Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
8095/21.7T8ALM.L1-4
Relator: JOSÉ EDUARDO SAPATEIRO
Descritores: DESPACHO DE INDEFERIMENTO LIMINAR
DECISÃO SURPRESA
DESPACHO DE APERFEIÇOAMENTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/18/2023
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA A DECISÃO
Sumário: I – Justifica-se, excecionalmente, o exercício prévio do princípio do contraditório, nos moldes previstos no n.º 3 do art.º 3.º do CPC/2013, quando da proferição de despacho judiciais de indeferimento liminar, caso os motivos ou problemáticas que justificam os mesmos não resultem dos elementos constantes do articulado inicial e dos documentos que o complementam ou quando, sendo de conhecimento oficioso, sejam inesperadas, imprevisíveis, «surpreendentes» para a parte demandante.
II - Não houve por parte do tribunal recorrido, com a proferição do despacho de indeferimento liminar que aqui se acha em apreciação, qualquer violação do princípio do contraditório, por o mesmo não poder ser configurado juridicamente como uma «decisão surpresa». 
III – O tribunal recorrido no despacho liminar que prolatou e na apreciação necessariamente limitada e perfunctória que fez, não perspetivou a viabilidade dos pedidos e fundamentos factuais e jurídicos formulados pelo Autor, em função das diversas e possíveis interpretações jurídicas e soluções de direito, sendo certo que o despacho liminar de aceitação da petição inicial em questão não forma caso julgado formal ou material quanto a qualquer uma das dúvidas e questões antes levantadas, podendo a presente ação ser, a final, julgada total ou parcialmente improcedente, por alguns dos fundamentos constantes do despacho liminar recorrido ou outros que se deixaram ou não aflorados na nossa fundamentação. 
IV – Entendemos que não cabe a este tribunal de recurso, nas circunstâncias concretas e particulares dos autos, ordenar a substituição do despacho recorrido por um despacho de aperfeiçoamento, por se traduzir, de alguma maneira, numa forma de conduzir e condicionar o julgamento adjetivo e de mérito a fazer pelo tribunal da 1.ª instância, tudo sem prejuízo de deixarmos em aberto e ao critério da ilustre julgadora do tribunal recorrido tal possibilidade de mandar aperfeiçoar a Petição Inicial do Autor.  
(Elaborado pelo relator)
Decisão Texto Parcial:ACORDAM NESTE TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:

I – RELATÓRIO
AAA, … veio propor, em 28/12/2021, ação declarativa de condenação com processo comum contra BBB, … tendo formulado os seguintes pedidos:
«Nestes termos e nos mais de Direito, e sempre com mui douto suprimento de V. Exa., deve a presente ação ser julgada procedente, por provada, e, em consequência:
a) Deverá o Réu ser condenado a pagar ao Autor os créditos laborais de que é titular sobre a sociedade comercial (…), no montante global de €14.769,50;
b) Deverá o Réu ser condenado a pagar ao Autor juros de mora sobre a quantia mencionada na alínea a), contabilizados à taxa legal desde a data de vencimento de cada prestação até efetivo e integral pagamento, liquidando-se os juros vencidos, na presente data (27/12/2021), em €2.573,25;
c) Deverá o Réu ser condenado a pagar ao Autor as custas de parte, referentes ao processo n.º 3247/19.2T8BRR, no montante global de €521,32;
d) Deverá o Réu ser condenado a pagar ao Autor juros de mora sobre a quantia mencionada na alínea c), contabilizados à taxa legal desde a data de vencimento até efetivo e integral pagamento, liquidando-se os juros vencidos, na presente data (27/12/2021), em €10,97;
e) Deverá o Réu ser condenado no pagamento das custas processuais e condigna procuradoria»
O Autor, para o efeito, alegou, em síntese, o seguinte [fls. 2 a 12 + Documentos de fls. 12 verso a 66]:
«I – DOS FACTOS
1.º - Em 21 de Dezembro de 2009, o Réu constitui a sociedade comercial unipessoal por quotas sob a firma “(…).”, com o NIPC …com capital social de €50.000,00 e com sede na … – Cfr. Publicação do Portal da Justiça que aqui se junta como Doc. n.º 1 e se dá por integralmente reproduzido.
