Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1487/17.8T9FNC.L1-9
Relator: ALMEIDA CABRAL
Descritores: CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
CONFISCO
VANTAGEM PATRIMONIAL
PEDIDO CÍVEL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/04/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: I- A redacção do art. 110.º do Código Penal atesta inequivocamente, que toda e qualquer vantagem patrimonial obtida por meio de prática de facto ilícito típico, possa e deva ser declarada perdida a favor do Estado;
II- A lei não erigiu nos requisitos do preenchimento deste instituto, a dedução de pedido de indemnização civil ou a falta dele, ou a existência de um título executivo prévio, como pressupostos negativos,  e assim, uma vez reunidos os pressupostos legais elencados na norma sob destaque, deve o confisco ser decretado pelo Tribunal, não obstando a tal, invocar o fundamento de não ter a Segurança Social feito uso dos meios processuais que tinha ao seu dispor para se ver ressarcida dos seus prejuízos. A norma não permite leituras ambíguas, sendo literalmente assertiva, inequívoca e imperativa, basatando  verificar que o art. 130.º, n.º 2, do Código Penal permite facilmente constatar o modo como o legislador separou o confisco do pedido de indemnização civil;
III-Se inexistir pedido de indemnização civil, este for improcedente, ou referente a valor inferior à vantagem patrimonial, nem assim a inércia do lesado impedirá que o crime não compense para o seu agente, pois neste circunstancialismo acciona-se o segundo pressuposto, de determinação do confisco nos termos do art. 110.º do Código Penal (a vantagem patrimonial, sendo o primeiro o facto antijurídico);
IV-Os dois institutos não conflituam nem se excluem entre si. O confisco visa, sempre, independentemente da dedução, ou não, de pedido de indemnização civil ou da eventual execução de um qualquer título, evitar que o agente retire quaisquer dividendos da sua acção criminosa, mesmo quando estes vão além do real e efectivo prejuízo da vítima, precavendo-se, também assim, as finalidades de prevenção geral e especial, não podendo existir em circunstância alguma, uma “vantagem patrimonial” para o agente infractor;
V-Assim a declaração de perdimento prevista no art.º 110.º do Cód. Penal pode, sempre, ter lugar, independentemente da formulação, ou não, de pedido de indemnização civil ou da existência de qualquer título executivo, sendo que o confisco apenas operará na medida e na parte em que houver interesse útil, compatibilidade entre todos os institutos e não se traduza numa dupla “penalização” para o agente.
VI-Estando reunidos tais pressupostos haverá que se declarar perdida a favor do Estado a vantagem patrimonial obtida pelos arguidos com o não pagamento à Segurança Social das respectivas prestações, e destarte,  condenar estes, no seu pagamento solidário.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes da 9.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

1 – No Juízo Local Criminal do Funchal, Juiz 1, Processo Comum Singular n.º 1487/17.8T9FNC, onde são arguidos AA  e BB – CC, foram estes julgados e condenados:
- O AA, pela prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, p. p. nos termos dos artºs. 105.º, nºs. 1, 4 e 5 e 107.º, n.º 1, todos do RGIT, na pena de doze meses de prisão, suspensa na sua execução sob a condição de, no mesmo prazo, entregar à Instituição FF a importância de mil euros;
- A CC, pela prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, p. p. nos termos dos artºs. 105.º, nºs. 1, 4 e 5 e 107.º, n.º 1, todos do RGIT, na pena de duzentos e quarenta dias de multa, à taxa diária de 5,00 €uros.

Porém, com esta decisão não se conformou o Ministério Público, pelo que da mesma interpôs o presente recurso, o qual sustentou na desajustada medida das respectivas penas, que haveriam de ter sido fixadas em  não menos de 500 dias de multa relativamente à arguida e em não menos de dois anos e dois meses de prisão relativamente ao arguido, também suspensa na sua execução, mas sob a condição do pagamento de 2.200,00 €uros à Segurança Social da Madeira ou ao Estado Português e, bem assim, no facto de dever ser declarada perdida a favor do Estado a vantagem patrimonial obtida pelos arguidos directamente resultante do facto ilícito em causa, no montante actual de 85.692,97 €uros.
Da motivação do recurso extraiu as seguintes conclusões:
“(...)
A.) Exórdio
1. Por sentença proferida a 13 de Novembro de 2018, o Tribunal A Quo condenou os arguidos AA e “BB.”, pela prática de um crime de Abuso de confiança contra a Segurança Social, na pena de multa de € 1 200,00, quanto à sociedade arguida, e, quanto ao arguido pessoa singular, na pena de 1 ano de prisão, suspensa por igual período, sob a condição do mesmo pagar, no prazo de suspensão, a quantia de € 1000,00 à associação “FF”.
2. Na mesma sentença, o Tribunal A Quo declarou improcedente a promoção de perda de vantagens patrimoniais do crime formulado pelo Ministério Público com a acusação, no sentido de ser declarada perdida a favor do Estado a vantagem patrimonial correspondente às prestações devidas à Segurança Social e não entregues ao Estado pelos arguidos, no montante de € 94 201,80.
3. A sentença proferida, salvo o devido respeito e melhor opinião, é no entanto equívoca relativamente aos aspectos atrás apontados, pelo que o presente recurso, embora incida sobre a mesma, é restrito apenas às seguintes matérias: i) – discussão sobre a medida das penas aplicadas aos arguidos e sobre as operações complementares associadas à pena de prisão suspensa na sua execução aplicada somente ao arguido AA; ii) – discussão sobre se há lugar, no caso vertente, à declaração de perda a favor do Estado da vantagem patrimonial obtida pelos arguidos como resultado directo da prática do crime.
B.) - Das razões da nossa discordância face à medida das penas aplicadas aos arguidos e face às operações e decisões complementares associadas à pena de prisão suspensa na sua execução
B.1) – Das medidas das penas
4. Nada temos a apontar quanto à espécie das penas aplicadas aos arguidos.
5. No entanto, atenta a fundamentação judicial onde se estriba a aplicação de tais penas, cremos que se impõe a conclusão de que o quantum das mesmas é intoleravelmente reduzido face aos níveis elevadíssimos de ilicitude e culpa sob observação, assim como à luz das elevadas exigências de prevenção geral associadas a este tipo de ilícitos.
6. Notamos que perante níveis de dolo intenso, de ilicitude elevada, de exigências de prevenção geral elevadíssimas, que perante um saque nas contas da Segurança Social superior a € 90.000,00 e que perante um período de mais de quatro anos em que os arguidos, pura e simplesmente, resolveram “fazer de conta” que a Segurança Social não existia, o Tribunal resolveu “premiá-los” com uma pena de multa situada no limite mínimo legal aplicável e numa pena de prisão suspensa na sua execução por um período igualmente próximo desse mínimo, ou seja, de apenas 1 ano, o que corresponde a um quinto do limite máximo da moldura penal abstracta aqui aplicável.
