício do respectivo direito de preferência por parte dessas sociedades, por estarem em conflito de interesses com a celebração dos negócios jurídicos em causa, nos quais figuram, simultaneamente, como partes adquirentes (cessionários) no caso das sociedades RR. G..... e C..... em relação às sócias cedentes SANTA....., S.A. e T....., Lda., e como partes alienantes (cedentes) em relação às sociedades RR. Eu....., Q....., G....., P..... e C....., de acordo com o disposto no artigo 251º, nº 1, todos do Código das Sociedades Comerciais” ;
  • Ademais, em relação à sociedade Autora T....., Lda., “a cessão das quotas que esta detinha na sociedade R. C....., a favor dos RR. A..... e José....., por corresponder à alienação, por parte de uma sociedade por quotas, de participações sociais noutra sociedade, dependia de deliberação dos sócios, nos termos do artigo 246º, nº 2, alínea d), do Código das Sociedades Comerciais, para a qual os RR. A..... e José..... estavam igualmente impedidos de votar, por estarem em conflito de interesses com a celebração dos negócios jurídicos em causa, nos quais figuram, simultaneamente, como partes adquirentes (cessionários), de acordo com o disposto no artigo 251º, nº 1, do Código das Sociedades Comerciais” ;
  • Assim, tais negócios jurídicos (cessões de quotas), ao violarem o disposto “nos artigos 229º, nº 3; 246º, nº 1, alínea b) – parte final e nº 2, alínea d); e 251º, nº 1, todos do Código das Sociedades Comerciais são nulos, segundo o estatuído no artigo 294º do Código Civil, e de nenhum efeito quanto aos cedentes das respectivas quotas, designadamente os RR. A..... e José..... em relação a todas as sociedades RR. EU....., Q..... G....., P..... e C....., assim como quanto à sociedade R. SANTA ....., S.A. e à sociedade A. T....., Lda. em relação, respectivamente, à cedência das suas quotas nas sociedades RR. G..... e C....., Lda. a favor dos RR. A..... e José.....”.

Na resposta contra-alegacional, aduzem os Recorridos, em súmula, que:
Conforme decorre do nº. 2, do artº. 228º, do Cód. das Sociedades Comerciais, sendo válidas as cessões e efectuadas entre cônjuges, é dispensado o consentimento prévio ou autorização das respectivas sociedades ;
Nos contratos de cessões de quotas em equação “é referido que as Sociedades em causa dão consentimento às mesmas e que não pretendem exercer a preferência – vide cláusula 3.ª dos contratos de cessões de quotas celebrados entre os Réus A..... e José..... para as esposas, e aqui Recorridas, Maria..... e Ana....., e cláusula 4.ª dos contratos de cessões de quotas celebrados entre os Recorridos A..... e José...... para as esposas, e aqui Recorridas, Maria ..... e Ana..... com intervenção da Sociedade Autora T..... e da Sociedade Recorrida Santa....., conforme Documentos n.º 56 a 60 juntos com a Petição Inicial” ;
Acresce que apesar do mencionado “contrato de cessão de quotas ter sido celebrado pelos Recorridos A..... e José....., que intervieram como parte alienantes (cedentes), quer como parte adquirentes (cessionários), não se verifica uma situação de negócio consigo mesmo, porquanto está excluída a possibilidade de um conflito de interesses no negócio em causa, segundo o previsto na parte final do nº 1 do art.º 261º do Código Civil, atendendo que os mesmos eram gerentes e administradores de todas as sociedades em causa”;
Pois, os Recorridos efectuaram aquelas declarações “na qualidade de gerentes, porque o eram e lhes cabia fazê-lo”, sendo, ademais, dispensável o consentimento da sociedade ;
Por fim o Recorrente V..... “não alega que existiram essas deliberações, nem as identifica, não alega ter impugnado qualquer deliberação das sociedades em questão, pelo que, entendeu (e bem) o Digníssimo Tribunal a quo não caber nesta sede apreciar da validade de eventuais deliberações”.

Decidindo:

Relembremos o prescrito no nº. 2, do artº. 228º, do Cód. das Sociedades Comerciais, prevendo acerca da transmissão entre vivos e cessão de quotas:
“a cessão de quotas não produz efeitos para com a sociedade enquanto não for consentida por esta, a não ser que se trate de cessão entre cônjuges, entre ascendentes e descendentes ou entre sócios”.
Acrescenta o nº. 3 do normativo seguinte – 229º -, prevendo acerca de cláusulas contratuais, que o contrato de sociedade pode exigir o consentimento desta para todas ou algumas das cessões referidas no artigo 228.º, n.º 2, parte final”.
Enunciando acerca das deliberações e competência dos sócios, prescreve o artº. 246º, nº. 1, alín. b), depender de deliberação dos sócios, para além de outros que a lei ou o contrato indicarem, a amortização de quotas, a aquisição, a alienação e a oneração de quotas próprias e o consentimento para a divisão ou cessão de quotas”, acrescentando a alínea d), do nº. 2, do mesmo normativo, competir também aos sócios deliberar, caso o contrato social não disponha diversamente, a subscrição ou aquisição de participações noutras sociedades e a sua alienação ou oneração”.
Prevendo a propósito do impedimento de voto, aduz o nº. 1, do artº. 251º, do mesmo diploma, que o sócio não pode votar nem por si, nem por representante, nem em representação de outrem, quando, relativamente à matéria da deliberação, se encontre em situação de conflito de interesses com a sociedade. Entende-se que a referida situação de conflito de interesses se verifica designadamente quando se tratar de deliberação que recaia sobre:
a)- Liberação de uma obrigação ou responsabilidade própria do sócio, quer nessa qualidade quer como gerente ou membro do órgão de fiscalização;
b)- Litígio sobre pretensão da sociedade contra o sócio ou deste contra aquela, em qualquer das qualidades referidas na alínea anterior, tanto antes como depois do recurso a tribunal;
c)- Perda pelo sócio de parte da sua quota, na hipótese prevista no artigo 204.º, n.º 2;
d)- Exclusão do sócio;
e)- Consentimento previsto no artigo 254.º, n.º 1;
f)- Destituição, por justa causa, da gerência que estiver exercendo ou de membro do órgão de fiscalização;
g)- Qualquer relação, estabelecida ou a estabelecer, entre a sociedade e o sócio estranha ao contrato de sociedade”.
Estatuído acerca da vinculação da sociedade, prescreve o nº. 1, do artº. 260º, ainda do Cód. das Sociedades Comerciais, que os actos praticados pelos gerentes, em nome da sociedade e dentro dos poderes que a lei lhes confere, vinculam-na para com terceiros, não obstante as limitações constantes do contrato social ou resultantes de deliberações dos sócios”.
Por fim, dispondo acerca do funcionamento da gerência plural, referencia o nº. 1, do artº. 261º, do mesmo diploma, que quando haja vários gerentes e salvo cláusula do contrato de sociedade que disponha de modo diverso, os respectivos poderes são exercidos conjuntamente, considerando-se válidas as deliberações que reúnam os votos da maioria e a sociedade vinculada pelos negócios jurídicos concluídos pela maioria dos gerentes ou por ela ratificados”.