2.º - A “(…)” tinha como objeto social o comércio a retalho de carnes, salsicharia e charcutaria, explorando um estabelecimento de talho na morada da sua sede. - Cf. Doc. n.º 1.
3.º - O Réu foi o único sócio e gerente da “(…)” - Cf. Doc. n.º 1.
4.º - Por contrato de trabalho celebrado em agosto de 2000, a sociedade comercial “(…)” contratou o Autor para exercer as funções inerentes à categoria profissional de Cortador de Carnes.
5.º - O contrato de trabalho não foi, contudo, refletido em documento escrito.
6.º - Ao fim de 19 anos de trabalho e cansado do ritmo e dos horários praticados pela sociedade, o Autor, por via de missiva datada de 10 de Junho de 2019, veio denunciar o referido contrato de trabalho com efeitos a partir de 04 de setembro de 2019, conforme estabelecido no artigo 400.º do Código do Trabalho. – Cfr. carta que aqui se junta como Doc. n.º 2 e se dá por integralmente reproduzido.
7.º - À data da cessação do contrato de trabalho, na sequência da referida denúncia, encontravam-se vencidos, e venceram-se no momento da cessação do contrato de trabalho, créditos laborais de que o Autor é titular sobre a antiga entidade empregadora, a sociedade “(…)”
8.º - No entanto, a sociedade “(…).” não procedeu ao pagamento da totalidade dos créditos laborais devidos, mesmo depois de ter sido interpelada pelo Autor, através da sua mandatária, que dirigiu uma comunicação escrita datada de 28 de outubro de 2019.- Cfr. carta que aqui se junta como Doc. n.º 3 e se dá por integralmente reproduzido.
9.º - Neste sentido, o Autor não viu outra opção se não recorrer à via judicial, demandando a sociedade “(…).”, em 13 de dezembro de 2019, numa ação declarativa emergente de contrato de trabalho em processo comum, que correu termos no Juiz 2 do Juízo do Trabalho de Almada, Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, sob o n.º 3247/19.2T8BRR. – Cfr. Petição Inicial que aqui se junta como Doc. n.º 4 e se dá por integralmente reproduzido.
10.º - No âmbito do identificado processo, o Autor peticionou o pagamento de créditos laborais já vencidos e de outros que se venceram no momento da cessação do seu contrato de trabalho. – Cfr. Doc. n.º 4.
11.º - A “(...).” foi regularmente citada para os termos da identificada ação e para comparecer pessoalmente em tribunal a fim de se proceder a Audiência de Partes. – Cfr. citação que se junta como Doc. n.º 5 e se dá por integralmente reproduzido.
12.º - A citação da “(...).” foi efetuada na pessoa do aqui Réu em 13 de janeiro de 2020. – Cfr. Aviso de receção da citação que se junta como Doc. n.º 6 e se dá por integralmente reproduzido.
13.º - Saneada e instruída a causa, realizou-se Audiência de Julgamento entre os dias 15 de janeiro de 2021 e 14 de abril de 2021. – Cfr. Atas da Audiência Final que aqui se juntam como Docs. n.ºs 7 e 8 e se dão por integralmente reproduzidos.
14.º - Por Sentença proferida em 26 de abril de 2021, no âmbito do processo n.º 3247/19.2T8BRR, foi a sociedade (...) condenada a pagar ao Autor os seguintes créditos laborais:
- €14.352,32 (catorze mil, trezentos e cinquenta e dois euros e trinta e dois cêntimos) a título de trabalho suplementar;
- €585,69 (quinhentos e oitenta e cinco euros e sessenta e nove cêntimos) a título de proporcionais de férias do ano da cessação do contrato de trabalho;
- €723,24 (setecentos e vinte e três euros e vinte e quatro cêntimos) a título de créditos de formação. - Cf. Sentença que aqui se junta como doc. n.º 9 e se dá por integralmente reproduzido.