7. É imperativa a determinação de medidas de pena que não só advirtam eficazmente os arguidos de que o seu comportamento não mais irá ser tolerado pela ordem jurídica, mas também que exija aos mesmos, no futuro, a assunção de um comportamento preventivo da prática de novos crimes e que, ademais, sopesando os benefícios do crime e a sanção criminal sofrida pela sua prática, impeçam a incrustação da ideia na comunidade no sentido de que é compensatório não pagar à Segurança Social, ainda para mais quando falamos de quantias elevadíssimas como sucede no caso dos autos em que os valores em dívida ultrapassaram os € 90.000,00.
8. Como tal, e ponderando todos os elementos acima descritos, impõe-se aqui o seguinte: I) – a condenação da sociedade arguida numa pena de multa computada num patamar situado entre de 1/3 e metade do limite máximo abstracto da pena aqui aplicável, ou seja a condenação desta última numa pena concreta nunca inferior a 500 dias de multa à  taxa diária de 5 euros (num total de € 2.500,00); e II) - a condenação do arguido pessoa singular em patamar idêntico face à moldura da pena de prisão aplicável, ou seja numa pena concreta situada num nível nunca inferior a  2 anos e 2 meses de prisão suspensa na sua execução por igual período.
B.2) Quanto ao destino e valor estabelecidos para a quantia a pagar como uma das condições da suspensão da pena de prisão
9. Se o valor ilicitamente arrecadado pelos arguidos ascendeu ao montante de € 94 201,80 não faz, na nossa óptica, qualquer sentido estabelecer a quantia a pagar pelo arguido pessoa singular, como condição de manutenção da suspensão da execução da pena, num valor tão desproporcionalmente inferior ao atrás referido. [isto é € 1.000,00].
10. Dito isto, e recuperando as considerações por nós já vertidas na motivação de recurso que antecede, consideramos como sendo exigível ao arguido - pessoa singular - retirar mensalmente do seu rendimento, para pagamento da condição estabelecida como suspensão de execução da pena de prisão que lhe foi aplicada, uma quantia na ordem dos € 85,00.
11. Consequentemente, e considerando o período de duração da pena de prisão suspensa na sua execução por nós proposto (26 meses), temos que existem condições mais do que suficientes para estabelecer que o valor final a pagar pelo arguido no fim do prazo fixado como duração da suspensão da execução da pena ascenderá ao montante de € 2.200,00 o que, contrariamente ao definido na sentença, o situa num patamar proporcionalmente ajustado face à equação onde se conjugam os níveis de culpa e ilicitude registados nos autos, as condições pessoais do arguido e as necessidades de prevenção emergentes no presente caso e acima descritas.
12. No que ao destino do pagamento desta quantia diz respeito, também se impõe salientar que discordamos em absoluto do decidido pelo julgador ao ter determinado atribuir o valor em questão a uma associação que nada tem a ver com a problemática em destaque neste processo e com o bem jurídico atacado: ou seja a receita tributária atribuída à Segurança Social e que funciona como sua fonte de sustentabilidade.
13. Logo, se foi a Segurança Social a entidade patrimonialmente prejudicada com a conduta do arguido em questão, e tendo esta entidade fontes permanentes de despesa em áreas tão vitais relacionadas com a própria subsistência da sociedade, que sentido faz atribuir o valor a pagar pelo condenado a uma associação que nada tem a ver com a problemática sob evidência nestes autos.
14. Ademais, também se impõe frisar que por uma questão de justiça relativa, e atendendo a que o Tribunal recorrido atribui sempre a esta mesma associação, a FF, o valor decorrente de obrigações de pagamento por parte de arguidos condenados, como condição de manutenção da suspensão da execução da pena de prisão, também se justifica no presente caso modificar o beneficiário do pagamento em apreço, ainda para mais quando, repita-se, há um lesado concreta e directamente identificado nos autos que poderia e deveria beneficiar desta compensação, neste caso a Segurança Social da Região Autónoma da Madeira.
15. Como tal, e atendendo a tudo o quanto neste capítulo se deixou dito, entendemos que se impõe a condenação do arguido AA numa pena de prisão de 2 anos e 2 meses, suspensa na sua  execução por igual período, sob a condição do mesmo proceder ao pagamento da quantia de € 2.200,00 (dois mil e duzentos euros) à Segurança Social da Região Autónoma da Madeira [através de transferência multibanco para um D.U.C. a fornecer-lhe para o efeito], sendo certo que o pagamento desta quantia não se confunde com o pagamento da dívida titulada pela sociedade arguida à Segurança Social descrita na acusação e respectivos juros legais vencidos e vincendos.
C.) – Da declaração de perda a favor do Estado da  vantagem patrimonial resultante da prática do crime
16. Não assiste qualquer razão ao Tribunal recorrido na decisão de indeferimento do pedido da perda de vantagens patrimoniais resultantes da prática do crime formulado pelo Ministério Público, pois estão plenamente preenchidos todos os pressupostos legais que impunham a decretação, juntamente com a condenação dos arguidos, da perda em favor do Estado das sobreditas vantagens. Na fundamentação da decisão recorrida abundam equívocos cuja clarificação e correcção se impõe na presente sede. Vejamos então quais são.
C.1) - Da distinção entre o instituto da “perda de vantagens” previsto no art. 110.º do Código Penal e o instituto da  “perda alargada” consagrado na Lei nº 5/2002 de 11 de Janeiro
17. Uma vez que a sentença recorrida alude, a dada altura, na sua fundamentação onde sustenta o indeferimento da perda de vantagens, a uma certa correspondência entre esta figura legal e a da perda alargada que, a nosso ver, poderá até conduzir ao perigo de confusão entre ambas, importa clarificar que em lado nenhum foi promovida a “perda alargada” e que estamos perante dois institutos legais distintos.
18. O confisco das vantagens no âmbito da perda clássica previsto no art. 110.º, nºs. 1 a 4, do Código Penal: - exige a demonstração de um vínculo entre o facto ilícito típico e as coisas, direitos ou valores obtidos; - incidirá, primeiramente sobre as vantagens directas e, caso tal não seja possível, sobre os sucedâneos respectivos; -se nem um nem outro forem possíveis, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do valor respectivo; -havendo vários arguidos o pagamento do respectivo valor é solidário.
19. Diferentemente, a activação da figura da “perda alargada” ou do “património incongruente” prevista na Lei n.º 5/2002 de 11 de Janeiro exige o preenchimento cumulativo de três pressupostos iniciais: - Que se trate de um crime de catálogo; - Que haja condenação por um crime de catálogo; - Que o património incongruente (com o rendimento lícito declarado) não seja resultante da vantagem ilicitamente obtida pelos crimes em que o arguido foi condenado (nesse caso estaríamos no âmbito da perda clássica).