Enunciemos, por referência a cada uma das sociedades, e aos actos transmissivos em sindicância, a factualidade relevante:

Eu....., Lda.:
- conforme facto i) provado, “o Pacto Social da sociedade Ré EU..... estipulava no seu artigo 8º que: “A cessão e divisão de quotas, no todo ou em parte, entre sócios, é livremente permitida e não carece de autorização da sociedade.” e constava do § 1º que: “Porém, não poderá ser efectuada a cessão a estranhos sem que previamente tenha sido oferecida à sociedade, indicando preço e condições de pagamento e identificação do interessado, ficando eventual e seguidamente os sócios com o direito de exercer o seu direito de preferência, se a sociedade o não pretender” ;
- conforme o artº. 5º do mesmo Pacto Social, tal sociedade possui o capital social de “cento e trinta e sete mil e dezanove euros e setenta e oito cêntimos, correspondente à soma de duas quotas iguais de sessenta e oito mil quinhentos e nove euros e oitenta e nove cêntimos, pertencentes uma a cada um dos sócios, A..... e José.....” ;
- acrescentando-se no artº. 6º que a gerência pertence àqueles dois sócios, vinculando-se a sociedade “com a assinatura de qualquer um dos seus gerentes” – cf., doc. nº. 61 junto com a petição inicial ;
- verifica-se, assim, que à data da cessão ora questionada, tal sociedade, cujo capital social era preenchido apenas por duas quotas, tinha apenas como sócios os mencionados A..... e José....., que eram igualmente gerentes, vinculando qualquer um deles a sociedade ;

Q....., Lda.:
- de acordo com o facto j) provado, “o Pacto Social da sociedade Ré Q..... estipulava no seu artigo 8º que: “A cessão e divisão de quotas, no todo ou em parte, entre sócios, é livremente permitida e não carece de autorização da sociedade.” e constava do § 1º que: “Porém, não poderá ser efectuada a cessão a estranhos sem que previamente tenha sido oferecida à sociedade, indicando preço e condições de pagamento e identificação do interessado, ficando eventual e seguidamente os sócios com o direito de exercer o seu direito de preferência, se a sociedade o não pretender” ;
- conforme o artº. 5º do mesmo Pacto Social, tal sociedade possui o capital social de “noventa e cinco mil setecentos e sessenta e nove euros e vinte cêntimos, correspondente à soma de duas quotas iguais de quarenta e sete e oitenta e quatro euros e sessenta cêntimos, pertencentes uma a cada um dos sócios, A..... e José .....” ;
- acrescentando-se no artº. 6º que a gerência pertence àqueles dois sócios, vinculando-se a sociedade “com a assinatura de qualquer um dos seus gerentes” – cf., doc. nº. 62 junto com a petição inicial ;
- verifica-se, assim, que à data da cessão ora questionada, tal sociedade, cujo capital social era preenchido apenas por duas quotas, tinha apenas como sócios os mencionados A..... e José....., que eram igualmente gerentes, vinculando qualquer um deles a sociedade ;

G....., Lda.:
- referencia a alínea l) da factualidade provada que “o Pacto Social da sociedade Ré G..... estipulava no seu artigo 11º, nº 1 que: “É livremente consentida a cessão, total ou parcial, de quotas entre os sócios, seja qual for a forma de que se revista.” e constava do nº 2 que: “A cessão a terceiros depende de prévio consentimento da sociedade, dado dentro do prazo de trinta dias a contar da recepção de carta registada com aviso de recepção dirigida à sede social da qual conste o preço e condições da transacção; a sociedade primeiro e os sócios depois gozam do direito de preferência na cessão de qualquer quota” ;
- conforme o artº. 4º do mesmo Pacto Social, tal sociedade possui o capital social de cinquenta mil euros “correspondente à soma das seguintes quotas: - uma de quarenta e oito mil euros, pertencente à sócia Santa....., S.A. ; uma de mil euros, pertencente ao sócio A....., e uma de mil euros, pertencente ao sócio José.....” ;
- acrescentando os artsº. 6º e 8º, do mesmo Pacto Social, que a gerência pertence aos sócios A..... e José....., sendo suficiente para a vinculação da sociedade “a intervenção de qualquer dos sócios gerentes” – cf., doc. nº. 43 junto com a petição inicial ;
- a sociedade Santa....., S.A., foi constituída mediante escritura pública datada de 29/12/1999, com o capital social de 50.000,00 €, “dividido em cinquenta mil acções do valor nominal de um euro cada uma, sendo a participação de cada sócio a seguinte:
* V.....: vinte e nove mil novecentos e noventa e oito euros.
* A..... e José.....: dez mil euros cada um.
* Maria..... e de José.....: um euro cada um” - cf., doc. nº. 1, junto pelos Autores com a resposta á contestação ;
-Consta do artigo 14º dos Estatutos desta sociedade, ser a Administração da mesma “exercida por um Conselho de Administração composto por três membros, accionistas ou não, designados trienalmente, com possibilidade de reeleição, pela Assembleia Geral”, designando o Conselho de Administração, entre os seus membros, um que será o Presidente - cf., doc. nº. 1, junto pelos Autores com a resposta á contestação ;
- consta do artigo 15º dos mesmos Estatutos que o “Presidente do Conselho de Administração representa a sociedade competindo-lhe especialmente convocar e dirigir as reuniões do Conselho de Administração”, acrescentando-se no ponto 2 do artigo 18º que “as deliberações do Conselho de Administração serão tomadas por maioria de votos de todos os membros que o compõem”, e na alínea a), do ponto 1, do artigo 19º, que a sociedade “obriga-se pela assinatura do Presidente do Conselho de Administração” -  cf., doc. nº. 1, junto pelos Autores com a resposta á contestação ;
- conforme certidão da matrícula comercial da mesma sociedade Santa....., S.A., consta como “Insc. 2 AP. 22/20081216”, referente á Designação de Membro(s) de Órgão(s) Social(ais), comporem o Conselho de Administração José..... (Presidente), A..... (Vogal) e Maria..... (Vogal), por referência ao triénio 2008/2010, sendo a data da deliberação 2008/10/31 - cf., doc. nº. 1, junto pelos Autores com a resposta á contestação ;
-constando como “Insc. 3 AP.12/20180801”, referente á Designação de Membro(s) de Órgão(s) Social(ais) e Secretário, comporem o Conselho de Administração José..... (Administrador), A..... (Administrador) e Maria..... (Administrador), por referência ao triénio 2018/2020, sendo a data da deliberação 2018/06/09  - cf., doc. nº. 1, junto pelos Autores com a resposta á contestação ;
- constata-se, assim, que à data da cessão questionada, com prévia divisão da quota de quarenta e oito mil euros, pertencente à sócia Santa....., S.A., em duas quotas de vinte e quatro mil euros, que foram transmitidas a cada um dos já sócios A..... e José ....., estes configuravam-se como os únicos sócios de tal sociedade, possuindo cada um deles uma quota de vinte e cinco mil euros ;