15.º - A estes valores devidos acrescem juros de mora, vencidos desde a data do vencimento de cada prestação e os vincendos até integral pagamento. - Cf. Doc. n.º 9.
16.º - Além dos créditos laborais, a sociedade “(...).” foi ainda condenada a pagar as custas do processo na quantia de € 521,32. - Cfr. Doc. n.º 9 e Nota Discriminativa e Justificativa de Custas de Parte que se junta como doc. n.º 10 e se dá por integralmente reproduzido.
17.º - Acontece que a “(...)” não procedeu ao pagamento de qualquer montante, incumprindo com o decidido pelo competente órgão jurisdicional.
18.º - Por carta datada de 23 de julho de 2021, o Autor notificou o Réu, na qualidade de sócio e gerente da “(...).”, para o pagamento voluntário dos créditos laborais e das custas de parte associadas ao processo supra identificado. – Cfr. carta que se junta como Doc. n.º 11 e se dá por integralmente reproduzido.
19.º - Para o efeito, o Autor concedeu um prazo de 10 dias para pagamento voluntário dos valores em dívida, sob pena de, não o fazendo, ser instaurada a respetiva ação judicial para cobrança dos créditos laborais em dívida. – Cfr. Doc. n.º 11.
20.º - Não obstante a referida missiva ter sido enviada para a morada conhecida da residência habitual do Réu – i.e. … –, tal missiva veio devolvida. – cf. informação do site dos CTT que aqui se junta como Doc. n.º 12.
21.º - Não tendo o Réu, entretanto, se dignado a pagar os valores em dívida ao Autor.
22.º - Pelo que, na presente data, encontra-se em dívida o montante total de € 14.769,50, conforme melhor descrito no artigo 14.º da presente PI.
23.º - Ao valor de € 14.769,50 acrescem ainda juros de mora, que se liquidam da seguinte forma:
- Trabalho suplementar prestado em 2014 (€ 255,72): juros de mora entre 31/12/2014 e 27/12/2021…………...……….…...€71,55;
- Trabalho suplementar prestado em 2015 (€ 2.812,92): juros de mora entre 31/12/2015 e 27/12/2021……………………….€674,48;
- Trabalho suplementar prestado em 2016 (€ 2.812,92): juros de mora entre 31/12/2016 e 27/12/2021……………….………€561,66;
- Trabalho suplementar prestado em 2017 (€2.812,92): juros de mora entre 31/12/2017 e 27/12/2021………...……………..€449,14;
- Trabalho suplementar prestado em 2018 (€2.812,92): juros de mora entre 31/12/2018 e 27/12/2021…………...………..…€336,63;
- Trabalho suplementar prestado em 2019 (€1.534,32): juros de mora entre 04/09/2019 e 27/12/2021…………………….....€142,08;
- Trabalho suplementar prestado em dia feriado em 2015 (€218,30): juros de mora entre 31/12/2015 e 27/12/2021.......€52,34;
- Trabalho suplementar prestado em dia feriado em 2016 (€ 291,28): juros de mora entre 31/12/2016 e 27/12/2021….…..€58,16;
- Trabalho suplementar prestado em dia feriado em 2017 (€ 327,69): juros de mora entre 31/12/2017 e 27/12/2021…...…€52,32;
- Trabalho suplementar prestado em dia feriado em 2018 (€ 364,10): juros de mora entre 31/12/2018 e 27/12/2021……...€43,57;
- Trabalho suplementar prestado em dia feriado em 2019 (€109,23): juros de mora entre 04/09/2019 e 27/11/2021…...€10,11;
- Proporcionais de férias, subsídio de férias e subsídio de natal (€ 585,69): juros de mora entre 04/09/2019 e 27/12/2021..…….€54,24;
- Crédito por formação não ministrada (€723,24): juros de mora entre 04/09/2019 e 27/12/2021……………………………….€66,97.
