Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
19488/17.4T8SNT.L1-4
Relator: MARIA JOSÉ COSTA PINTO
Descritores: BANCO DE HORAS
INDIVIDUAL
GRUPAL
FORMA ESCRITA
DENÚNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/10/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA A DECISÃO
Sumário: Nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil, anexa-se o sumário do presente acórdão.

I– Permitindo o banco de horas grupal previsto no artigo 208.º-B, n.º 2 do Código do Trabalho, estender este mecanismo flexibilizador do tempo de trabalho e potencialmente lesivo de direitos fundamentais do trabalhador, a trabalhadores que, de outro modo, estariam excluídos do seu âmbito de aplicação, exigem-se especiais cuidados no cômputo da percentagem dos trabalhadores a atender para habilitar a decisão do empregador, bem como na aferição do conteúdo obrigatório do convénio e de que o regime proposto a todos eles foi o mesmo.

II– A observância da forma escrita é essencial à validade da proposta negocial do banco de horas individual e, consequentemente, do regime do banco de horas grupal que, com base na aceitação tácita de tal proposta por uma maioria qualificada de trabalhadores, o empregador queira implementar.

III– Não pode considerar-se em vigor um banco de horas grupal se o empregador não provou ter enviado, através do necessário escrito, propostas individuais de acordo de banco de horas aos trabalhadores de um universo de referência (nem, naturalmente, que estes os tivessem aceite), uma vez que é do somatório de acordos que se retira a possibilidade de imposição forçada do regime do banco de horas aos trabalhadores dele discordantes, quer ab initio, quer no decurso da sua execução.

IV– É lícito ao trabalhador vinculado por um regime de banco de horas individual denunciar o acordo que o titula quando não se demonstra a existência de um banco de horas grupal.

V– Não é possível remeter para liquidação de sentença a fixação de valores retributivos devidos, designadamente pela prestação de trabalho suplementar, se o autor não demostrou os elementos que constituem pressupostos do reconhecimento do direito de crédito respectivo.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa:


1.Relatório


1.1. AAA e o Sindicato BBB, este na qualidade de Assistente, intentaram em 25 de Outubro de 2017 a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra "CCC, S.A.”, formulando o seguinte pedido:

a)  que seja reconhecida a inexistência, na esfera jurídica do A., da sujeição a qualquer regime de banco de horas, previsto nos artigos 208°-A ou 208°-B do Código do Trabalho, considerando-se válida a denúncia do Autor formalizada por escrito perante a Ré;

b)  que a R. seja condenada a pagar ao A. a diferença entre as quantias devidas por força do trabalho prestado entre Novembro de 2016 e a data do trânsito em julgado da sentença que venha a ser proferida, e as quantias efectivamente devidas por força da consideração de que naquele período não estava sujeito a qualquer regime de banco de horas, nomeadamente no que diz respeito a trabalho prestado fora do horário normal de trabalho ou em dias de descanso semanal, tudo a liquidar em execução de sentença;

c) que a R. seja condenada a desconsiderar a existência de qualquer regime de banco de horas na esfera do A., bem como a pagar todas as diferenças salariais que resultem de tal desconsideração, tudo a liquidar em execução de sentença.

Em fundamento da sua pretensão alegou o A., em síntese: que foi admitido ao serviço da R. através do contrato de trabalho sem termo em 24 de Abril de 1994; que em 2012, a R., por escrito, lhe propôs um acordo individual de banco de horas, o que foi por si aceite; que o acordo individual, entretanto sujeito a duas alterações, foi celebrado pelo prazo de um ano, renovando-se por iguais períodos, prevendo a possibilidade da sua denúncia com uma antecedência prévia de 30 dias; que em 30 de Setembro de 2016, o A. denunciou perante a Ré o referido acordo, transmitindo-lhe não pretender continuar sujeito ao banco de horas individual; que a Ré lhe comunicou, então, que estava sujeito a um regime grupal de banco de horas e não aceitou a sua denúncia; que nenhum acordo grupal foi previsto ou aplicado pela empresa à unidade económica em que está integrado, pelo que a denúncia que formalizou deve ser considerada válida, com todas as demais consequências, designadamente, o pagamento de todo o trabalho suplementar que prestou desde aquela data.

Realizada a audiência de partes e não tendo havido conciliação, foi ordenada a notificação da R. para contestar, vindo a mesma a apresentar contestação em que impugna parte dos factos alegados pelo A. e defende, em suma: que todos os trabalhadores da unidade de emulsões em que o A. está integrado aceitaram o acordo individual de banco de horas; que foi comunicado aos trabalhadores que se não houvesse uma adesão igual ou superior a 75% do universo dos trabalhadores a quem o acordo individual foi enviado, o regime não seria aplicado e não entraria em vigor; que deste modo foi implementado um regime grupal de banco de horas, ao qual o Autor está vinculado nos termos do disposto no artigo 208º-B do Código do Trabalho, pelo que a denúncia não pode produzir qualquer efeito, salvo se acompanhada de mais denúncias que levem a que o número de trabalhadores integrados no regime fique reduzido a menos de 75% ou 60% da unidade de emulsões. Conclui que nada é devido ao Autor e defende a improcedência total da acção.

Foi proferido despacho saneador e dispensada a identificação do objecto do litígio, bem como a enunciação dos temas da prova, fixando-se à acção o valor de € 7.000,00.

Concluído o julgamento, e sendo proferido despacho a decidir a matéria de facto em litígio, que não foi objecto de reclamação, a Mma. Julgadora a quo proferiu sentença que julgou totalmente improcedente, por não provada, a acção e, em conformidade, absolveu a R. do pedido.

1.2. O A., inconformado, interpôs recurso desta decisão e formulou, a terminar as respectivas alegações, as seguintes conclusões:

(…)

1.3. A R.. apresentou contra-alegações, nas mesmas concluindo que deve ser mantida a sentença recorrida.

1.4. O recurso foi admitido por despacho de 14 de Janeiro de 2019.

1.5. Recebidos os autos neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se no sentido de que que a matéria de facto assente deverá alterar-se, dando-se como não provados os factos descritos sob os pontos 11 e 12 do segmento "fundamentação de facto" da sentença recorrida, julgando-se procedente o recurso.