P....., Lda.:
- enuncia-se no facto m) provado que “o Pacto Social da sociedade Ré P..... estipulava no seu artigo 6º, nº 1 que: “A cessão de quotas é livre entre os actuais sócios e destes para os seus ascendentes ou descendentes.” e constava do nº 2 que: “Em todos os demais casos a cessão de quotas carecerá sempre do consentimento prévio da sociedade, a conceder nos termos da legislação aplicável” ;
- conforme os artºs. 5º e 11º do mesmo Pacto Social, tal sociedade possui o capital social de  vinte mil euros, “representado por duas quotas no valor nominal de dez mil euros cada, pertencente uma a cada um dos sócios” A..... e José....., sendo “a gerência exercida por dois gerentes eleitos em assembleia geral” ” – cf., doc. nº. 45 junto com a petição inicial ;
- verifica-se, assim, que à data da cessão ora questionada, tal sociedade, cujo capital social era preenchido apenas por duas quotas, tinha apenas como sócios os mencionados A..... e José ....., que eram igualmente gerentes, vinculando qualquer um deles a sociedade cf., ainda, a certidão permanente da matrícula comercial de tal sociedade, que constitui o doc. nº. 44 junto com a petição inicial ;

C....., Lda.:
- consta do facto n) provado que “o Pacto Social da sociedade Ré C..... estipulava no seu artigo 5º que: “A sociedade e os sócios, por esta ordem, gozam do direito de preferência na aquisição de quotas alienadas a estranhos” ;
- constando do artº. 3º, do mesmo Pacto Social, que a sociedade possui o capital social de cinco mil euros, “correspondente á soma de duas quotas dos valores nominais de dois mil e quinhentos euros da única sócia” ;
- e do artº. 4º, ainda do mesmo Pacto, pertencer a gerência da sociedade “aos dois sócios que desde já são nomeados gerentes, bastando a intervenção de um deles para que a sociedade se considere validamente obrigada” - – cf., doc. nº. 63 junto com a petição inicial ;
- conforme certidão da matrícula comercial de tal sociedade, consta sob a inscrição 8 – AP. 4/20060111 – a transmissão de 2 quotas de 2.500,00 €, tendo como sujeito activo T.....Trust, Reg, e como sujeito passivo Investimentos D....., S.A. ;
-figurando na mesma certidão, como “Menção Dep. 1807/2018-08-01” e “Menção Dep. 1808/2018-08-01”, transmissão das mesmas quotas, tendo como sujeitos activos A..... e José....., e como sujeito passivo T....., Lda. - cf., ainda, a certidão permanente da matrícula comercial de tal sociedade, que constitui o doc. nº. 46 junto com a petição inicial ;
- conforme certidão da matrícula comercial da sociedade T....., Lda., consta como “Insc. 1 – AP. 379/20141218”, referente a Constituição de Sociedade e Designação de Membro(s) de Órgão(s) Social(ais), ser a mesma titulada por duas quotas de 219.801,00 Euros, pertencente, cada uma delas, a A..... e José ....., e por uma quota de 1,00 €, pertencente, em partes iguais, a A..... e José.....;
-consta da mesma inscrição ser a gerência exercida por A..... e José....., que a sociedade obriga-se mediante a “intervenção de um gerente”, como data de deliberação2014-09-08” e como “menção: Redomiciliação da sociedade T..... Limited com sede em Malta” - cf. a certidão permanente da matrícula comercial de tal sociedade, que constitui o doc. nº. 4 junto com a petição inicial.

Aqui chegados, constatemos o seguinte:
- resulta indubitável que, estando-se perante cessão de quotas operada entre cônjuges, nos termos já supra apreciados, estaria a mesma, prima facie, dispensada do consentimento ou autorização das sociedades, para que produzisse efeitos relativamente a estas, nos termos do nº. 2, do artº. 228º, do Cód. das Sociedades Comerciais ;
- todavia, conforme decorre do nº. 3, do artº. 229º, do mesmo diploma, pode o contrato de sociedade exigir o seu consentimento para todas ou algumas das cessões referenciadas na parte final daquele normativo ;
- o que foi expressamente convencionado no pacto social da sociedade G....., Lda. ao consignar-se que a cessão a terceiros depende de prévio consentimento da sociedade, dado dentro do prazo de trinta dias a contar da recepção de carta registada com aviso de recepção dirigida à sede social da qual conste o preço e condições da transacção ;
- bem como relativamente à sociedade P....., Lda., consignando-se que, com excepção da cessão entre os sócios e destes para os seus ascendentes e descendentes,  a cessão de quotas carecerá sempre do consentimento prévio da sociedade, a conceder nos termos da legislação aplicável” ;
- donde, relativamente a estas sociedades, impunha-se o seu consentimento, para que as cessões pudessem, perante si, produzir efeitos ;
- ora, conforme resulta do facto provado g), subalíneas i) e iv), tal declaração foi efectivamente efectuada, resultando claramente que os indicados A..... e José..... representavam, à data tais sociedades, vinculando-as ;
- não se vislumbrando que, relativamente às demais, tal exigência resulte dos seus pactos sociais ou estatutos, funcionando, assim, relativamente a estas a dispensa de consentimento ou autorização inscrita na parte final daquele nº. 2, do artº. 228º, do Cód. das Sociedades Comerciais.
- no que respeita ao alegado direito de preferência na cedência das quotas, verifica-se que este foi convencionado nos pactos societários das sociedades Eu....., Lda. Q....., Lda.,  G....., Lda. e C..... Lda., primeiramente as favor das próprias sociedades e, subsidiariamente, a favor dos sócios ;
- ora, resulta da totalidade das cessões enunciadas em g) (inclusive no que concerne à sociedade P....., Lda.), terem as sociedades, aí devidamente representadas, bem como os sócios (únicos sócios, aí igualmente intervenientes enquanto cedentes), declarado não pretenderem exercer qualquer direito de preferência ;
-inexistindo, assim, qualquer inobservância do direito de preferência societário, nem daquele que, subsidiariamente, os sócios gozavam.

Invocam, todavia, ainda, os Recorrentes não ter o Tribunal a quo considerado o disposto no artº. 246º, nº. 1, alín. b), do Cód. das Sociedades Comerciais, o qual estabelece depender “de deliberação dos sócios o consentimento para a divisão e cessão de quotas e que o nº2, alínea d) do mesmo artigo estatui que compete também aos sócios deliberar sobre a alienação de participações noutras sociedades, não sendo, por isso, tais matérias da competência da gerência, cujas declarações são, assim, inválidas, não vinculando as sociedades RR. representadas pelos RR. A..... e José..... face ao disposto no nº 1 do artigo 260º do Código das Sociedades Comerciais”.
Acrescentam não ter sido assim prestado um válido consentimento pelas sociedades comerciais em causa, pois os Réus A..... e José .....“não podiam deliberar quer a prestação do mencionado consentimento ou autorização das referidas sociedades RR. para as aludidas cessões de quotas, quer o exercício do respectivo direito de preferência por parte dessas sociedades, por estarem em conflito de interesses com a celebração dos negócios jurídicos em causa, nos quais figuram, simultaneamente, como partes adquirentes (cessionários) no caso das sociedades RR. G..... e C..... em relação às sócias cedentes SANTA....., S.A. e T....., Lda., e como partes alienantes (cedentes) em relação às sociedades RR. Eu....., Q....., G.....I, P..... e C....., de acordo com o disposto no artigo 251º, nº 1, todos do Código das Sociedades Comerciais”.

Ora, não cremos que assista qualquer razão aos Apelantes.
Com efeito, conforme resulta do supra exposto, os intervenientes nas declarações prestadas eram os únicos sócios daquelas sociedades, e seus legais representantes, pelo que não pode aludir-se à ausência de deliberação dos sócios para a concretizada cessão.