24.º - A tais valores acresce ainda a quantia de € 521,32 referente às custas de parte a que a sociedade (...). foi condenada a pagar. - Cf. Docs. n.ºs 9 e 10.
25.º - Bem como os juros de mora, contabilizados à taxa legal, desde a data de vencimento da obrigação de pagamento das custas de parte (18/06/2021) até efetivo e integral pagamento, liquidando-se os juros vencidos, na presente data (27/12/2021), em €10,97.
26.º - Por conseguinte, encontram-se em dívida ao Autor os seguintes montantes:
- Montante global dos créditos laborais…....……....……€14.769,50
- Juros de Mora sobre os créditos laborais……..………..€2.573,25
- Montante global referente às custas de parte...……….. €521,32
- Juros de Mora sobre as custas de parte……...…...…….….€10,97
                                                         Total = €17.875,04
27.º - Nas diligências encetadas com vista à cobrança coerciva dos créditos laborais em dívida, ficou o Autor a saber que o Réu, após tomar conhecimento da pendência da ação n.º 3247/19.2T8BRR, encerrou a empresa e dissipou o património que fazia parte da mesma.
28.º - Com efeito, pouco depois de a sua empresa ser citada para a ação n.º 3247/19.2T8BRR, mais concretamente no dia 31 de agosto de 2020, o Réu, na qualidade de sócio gerente, determinou a dissolução e liquidação da sociedade (...)., através da realização de uma Assembleia Geral, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 146.º do Código das Sociedades Comerciais. - Cf. Ata que aqui se junta como Doc. n.º 13 e se dá por integralmente reproduzido.
29.º - Note-se que, nos termos do n.º 1 do artigo 27.º do Regime Jurídico dos Procedimentos Administrativos de Dissolução e Liquidação de Entidades Comerciais, para que se possa proceder à dissolução e liquidação de uma sociedade devem de estar verificados os seguintes pressupostos cumulativos: «a) Instauração do procedimento de dissolução e liquidação por qualquer pessoa, desde que apresentado requerimento subscrito por qualquer dos membros da entidade comercial em causa ou do respetivo órgão de administração, e apresentada ata de assembleia geral que comprove deliberação unânime nesse sentido tomada por todos os membros da entidade comercial;
b) Declaração, expressa na ata referida na alínea anterior, da não existência de ativo ou passivo a liquidar.» (sublinhado nosso)
30.º - Pelo que, na sobredita Assembleia Geral, realizada no dia 31 de agosto de 2020, o Réu decidiu pela cessação de toda a atividade da sociedade com efeitos a partir do dia 31 de dezembro de 2019, mais declarando que «todo o ativo da sociedade esgotado no passivo, não havendo, portanto, ativo ou passivo». - Cf. Doc. n.º 13.
31.º - Afirmação que o Réu sabia ser falsa, já que a empresa era devedora ao Autor de créditos laborais vencidos e não pagos, reclamados na ação n.º 3247/19.2T8BRR.
32.º - Desta forma, não está verificado o requisito da alínea b) do n.º 1 do artigo 27.º do Regime Jurídico dos Procedimentos Administrativos de Dissolução e Liquidação de Entidades Comerciais.
33.º - Teve o Autor ainda conhecimento de que o Réu somente retirou os bens que se encontravam no interior do estabelecimento comercial da empresa em fevereiro de 2021, ou seja, durante o período temporal em que decorreu o julgamento do processo n.º 3247/19.2T8BRR, não deixando nada no interior do mesmo. – Cfr. Docs. n.ºs 7 e 8.