20. Ou seja, a chamada “perda alargada” não tem qualquer vínculo com os factos que deram origem à condenação mas exigem uma condenação pela prática de um crime de catálogo. No caso concreto, inversamente, o que se requereu nada mais foi do que a chamada “perda clássica” pelo valor da vantagem patrimonial directamente resultante da prática do crime.
C. 2) – Do erro sobre a natureza e alcance do confisco, das razões determinantes da sua aplicação e da sua relação com a execução tributária (na vertente em que o sujeito activo dessa execução é a Segurança Social)
21. A decisão ora sob recurso traduz na sua argumentação, na prática, um preconceito sobre o confisco de questionável actualidade, ao mesmo tempo que se revela, salvo o devido respeito, contraditória e de fundamentação inconsistente e insuficiente.
22. A sentença recorrida considera no fundo, embora sem o devido suporte legal, que é pressuposto negativo de aplicabilidade do art. 110.º do Código Penal a existência de título executivo prévio, ou que a não dedução do pedido de indemnização civil preclude a aplicação daquele mecanismo.
23. Tal significa, portanto, que o decidido no presente caso assenta numa insanável alusão equivoca a meios alternativos legalmente disponíveis para o ressarcimento do Estado (que não se entende pois, se assim fosse estaria sempre afastada a aplicação do art. 110.º do Código Penal) e, simultaneamente, numa contradição insuperável porquanto o julgador, depois de indicar a finalidade preventiva do confisco, retira consequências de desconhecida imposição legal para a não aplicação da referida figura, como foi o facto da não dedução do pedido de indemnização civil por parte da Segurança Social como circunstância preclusiva da aplicação da norma em questão.
24. Ao contrário do que parece defender o Tribunal recorrido, não há nenhuma incompatibilidade entre o requerimento ou promoção de perda de vantagens formulado pelo Ministério Público e o pedido de indemnização civil cuja apresentação caberia à Segurança Social, tal como a jurisprudência tem vindo consistentemente a decidir no seguimento de informada doutrina.
25. No que concerne à cobrança das dívidas à Segurança Social em causa nestes autos é a sociedade/pessoa colectiva o respectivo sujeito passivo, ou seja, a responsável em termos tributários pela entrega da prestação/contribuição em dívida à Segurança Social, sendo a responsabilidade dos gerentes, administradores e gestores de facto meramente subsidiária. Para accionar a responsabilidade destes, há que aplicar o mecanismo jurídico da reversão nos termos dos arts. 22.º a 24.º da Lei Geral Tributária, o que nem sempre ocorre com sucesso, tendo a Segurança Social que provar que um daqueles é o gestor de facto da sociedade. A isto acresce que, consequentemente, as execuções tributárias instauradas pela Segurança Social para cobrança destas dívidas só incidem sobre os sujeitos passivos e, com a reversão, a eventuais responsáveis subsidiários, sem, todavia, afectar o património de terceiros que, em má-fé, tenham integrado no seu património vantagens patrimoniais decorrentes de crime.
26. Estas limitações não são, no entanto, integráveis no âmbito da aplicação do disposto no art. 110.º do Código Penal, o que denota o maior alcance e efeito deste instituto, bem como a existência de diferenças de regime legal substanciais face às alternativas supra elencadas.
27. Porém, a douta sentença recorrida ignorou por completo este aspecto, nada dizendo sobre como integraria a sua linha de argumentação num estado de coisas como o atrás descrito.
C.4) - O confisco como medida legal de restabelecimento da ordem económica
28. Há casos em que o crime pode compensar ao agente, precisamente quando o pedido de indemnização civil não for requerido ou não for por algum motivo procedente, ou quando a vantagem obtida com o crime for superior à pena determinada ou à condenação no valor peticionado como indemnização.
29. O confisco visa evitar este aspecto lucrativo da prática do crime ditando a reposição do arguido na situação em que se encontrava antes do benefício “criminoso”.
30. Assim sendo, inversamente ao que parece resultar do espírito imanente ao teor da decisão por nós impugnada com o presente recurso, a vítima e os interesses da comunidade não são secundários e por isso o confisco é independente do pedido de indemnização civil. Não é condição prévia para a aplicação do confisco que estes meios tenham sido adoptados, ou correctamente adoptados, nem o pedido de indemnização civil ou a existência prévia de título executivo são um pressuposto negativo de aplicação do art. 110.º do Código Penal.
31. Pelo contrário. O confisco é um poderoso instrumento de incentivo à abstenção da prática de crimes, ressonando um forte efeito preventivo geral, tão ou mais poderoso do que aquele sinalizado pelas penas, ainda que o seu modo de funcionamento assente na recondução do condenado ao seu estatuto patrimonial anterior à prática do crime.
32. É com a aplicação transversal da lei, independentemente do grau económico de compensação do crime, que melhor se poderá verificar a longo prazo os seus efeitos preventivos, não podendo o julgador alhear-se, ensimesmado, da evolução que à sua volta vai ocorrendo.
C.5) – Da imperatividade do art. 110º do Código Penal e da sua compatibilização com outras normas
33. A redacção do art. 110.º do Código Penal atesta inequivocamente a vontade do legislador em afastar-se da interpretação eleita pelo Tribunal recorrido já que em tal preceito legal se consagra que toda e qualquer vantagem patrimonial obtida por meio de prática de facto ilícito típico possa e deva ser declarada perdida a favor do Estado.
34. A lei não erigiu nos requisitos do preenchimento deste instituto a dedução pedido de indemnização civil ou a falta dele, ou a existência de um título executivo prévio, como pressupostos negativos, pelo que a decisão da Mma. Juiz A Quo no caso vertente é desprovida de fundamento legal.
35. Importa sublinhar que uma vez reunidos os pressupostos legais elencados na norma sob destaque deve o confisco ser decretado pelo Tribunal. A norma não permite leituras ambíguas, sendo literalmente assertiva, inequívoca e imperativa.
36. A norma é claramente imperativa ainda que a sua baixa aplicabilidade tenha plasmado, na inacção, uma leitura que se afastou da imperatividade.
37. Assim, nos casos em que o Ministério Público tenha peticionado a aplicação do art. 110.º, nºs. 1 a 4 do Código Penal (por exemplo, na situação do furto de um bem que não é recuperado, pedindo-se a condenação do arguido no equivalente valor), mas venha a ser deduzido pedido de indemnização civil, tal pode configurar para o Estado uma obrigação paralela à do fiel depositário relativamente ao lesado.
38. Por outro lado, ainda que se considerasse, erroneamente, a limitação do confisco pela posição do lesado, o facto é que o art. 130.º, n.º 2, do Código Penal permite verificar como o legislador separou o confisco do pedido de indemnização civil.