O que é igualmente extensível à intervenção da sociedade anónima Santa....., no âmbito da divisão e cessão da quota que dispunha na sociedade G....., Lda., atenta a sua representação operacionalizada pelo seu Administrador e os poderes estatutários de que este dispunha.

Bem como no que concerne á intervenção da sociedade T....., Lda., enquanto única sócia da sociedade C....., Lda., sendo que os intervenientes, enquanto cedentes das duas quotas daquela na C....., eram os seus únicos sócios e legais representantes (à data). Ou seja, estando-se perante os únicos sócios daquela sociedade, e independentemente dos contornos da eventual deliberação societária, não pode falar-se em postergação desta, pois os únicos sócios tiveram concreta e directa intervenção naquele acto transmissivo.

Por outro lado, também não descortinamos pertinência na alegação da existência de conflito de interesses nas pessoas dos Réus A..... e José..... .

Efectivamente, conforme consta da decisão recorrida, as declarações efectuadas pelo Réu A....., enquanto Administrador da Santa....., S.A., e enquanto gerente da T....., Lda., no primeiro caso, dividindo e transmitindo onerosamente a quota que tal sociedade possuía na G....., Lda. e, no segundo caso, cedendo onerosamente as duas quotas que a T....., Lda., possuía na C....., Lda. (da qual era a única sócia), foram prestadas naquela qualidade, de que era legitimamente titular, não se confundindo aquele seu âmbito de intervenção, com o de cessionário oneroso de tais quotas, e posterior cedente doador da nua propriedade das mesmas á cônjuge.

Situação em que não pode aludir-se encontrar-se em conflito com o interesse daquelas sociedades, quando é certo que aquela representação lhe incumbia e, ademais, relativamente à T....., o demais sócio era igualmente um dos cessionários intervenientes e, relativamente à Santa....., S.A., era co-administrador.

E isto, para além da validade deliberatória decorrente do funcionamento da gerência plural (que ocorria), nos termos equacionados para a sociedade por quotas (T.....,Lda.), decorrente do prescrito no nº. 1, do artº. 261º, do Cód. das Sociedades Comerciais.

Donde, não é admissível concluir, conforme fazem os Recorrentes, no sentido de que a cessão de quotas que a sociedade T.....,Lda. (ora Autora) detinha na sociedade C....., Lda., a favor dos Réus A..... e José....., por corresponder á alienação, por parte de uma sociedade por quotas, de participações sociais noutra sociedade, e depender de deliberação dos sócios, nos termos do transcrito artº. 246º, nº. 2, alín. d), do Cód. das Sociedades Comerciais, implicava que estes mesmos Réus sempre estariam impedidos de votar, por estarem em conflito de interesses com a celebração dos negócios jurídicos em causa, nos quais figuravam, em simultâneo, como partes adquirentes/cessionários, conforme o prescrito no nº. 1, do artº. 251º, do mesmo diploma.

Efectivamente, sendo aqueles, à data, os únicos sócios da sociedade T....., Lda., na qual desempenhavam ainda as funções de gerência, tal incompatibilidade não pode ser reconhecida, destinando-se o impedimento de voto inscrito naquele artº. 251º para diferenciadas situações em que, existindo outros sócios, a matéria da deliberação implique com a posição pessoal de determinado sócio, em confronto com os interesses da própria sociedade.

E não, propriamente, para aquelas situações em que a matéria de deliberação é praticada pelos únicos sócios da sociedade, ou seja, por aqueles a quem competia a deliberação, pois, entender-se de outro modo conduziria à necessária paralisação societária.

Por fim, também não pode deixar de notar-se, tal como fez a decisão apelada, que os Autores não alegam sequer se existiram ou não tais deliberações, não procedem à sua identificação e não alegam terem procedido à sua eventual impugnação, não cumprindo, deste modo, aquilatar ou aferir acerca da validade de eventuais ou putativas deliberações.

O que determina, igualmente nesta vertente, juízo de improcedência das conclusões recursórias.


-DA OUTORGA de NEGÓCIOS JURÍDICOS COM FIM CONTRÁRIO à LEI e OFENSIVOS aos BONS COSTUMES

Os Autores fundamentaram ainda o seu petitório no facto dos negócios serem também nulos, pelo facto do seu fim ser, não só contrário à lei, como ainda ofensivos aos bons costumes.

A decisão recorrida, neste vertente, ajuizou nos seguintes termos:
  • Os Réus A..... e José..... eram titulares das quotas, sendo, como tal, livres de disporem das mesmas ;
  • A procuração outorgada a favor do Autor V....., e posteriormente revogada, não os impedia de o fazer ;
  • Efectivamente, tentar evitar que o Autor, munido dessa procuração, viesse a celebrar negócios, em representação dos Réus, contra os seus interesses e das empresas de que são sócios, não configura um fim nem ilícito, nem ofensivo dos bons costumes ;
  • Os Réus revogaram a procuração, a qual só se torna eficaz quando se dá a conhecer ao destinatário, pelo que, mesmo que o interesse dos Réus fosse ceder as suas quotas antes que o Autor o fizesse, em sua representação, tal é perfeitamente justificado ;
  • A procuração em causa não tem natureza irrevogável, nem resulta da mesma que tenha sido atribuída também no interesse do procurador, pelo que é livremente revogável ;
  • Todavia, ainda que o Autor V..... lograsse demonstrar que a procuração foi passada também no seu interesse e que, como tal, era irrevogável, constatar-se-ia que não haviam sido observadas as exigências de forma contidas no nº. 2, do artº. 116º, do Cód. do Notariado ;
  • Resulta, em face do texto da procuração, que a mesma era livremente revogável, inexistindo qualquer interesse do procurador a acautelar ;
  • Pelo que os Réus podiam, como fizeram, revogar a mesma e, na posse dos poderes de disposição sobre os seus bens e direitos, proceder às doações que entenderam fazer ;
  • Assim, mesmo seguindo a perspectiva dos Autores, os negócios em causa não prosseguiram um fim ilícito, contrário à lei ou ofensivo dos bons costumes.
 
Enunciando ter o Tribunal a quo incorrido em manifesto erro de julgamento, invocam os Recorrentes, em súmula, o seguinte:
As procurações outorgadas pelos Réus A..... e José....., a favor do Autor V....., foram lavradas “por instrumento público notarial, observando assim a primeira parte do nº 2 do artigo 116º do Código do Notariado quanto à forma legal prescrita para as procurações conferidas também no interesse de procurador e, por conseguinte, não violando o disposto nos artigos 220º e 364º do Código Civil, contrariamente ao decidido na sentença recorrida” ;
Pelo que, o disposto na 2ª parte, do nº. 2, do mesmo artº. 116º, do Cód. do Notariado, “quando dispõe que o original da procuração conferida também no interesse de procurador deve ser arquivado no cartório notarial, respeita a uma mera formalidade legal e não à forma legal propriamente dita, enquanto modo mais solene de exteriorização da vontade (através de documento escrito autêntico, artigo 363º, nº 2 do Código Civil), pelo que a inobservância dessa mera formalidade legal, tal como sucedeu no caso “sub judice”, não afecta a validade e eficácia das ditas Procurações conferidas também no interesse de procurador em face dos citados artigos 220º e 364º do Código Civil, não sendo, portanto, aquelas Procurações livremente revogáveis, sem o acordo do interessado, segundo o previsto no artigo 265º, nº 3 do Código Civil” ;
Acresce que, não obstante a outorga das cessões de quotas dos Réus maridos para as Rés mulheres, mantiveram estes o usufruto das mesmas, ou seja, apesar daquelas passarem a integrar o património das Rés, aqueles continuaram a manter nas suas esferas jurídicas os principais direitos sociais, quer de natureza pessoal (direito de voto), quer patrimonial (direito aos lucros e direito à quota de liquidação)”, o que evidencia ilicitude do fim dos negócios jurídicos e a sua contrariedade á lei e aos bons costumes ;
Donde parece resultar que os Réus, e respectivas mulheres, tiveram como único fim ou desiderato “afastar a possibilidade do A. V....., através dos instrumentos de representação voluntária (procurações) que lhe tinham sido outorgados pelos RR. A..... e José....., em 05 de Fevereiro de 2014, agir sobre o património mobiliário e imobiliário afecto à esfera jurídica das sociedades RR. Eu....., Q....., G....., P..... e C....., o qual foi construído e angariado pelo A. V..... ao longo de muitos anos de trabalho e que se encontrava apenas fiduciariamente na titularidade dos filhos, os RR. A..... e José.....” ;
O que determina que aquelas cessões de quotas “revestem-se de uma ilicitude do fim, porque contrário à lei, o qual por ser comum a ambas as partes (cedentes e cessionárias) conduz à nulidade destes negócios jurídicos, atendendo ao previsto no artigo 281º do Código Civil”.