34.º - Sendo que o património, que pertenceria à sociedade (...)., era composto por arcas frigoríficas e outros bens de considerado valor, na medida em que o objeto social da sociedade era o comércio a retalho de carnes, salsicharia e charcutaria, explorando um estabelecimento de talho para este efeito.
35.º - Ao retirar e ocultar os bens da sociedade (...)., o Réu quis frustrar, de forma dolosa, o direito do Autor de ser pago dos créditos laborais que lhe são devidos, na medida em que tinha conhecimento desde o dia 10 de Junho de 2019 que o Autor iria cessar o seu contrato de trabalho e que os seus créditos laborais se tornariam exigíveis, devendo ser pagos até à data da cessação. - Cf. Doc. n.º 2.
36.º - Tendo o Réu pleno conhecimento que a sociedade era devedora do Autor de créditos laborais conformou-se com essa situação e, depois de saber que o Autor, de forma a reivindicar os créditos laborais em dívida, vencidos a 04 de setembro de 2019, instaurou a identificada ação judicial a 13 de dezembro de 2019, procedeu, com dolo, à decisão de dissolver e dissipar o património da sociedade em 31 de agosto de 2020, com efeitos a partir do dia 31 de dezembro de 2019.
37.º - Nesta conformidade, o Réu, sócio gerente da sociedade, incumpriu culposamente as disposições legais destinadas à proteção dos créditos laborais do Autor.
38.º - Mercê do exposto, nada mais resta ao Autor senão intentar a presente ação de condenação do Réu no pagamento dos valores devidos referente aos créditos laborais, acrescido dos juros de mora à taxa legal, vencidos e vincendos que se liquidam, na presente data (27/12/2021), em € 2.573,25, totalizando a quantia de €14.769,50, bem como das custas do processo que ficaram a cargo da sociedade “(...).” na proporção de 54,44%, totalizado na quantia de € 521,32, acrescido dos juros de mora à taxa legal, vencidos e vincendos que se liquidam, na presente data (27/12/2021), em €10,97.
II – DO DIREITO
39.º - Como é consabido, a lei laboral prevê a responsabilidade dos sócios e gerentes das sociedades pelos créditos dos trabalhadores emergentes de contrato de trabalho nos artigos 333.º a 336.º do Código do Trabalho.
40.º - Dispõe o n.º 1 do artigo 335.º do Código do Trabalho que «O sócio que, só por si ou juntamente com outros a quem esteja ligado por acordos parassociais, se encontre numa das situações previstas no artigo 83.º do Código das Sociedades Comerciais, responde nos termos do artigo anterior, desde que se verifiquem os pressupostos dos artigos 78.º, 79.º e 83.º daquele diploma e pelo modo neles estabelecido
41.º - De acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 78.º do Código das Sociedades Comerciais, os gerentes respondem para com os credores da sociedade quando, pela inobservância culposa das disposições legais ou contratuais destinadas à proteção destes, o património social se torne insuficiente para a satisfação dos respetivos créditos.
42.º - No entender do Supremo Tribunal de Justiça, no douto Acórdão de 24 de Novembro de 2011, proferido no âmbito do processo n.º 3365/04.1TTLSB.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt, «O art.º 78.º, n.º 1 do CSC prevê expressamente a responsabilidade civil dos gerentes, administradores ou diretores perante os credores sociais. Esta responsabilização depende da verificação de dois requisitos:
a) Inobservância de disposições legais ou contratuais destinadas à proteção dos credores sociais;
b) Insuficiência do património social para a satisfação dos respetivos créditos.
O primeiro pressuposto refere-se à ilicitude e à culpa, ou seja, deve tratar-se de uma violação culposa de normas legais ou contratuais destinadas à proteção dos credores sociais.
Esta modalidade de responsabilidade civil é de natureza extracontratual e situa-se no quadro da chamada responsabilidade pela violação de normas de proteção, prevista no art.º 483.º, n.º 1 do C. Civil. As normas de proteção relevantes são aquelas que protegem a função de garantia do capital social para os credores sociais.».