39. E se inexistir pedido de indemnização civil, este for improcedente, ou referente a valor inferior à vantagem patrimonial, nem assim a inércia do lesado impedirá que o crime não compense para o seu agente, pois neste circunstancialismo acciona-se o pressuposto segundo de determinação do confisco nos termos do art. 110.º do Código Penal (a vantagem patrimonial, sendo o primeiro o facto antijurídico).
C.6) – Das conclusões a extrair no caso vertente
40. No caso sobre o qual nos debruçamos, verificamos estar provado um facto anti -jurídico: isto é a retenção do montante legalmente devido à Segurança Social a título de prestações/contribuições obrigatórias e não pagas pelos arguidos.
41. Este facto configura, num segundo plano, uma vantagem patrimonial: o incremento registado com a circunstância do respectivo valor de € 94 201,80 ter sido alocado para outros fins, determinados pelos arguidos.
42. Não está em causa um inexistente pressuposto negativo relativo ao pedido de indemnização civil, nem a existência prévia de título executivo, mas sim restituir os arguidos à posição patrimonial que ocupavam antes da apropriação daquele valor, destacando-se aqui os efeitos preventivos gerais e especiais do confisco das vantagens do crime.
43. Na situação em apreço, e tendo como referência o sobredito valor ilicitamente obtido pelos arguidos computado em € 94 201,80, temos que o Estado apenas recuperou a quantia de € 8.508,83 através do pagamento voluntariamente realizado pelos arguidos [como se retira do facto 18.) da matéria dada como provada] pelo que a vantagem patrimonial a considerar como perdida a favor do Estado, nos termos e para os efeitos previstos no preceito legal supra indicado e ora peticionados, será de € 85.692,97 (ou seja € 94.201,80 - € 8.508,83 = € 85.692,97).
44. A compatibilização com o processo executivo empreendido ou a empreender pela Segurança Social para a cobrança coerciva do valor em falta é uma questão posterior ao decretamento da perda da vantagem patrimonial, que funciona como uma questão de concordância prática entre dois institutos diferentes mas que têm o mesmo objecto devendo, após o decretamento da perda, oficiar-se os Serviços da Segurança Social e dar conhecimento da decisão, solicitando-se a indicação sobre se relativamente ao mesmo valor houve já satisfação, e em que medida, do crédito do Estado.
45. Dando-se como provado que um arguido integrou no seu património o valor devido a título de prestações obrigatórias à Segurança Social por ele não pagas, independentemente de ser ou não formulado o pedido de indemnização civil, ou da existência ou não de título executivo prévio, e desde que a vantagem patrimonial seja actual, deve o Tribunal decretar a respectiva perda mesma, pelo que, ao não o ter feito, violou o julgador o disposto no art. 110.º, nrs. 1 a 4, do Código Penal.
46. Deve assim, in casu, ser anulada e substituída a sentença proferida, nesta parte, por segmento que determine a perda da vantagem patrimonial, de acordo com a antedita norma, no valor de € 85.692,97 (ou seja € 94.201,80 - € 8.508,83 = € 85.692,97), com a condenação dos arguidos no pagamento solidário desta quantia.
D.) Das normas jurídicas violadas pelo Tribunal recorrido, de acordo com a análise efectuada no presente recurso  nos pontos A), B) e C) que antecedem
47. O Tribunal recorrido errou na fixação das medidas das penas de multa aplicada à sociedade arguida e de prisão suspensa na sua execução aplicada ao arguido pessoa singular, bem como na decisão tomada quanto ao destino e valor estabelecidos para a quantia a pagar pelo arguido MÁRIO RUI FERNANDES DE CASTRO como condição da suspensão da execução da prisão que lhe foi aplicada - erros estes expostos nos segmentos B.1) e B.2) da motivação de recurso que antecede que aqui damos por integralmente reproduzidos para os devidos efeitos legais] - tendo por isso violado, por errada interpretação e por errada aplicação articulada do disposto nos arts. 30.º, 40.º e 71.º, todos do Código Penal, e 107.º, n.º 1, com referência ao disposto no art. 105.°, nºs. 1, 4 e 5, todos do R.G.I.T., pois a correcta interpretação e aplicação de tais normativos no caso vertente impunha a escolha e aplicação de uma pena de multa mais elevada à sociedade arguida e de uma pena de prisão suspensa na sua execução com um período mais extenso, assim como de um valor a pagar como condição da suspensão de montante superior e, ainda, a designação de uma entidade diferente como sendo aquela que beneficiará de tal pagamento, tudo nos precisos moldes por nós enunciados nos mencionados segmentos B.1) e B.2) da motivação de recurso que antecede.
48. O Tribunal A Quo errou outrossim ao decidir pela não decretação da perda a favor do Estado das vantagens patrimoniais obtidas pelos arguidos em resultado necessário da prática do crime por eles cometido, tendo por isso violado, por errada interpretação e por errada aplicação articulada do disposto nos arts. 110.º, nºs. 1 a 4, do Código Penal, com referência ao disposto conjuntamente no art. 107.º, n.º 1, e 105.°, nºs. 1, 4 e 5, todos do R.G.I.T., pois a correcta interpretação e aplicação de tais normativos no caso vertente impunha que, conforme o Ministério Público peticionou juntamente com a dedução da acusação, que fosse determinada a perda da vantagem patrimonial nos termos do disposto no art. 110.º, nºs. 1 a 4, do Código Penal, no valor de € 85.692,97 (ou seja € 94.201,80 - € 8.508,83 = € 85.692,97), com a condenação dos arguidos no pagamento solidário desta quantia.
E.) - Do Conhecimento em substituição por parte do Venerando Tribunal da Relação:
49. Em face de todo o exposto nos segmentos A) a D) da motivação que antecede deste recurso [que aqui damos por integralmente reproduzidos para os devidos efeitos legais], somos do entendimento de que o Venerando Tribunal da Relação deverá acolher toda a argumentação por nós defendida nesta peça processual e, por conseguinte, determinar a revogação parcial da sentença proferida pelo Tribunal A Quo no segmento das medidas das penas aplicadas aos arguidos e da declaração de improcedência do pedido de declaração da perda a favor do Estado da vantagem patrimonial resultante da prática do crime pelo qual os arguidos foram condenados.