Em sede contra-alegacional, aduzem os Apelados, em resumo,que:
  • Os contratos de cessões de quotas com reserva de usufruto tiveram como finalidade “salvaguardar o património pertencente aos Recorridos A..... e José....., na sequência da procuração outorgada e evitar que o Procurador V....., aqui Recorrente, munido dessa procuração, celebrasse negócios em representação dos Recorridos contra os seus interesses e das empresas de que são sócios” ;
  • Sendo os únicos titulares das quotas que compunham o capital social de tais sociedades, enquanto legítimos titulares de tais participações sociais “podiam ceder, vender, doar, hipotecar, onerar por qualquer modo e delas dispor como bem entenderem” ;
  • Por outro lado, a doação entre cônjuges é um meio usual, não violando qualquer direito, princípio ou costume, sendo inclusive um meio privilegiado da família S....., desde logo utilizado pelo Recorrente V..... que já doou acções aos seus filhos ;
  • Sendo a procuração livremente revogável e inexistindo qualquer interesse do procurador a acautelar, podiam os Recorridos proceder á sua revogação e, “na posse dos poderes de disposição sobre os seus bens e direitos, proceder às doações que entenderam fazer” ;
  • Ademais, ainda que o Recorrente lograsse conseguir demonstrar “que a procuração foi passada também no seu interesse – o que não fez – e que, por isso, era irrevogável, sempre se constataria que – a assim ser – não tinha observado a exigência de forma”.

Decidindo:

Estatuindo acerca dos requisitos do objecto negocial, dispõe o artº. 280º, nºs. 1 e 2, do Cód. Civil, que:
“É nulo o negócio jurídico cujo objecto seja física ou legalmente impossível, contrário à lei ou indeterminável.
2.- É nulo o negócio contrário à ordem pública, ou ofensivo dos bons costumes”.

A declaração negocial, regulada nos artigos 217º e segs. do Cód. Civil,  configura-se como um verdadeiro elemento do negócio, uma realidade componente ou constitutiva da estrutura do negócio”, tendo normalmente como elementos constitutivosa declaração propriamente dita (elemento externo) – consiste no comportamento declarativo” e “a vontade (elemento interno) – consiste no querer, na realidade volitiva que normalmente existirá e coincidirá com o sentido objectivo da declaração”.

Por sua vez, os requisitos do objecto negocial encontram-se enunciados no artº. 280º, do Cód. Civil, inferindo-se deste serem condições de validade do negócio jurídico a possibilidade física ou legal («ad impossibilia nemo tenetur»), a não contrariedade á lei (licitude), a determinabilidade, a não contrariedade à ordem pública e a conformidade com os bons costumes do objecto negocial.

Relativamente ao conceito de contrariedade á lei (ilicitude), deve ser entendido que o objecto negocial tem tal natureza quando viola uma disposição da lei, isto é, quando a lei não permite uma combinação negocial com aqueles efeitos (objecto imediato ou sobre aquele objecto mediato). Note-se que devem ser considerados contrários à lei, não só os negócios que frontalmente a ofendem (negócios «contra legem»), mas também, quando se constate, por interpretação, que a lei quis impedir, de todo em todo, um certo resultado, os negócios que procuram contornar uma proibição legal, tentando chegar ao mesmo resultado por caminhos diversos que a lei expressamente previu e proibiu (negócios em fraude à lei)”.

Por sua vez, o conceito de ofensa aos bons costumes não traduz a remessa do juiz para uma averiguação empírica dos usos, pois remete-se para os bons usos, mas também não se faz apelo a uma ética ideal, de carácter eterno. Os «bons costumes» são uma noção variável, com os tempos e os lugares, abrangendo o conjunto de regras éticas aceites pelas pessoas honestas, correctas, de boa fé, num dado ambiente e num certo momento”, aludindo-se que o Supremo Tribunal alemão empregava frequentemente a fórmula é o sentido do decoro ou da dignidade de todas as pessoas que pensam com equidade e justiça”.
Decorre, assim, que a infracção de qualquer dos enunciados requisitos ou exigências do objecto negocial implica a nulidade do negócio jurídico”, independentemente de as partes conhecerem ou deverem conhecer o vício de que padece o objecto negocial
Assim, a inobservância de qualquer das exigências formuladas naquele normativo – artº. 280º -, acerca dos requisitos do objecto negocial, determinará a nulidade do negócio jurídico, o que sucederá independentemente de as partes conhecerem ou deverem conhecer o vício de que padece o objecto negocial [20]

Por outro lado, no âmbito da representação voluntária, referencia o artº. 262º, do Cód. Civil, prevendo acerca do conceito de procuração, traduzir-se esta no acto pelo qual alguém atribui a outrem, voluntariamente, poderes representativos”, revestindo, salvo disposição legal em contrário, a forma exigida para o negócio que o procurador deva realizar”.

Por sua vez, dispondo acerca da extinção da procuração, estatui o artº. 265º, do mesmo diploma, que:
1.- A procuração extingue-se quando o procurador a ela renuncia, ou quando cessa a relação jurídica que lhe serve de base, excepto se outra for, neste caso, a vontade do representado.
2.-A procuração é livremente revogável pelo representado, não obstante convenção em contrário ou renúncia ao direito de revogação.
3.- Mas, se a procuração tiver sido conferida também no interesse do procurador ou de terceiro, não pode ser revogada sem acordo do interessado, salvo ocorrendo justa causa”.

Urge, então, apreciar se os Réus José ..... e A....., ao procederem à revogação das procurações descritas em f), datadas de 05/02/2014, que haviam outorgado a favor do seu pai, e ora Autor, V....., o que efectivaram em 28/06/2018 – cf., facto o) -, procedendo, posteriormente, às cessões da nua propriedade das quotas societárias (cessão das quotas com reserva de usufruto), nos termos descritos no facto g), visaram um fim contrário à lei e ofensivo dos bons costumes.