Notificadas as partes deste douto Parecer, nenhuma delas se pronunciou.

Cumprido o disposto na primeira parte do nº 2 do artigo 657º do Código de Processo Civil aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, aplicável “ex vi” do artigo 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho, e realizada a Conferência, cumpre decidir.

2. Objecto do recurso

Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, aplicável “ex vi” do artigo 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho –, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões que se colocam à apreciação deste tribunal prendem-se com a análise:

1.ª – da impugnação da matéria de facto quanto aos pontos 12. e 13. da sentença;

2.ª – da natureza do banco de horas instituído pela R. ora recorrida;

3.ª – de saber se o recorrente podia denunciar unilateralmente o acordo de banco de horas;

4.ª – da pretensão de condenação da recorrida no pagamento de valores a liquidar.

3. Fundamentação de facto

3.1. A sentença sob recuso considerou provados os seguintes factos:

«[...]

1)   O Autor está vinculado à Ré por contrato de trabalho desde 24.04.1994 – cfr. resposta ao artigo 1° da p.i..

2)   Em 2012, a Ré enviou ao Autor a carta junta com a petição inicial como doc. n° 2, juntamente com o documento junto como doc. n° 3, nos quais, afirmando dar cumprimento ao art. 208°-A do Código do Trabalho (Banco de Horas Individual), lhe propunha um “Acordo Individual de Banco de Horas” – cfr. resposta ao artigo 2° da p.i..

3) Informando-o de que, caso não respondesse à referida comunicação em 14 dias, se presumiria, nos termos do n° 2 do referido artigo 208°-A do Código do Trabalho, a sua aceitação de tal acordo – cfr. resposta ao artigo 3° da p.i..

4)  O Autor não respondeu à referida comunicação da Ré no prazo mencionado – cfr. resposta ao artigo 4° da p.i..

5)  O referido banco de horas individual, instituído pela Ré em 2012, foi sujeito a duas alterações, juntas sob doc. nº 4. da p.i. – cfr. resposta ao artigo 5° da p.i..

 6)  O acordo foi celebrado pelo prazo de um ano, renovando-se por iguais períodos e prevendo a possibilidade da sua denúncia, com uma antecedência prévia de 30 dias – cfr. resposta ao artigo 6° da p.i..

7)  Em 30 de Setembro de 2016, o Autor denunciou perante a Ré o acordo supra referido, conforme doc. n° 5 junto com a petição inicial, transmitindo-lhe não pretender continuar sujeito ao banco de horas individual – cfr. resposta ao artigo 7° da p.i..

8)  A Ré remeteu ao Autor a carta junta aos autos como doc. n° 6 da p.i., cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido – cfr. resposta ao artigo 8° da p.i..

9)  O Autor respondeu à Ré nos termos da carta junta aos autos como doc. n° 7 da p.i., cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido – cfr. resposta ao artigo 9° da p.i..

10)  A Ré respondeu ao Autor nos termos da carta junta aos autos como doc. n° 8 da p.i., cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido – cfr. resposta ao artigo 10° da p.i..

11)  O Autor veio ainda a insistir junto da Ré para que esta reconhecesse a validade da sua denúncia, quer através do Assistente Sindicato, quer através de mandatário, conforme doc. n°s 9 e 11 juntos com a p.i., mas a Ré manteve a rejeição dessa pretensão – cfr. resposta ao artigo 12° da p.i..

12)   No caso dos trabalhadores da Unidade de Emulsões onde o Autor está integrado, o Acordo Individual de Banco de Horas foi aceite e assinado pela totalidade dos trabalhadores da Unidade – cfr. resposta ao artigo 8° da contestação.

13)  A todos os trabalhadores da Ré foi comunicado que se não houvesse uma adesão igual ou superior a 75% do universo dos trabalhadores a quem o acordo individual foi enviado, o regime não seria aplicado e não entraria em vigor – cfr. resposta ao artigo 11° da contestação.

14)  O banco de horas em vigor na Ré prevê contrapartidas para os trabalhadores – cfr. resposta ao artigo 13° da contestação.

15)  Em matéria de banco de horas, nem a Ré, nem o Sindicato BBB, de que o Autor é associado, subscreveram qualquer instrumento de regulamentação coletiva de trabalho.

  [...]».

3.2. Da impugnação da decisão de facto

O recorrente começa por impugnar a decisão de facto no que concerne aos factos 12) e 13). constantes da sentença, que defende deverem considerar-se “não provados” (conclusões  1ª a 18ª), tendo para o efeito cumprido de modo suficiente os ónus legais de impugnação da decisão de facto constantes do artigo 640.º do Código de Processo Civil, aplicável “ex vi” do art. 1.º, n.º 2 al. a) do Código de Processo do Trabalho.

Vejamos.

3.2.1. No que diz respeito ao facto 12), resulta ele da alegação que a R. fez constar do artigo 8° da contestação onde invocou que: Ao contrário do que vem alegado, a questão não se coloca em termos de votação, ou de percentagem de votantes, mas da adesão individual ao regime de banco de horas, que no caso dos trabalhadores da unidade de emulsões, onde está integrado o A. foi de 100%, isto é, o Acordo Individual de Banco de Horas foi aceite, e assinado em conformidade, pela totalidade dos trabalhadores da unidade.”

Este facto mereceu a seguinte reposta: artigo 8º: provado que, no caso dos trabalhadores da Unidade de Emulsões onde o Autor está integrado, o Acordo Individual de Banco de Horas foi aceite e assinado pela totalidade dos trabalhadores da Unidade” (vide a acta da decisão sobre a matéria de facto).