50. Assim sendo, apesar dos erros jurídicos de apreciação vertidos na sentença por nós aqui invocados, afigura-se-nos que, ao abrigo dos princípios da celeridade e economia processual e da proibição da prática de actos processuais inúteis, e dado que dos autos constam todos os elementos necessários ao proferimento de uma ajustada decisão final sobre o objecto do processo, o Venerando Tribunal da Relação não deverá ordenar a baixa do processo à primeira instância para a prolacção de nova sentença mas deverá sim, para além de declarar os erros assinalados no presente recurso e de revogar a sentença proferida pelo Tribunal recorrido nos segmentos supra destacados, substituir tal decisão por um Acórdão em sede do qual determine o seguinte:
I - a condenação da sociedade arguida “RUI CASTRO – TRANSPORTS, TRAVEL AND TOURISM LDA.”, numa pena de multa computada num patamar situado entre de 1/3 e metade do limite máximo abstracto da pena aqui aplicável, ou seja a condenação desta última numa pena concreta nunca inferior a 500 dias de multa à taxa diária de 5 euros (num total de £ 2.500,00 – dois mil e quinhentos euros);
II - a condenação do arguido pessoa singular, MÁRIO RUI FERNANDES DE CASTRO, em patamar idêntico face à moldura da pena de prisão aplicável, ou seja numa pena concreta situada num nível nunca inferior a 2 anos e 2 meses de prisão suspensa na sua execução por igual período, sob a condição do mesmo proceder ao pagamento da quantia de £ 2.200,00 (dois mil e duzentos euros) à Segurança Social da Região Autónoma da Madeira ou ao Estado Português [através de transferência multibanco para um D.U.C. a fornecer-lhe para o efeito - sendo certo que o pagamento desta quantia não se confunde com, nem se insere, no pagamento da dívida titulada pela sociedade arguida à Segurança Social descrita na acusação e respectivos juros legais vencidos e vincendos].
III - que o pagamento destes valores seja efectuado através do pagamento de £ 1000,00 (mil euros) dentro do prazo de um ano a contar do trânsito em julgado da decisão que condenar o arguido e, posteriormente, dos restantes £ 1.200,00 (mil e duzentos euros) até ao final do prazo estabelecido como duração da suspensão da execução da pena de prisão (ou seja no fim dos dois anos e dois meses a contar do trânsito em julgado da decisão que o condenar).
IV - a decretação da perda da vantagem patrimonial obtida pelos arguidos [pessoa singular e pessoa colectiva] em resultado directo da prática do crime por eles cometido, nos termos do disposto no art. 110.º, nºs. 1 a 4, do Código Penal, perda esta que se computa no valor de € 85.692,97 (ou seja € 94.201,80 - € 8.508,83 = € 85.692,97), com a consequente condenação dos mesmos no pagamento solidário desta quantia. (…)”.
*
Notificado da interposição do recurso, apresentaram os arguidos a respectiva “resposta”, onde, a final, extraíram as seguintes conclusões:
“(…)
A) A douta sentença recorrida não merece qualquer censura e deve, assim, ser confirmada.
B) A medida da pena aplicada aos arguidos mostra-se ajustada e adequada, tendo tido em consideração as concretas circunstancias em que ocorreram os comportamentos descritos nos autos.
C) Os arguidos são primários e até à ocorrência dos factos descritos na acusação (falta de pagamento das quotizações) tinham as suas obrigações fiscais e para com a segurança social em dia.
D) A falta de entrega das quotizações deveu-se à crise financeira porque passou a sociedade arguida e à interposição de acções executivas e inclusive de pedido judicial de declaração de insolvência, bem como, a insolvência de empresas beneficiárias dos serviços da sociedade arguida ficando por pagar os montantes devidos pelos mesmos em mais de uma centena de milhar de euros;
E) Não tendo o Instituto de Segurança Social da Madeira, IP-RAM deduzido pedido de indemnização civil nestes autos, conforme inicialmente manifestou ser sua intenção, há-que deduzir não ser da vontade e decisão daquele instituto de recorrer ao presente processo como meio de haver o valor que lhe é devido.
F) Deve reconhecer-se ao Instituto de Segurança Social da Madeira, IP-RAM, a autonomia e a responsabilidade pela cobrança dos seus créditos e definição do respectivo método, acordo ou execução.
G) Existindo meios alternativos ao credor, in casu o Instituto de Segurança Social da Madeira, IP-RAM, não deve admitir-se a condenação dos arguidos no pagamento da quantia devida àquele instituto, por aplicação do artigo 111.º do CP.
H) O valor das vantagens decorrentes de ilícito não se confunde com o valor devido nos termos da relação jurídica decorrente dos contratos de trabalho e da obrigação de entrega das quotizações à segurança social.
Termos em que, com o mui douto suprimento de Vªs. Exas se pugna pela manutenção da sentença recorrida, assim se fazendo justiça! (…)”.
*
O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
*
Neste Tribunal, no que ao objecto do recurso diz respeito, a Exm.ª Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido do provimento do mesmo.
*
Mantêm-se verificados e válidos todos os pressupostos processuais conducentes ao conhecimento do recurso, o qual, por isso, deve ser admitido, havendo-lhe, também, sido correctamente fixados o efeito e o regime de subida.
*
2 - Cumpre apreciar e decidir:
É o objecto do presente recurso, à luz das conclusões formuladas pelo recorrente Ministério Público, a desajustada medida das respectivas penas, a condição imposta para a suspensão da execução da pena de prisão e o facto de dever ser declarada perdida a favor do Estado a vantagem patrimonial obtida pelos arguidos, no montante actual de 85.692,97 €uros.

Na parte em que releva para o conhecimento do objecto do recurso, foi a seguinte, em termos de matéria de facto, a decisão recorrida:
 “(…)
II. - FUNDAMENTAÇÃO
2.1. - Com relevo para a decisão da causa, resultaram provados os seguintes factos:
1. - A arguida “CC”, tem como objecto social a “Agência de viagens e turismo, organização e venda de viagens turísticas; a reserva de serviços em empreendimentos turísticos em casas e empreendimentos de turismo no espaço rural e nos estabelecimentos, iniciativas ou projectos declarados de interesse para o turismo; a bilheteira e reserva de lugares em qualquer meio de transporte; a representação de outras agências de viagens e turismo nacionais ou estrangeiras, ou de operadores turísticos estrangeiros, bem como a intermediação na venda dos respectivos produtos; a recepção, transferência e assistência a turistas, a obtenção de passaportes, certificados colectivos de identidade, vistos ou qualquer outro documento; a organização de congressos e eventos semelhantes; a reserva de bilhetes para espectáculos e outras manifestações públicas; a realização de operações cambiais para uso exclusivo dos clientes, de acordo com as normas reguladoras da actividade cambial; a intermediação na celebração de contratos de aluguer de veículos de passageiros sem condutor; a comercialização de seguros de viagem e de bagagem em conjugação e no âmbito de outros serviços por si prestados; a venda de guias turísticos e publicações semelhantes; o transporte turístico efectuado no âmbito de uma viagem turística ou outra. A prestação de serviços ligados ao acolhimento turístico, nomeadamente a organização de visitas a museus, monumentos históricos e outros locais de relevante interesse turístico e todas as actividades legalmente exercidas por agências de viagens e turismo; a comercialização de serviços de guias interpretes; e prestação de todo o tipo de transportes ocasionais.” e encontra-se inscrita na Segurança Social da RAM com o n.º ………………...