43.º - Já o artigo 79.º do Código das Sociedades Comerciais estatui que «os gerentes respondem, nos termos gerais, para com terceiros, pelos danos que diretamente lhes causarem no exercício das suas funções».
44.º - Mais determinou o Supremo Tribunal de Justiça que «Esta norma prevê uma responsabilidade extracontratual por factos ilícitos, nos termos do art.º 483.º, n.º 1 do C. Civil, norma jurídica (…) Está em causa, portanto, a violação culposa (com dolo ou mera culpa) de direitos subjetivos absolutos ou de normas de proteção.». - Cf. supra cit. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Novembro de 2011.
45.º - Já o n.º 2 do artigo 335.º do Código do Trabalho dispõe que «O gerente, administrador ou diretor responde nos termos previstos no artigo anterior, desde que se verifiquem os pressupostos dos artigos 78.º e 79.º do Código das Sociedades Comerciais e pelo modo neles estabelecido».
46.º - Desta forma, a responsabilidade do sócio prevista no artigo 335.º do Código do Trabalho depende da verificação dos pressupostos presentes nos artigos 78.º e 79.º do Código das Sociedades Comerciais, bem como dos pressupostos do artigo 83.º do mesmo Código, no caso de o sócio, por si ou através de acordo parassocial, se encontrar nas situações elencadas neste último artigo, isto é, se o sócio, por força de disposições do contrato de sociedade tenha o direito de designar gerente, sem necessidade que todos os sócios deliberem sobre esta designação.
47.º - Remete, ainda, o n.º 2 do artigo 335.º para o artigo 334.º, do Código do Trabalho, que dispõe que «Por crédito emergente de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação, vencido há mais de três meses, respondem solidariamente o empregador e sociedade que com este se encontre em relação de participações recíprocas, de domínio ou de grupo, nos termos previstos nos artigos 481.º e seguintes do Código das Sociedades Comerciais».
48.º - Nestes termos, remete o n.º 2 do artigo 335.º do Código do Trabalho para a responsabilidade das sociedades com determinado tipo de relação societária, na medida em que os gerentes e os administradores respondem perante os trabalhadores, solidariamente com a sociedade comercial, pelos créditos emergentes da cessação do contrato.
49.º - Nesta conformidade, e no entender do Tribunal da Relação de Évora no douto Acórdão de 06-10-2016, proferido no âmbito do processo n.º 6381/12.6TBSTB.E1, acessível em www.dgsi.pt, nos termos do n.º 2 do artigo 335.º do Código do Trabalho, a responsabilidade solidária do sócio gerente depende apenas da verificação dos pressupostos dos artigos 78.º e 79.º do Código das Sociedades Comerciais, sobre a violação de normas de proteção da integridade do capital social, e da prova dos pressupostos gerais da responsabilidade aquiliana, nos termos do artigo 483, n.º 1 do Código Civil.
50.º - Conforme o disposto no n.º 1 do artigo 483.º do Código Civil, «Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação».
51.º - Assim, para que se verifique a responsabilidade do sócio gerente da sociedade, aqui Réu, é necessário:
«(i) Que a atuação do mesmo tenha constituído inobservância culposa de disposições legais ou contratuais destinadas a proteger os interesses dos credores sociais;
(ii) Que o restante património da sociedade se tenha tornado insuficiente para a satisfação dos credores sociais;
(iii) Que se verifique nexo causal entre o ato do sócio/gerente e a insuficiência de satisfação de credores sociais». - Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 21 de novembro de 2012, processo n.º 3365/04.1TTLSB.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
52.º - Neste sentido, verifica-se que o sócio gerente, aqui Réu, não atuou conforme os seus deveres fundamentais previstos no artigo 64.º do Código das Sociedades Comerciais, nomeadamente o dever de lealdade, na medida em que não ponderou os interesses de outro dos sujeitos relevantes para a sustentabilidade da sociedade, neste caso o trabalhador, aqui Autor.