A Mma. Juiz a quo exarou, a fundar a sua convicção, com relevo para este facto – e igualmente para o facto 13) –, o seguinte:

(…) Foram ainda valorados os documentos que instruem a petição inicial e cujo teor não foi impugnado. Relativamente à prova testemunhal, as duas testemunhas ouvidas, funcionários da Ré, explicaram o contexto em que o Banco de Horas surgiu na empresa, sempre com a participação ativa dos trabalhadores, da Comissão de Trabalhadores e do respectivo Sindicato. Ambas disseram que o Banco de Horas foi instituído para funcionar segundo um regime grupal, o que era do conhecimento de todos os trabalhadores. Também o Administrador da Ré, ouvido em declarações de parte e que acompanhou a questão do Banco de Horas quando ainda não era Administrador, explicou a implementação desta solução na empresa. (…)

É apodíctico que, constando dos autos apenas um documento denominado Acordo Individual de Banco de Horas” junto pelo autor com a sua petição inicial – não assinado por ele –, e nenhum outro documento com tal designação referente a outros trabalhadores se ou por eles assinado, nunca poderia o tribunal a quo dar como provado que o Acordo Individual de Banco de Horas foi “assinado por quem, quer que seja, muito menos pela totalidade dos trabalhadores da Unidade de Emulsões tal como ficou a constar do facto 12).

Nem documento algum contendo a assinatura de qualquer trabalhador foi dado a conhecer ao tribunal a quo – pelo que não poderia o mesmo percepcionar a existência das assinaturas que afirma terem aposto todos os trabalhadores da referenciada Unidade no indicado Acordo Individual de Banco de Horas –, nem mesmo as testemunhas ouvidas relataram terem-se visto documentos assinados por outros trabalhadores da recorrida ou terem percepcionado a aposição de tais assinaturas (entendidas estas como a aposição em suporte documental do nome individual dos trabalhadores, pelos próprios ou por quem os representasse).

A despeito do menor rigor da afirmação da testemunha … (director de recursos humanos da Ré à data em que se começou a falar em implementar o banco de horas) de que todos os trabalhadores por turnos da empresa acabaram por “assinar o acordo”, a verdade é que veio esta mesma testemunha a afirmar ulteriormente que a aceitação dos trabalhadores se consubstanciou na falta de resposta (a partir do minuto 09.59 do seu depoimento), o que demonstra que o uso daquela primeira expressão não o foi no seu exacto significado literal, mas como indicação de que o acordo teria sido aceite por todos os trabalhadores por turnos da empresa.

E a verdade é que deste depoimento, bem como do depoimento da testemunha … (operário químico que integrava a Comissão de Trabalhadores em 2012 quando se tratou do banco de horas) e das declarações de parte do próprio Administrador da Ré Engenheiro … que relatou o contexto em que foi feita a remessa das cartas aos trabalhadores por turnos, resulta que o banco de horas não foi instituído na empresa da R. através da “assinatura” de qualquer acordo mas, segundo os seus relatos, por os trabalhadores não terem respondido a uma proposta de banco de horas individual que a ora recorrida lhes remeteu. 

Nunca poderia, pois, considerar-se provada a referenciada assinatura.

Mas terá a prova testemunhal e por declarações de parte produzida em audiência aptidão – e, em caso afirmativo, será a mesma bastante – para que se considere provado que houve um Acordo Individual de Banco de Horas aceite” pela totalidade dos trabalhadores da Unidade de Emulsões onde o Autor está integrado?

A resposta a esta questão pressupõe que se afira da natureza jurídica das formalidades previstas na lei para os actos compreendidos nesta afirmação de facto.

O artigo 208.º-B do Código do Trabalho possibilita, além do mais, que o empregador aplique o regime do banco de horas individual ao conjunto dos trabalhadores de uma equipa, secção ou unidade económica, caso a proposta de banco de horas individual seja aceite por, pelo menos, 75% dos trabalhadores da equipa, secção ou unidade económica a quem for dirigida (n.º 2 do preceito).

Em face da defesa apresentada na presente acção pela R., está em causa saber se, como esta afirmou na sua contestação, instituiu um banco de horas individual que, por se verificarem os requisitos estabelecidos na lei, aplicou ao conjunto dos trabalhadores em que se insere o A., mediante o mecanismo do banco de horas grupal, que não admite a denúncia por parte dos trabalhadores abrangidos.

É, pois, imprescindível saber se os factos que consubstanciam a verificação de tais requisitos se mostram sujeitos a prova vinculada, designadamente de natureza documental, ou se se mostram submetidos ao princípio da livre apreciação da prova. Apenas nesta segunda hipótese se poderá aferir se os meios de prova pessoal produzidos são, ou não, bastantes para que se considere o facto agora em apreciação como provado.

Resulta do disposto no artigo 208.-A, n.º 2, do Código do Trabalho que o banco de horas individual deve resultar de uma proposta, por escrito, do empregador”, ainda que a lei preveja, no que respeita à sua aceitação, uma presunção de aceitação do trabalhador que não se oponha por escrito, em 14 dias, àquela proposta (artigo 205.º, n.º 4 aplicável ex vi do artigo 208.-A, n.º 2, segunda parte, do Código do Trabalho).

Além disso, estes convénios têm um conteúdo obrigatório[1]. De acordo com o preceituado no artigo 208.º, n.º 4 (aplicável ex vi do artigo 208.-A, n.º1,in fine)pois os acordos ad hoc entre o empregador e os trabalhadores individualmente considerados devem regular a compensação do trabalho prestado em acréscimo, a antecedência com que o empregador deve comunicar ao trabalhador a necessidade de prestação de trabalho e o período em que a redução do tempo de trabalho para compensar trabalho prestado em acréscimo deve ter lugar, por iniciativa do trabalhador ou, na sua falta, do empregador, assim como a antecedência com que qualquer deles deve informar o outro da utilização dessa redução.

Este cuidado formal justifica-se perfeitamente num domínio em que o regime legal tem suscitado fundadas dúvidas de compatibilidade com vários princípios constitucionais. Permitindo o banco de horas grupal previsto no artigo 208.º-B, n.º 2 do Código do Trabalho, estender este mecanismo flexibilizador do tempo de trabalho e potencialmente lesivo de direitos fundamentais do trabalhador, a trabalhadores que, de outro modo, estariam excluídos do seu âmbito de aplicação, exigem-se especiais cuidados no cômputo da percentagem dos trabalhadores a atender para habilitar a decisão do empregador, bem como na aferição do conteúdo obrigatório do convénio e de que o regime proposto a todos eles foi o mesmo, o que só pode conseguir-se com a prova, necessariamente documental, demonstrativa de que foram remetidas ao referido grupo de trabalhadores as indispensáveis propostas escritas do regime de banco de horas que o empregador lhes pretende aplicar.