No presente âmbito recursório, parece indubitável, pela sua pertinência, devermos citar o douto Acórdão do STJ de 29/09/2020 [21], quer no que respeita ao conceito de procuração irrevogável, legalmente prevista no nº. 3 do transcrito artº. 265º, do Cód. Civil, e natureza das formalidades necessárias para a sua válida constituição.
Precisando, o objecto recursório ali apreciado reporta-se à questão jurídica referente à validade ou invalidade da procuração irrevogável objecto daqueles autos, nomeadamente no aferir se é nula por falta de forma, em virtude de, tal como parece impor o nº. 2, do artº. 116º, do Cód. do Notariado, não ter sido arquivada no Cartório Notarial.
Começa por referenciar-se em tal douto aresto que procuração é o negócio jurídico unilateral, por meio do qual alguém - o dominus - atribui a outrem - o procurador - poderes para que este celebre negócios ou pratique outros atos jurídicos em sua representação e o substitua, assim, na prática desses atos ou negócios. O negócio jurídico realizado pelo representante em nome do representado, nos limites dos poderes que lhe competem, produz os seus efeitos na esfera jurídica deste último (art. 258º), sendo anulável o negócio celebrado pelo representante consigo mesmo, seja em nome próprio, seja em representação de terceiro, a não ser que o representado tenha especificadamente consentido na celebração, ou que o negócio exclua por sua natureza a possibilidade de um conflito de interesses (artigo 261.º, n.º 1)”.
Acrescenta-se prever o nº. 3, do artº. 265º, a possibilidade de a procuração ter sido conferida também no interesse do procurador. A principal consequência dessa alteração de equilíbrio de interesses relevantes na procuração é a irrevogabilidade da procuração. Porém, a referida norma, prevendo “procuração no interesse comum do dominus e procurador” e indicando a principal consequência, não refere quando é que se deve considerar que a procuração é no interesse de dominus e procurador, nem o que deve entender-se por “interesse”, nem ainda sobre o que deve recair o “interesse””.
Procurando responder a tais questões, cita Pedro Pais de Vasconcelos [22], alertando que o dominus tem, em princípio, um qualquer motivo para outorgar, pois de outro modo não o faria. De modo semelhante, também o procurador tem algum motivo para não renunciar à procuração e para exercer os poderes de representação. Há sempre uma razão que leva o procurador a exercer os poderes outorgados. No entanto essa razão não pode ser considerada como um interesse relevante para aferir se a procuração é no interesse exclusivo do dominus ou no interesse comum. Se assim fosse, verificar-se-ia que todas, ou quase todas, as procurações seriam no interesse comum.
O interesse que é relevante na concretização do regime jurídico da procuração, no que respeita à revogabilidade pode ser designado por interesse primário, enquanto o interesse que não é juridicamente relevante para aferir desse regime jurídico pode ser designado por interesse secundário
E, mais à frente o mesmo autor esclarece que “o que é essencial, para que se trate de uma procuração no interesse comum, é que haja mais de um interesse primário – mais de um interesse juridicamente relevante – na conclusão do negócio que constitui a relação subjacente à procuração. (…) O procurador terá um interesse na procuração quando esta for útil para prosseguir um fim deste, no quadro da relação subjacente. (…) O interesse primário deve por isso ser próprio, específico, objetivo e direto na execução do negócio que constitui a relação subjacente, de tal modo que o procurador tenha uma posição própria no âmbito da relação de representação, uma posição autónoma da posição da pessoa que representa. Uma posição que lhe permita exercer a sua própria vontade negocial diferentemente e autonomamente da vontade negocial do outorgante da procuração, dentro daquilo que a relação subjacente lhe permita ou de acordo com o que a relação subjacente implique, uma posição que atribua ao procurador um poder próprio” - Ob. Cit. Págs. 102 a 105 (sublinhado nosso).
Assim, desde que exista um interesse relevante do procurador na procuração e que este interesse seja emergente da relação subjacente, a procuração é irrevogável nos termos do mencionado preceito. Não se trata, assim, de uma questão de poder ou não ser irrevogável, ou de poder ou não estipular a sua revogabilidade, o que releva é a verificação desse interesse relevante de ambos decorrente da relação subjacente – cfr. Pedro Pais de Vasconcelos, ob. Cit. Pág. 103/104 e Acórdão do Supremo Tribunal Justiça de 4-7-2019, Proc. 2939/15.0T8STR.E1.S1, em www.dgsi.pt.
Todavia, nas situações em que é de concluir pela irrevogabilidade da procuração, deve esta obedecer a requisitos de forma para que a validade do ato celebrado (a escritura publica) não viesse a ser afetada (art. 268º do Código Civil)”.
Neste desiderato, urge então atentar ao disposto no nº. 2, do artº. 116º, do Cód. do Notariado, o qual dispõe que as procurações conferidas também no interesse de procurador ou de terceiro devem ser lavradas por instrumento público cujo original é arquivado no cartório notarial”.
Tal “exigência foi introduzida no art. 127º do Cód. Notariado, aprovado pelo DL. 67/90 de 1 de março de 1990, introduzindo-lhe um nº3, e veio, depois, a ser reafirmada pelo novo Código do Notariado, aprovado pelo DL. 207/95, de 14 de agosto, transitando para art. 116º nº3 e constando agora no nº2 da mesma norma, mercê da alteração introduzida pelo DL. 250/96, de 24 de dezembro.
O regime de forma legal das procurações, que era unitário no Código de Notariado, aprovado pelo DL 47619 de 31 de março de 1967, passou, após as alterações introduzidas pelos referidos decretos leis, a ser distinto consoante a procuração fosse outorgada no interesse exclusivo do dominus ou também no interesse do procurador ou de terceiro, situação que o art. 265º, nº3 do Código Civil também já tinha acautelado para efeitos de revogabilidade, impondo que a revogação das procurações passadas também no interesse do procurador, fosse por mutuo acordo, salvo ocorrendo justa causa.
O regime especial da procuração irrevogável, ao passar a comportar um maior risco para o dominus, exigia agora uma certeza quanto à garantia de conformidade com a vontade do dominus, que não era suficientemente satisfeita com uma declaração que constasse de documento simples, ainda que reconhecido notarialmente.
Desta feita, a aludida norma do art. 116º do Cód. Notariado veio trazer àquele ato uma solenidade acrescida, com a intervenção do notário na execução/redação do conteúdo ínsito na procuração, podendo concluir-se que « (…) a “ratio” do nº2 do art. 116º do Cód. Notariado, e o seu sentido jurídico traduzem-se num agravamento do regime formal da procuração irrevogável, em relação ao regime geral. Este agravamento tem uma finalidade de tutela da liberdade de discernimento do dominus na outorga da procuração, de certeza quanto ao conteúdo e regime da procuração e de publicidade no interesse de terceiros, designadamente aqueles com quem o procurador venha a contratar no uso da procuração (…) a intervenção notarial promove a clarificação da situação, de modo a tornar claro que se trata de uma procuração irrevogável, que a mesma é outorgada no interesse do procurador ou de terceiro e não de uma típica procuração no interesse exclusivo do dominus. E, finalmente, permite ainda guardar no arquivo, no cartório notarial, o original do instrumento que titula a procuração, o que acarreta inegáveis vantagens de publicidade e segurança. » – cfr. Pedro Pais de Vasconcelos, Ob. Cit., pág. 245.
(…)
A questão prende-se com a determinação das consequências da violação da forma legal, já que a norma do nº2 do art. 116º do Cód. Notariado, impõe a obrigatoriedade de a procuração ser lavrada por instrumento público e que o original seja arquivado no cartório notarial.
Nos termos conjugados dos arts. 220º e 364º do Código Civil, as exigências de forma podem ser ad probationem ou ad substantiam.
Do art. 364º do Código Civil, resulta que a forma pode ser exigida por lei “apenas para prova da declaração”. Nesse caso, a sua falta não é a causa de nulidade, mas apenas de dificuldade de prova. Sem a forma ad probationem, o ato é válido, mas não pode ser provado, a não ser por um meio mais solene, com força probatória superior.
Já a falta da forma ad substantiam acarreta a nulidade do ato.
Em regra, as exigências legais de forma são ad substantiam.
Esta conclusão retira-se do art. 220º do Código Civil que comina, em princípio, com nulidade o desrespeito pela forma exigida por lei. Admitindo, porém, que outro regime seja fixado em preceito especial.
A finalidade das exigências de forma deve resultar da lei.
Se não resultar claramente da lei que as exigências de forma se destinam apenas a provar a declaração, essas exigências deverão ser consideradas ad substantiam e a sua preterição provocará a nulidade do negócio nos termos do art. 220º do Código Civil. Neste sentido, cfr. Pedro Pais de Vasconcelos, ob. cit. pág. 250, citando Vaz Serra, Forma dos Negócios Jurídicos, BMJ, 86º, pág. 181.
Voltando à norma do nº 2 do art. 116º do Cód. Notariado, nada resulta que a forma exigida o seja apenas para efeitos de prova da declaração. Como atrás expusemos, o preceito revela um interesse de tutela da autonomia privada, e o agravamento do regime formal da procuração irrevogável, em relação ao regime geral, tem a finalidade de tutela da liberdade de discernimento do dominus na outorga da procuração e de certeza quanto ao conteúdo.
Deve assim, concluir-se que as exigências de forma que resultam da referida norma, devem ser qualificadas de ad substantiam.
Neste sentido se pronunciou já o Supremo Tribunal Justiça, quanto à exigência de “instrumento publico para a procuração irrevogável” – cfr. Acs. de 25-10-2011, Proc. nº 1961/09.0TBSTB.E1.S1; e de 3-12-2015, Proc. nº 8210/04.5TBVNG.P2.S1, em www.dgsi.pt, este com a conclusão que “a procuração conferida também no interesse do procurador deve ser lavrada por instrumento público. Trata-se de exigência ou requisito de forma que deve considerar-se uma formalidade ad substantiam. Se desrespeitada a forma legal exigida para o negócio jurídico unilateral que é a procuração, a mesma é inválida para efeitos de se poder buscar nela, por interpretação, o interesse do mandatário, por válidas não serem as declarações de vontade constantes do escrito particular.”
As recorrentes isolam a formalidade “do arquivamento do original no cartório notarial”, pretendendo que tal formalidade constitua um “si minus” formal, sem relevância jurídica.
Não cremos que assim seja.
Como se deixou dito, o preceito revela um interesse de tutela da autonomia privada, e o agravamento do regime formal da procuração irrevogável, em relação ao regime geral, tem a finalidade de tutela da liberdade de discernimento do dominus na outorga da procuração. Mas não só, a intervenção notarial, que permitiu a clarificação da situação, deve ainda contribuir para a publicidade e segurança do ato, no interesse de terceiros, designadamente, aqueles com quem o procurador venha a contratar no uso da procuração.
A forma exigida pela norma do nº 2 do art. 116º do Cód. Notariado, constitui um único comando: “…instrumento público cujo original é arquivado no cartório notarial”, que não é cindível quanto aos seus efeitos – art. 9º, nº3 do Código Civil.
“O arquivamento da procuração no cartório notarial”, teve por base as mesmas razões que ditaram a exigência de “instrumento publico” para a procuração irrevogável (Pires de Lima e Antunes Varela, CÓDIGO CIVIL ANOTADO, I, 3ª ed. pág., 58, dizem que o sentido da lei, coincidirá com a vontade real do legislador, sempre que esta seja clara e inequivocamente demonstrada através do texto legal): a solicitação de procurações irrevogáveis de pessoas juridicamente impreparadas, tinha-se revelado de algum perigo, reclamando cautelas acrescidas não só para a tutela da liberdade e discernimento do dominus na outorga da procuração, como também para a tutela de terceiros, que venham a contratar com o procurador.
Deve assim, concluir-se que as exigências de forma que resultam da referida norma, devem ser qualificadas “in totum” de ad substantiam.
Assim, é-nos dado concluir que a procuração utilizada na escritura de compra e venda do imóvel dos autos, não obedecia aos requisitos formais para a intervenção da ré, em representação dos autores.
As consequências jurídicas para a omissão da forma legal exigida, vamos encontrá-las na interpretação conjugada dos arts. 364º e 220º do Código Civil que nos dizem o seguinte:
1. Quando a lei exigir, como forma da declaração negocial, documento autêntico, autenticado ou particular, não pode este ser substituído por outro meio de prova ou por outro documento que não seja de força probatória superior.
2. Se, porém, resultar claramente da lei que o documento é exigido apenas para prova da declaração, pode ser substituído por confissão expressa, judicial ou extrajudicial, contanto que, neste último caso, a confissão conste de documento de igual ou superior valor probatório.
Por sua vez o art. 220º do mesmo Código, que
A declaração negocial que careça da forma legalmente prescrita é nula, quando outra não seja a sanção especialmente prevista na lei.
Como no caso concreto é feita expressa referência na lei à necessidade de a procuração ser “lavrada por instrumento público cujo original é arquivado no cartório notarial”, quando a mesma tenha sido emitida em beneficio do representante (como foi, nos termos que deixámos expressos), nenhuma duvida pode subsistir que nos encontramos perante uma formalidade ad substantiam (como igualmente deixámos expresso), cuja preterição conduz à nulidade da própria procuração (sublinhado nosso).