53.º - Com a dissolução e liquidação da sociedade, deixou de existir quer o ativo quer o passivo da sociedade, não existindo qualquer património social para fazer face aos créditos laborais do Autor, tendo o Réu inobservado culposamente as disposições legais destinadas à proteção do Autor, credor, preenchendo-se os pressupostos do artigo 78.º, n.º 1 do Código das Sociedades Comerciais. - Cf. Doc. n.º 13.
54.º - E que, no que concerne à verificação dos pressupostos do artigo 79.º do Código das Sociedades Comerciais, tendo o Réu, sócio gerente, praticado um ato ilícito no exercício das suas funções sociais ao dissolver e liquidar a sociedade sem proceder ao pagamento dos créditos laborais dos quais o Autor é titular, créditos que se venceram antes da cessação de toda a atividade da sociedade,
55.º - Causou diretamente danos patrimoniais ao Autor no valor de € 14.769,50 no exercício das suas funções como sócio gerente da sociedade “(...).”
56.º - Nesta conformidade, o ato do sócio gerente de dissolver e proceder à liquidação da sociedade impediu que fossem satisfeitos os créditos laborais vencidos e a que o Autor tem direito em virtude da cessação do seu contrato de trabalho que ocorreu em 04 de setembro de 2019.
57.º - Existe, assim, um nexo causal entre a inobservância pelo sócio gerente, aqui Réu, das disposições legais destinadas à proteção deste credor, o que, consequentemente, levou à inexistência de bens da sociedade para satisfazer os créditos laborais devidos ao Autor, sofrendo este um dano patrimonial enquanto credor.
58.º - Sendo ainda de sublinhar que o Réu tinha conhecimento desta denúncia do contrato de trabalho do Autor desde 10 de Junho de 2019, isto é, antes mesmo de decidir proceder à liquidação e dissolução da sociedade “(...).”, com efeito a partir de 31 de dezembro de 2019.- Cfr. Doc. n.º 2.
59.º - Nos termos supra alegados, o Réu é responsável pelo pagamento dos créditos laborais dos quais o Autor é titular, nos termos do n.º 2 do artigo 335.º do Código do Trabalho.
60.º - Constata-se assim que, deixando de haver ativo e passivo com a dissolução e liquidação da sociedade, no momento em que se verificou (31 de Dezembro de 2019), o Réu violou culposamente, ao que tudo indica na vertente de dolo ou, pelo menos, de uma culpa grosseira, as normas de proteção de créditos, na medida em que tais créditos laborais já se encontravam vencidos no momento da cessação do contrato de trabalho, preenchendo os pressupostos do n.º 1 do artigo 483.º do Código Civil.
61.º - Nesta medida, violou o Réu as normas que se destinam a proteger a função de garantia do capital social para com o credor social.
62.º - Assim, verificados os pressupostos dos artigos 78.º e 79.º do Código das Sociedades Comerciais, tal como os pressupostos gerais da responsabilidade aquiliana nos termos do n.º 1 do artigo 483.º do Código Civil, deve o Réu responder de acordo com o n.º 2 do artigo 335.º do Código do Trabalho.
63.º - Em conformidade, deve o Réu ser condenado no pagamento dos créditos laborais vencidos, no montante total atual de € 17.875,04, acrescido de juros de mora vincendos, à taxa legal, contabilizados desde a data de vencimento de cada prestação até efetivo e integral pagamento.
III – DO APOIO JUDICIÁRIO
64.º - Em 24 de novembro de 2021, o Autor apresentou requerimento à Segurança Social para atribuição de apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo. – Cfr. Requerimento que se junta como Doc. n.º 14 e se dá por integralmente reproduzido.