Apesar de presumir a aceitação do acordo proposto pelo empregador por parte dos trabalhadores que não se oponham por escrito à proposta nos 14 dias seguintes ao conhecimento da mesma – o que faz recair sobre o trabalhador que se opôs o ónus da prova dessa oposição – não prescinde a lei da existência das propostas, necessariamente constantes de documento escrito, sendo este imprescindível para se afirmar ter havido um acordo de banco de horas e sido o mesmo aceite por pelo menos 75% dos trabalhadores da equipa, secção ou unidade económica a quem foram efectivamente dirigidas as propostas.

Por isso adverte Liberal Fernandes que o empregador deverá registar e conservar todos os elementos probatórios relativos à instituição desta modalidade de banco de horas” a fim de possibilitar o exercício da função inspectiva das condições de trabalho[2].

Sendo a observância da forma essencial à validade da proposta negocial e, consequentemente, do regime do banco de horas grupal que, com base na aceitação tácita de tal proposta por uma maioria qualificada de trabalhadores, o empregador queira implementar, é patente a conclusão de que esta formalidade não se destina, apenas, a facilitar a prova do acordo.

Concluímos, assim, que a proposta escrita do empregador a cada um dos trabalhadores a abranger pelo banco de horas constitui uma formalidade ad substantiam[3].

A inobservância das formalidades ad substantiam é susceptível de ditar a invalidade do regime do banco de horas grupal por força do artigo 220.º do Código Civil e contende, também, com a prova dos elementos que devem ser escritos, na medida em que, nos termos do preceituado no artigo 364.º, n.º 1 do Código Civil,
“[q]uando a lei exigir, como forma da declaração negocial, documento autêntico, autenticado ou particular, não pode este ser substituído por outro meio de prova ou por outro documento que não seja de força probatória superior[4].

Assim, a afirmação da 1.ª instância constante do facto 12) da sentença de que houve um acordo de banco de horas aceite pela totalidade dos trabalhadores, pressupondo terem existido propostas individuais de banco de horas sem que estas estejam demonstradas através do necessário escrito, contraria as já enunciadas regras de direito probatório material, não podendo dar-se como provada.

No caso vertente, de forma alguma a R. demonstrou, através da necessária prova documental, que tenha proposto o banco de horas individual a todos os trabalhadores.

Pelo contrário, o único documento constante dos autos denominado Acordo Individual de Banco de Horas”, é a proposta da R. dirigida ao A. por carta que este juntou com a sua petição inicial, e se mostra referenciada nos factos 2) e 6). E deve notar-se que tal proposta, , além de não conter qualquer referência à pretensão de instituir um banco de horas grupal, contempla mesmo a possibilidade de o autor denunciar o banco de horas individual proposto, o que não é compatível com a imposição forçada do mecanismo do banco de horas pressuposta no regime do banco de horas grupal[5].

Apesar de alegar que enviou a documentação a cada colaborador, a R. não juntou um só documento que o demonstrasse, pelo que nunca poderia o tribunal a quo ter dado como provado que o banco de horas teve a aceitação de todos os trabalhadores da Unidade em que o ora recorrente exercia funções, como ficou a constar do facto 12., apenas com base em prova testemunhal e por declarações de parte.

Deve acrescentar-se que, uma vez ouvida integralmente a prova pessoal produzida em julgamento, não resulta da mesma, mesmo nos termos vagos em que foi produzida, uma tal abrangência de 100% de adesão ao regime do banco de horas por parte de todos os trabalhadores (da totalidade, como diz o facto 12.) da Unidade de Emulsões da recorrida, mas apenas dos trabalhadores que aí laboram em regime de turnos. Na verdade, a testemunha … (então Director de Recursos Humanos) afirmou que a pretensão da R. era a de alcançar uma solução grupal aplicável a todos os trabalhadores por turnos e que, depois de não o conseguir em duas reuniões que se fizeram com os trabalhadores, avançou com o banco de horas individual para ver se suplantava a maioria qualificada legal. A testemunha afirmou depois que todos os trabalhadores por turnos da empresa aceitaram o banco de horas. Também a testemunha …, operário químico, expôs a questão do trabalho por turnos e dos inconvenientes de haver um trabalhador nessa rotação sem estar sujeito ao regime de banco de horas que a empresa aplica e está em vigor para todos os demais. E o Administrador da R. Eng…. afirmou em declarações de parte que a R. tem trabalhadores em regime de turnose em regime diurno, esclarecendo que as cartas foram enviadas apenas aos trabalhadores por turnos, o que, sem uma melhor explicitação do modo em que se desenvolve o trabalho na estrutura da R. nestes dois regimes, igualmente impede a afirmação de que o acordo individual do banco de horas proposto ao autor – o que nestes autos está em causa – foi aceite (…) pela totalidade dos trabalhadores da Unidade”, tal como ficou afirmado no facto 12. em desconformidade com esta prova no sentido de que só aos trabalhadores que trabalham por turnos foi proposto o banco de horas individual.

Considera-se pois “não provado” e, consequentemente, será eliminado dos factos provados o facto 12) elencado na sentença, procedendo neste aspecto o recurso.

Deve dizer-se que, ainda que não houvesse expressa impugnação da decisão de facto a este propósito, a circunstância de estar em causa a violação de regras de direito probatório material sempre convocaria os poderes enunciados no artigo 662.º, n.º 1 do Código de Processo Civil de alteração da decisão de facto por parte desta Relação[6].

3.2.2.Já quanto ao facto 13) – onde ficou assente que “[a] todos os trabalhadores da Ré foi comunicado que se não houvesse uma adesão igual ou superior a 75% do universo dos trabalhadores a quem o acordo individual foi enviado, o regime não seria aplicado e não entraria em vigor”a decisão não poderá ser a mesma.