Aqui chegados, e apesar da longa transcrição, que pensamos justificar-se, atenta a pertinência para o caso sub júdice, é tempo de retirar conclusões:
- analisadas as procurações em equação, identificadas no facto f) provado, não se vislumbra que as mesmas, nomeadamente a outorgada pelos mandantes a título pessoal, tenham sido conferidas igualmente no interesse do representado V..... ;
- efectivamente, procedendo à sua leitura, e apesar da sua amplitude descritiva, não encontramos o aludido interesse primário do procurador na conclusão de um qualquer negócio ou acto jurídico que constitua a relação subjacente á procuração, nem que decorra das mesmas terem por finalidade a prossecução de um interesse ou finalidade do procurador, no quadro da relação que esteve subjacente ou motivou a sua outorga ;
- ou seja, não se descortina ou vislumbra aquele interesse próprio, específico, objectivo e directo na execução do negócio que constitui a relação subjacente à outorga, isto é, que o procurador V..... se pudesse afirmar como possuindo uma posição própria e autónoma no âmbito da relação de representação, distinta da posição dos representados ;
- donde se conclui, necessariamente, não estarmos perante a outorga de procurações outorgadas no interesse do procurador e, como tal, irrevogáveis ;
- o que legitima, claramente, o acto da sua revogação operado pelo instrumento notarial revogatório datado de 28/06/2018 ;
- todavia, ainda que assim não se entendesse, e se considerasse que as procurações (especificamente a de natureza pessoal, com relevância para a controvérsia em equação) haviam sido igualmente outorgadas no interesse do procurador/representante V..... e, como tal, irrevogáveis, apesar da sua outorga mediante instrumento público notarial adequado,  não resulta que as mesmas tenham sido objecto do devido arquivamento no cartório notarial ;
- o que, constituindo uma formalidade ad substantiam, determina, pela sua preterição, a nulidade de tal declaração negocial, isto é, a nulidade da própria procuração.