2. - O arguido AA era, à data dos factos, o da “CC”., sendo ele, em representação da sociedade arguida, quem tomava todas as decisões de gestão da sociedade e o rumo dos negócios, quem dava ordens aos funcionários, contratava com fornecedores e clientes, pagava aos primeiros, recebia dos segundos e representava a sociedade arguida junto das repartições públicas, nomeadamente a Administração Fiscal e a Segurança Social.
3. - No exercício da sua actividade a sociedade arguida teve sob a sua dependência laboral, um número variável de trabalhadores declarados à Segurança Social, os quais recebiam os seus salários e estavam sujeitos à retenção na fonte das contribuições por eles devidas à Segurança Social, calculadas pela incidência de percentagens fixadas na lei sobre as remunerações auferidas.
4. - No decurso da sua actividade comercial, a arguida CC. procedeu, entre o mês de Janeiro de 2011 e o mês de Maio de 2015, consecutivamente, às retenções na fonte das contribuições devidas pelos trabalhadores à Segurança Social, no montante global de € 94 201,80, (noventa e quatro mil, duzentos e um euros e oitenta cêntimos) tendo apresentado à Administração da Segurança Social as respectivas declarações de retenção na fonte como se discrimina:

MÊS DE
REFERÊNCIA
DÍVIDA DE QUOTIZAÇÕES
2011/011.608,30 E
2011/021.675,17 E
2011/031.731,90 E
2011/041.583,72 E
2011/051.831,07 E
2011/061.757,10 E
2011/071.782,89 E
2011/081.947,73 E
2011/091.889,97 E
2011/101.756,48 E
2011/113.082,79 E
2011/121.969,85 E
2012/011.831,62 E
2012/021.696,10 E
2012/031.745,49 E
2012/041.688,53 E
2012/051.917,49 E
2012/061.916,01 E
2012/071.740,46 E
2012/082.059,60 E
2012/091.800,87 E
2012/101.943,56 E
2012/112.010,90 E
2012/123.184,06 E
2013/011.801,28 E
2013/021.761,57 E
2013/031.759,91 E
2013/041.858,92 E
2013/051.889,17 E
2013/062.023,88 E
2013/071.659,28 E
2013/081.711,71 E
2013/091.633,12 E
2013/101.705,33 E
2013/111.599,86 E
2013/122.304,74 E
2014/011.599,86 E
2014/021.599,71 E
2014/031.571,78 E
2014/041.571,78 E
2014/051.608,06 E
2004/061.553,94 E
2014/071.628,79 E
2014/081.785,50 E
2014/091.758,84 E
2014/101.531,56 E
2014/111.516,46 E
2014/122.042,10 E
2015/011.342,14 E
2015/021.266,15 E
2015/031.254,70 E
2015/041.363,02 E





2015/051.346,98 €
TOTAL94.201,80 €

5. - Assim, o arguido AA decidiu, em data não concretamente apurada, mas sempre anterior ao mês de Janeiro de 2011, não entregar as quantias referentes às contribuições descontadas e retidas dos salários dos seus trabalhadores, as quais a sociedade arguida se encontrava legalmente obrigada a entregar à Segurança Social, nem no prazo legal definido no art. 43.º da Lei n.º 110/2009, de 16 de Setembro nem nos 90 dias posteriores, fazendo-as suas e integrando-as no património da sociedade arguida, por forma a que as mesmas não fossem recebidas pelo seu legal credor, a Segurança Social, prejudicando, assim, esta entidade.
6. - O arguido e a sociedade arguida, na pessoa daquele, foram notificados para, no prazo de 30 dias, proceder ao pagamento voluntário das quantias em dívida no dia 15.11.2017, não efectuando, no entanto, nesse prazo, o pagamento devido à segurança social.
7. - Estava o arguido ciente, ademais, que as suas condutas o faziam incorrer a si e à sociedade arguida em responsabilidade criminal, por proibidas e punidas por lei.
8. -  O arguido e a sociedade arguida não têm antecedentes criminais registados nos respectivos certificados do registo criminal.
9. - O arguido declarou auferir o ordenado mínimo regional no montante de € 565,00.
10. - O seu agregado familiar é composto por si, pela mulher, que é guia, com rendimentos incertos, auferindo a quantia de € 120,00, e um filho com 19 anos de idade, estudante.
11. - Tem como habilitações literárias a 4.ª classe.
12. - Em 25.09.08, a sociedade arguida recorreu a um financiamento bancário para aquisição e bens em regime de locação financeira, no valor de 34 968,08 € (+ IVA) passando a ter um encargo mensal com rendas no montante de € 860,81, pelo prazo de 48 meses.
13. - Em 22.12.09, a sociedade arguida recorreu a um financiamento bancário para aquisição de bens em regime de locação financeira, no valor de 26 633,78 € (+ IVA) passando a ter um encargo mensal com rendas no montante de € 682,27, pelo prazo de 48 meses.
14. - Em 27.04.10, a sociedade arguida recorreu a um financiamento bancário para aquisição de bens em regime de locação financeira, no valor de 209 000,00 € (+ IVA), passando a ter um encargo mensal com rendas no montante de € 3 268,32, pelo prazo de 84 meses.
15. - A sociedade arguida teve um custo com o combustível no ano de 2011 no montante de € 341 857,57.
16. - Desde 2009 que correm execuções contra a sociedade arguida, agumas já extinta ou por pagamento ou por falta/insuficiência de bens.
17. - Em data não apurada do ano 2011, deu entrada de um pedido de Insolvência da sociedade arguida, que correu termos sob o n.º 31570/11.7YIPRT que findou com transação homologada judicialmente em 18.06.2014.
18. - A sociedade arguida realizou dois pagamentos da dívida respeitante ao período 2011/01 a 2011/04, em 27.07.18 e 31.08.18, no valor de € 3 283,47 e de 4 225,36, respectivamente.
***
2.2. - FACTOS NÃO PROVADOS
Para além daqueles factos que já resultam logicamente excluídos pela factualidade provada, não se provaram quaisquer outros factos, sendo que a restante matéria alegada na contestação encerra matéria conclusiva e/ou de direito.
***
2.3. – Fundamentação da matéria de facto
O tribunal fundamentou a sua convicção na confissão do arguido AA, a qual foi prestada de forma livre, espontânea e coerente com os demais elementos dos autos. Admitiu a quantia global dos valores não entregues à Segurança Social, que sabia ser sua obrigação, acabando por confirmar, de forma explícita que optou por canalizar os recursos financeiros da sociedade para as despesas necessárias à sua laboração, nomeadamente salários dos trabalhadores, serviços e equipamentos, designadamente, aquisição de veículos. Assumindo expressamente a opção em causa, ainda que dizendo que sempre foi sua intenção pagar a dívida, ainda que mais tarde. Apesar de ter dito que a opção não foi tomada à partida para todos os períodos, mas foi sendo sucessivamente renovada, em face das dificuldades financeiras que a sociedade não ultrapassava, tal facto não se julgou provado, porquanto os encargos da sociedade arguida já tinham sido assumidos anteriormente e os processos executivos com se deparou, na sua maior parte, foram instaurados entre 2015 a 2017, para mais quando se constata que a omissão de pagamento à segurança social perdurou vários anos e de forma sucessiva.