(…)

Deverá pois manter-se o mesmo na decisão de facto.

Em suma, procedendo parcialmente a impugnação deduzida, elimina-se o facto 12) do elenco dos factos provados na sentença.

  4. Fundamentação de direito
 
4.1.Os factos em análise nestes autos ocorreram todos na vigência do Código do Trabalho aprovado pela Lei 7/2009, de 12 de Fevereiro, com as alterações que nele foram introduzidas no regime do banco de horas pela Lei n.º 23/2012, de 23 de Junho e pela Lei n.º 120/2015, de 01 de Setembro, pelo que a apreciação a efectuar deverá ser feita à luz do regime jurídico deste Código tendo presentes estas alterações.

4.2. Na presente acção, o A. pretende que seja reconhecida a inexistência, na sua esfera jurídica, da sujeição a qualquer regime de banco de horas previsto nos artigos 208º-A ou 208º-B, do Código do Trabalho, considerando-se válida a denúncia que efectuou em 30 de Setembro de 2016 do regime de banco de horas individual que se encontrava em vigor entre as partes desde 1 de Novembro de 2012, denúncia que a R. não aceitou, sob a alegação de que o A. estaria abrangido por um regime de banco de horas grupal pelo que continuaria a laborar em banco de horas segundo as regras estabelecidas em 2012 (factos 7. e 8.).

A defesa da R. assenta, essencialmente, na tese de que a denúncia do Acordo Individual de Banco de Horas por parte do A. não era legítima porque o A. se encontrava sujeito a um regime de banco de horas grupal, em face da adesão individual ao regime de banco de horas de 100% dos trabalhadores da unidade de emulsões onde está integrado. Segundo alega, tratando-se da denúncia do banco de horas grupal por um único trabalhador, ela não pode, por si só, produzir qualquer efeito, enquanto não estiver acompanhada de mais denúncias, que levem a que o número de trabalhadores integrados no regime fique reduzido a menos de 75% da unidade de emulsões.

A sentença sob recurso acolheu a tese da R., julgando improcedente a acção, o que o recorrente refuta, com a argumentação que expressou nas conclusões da sua apelação e que, além da impugnação da decisão de facto, assenta essencialmente na tese de que o acordo que vigorava na esfera do trabalhador era individual, nos termos do artigo 208.°-A do Código do Trabalho, como refere a carta que lho instituiu em 2012.

Vejamos.

O Código do Trabalho aprovado pela da Lei 7/2009 de 12 de Fevereiro, introduziu o banco de horas como uma modalidade de organização do tempo de trabalho que admite o aumento do período normal de trabalho diário e, consequentemente, do semanal, prestado para além dos limites previstos no artigo 203.º do Código do Trabalho (8 horas diárias e 40 horas semanais). Este regime não prevê o pagamento de acréscimos retributivos similares aos previstos no regime da prestação de trabalho suplementar e os limites a que está sujeito podem, em situações excepcionais, ultrapassar as 200 horas por ano. Como diz António Nunes de Carvalho, o banco de horas tal como desenhado no artigo 208.º do Código do Trabalho é fundamentalmente um esquema que faculta a criação de um contingente anual de horas de trabalho, para além do período normal de trabalho acordado, ao qual não é aplicável o regime de compensação pecuniária e de descanso compensatório característicos do trabalho suplementar”[7]

Mostram-se consagrados actualmente os seguintes tipos de bancos de horas: por regulamentação colectiva (artigo 208.º), individual (artigo 208.º-A) e grupal (artigo 208.º-B), podendo este último provir de banco de horas por regulamentação colectiva ou de banco de horas individual.

O banco de horas instituído por regulamentação colectiva foi introduzido pelo Código em 2009 e prevê um aumento até 4 horas diárias ao período normal de trabalho com limite de 60 horas por semana e 200 horas anuais por trabalhador, limite este que pode ainda ser afastado pelo instrumento de regulamentação colectiva sempre que a sua utilização tenha por objectivo evitar a redução do número de trabalhadores durante um período de até 12 meses.

O banco de horas individual foi introduzido pela Lei n.º 23/2012, de 25 de Junho, cujo principal escopo foi o de reduzir os custos com o trabalho[8], – e é instituído por acordo escrito entre empregador e trabalhador permitindo que o período normal de trabalho diário seja aumentado até ao limite máximo de 2 horas diárias e 50 horas semanais, estando previsto um limite de 150 horas anuais por trabalhador.

O banco de horas grupal, também introduzido em 2012, possibilita que o empregador aplique o regime do banco de horas por regulamentação colectiva ao conjunto dos trabalhadores de uma equipa, secção ou unidade económica”, caso “pelo menos, 60 % dos trabalhadores dessa estrutura sejam por ele abrangidos, mediante filiação em associação sindical celebrante da convenção e por escolha dessa convenção como aplicável” (n.º 1 do artigo 208.º-B e n.º 1 do artigo 206.º) e possibilita, também, caso a proposta de banco de horas individual a que se refere o n.º 2 do artigo 208.º-A seja aceite por, pelo menos, 75% dos trabalhadores da equipa, secção ou unidade económica a quem for dirigida”, que o empregador aplique o mesmo regime de banco de horas “ao conjunto dos trabalhadores dessa estrutura” (n.º 2 do artigo 208.º-B).

Como já se referiu, nesta segunda modalidade de banco de horas grupal que resulta de acordos ad hoc entre o empregador e trabalhadores individualmente considerados, os acordos devem regular as matérias previstas no artigo 208.º, n.º 4 do CT (artigo 208.-A, n.º 1, in fine) e devem resultar de uma proposta, por escrito, do empregador”, prevendo a lei uma presunção de aceitação do trabalhador que não se oponha por escrito, em 14 dias, à proposta escrita do empregador (artigo 205.º, n.º 4 aplicável ex vi do artigo 208.-A, n.º 2, segunda parte, do Código do Trabalho)[9].