Concluindo-se nos termos expostos, temos então que:
- a procuração era livremente revogável , podendo perfeitamente os Réus, quer antes, quer depois da sua revogação, exercer em pleno os poderes de disposição sobre os bens sua pertença, nomeadamente sobre as quotas societárias alvo das cessões ora questionadas ;
- pelo que a outorga de tais cessões gratuitas da nua propriedade das quotas societárias, não prosseguiu qualquer fim ilícito, contrário à lei ou ofensivo dos bons costumes ;
- efectivamente, e como vimos, sendo plenamente válidas as doações efectuadas, a natureza gratuita do acto não traduz, por si só, uma qualquer finalidade contrária à lei ;
- inexistindo, na execução daqueles negócios transmissivos, qualquer violação directa da lei ou negócio praticado contra legem, nem a prossecução de um qualquer resultado que a lei pretendia impedir ou obstar, determinando uma violação, ainda que indirecta, do regime legal ;
- muito menos se podendo concluir pela afectação de quaisquer regras éticas ou tuteladoras da dignidade das pessoas correctas e vinculadas ao cumprimento dos ditames de boa fé, por forma a concluir-se por qualquer ofensa aos bons costumes ;
- por outro lado, caso se concluísse pela irrevogabilidade da procuração em equação, sendo a mesma nula e, como tal, não produzindo qualquer efeito, da prática dos actos transmissivos questionados nenhuma prática contrária à lei ou ofensiva dos bons costumes poderia resultar, exercendo apenas os cedentes Réus, através daqueles, os poderes de livre disposição perante um património societário que era da sua pertença e efectiva disponibilidade.

O quer determina, igualmente neste segmento, juízo de improcedência das conclusões recursórias, conducente à total improcedência da presente apelação.

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Relativamente à tributação, decaindo os Apelantes Autores no recurso interposto, nos quadros do artº. 527º, nºs. 1 e 2, do Cód. de Processo Civil, são responsáveis pelo pagamento das custas devidas.

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IV.– DECISÃO

Destarte e por todo o exposto, acordam os Juízes desta 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, o seguinte:

I)– julgar totalmente improcedente a presente apelação, em que figuram como Recorrentes/Apelantes os Autores V....., EU....., S.A. e T.....,LDA., e como Recorridos/Apelados os Réus A....., MARIA....., JOSÉ....., ANA....., EU.....,LDA., Q.....,LDA., G....., LDA., P.....,LDA., C.....,LDA. e SANTA.....,S.A., confirmando-se o saneador sentença apelado/recorrido ;
II)– nos quadros do artº. 527º, nºs. 1 e 2, do Cód. de Processo Civil, as custas devidas pelo presente recurso são suportadas pelos Recorrentes/Apelantes Autores.

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Lisboa, 07 de Julho de 2022


Arlindo Crua(Relator)
António Moreira(1º Adjunto)
Carlos Gabriel Castelo Branco(2º Adjunto)

(assinado electronicamente)



[1]A presente decisão é elaborada conforme a grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, salvaguardando-se, nas transcrições efectuadas, a grafia do texto original.
[2]Manual de Processo Civil, Vol. I, AAFDL, 2022, pág. 334 a 343.
[3]Manual de Processo Civil, 2ª Edição Revista e Actualizada, Coimbra Editora, pág. 129, 131 e 135 a 139.
[4]Direito Processual Civil Declaratório, Vol. II, Almedina, 1982, pág. 169 e 170.
[5]Ob. cit., pág. 345 a 366.
[6]Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, ob. cit., pág. 162 a 168.
[7]Cf., o douto Acórdão da RG de 10/07/2019 – Relatora: Margarida Almeida Fernandes, Processo nº. 413/18.1T8AVV-A.G1, in www.dgsi.pt
[8]Originalmente, o presente facto tinha a seguinte redacção: “p) No dia 20 de Julho de 2018 os Réus A..... e José..... comunicaram novamente ao Autor V....., por carta registada com aviso de recepção e por mensagem de correio electrónico, a revogação da Procuração”.
[9]Relatora: Laurinda Gemas, Processo nº. 5585/15.4T8FNC-A.L1, no qual o ora Relator figurou como Adjunto.
[10]Processo nº. 1660/14.0T8OER-E.L1.
[11]Em idêntico sentido, citam-se ainda, entre outros, os doutos acórdãos da Relação de Guimarães de 10-09-2015, no processo 639/13.4TTBRG.G1, e 11-07-2017, no processo n.º 5527/16.0T8GMR.G1, da Relação do Porto de 01-06-2017, no processo n.º 35/16.1T8AMT-A.P1, e do STJ de 13-07-2017, no processo 442/15.7T8PVZ.P1.S1, todos in www.dgsi.pt .
[12]Relatora: Fernanda Isabel Pereira, Processo nº. 4111/13.4TBBRG.G1.S1, in www.dgsi.pt .
[13]Código Civil Anotado, Vol. IV, 2ª Edição Revista e Actualizada, Coimbra Editora, pág. 397 a 400.
[14]Notas ao Código Civil, Vol. VI, Lisboa, 1998, pág. 163.
[15]Código Civil Anotado, Vol. II, 2017, Almedina, pág. 615 a 617.
[16]Contrato-Promessa de Partilha dos Bens do Casal celebrado na pendência da acção de divórcio, RDES, Ano XXXVI, 1994 (Janeiro-Setembro), nºs. 1, 2 e 3, pág. 154 a 156.
[17]Limites á Autonomia Privada na Disciplina das Relações Patrimoniais entre os Cônjuges, Dissertação para doutoramento em Direito Civil na FDUC, Almedina, pág. 197 a 222.
[18]Relator: Freitas Vieira, Processo nº. 2977/14.0TBMAI.P1, in www.dgsi.pt .
[19]Defendeu-se no douto Acórdão desta Relação de 23/04/2013 – Relatora: Ana Resende, Processo nº. 3890/08.4TBBRR.L1-7. in www.dgsi.pt -, que “as doações entre cônjuges só podem ter por objeto bens próprios do doador, art.º 1764, n.º1, do CC, proibidas estando assim as doações de bens comuns, entendidas como verdadeira violação do princípio da imutabilidade do regime de bens, como resulta do art.º 1714, do CC, numa defesa efetiva do património comum em termos da respetiva certeza, com relevância nomeadamente na salvaguarda dos direitos de credores de ambos os cônjuges”.
[20]Cf., Carlos Alberto da Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª Edição, Coimbra Editora, 1986, pág. 550 a 553.
[21]Relator: Jorge Dias, Processo nº. 97/17.4T8STC.E1.S1, in www.dgsi.pt , igualmente citado em sede de saneador sentença apelado e resposta às alegações.
[22]A PROCURAÇÃO IRREVOGÁVEL, 2ª ed., págs. 99/100.