O arguido estabeleceu prioridades, elegendo na afetação dos recursos de que dispunha ao pagamento dos salários dos seus trabalhadores e outras despesas da empresa, em detrimento do cumprimento das suas obrigações para com a segurança social.
No que à prova documental concerne valorou-se:
- mapa de dívida das quotizações a fls.75;
- a certidão permanente a fls. 22 a 24 v.º;
- as notificações a fls. 262;
- recibos de fls.102 a 120, 280 a 283,
- as declarações de fls. 130 a 260;
- cópia dos contratos de locação financeira a fls. 341, 348 v.º, 349, 353 v.º e 354,
- extracto de conta a fls. 360;
- print das acções em tribunal a fls. 360 v.º a 361 v.º;
- cópia da petição inicial do processo de insolvência a fls. 363 a 368;
- cópia da decisão homologatória a fls. 370 e 371;
- pagamento efectuados à segurança social a fls. 375 v.º.
A situação pessoal e económica do arguido foi por ele relatada com aparente credibilidade.
A convicção do tribunal resultou, ainda, da análise do certificado de registo criminal dos arguidos, documentada nos autos a fls. 370 e 381. (…)”.
*
Começa o recorrente Ministério Público por manifestar a sua discordância da decisão recorrida por a mesma haver fixado penas injustificadamente leves aos arguidos, pois que, havendo a arguida sido condenada numa pena de 240 dias de multa, à taxa diária de 5,00 €uros, a mesma pena não deveria ter sido inferior a 500 dias, enquanto que a pena de doze meses de prisão fixada ao arguido não deveria ter sido inferior a dois anos e dois meses de prisão.
Ora, desde logo, a conduta dos arguidos subsume-se na previsão dos artºs. 7.º, 107.º e 105.º, nºs. 1, 4 e 5 do RGIT, sendo punível, relativamente à arguida, com uma pena de multa de 240 a 1200 dias, e, relativamente ao arguido, com uma pena de prisão de um a cinco anos.
O tribunal “a quo”, porém, pelas razões que expôs na decisão recorrida, fixou as respectivas penas nos limites mínimos, decisão que, saliente-se, se tem, também, por manifesta e injustificadamente benévola, sendo que a mesma até acaba por ser contraditória com os respectivos fundamentos. Enuncia-se, neste tipo de ilícito, a existência de danos, perigos e necessidades preventivas acrescidas. Todavia, se, para além do mais, como diz o tribunal “a quo”, “há que desmotivar outros de quererem imitar o arguido deixando aqui a mensagem clara de que, afinal, o crime não compensa”, não o é, seguramente, com decisões como a aqui em causa, onde a opção foi feita pela pena mínima, que tal compromisso é respeitado!
Vejamos:
Dispõe o art.º 40.º do Cód. Penal que a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, sendo que a pena nunca pode ultrapassar o limite da culpa.
Assim, a pena haverá de começar por ser, sempre, a justa retribuição por um mal que se pratica, sem que, também, deixe de se levar em conta na determinação da mesma a reinserção social do respectivo agente, dando-se, igualmente, satisfação ao sentimento de justiça da comunidade, protegendo os bens jurídicos e servindo como elemento dissuasor de práticas criminosas. “A defesa do ordenamento jurídico exige que a pena se determine de tal modo que possa alcançar um efeito sócio-pedagógico na comunidade, que sirva de exemplo, de contra-motivo à prática de idênticos ilícitos pelos demais indivíduos”.
Para Beleza dos Santos, in RLJ, Ano 78, pág. 26, “a tranquilidade pública só deverá considerar-se convenientemente restabelecida quando a pena for um justo castigo, um adequado meio de intimidação e um conveniente processo de regeneração”.  
Por sua vez, segundo Bettiol, “a pena não deve ser brutal ou desumana, mas, também, não pode ser insuficiente. Ela tem de corresponder ao que o homem comum aceita como meio idóneo para atingir os fins de ressocialização e de prevenção (geral e especial)”.
Quanto ao momento da fixação concreta da pena, diz Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime”, pág. 195, que o mesmo é a fase da juridificação e nela cabe ao juiz uma tripla tarefa: - Determinar, por um lado, a moldura penal abstracta cabida aos factos dados como provados no processo; encontrar dentro desta moldura penal o “quantum” concreto da pena em que o arguido deve ser condenado; escolher a espécie ou o tipo de pena a aplicar concretamente, sempre que o legislador tenha posto mais do que uma à disposição do juiz. (Dir-se-á, se nos é permitido, que esta haverá de ser a primeira das referidas tarefas).
Por outro lado, os parâmetros a que deve obedecer a fixação concreta da pena, segundo a sua relevância em termos de culpa e de prevenção, são os indicados no n.º 2 do art.º 71.º.
Deste modo, dentro dos objectivos da prevenção geral e especial pretendidos com a aplicação das penas, o grau de ilicitude do facto, a intensidade do dolo ou negligência, os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram, as condições pessoais do agente e a sua situação económica, a conduta anterior ao facto e posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do mesmo crime e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena, tudo como bem se prevê no n.º 2 do referido art.º 71.º, são circunstâncias que não podem deixar de ser ponderadas pelo tribunal no momento da fixação da medida da pena.
Assim sendo, ponderando a situação em análise à luz dos descritos pressupostos e respectivo circunstancialismo, a primeira conclusão que se impõe extrair é que, nada, rigorosamente, permite sustentar a benévola punição fixada pelo tribunal “a quo”.
Efectivamente, à parte a inexistência de antecedentes criminais, o ter sido paga, entretanto, a importância de 8.508,83 €uros como amortização do montante em dívida à Segurança Social e o encontrar-se o arguido AA integrado social, familiar e profissionalmente, nada mais releva em abono dos arguidos, sendo que a invocada confissão, ante a evidência dos factos, não pode merecer qualquer relevância.
Depois, infirmando a opção punitiva feita pelo tribunal “a quo”, contraditória, até, como se referiu, com a respectiva fundamentação, reconheceu o mesmo tribunal, dando toda a razão de ser à argumentação do Ministério Público, a existência de dolo directo e intenso, o elevado grau de ilicitude dos factos, aferido este, quer pelo considerável montante ilicitamente apropriado, quer pelo longo período de tempo por que se prolongou a acção delituosa em causa, a “muito relevante danosidade social deste tipo de condutas” e as “muito elevadas necessidades de prevenção geral, dada a frequência com que ocorrem situações como a dos autos, cada vez menos toleráveis”.