Independentemente da questão dos critérios de delimitação objectiva dos grupos a que se estende o banco de horas grupal (equipa, secção ou unidade económica), o que tem um evidente relevo pois que é em relação aos conjuntos delimitados nesses moldes que se determina a taxa percentual a que está condicionada a adopção e continuidade da adaptabilidade grupal[10], é indispensável a proposta escrita do empregador a cada um dos trabalhadores e a aceitação destes.

Não pode esquecer-se que o regime do banco de horas grupal contende com vários princípios constitucionais, vg. o princípio da conciliação entre a vida pessoal e familiar [artigo 59.º, n.º 1, alínea d) da Constituição da República Portuguesa] e o princípio da filiação sindical – e ainda o princípio geral do cumprimento pontual dos contratos plasmado no artigo 406.º do Código Civil uma vez que o empregador fica, por esta via, autorizado a introduzir unilateralmente uma modificação no conteúdo dos contrato de trabalho dos trabalhadores, admitindo-se que um acto não normativo (o acordo que institui o regime) goze de eficácia externa ao alargar-se a trabalhadores que se pronunciaram contra a proposta do banco de horas individual, o que também é dificilmente compatibilizável com o princípio constitucional da hierarquia da lei ou dos actos normativos, consagrado no artigo 112.º, n.º 5, da CRP, segundo o qual «nenhuma lei pode criar outras categorias de actos legislativos ou conferir a actos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar quaisquer dos seus preceitos»[11]

O que demanda particulares cuidados na avaliação do perímetro relevante dos trabalhadores a atender para o preenchimento da percentagem habilitante da decisão do empregador e no próprio cômputo desta percentagem, bem como na aferição do necessário conteúdo obrigatório do regime proposto, como resulta do já dito.

Aliás, deve dizer-se que não é irrelevante a análise comparativa do conteúdo das diversas propostas dirigidas a cada trabalhador dentro do universo de referência. A doutrina tem aliás interpretado o artigo 208.º-B do Código do Trabalho no sentido de que esta modalidade de banco de horas grupal só pode ser aplicada pelo empregador se a formação do acordo nos termos do artigo 208.º-A resultar de uma proposta dirigida aos trabalhadores de uma unidade desenhando um esquema comum[12],por ser este o entendimento que melhor se compagina com o espírito da norma e melhor salvaguarda os interesses constitucionais afectados, cuja restrição é justificada pela necessidade de garantir a operabilidade da aplicação prática do banco de horas em virtude da sua vocação colectiva[13].

No caso vertente, a empregadora ora recorrida não provou ter enviado a todos os seus trabalhadores propostas individuais de acordo de banco de horas através do necessário escrito (nem, naturalmente, que estes os tivessem aceite), sendo certo que é do “somatório de acordos” que se retira a possibilidade de imposição forçada” do regime do banco de horas aos trabalhadores dele discordantes[14], quer ab initio, quer no decurso da sua execução.

Pelo que, independentemente de outros aspectos que se impunha averiguar relacionados com a delimitação do universo de referência dos trabalhadores abrangidos e com a avaliação dos limiares percentuais imperativos cuja observância a lei determina para possibilitar a extensão do banco de horas a trabalhadores que, de outro modo, estariam, excluídos do seu âmbito de aplicação, não resultando da conjugação dos factos provados na sentença que de algum modo se mostrem preenchidos os requisitos necessários à afirmação de que foi implementado pela recorrida um banco de horas grupal na Unidade de Emulsões da sua empresa.

Assim, face aos factos provados, deve considerar-se que o acordo de banco de horas que vinculava o trabalhador ora recorrente [vide os factos 2) a 6)] era um acordo individual de banco de horas com efeitos inter partes, nos termos prescritos no artigo 208.°-A do Código do Trabalho, como refere a proposta que foi lhe remetida pela recorrida no ano de 2012.

4.3. Aqui chegados, e uma vez aferida a natureza do banco de horas instituído pela R. ora recorrida, no que diz respeito ao ora recorrente, a resposta à questão de saber se este podia denunciar unilateralmente o acordo de banco de horas surge como evidente.
Considerando-se o acordo de banco de horas a que trabalhador e empregadora se vincularam em 2012 como um acordo individual de banco de horas, nos termos prescritos no artigo 208.°-A do Código do Trabalho, é plenamente válida a denúncia de tal acordo que o Autor realizou em 30 de Setembro de 2016 [vide o facto 7)].
Na verdade, a recorrida enunciou também no escrito que titula o banco de horas os termos da eventualidade de uma denúncia do acordo [vide o facto 6)], tendo sido a proposta da recorrida, também neste aspecto, tacitamente aceite pelo recorrente (nos termos das disposições conjugadas dos artigos 208.º-A, n.º 2 e 205.º, n.º 4 do Código do Trabalho).

Assim, através da denúncia realizada pelo ora recorrente nos exactos termos acordados, e respeitando a antecedência prevista [factos 6. e 7.] o referido acordo de banco de horas deixou de produzir os seus efeitos a partir de 1 de Novembro de 2016.

E deve declarar-se procedente o pedido de que, por virtude desta denúncia, seja judicialmente declarada a cessação, a partir de 1 de Novembro de 2016, dos efeitos do denominado acordo individual de banco de horas que vinculou o A. AAAà R. CCC,S.A., designadamente no que diz respeito à convocação, limites e remuneração do trabalho suplementar.

Procede o recurso no que diz respeito à vertente de simples apreciação [artigo 10.º, n.º 2 e 3 alínea a) do CPC] da presente acção.

4.4. Nas conclusões da apelação, o recorrente, partindo do princípio da validade da denúncia realizada em 30 de Setembro de 2016, alega que desde essa data não está sujeito a qualquer regime de banco de horas e que todo o trabalho suplementar lhe deve ser remunerado nesse pressuposto, pedindo a final a revogação da sentença e a condenação da Ré nos termos peticionados na petição inicial.

Deve desde logo dizer-se que nunca uma tal pretensão poderia montar a 30 de Setembro de 2016, quando, como resulta do exposto, apenas em 1 de Novembro de 2016 se pode considerar cessada a vigência do regime do banco de horas que vinculou as partes.

Seja como fôr, analisando a factualidade apurada nesta acção verifica-se que, quanto ao pedido formulado pelo A. ora recorrente de que seja a R. condenada a pagar-lhe a diferença entre as quantias devidas ao mesmo por força do trabalho prestado – no que concerne ao período compreendido entre Novembro de 2016 e a data do trânsito em julgado da sentença que venha a ser proferida – e as quantias efectivamente devidas ao mesmo por força da consideração de que naquele período não estava sujeito a qualquer regime de banco de horas, nomeadamente no que diz respeito a trabalho prestado fora do horário normal de trabalho ou em dias de descanso semanal, não dispõe este tribunal de quaisquer factos provados susceptíveis de o alicerçar.

Na verdade, neste aspecto o A. formula um pedido de condenação que pressupõe a existência de factos provados relativos ao trabalho que efectivamente prestou ao serviço da recorrida na pressuposição da vigência de um regime de banco de horas que já não estava em vigor a partir de 1 de Novembro de 2016 e que, por força do regime do tempo de trabalho que emerge do Código do Trabalho, vg. no que diz respeito ao trabalho suplementar, lhe poderiam conferir direito a uma retribuição majorada ou a descanso compensatório (cfr. designadamente os artigos 197.º , 226.º., 229.º e 268.º do Código do Trabalho).

Ora, atento o disposto no artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil e no artigo 268.º, n.º 2 do Código do Trabalho de 2009, ao trabalhador que invoca o direito à remuneração por trabalho suplementar compete alegar e provar os factos constitutivos desse direito, ou seja, que prestou trabalho fora do horário de trabalho (em cada dia de trabalho ou em dias que devam considerar-se como feriado ou de descanso semanal) e que tal sucedeu por determinação prévia e expressa do empregador ou que a prestação desse trabalho foi realizada em circunstâncias de não ser previsível a sua oposição.

No caso sub judice, nada se sabe quanto ao trabalho que o A. prestou a partir de 1 de Novembro de 2016, desconhecendo-se qual o horário que lhe foi fixado, quais os turnos em que efectivamente trabalhou, em suma, qual o enquadramento temporal do seu trabalho, não sendo por isso possível afirmar que, por virtude do trabalho que nesse período prestou em regime de banco de horas, deveria reconhecer-se-lhe o direito a uma retribuição majorada ou a descanso compensatório.

Os factos provados são totalmente omissos a tal propósito[15].

 É certo que o recorrente pede a condenação da R. a este título no que vier a ser apurado em posterior liquidação, mas ao formular esta pretensão parte do pressuposto, errado, de que logrou provar ter prestado trabalho que deva ser qualificado como suplementar e susceptível de lhe conferir o direito a uma retribuição majorada ou a descanso compensatório.

Com efeito, nos termos do preceituado no artigo 609.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, “[s]e não houver elementos para fixar o objecto ou a quantidade, o tribunal condena no que vier a ser liquidado, sem prejuízo de condenação imediata na parte que já seja líquida”.

Não é possível remeter para liquidação de sentença a fixação de valores retributivos devidos, designadamente pela prestação de trabalho suplementar, se o autor não demostrou os elementos que constituem pressupostos do reconhecimento do direito de crédito respectivo.

A falta de prova de que o trabalhador prestou trabalho para além do horário estabelecido com o empregador no contrato laboral firmado entre ambos não se reporta à mera quantificação do direito ao pagamento de trabalho suplementar, mas à própria demonstração do direito a tal pagamento, cujo ónus recai sobre quem o peticiona[16] e que, nestes autos, o recorrente não logrou satisfazer.

Não merece, pois, censura a absolvição da R. do pedido condenatório, ainda que por distinto fundamento. 

  4.5. As custas do recurso interposto da sentença final recaem sobre o A. recorrente e sobre a R. recorrida na proporção do decaimento que resulta da condenação efectuada nesta instância (artigo 527.º do Código de Processo Civil). Não sendo possível, por virtude da não quantificação do pedido, a repartição das custas por critérios matemáticos, fixa-se a proporção de decaimento do A. em 10% e da R. em 90%, atenta a relevância dos interesses em presença nos pedidos em que respectivamente decaíram.

Não havendo encargos a contar neste recurso que, para efeitos de custas processuais, configura um processo autónomo (artigo 1.º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais), a condenação é restrita às custas de parte que haja.

5. Decisão

Em face do exposto:

5.1. julga-se parcialmente procedente a impugnação de facto deduzida e elimina-se o facto 12. elencado na sentença;

5.2. concede-se parcial provimento à apelação e altera-se a sentença recorrida, reconhecendo que o recorrente AAA  não se encontra sujeito a um regime de banco de horas grupal e que, por virtude da denúncia a que procedeu do acordo individual de banco de horas que vinculou as partes, este acordo individual cessou os seus efeitos a partir de 1 de Novembro de 2016, designadamente no que diz respeito à convocação, limites e remuneração do trabalho suplementar;

5.3. quanto ao mais pedido, mantém-se a decisão absolutória da sentença.

Condenam-se o recorrente e a recorrida nas custas de parte que haja a contar, respondendo cada um deles pela proporção de 10 % e 90 % de tais custas, respectivamente.



Lisboa, 10 de Abril de 2019



(Maria José Costa Pinto)
(Manuela Bento Fialho)
(Sérgio Almeida)