Mais salientou o tribunal “a quo” que: “A sociedade portuguesa foi, nos anos mais recentes, brutalmente confrontada com a pauperização dos cofres do Estado. De entre os compromissos do Estado, a Segurança Social é sentida pelos portugueses como uma das suas mais importantes missões. De facto, compete à Segurança Social acudir aos cidadãos na situação de desemprego, de doença, de reforma, enfim, em todas as situações da existência humana mais precária no seio das sociedades modernas, a que se convencionou chamar de Estados Sociais”.
E concluiu assim o tribunal “a quo”: “Há que desmotivar outros de quererem imitar o arguido, deixando aqui a mensagem clara de que, afinal, o crime não compensa”.
Ora, pese embora a inquestionável pertinência e oportunidade das considerações formuladas pelo mesmo tribunal, bem como a conclusão de que “o bem jurídico tutelado pela norma incriminadora foi posto em causa de forma que se reputa intolerável”, a verdade é que o tribunal “a quo” acaba por se conformar com uma punição mínima. Que “espaço” caberia, então, em termos punitivos, para os arguidos que beneficiassem de mais e melhor circunstancialismo atenuativo!?
Assim sendo, porque este, apenas, foi o pedido do recorrente, que é por demais sustentado e nos limita na decisão a proferir, fixa-se a pena do arguido AA em 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, condicionada, contudo, ao pagamento à Segurança Social da Região Autónoma da Madeira da importância de 2.200,00 €uros (dois mil e duzentos euros), ainda assim “simbólica”, a efectuar, de acordo com as suas possibilidades económicas, até ao final do referido período.
O pagamento à Segurança Social é por demais justificável, designadamente à luz dos fins que promove, das dificuldades com que se debate e por ser a entidade directamente lesada com a conduta dos arguidos.
Relativamente à pena da arguida CC, fixa-se a mesma nos pretendidos 500 (quinhentos) dias, à taxa diária de 5,00 €uros, nesta parte se concedendo, também, provimento ao recurso.

Alega o recorrente, por outro lado, que o tribunal “a quo” haveria de ter decretado a perda da vantagem patrimonial obtida pelos arguidos como consequência directa da prática do crime em causa, nos termos previstos no art.º 110.º, nºs. 1 a 4 do Cód. Penal, o que foi promovido em sede de acusação, mas que o mesmo tribunal desconsiderou na decisão final.
Ora, relativamente a esta questão, indeferiu o tribunal “a quo” a pretensão do Ministério Público com o fundamento de não ter a Segurança Social feito uso dos meios processuais que tinha ao seu dispor para se ver ressarcida dos seus prejuízos, pese embora tenha, numa primeira fase, manifestado o propósito de deduzir pedido de indemnização civil.
Porém, também aqui se entende que a razão assiste, no seu todo, ao recorrente Ministério Público, sufragando-se e aqui se dando por reproduzida a fundamentação invocada em sustentação da sua pretensão.
Efectivamente, a perda de vantagem do facto ilícito a favor do Estado ou a chamada “perda clássica”, prevista no art.º 110.º do Cód. Penal, tem subjacente o princípio ético-jurídico de que “o crime nunca pode compensar”.
Ora, sendo o confisco, segundo Leal Henriques e Simas Santos, in “Código Penal Anotado”, 2002, pág. 1160, “uma medida destinada a restabelecer a ordem económica conforme o direito, conduzindo a uma justa privação dos benefícios ilicitamente obtidos que só indirecta e imprecisamente se poderia conseguir com a multa”, visa-se com o mesmo colocar o agente infractor no mesmo nível ou patamar patrimonial em que se encontrava antes da prática do facto ilícito, pretendendo-se, assim, evitar que o mesmo possa, por qualquer meio ou forma, directa ou indirectamente, retirar proveito da sua acção delituosa.
Poder-se-á dizer que o confisco visa directamente o agente infractor, constituindo um instrumento destinado não só a “penalizá-lo”, na medida em que a privação do benefício pretendido obter constitui, só por si, uma frustração ou agaste psicológico, mas, principalmente, a desincentivá-lo no cometimento de novas práticas, as quais, de forma ilícita, possam enriquecer o seu património, interiorizando, assim, a convicção de que o crime não o irá compensar.
Como diz o Ministério Público na sua motivação de recurso, “o confisco é um poderoso instrumento de incentivo à abstenção de prática de crimes, ressonando um forte efeito preventivo geral, tão ou mais poderoso do que aquele sinalizado pelas penas, ainda que o seu modo de funcionamento assente na recondução do condenado ao seu estatuto patrimonial anterior à prática do crime”.
Diferentemente se passam as coisas, v.g., com a formulação de um pedido de indemnização civil, onde o objectivo imediato pretendido, quando a lesão atinge bens de natureza patrimonial, é a defesa dos interesses do lesado, reconstituindo-se, tanto quanto possível, a situação que existia antes da prática do crime (P.º da reposição natural). Não se visa aqui, como propósito primeiro do instituto, “ferir” o infractor, mas, antes, curar as feridas provocadas no seu lesado património.
Por isso, os dois institutos não conflituam entre si. O confisco visa, sempre, independentemente da dedução, ou não, de pedido de indemnização civil ou da eventual execução de um qualquer título, evitar que o agente retire quaisquer dividendos da sua acção criminosa, mesmo quando estes vão além do real e efectivo prejuízo da vítima, precavendo-se, também assim, as finalidades de prevenção geral e especial.
Não pode, é, em circunstância alguma, haver “vantagem patrimonial” para o agente infractor. Daí que a declaração de perdimento prevista no art.º 110.º do Cód. Penal possa, sempre, ter lugar, independentemente da formulação, ou não, de pedido de indemnização civil ou da existência de qualquer título executivo, sendo que o confisco apenas operará na medida e na parte em que houver interesse útil, compatibilidade entre todos os institutos e não se traduza numa dupla “penalização” para o agente.
Assim sendo, também nesta parte haverá de conceder-se provimento ao recurso, declarando-se perdida a favor do Estado a vantagem patrimonial obtida pelos arguidos com o não pagamento à Segurança Social das respectivas prestações, no montante actual de 85.692,97 €uros, a cujo solidário pagamento se condenam os mesmos arguidos.                 

3 - Nestes termos e com os expostos fundamentos, acordam os mesmos Juízes, em conferência, em conceder total provimento ao recurso, fixando a pena do arguido Rui Castro em dois anos e dois meses de prisão, suspensa na sua execução nos termos e condições agora fixadas, e, bem assim, a pena da arguida Rui Castro, Ld.ª em quinhentos dias de multa, à taxa diária de 5,00 €uros, mais decretando a perda a favor do Estado da vantagem patrimonial obtida pelos arguidos com o não pagamento à Segurança Social das respectivas prestações, no montante actual de 85.692,97 €uros, a cujo solidário pagamento se condenam os mesmos arguidos, nesta parte se revogando a decisão recorrida.

Sem custas.

 Notifique.
 
Lisboa,