[1]Vide Luís Miguel Monteiro, in Código do Trabalho Anotado, sob a coordenação de Pedro Romano Martinez e outros, 10.ª edição, Coimbra, 2016, p. 535
[2]In O trabalho e o tempo: comentário ao Código do Trabalho, Porto, 2018, p. 178.
[3]Vide Catarina de Oliveira Carvalho, “A organização e a remuneração dos tempos de trabalho: em especial o banco de horas”, in Estudos Dedicados ao Professor Doutor Bernardo Lobo Xavier, volume I, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2015, p 467, nota 2, citando Liberal Fernandes a propósito da adaptabilidade individual.
[4]Vide Carlos da Mota Pinto, in Teoria Geral do Direito Civil, lições ao ano lectivo de 1972-1973, pp. 510 ss. e Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Vol. I, 1982, pp. 210 e 320 a 322. Somente quando resulte claramente da lei que a forma foi exigida apenas para prova da declaração - formalidade ad probationem – é possível substituir o documento por confissão expressa.
[5]Vide Monteiro Fernandes in "Direito do Trabalho", 18.ª edição, Coimbra, 2017, p. 419.
[6]Vide Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 3.ª edição, Coimbra, 2016, pp. 244. Nestes casos de violação de disposição legal que exija certa espécie de prova, mesmo o Supremo Tribunal de Justiça, que é estruturalmente um tribunal de revista, tem reconhecidos poderes de alteração da decisão de facto, tal como se mostra previsto no artigo 674.º, n.º 3 do Código de Processo Civil.
[7]No seu estudo Notas sobre o regime do tempo de trabalho na revisão do Código do Trabalho, in Código do Trabalho – A Revisão de 2009, coordenado por Paulo Morgado de Carvalho, Coimbra, 2011, p 375.
[8]Vide Júlio Gomes, “Algumas reflexões sobre as alterações introduzidas no Código do Trabalho pela Lei n.º 23/2012 de 25 de Junho”, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano LXXII, vol. II/III, 2012, p. 617.
[9]Analisando o regime legal do banco de horas, o Acórdão do Tribunal Constitucional (TC) n.º 602/2013, de 24 de Outubro de 2013 (in www.tribunalconstitucional.pt), afirmou que as medidas concretamente aprovadas pela Lei 23/2012, de 25 de Junho, visavam, entre outras, a “redução de custos associados à prestação de trabalho fora do período normal (diminuição das contrapartidas e flexibilização dos tempos de trabalho” e inscreviam-se no conjunto de medidas que tinham vindo a ser adoptadas no sentido de aumentar a flexibilidade na organização do tempo de trabalho e apelou ao Acórdão n.º 338/2010, que se debruçou sobre a regra paralela respeitante ao regime da adaptabilidade individual contida no artigo 205.º, n.º 4, do CT (para o qual o n.º 2, do artigo 208.º-A remete), aresto que decidiu não declarar a inconstitucionalidade do mencionado artigo 205.º, por entender “que o facto de o silêncio não ter em geral valor declarativo (artigo 218.º do Código Civil), não significa que a lei não lhe possa conferir esse valor, quando se entenda que é razoável supor a diligência correspondente a um dever de resposta”. Segundo o Tribunal Constitucional, as razões apontadas no seu anterior Acórdão “são inteiramente transponíveis para o caso em apreço”, tendo concluído não ser inconstitucional a norma do artigo 208.º-A, n.º 2 essencialmente com base na igualdade de condições de trabalho, no princípio do colectivo e na prevalência dos interesses de gestão. Vide em sentido crítico deste aresto os Professores Monteiro Fernandes, “A 'Reforma Laboral' de 2012 - Observações em torno da Lei 23/2012”, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano LXXII, vol. II/III, 2012, pp. 545 e ss., e Júlio Gomes, “Algumas reflexões sobre as alterações introduzidas no Código do Trabalho pela Lei n.º 23/2012 de 25 de Junho”, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano LXXII, vol. II/III, 2012, pp. 575 e ss.
[10]Vide Francisco Liberal Fernandes, in O trabalho e o tempo: comentário ao Código do Trabalho, Porto, 2018, p. 180. Segundo este autor, ainda que o facto de o art. 208º- B aludir às designações grupo, equipa ou unidade económica não signifique que possa falar-se na existência de categorias jurídicas prévias ou pré-existentes e, portanto, modeladoras do banco de horas grupal, atendendo às finalidades do regime e à organização interna das empresas, “será frequente ou normal que a respectiva determinação ou concretização assente em critérios de racionalidade económica e, portanto, que pressuponha a existência de uma ligação técnica, categorial ou funcional entre os trabalhadores designados — tanto mais que é em relação cada conjunto delimitado nos moldes referidos que se determina a taxa percentual a que está condicionada a adopção e manutenção do banco de horas grupal”.
[11]Vide, além dos Professores Monteiro Fernandes e Júlio Gomes, nos locais citados, Francisco Liberal Fernandes, in O trabalho e o tempo: comentário ao Código do Trabalho, Porto, 2018, pp. 184 e ss. e Maria do Rosário Palma Ramalho, in “Direito do Trabalho – Parte II – Situações Laborais Individuais”, 6.ª edição, Coimbra, 2016, pp. 395 e 402.
[12]Vide António Nunes de Carvalho, “Tempo de trabalho”, in Revista de Direito e de Estudos Sociais, 2012, n.ºs 1 e 2, p 32
[13]Vide Catarina de Oliveira Carvalho, “A organização e a remuneração dos tempos de trabalho: em especial o banco de horas”, in Estudos Dedicados ao Professor Doutor Bernardo Lobo Xavier, volume I, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2015, pp. 478-479.
[14]Vide Monteiro Fernandes in "Direito do Trabalho", 18.ª edição, Coimbra, 2017, p. 419.
[15]Em boa verdade, poderia aqui afirmar-se que o pedido condenatório em análise carecia de causa de pedir, o que seria susceptível de acarretar a ineptidão da petição inicial determinativa da nulidade do processo quanto ao mesmo, de acordo com o artigo 186.º, n.º 1, do Código de Processo Civil. Esta nulidade é de conhecimento oficioso, nos termos do artigo 196.º do mesmo Código. Contudo, nos termos do artigo 200.º, n.º 2, a referida nulidade só pode ser apreciada no saneador, se o juiz a não tiver apreciado antes, ou, não havendo lugar a despacho saneador, até à sentença final. Não se tendo conhecido a excepção da ineptidão parcial da petição inicial no despacho saneador, precludiu o conhecimento oficioso desta excepção dilatória prevista no artigo 577.º, alínea b), do Código de Processo Civil), cabendo a este Tribunal da Relação conhecer do mérito da apelação, tendo em consideração as conclusões da apelação deduzida e os factos de que lhe é lícito conhecer.
[16]Vide o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Abril de 2009, Processo n.º 686/07.5TTAVR - 4.ª Secção,
sumariado in www.stj.pt.