65.º - Apoio que foi deferido tacitamente pela Segurança Social, por não ter sido proferida decisão dentro do prazo de 30 dias, estando assim o Autor isento de pagar qualquer encargo tributário processual, nos termos do disposto no artigo 25.º, n.º 2 da Lei n.º 34/2004, de 29 de julho, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 2/2020, de 31 de março.»
*
Veio então a ser oportunamente proferido o despacho de indeferimento liminar de 21/04/2022, com o seguinte teor (fls. 78 a 79 verso):
«DO INDEFERIMENTO LIMINAR DA PETIÇÃO INICIAL
Na presente ação declarativa, sob a forma do Processo Comum, intentada por AAA contra BBB, peticiona o Autor a condenação do Réu no pagamento de créditos laborais que é titular sobre a sociedade comercial “(...), acrescidos de juros de mora, e no pagamento das custas de parte referentes ao processo n.º 3247/19.2T8BRR, também elas acrescidas de juros de mora.
Alega o Autor, em sustentação do seu pedido, que: (i) foi trabalhador da sociedade “(...) desde Agosto de 2000 até 4 de Setembro de 2019, tendo procedido à denúncia do contrato de trabalho por missiva datada de 10 de Junho de 2019; (ii) aquando da cessação do contrato de trabalho mostravam-se em dívida créditos de natureza laboral cujo pagamento solicitou à dita sociedade; (iii) a dita sociedade não procedeu ao pagamento de tais créditos, razão pela qual intentou ação, a que coube o n.º 3247/19.2T8BRR, a qual culminou com a prolação de sentença condenando a aí Ré – a sociedade “(...) – a proceder ao pagamento da quantia de € 14.769,50, acrescida de juros de mora, mais a condenando nas custas do processo, ascendendo as custas de parte a € 521,32; (iv) a referida sociedade não procedeu ao pagamento de quaisquer valores; (v) no decurso da ação declarativa identificada, o Réu, na qualidade de sócio gerente da sociedade “(...) determinou a sua dissolução e encerramento, com efeitos a 31 de Dezembro de 2019; (vi) ainda no decurso daquela ação declarativa, o Réu retirou os bens que se encontravam no estabelecimento da referida sociedade; (vii) o Réu responde para com os créditos que é titular, nos termos do disposto no art.º 335.º, n.º 2, do Código do Trabalho.
APRECIANDO.
Nos termos do disposto no art.º 54.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho, «[r]ecebida a petição, se o juiz nela verificar deficiências ou obscuridades, deve convidar o autor a completá-la ou esclarecê-la, sem prejuízo do seu indeferimento nos termos do n.º 1 do artigo 590.º do Código de Processo Civil».
Por seu turno, diz-nos o n.º 1 do artigo 590.º do Código de Processo Civil, que «[n]os casos em que, por determinação legal ou do juiz, seja apresentada a despacho liminar, a petição é indeferida quando o pedido seja manifestamente improcedente ou ocorram, de forma evidente, exceções dilatórias insupríveis e de que o juiz possa conhecer oficiosamente, aplicando-se o disposto no art.º 560.º».
Ora, no presente caso, e posto que no âmbito da lei processual laboral todas as ações comuns são, caso não haja motivo de recusa, apresentadas ao juiz para despacho, nada há que impeça, pois, de liminarmente ser indeferida a petição inicial caso a pretensão ajuizada seja manifestamente improcedente. E, com todo o respeito, é o que sucede no presente caso.
O Autor, em ordem à conformação do seu pedido, invoca o regime ínsito no art.º 335.º, n.º 2, do Código do Trabalho, que, em retas contas, prevê a responsabilidade solidária do sócio gerente por créditos emergentes de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação (art.º 334.º, do Código do Trabalho), conquanto verificados os pressupostos dos art.ºs 78.º e 79.º, do Código das Sociedades Comerciais.
Sucede que os factos alegados não são de molde a conduzir ao efeito jurídico pretendido. Na verdade, em ordem à estruturação do seu pedido, não basta ao autor alegar o que resultou da condenação proferida na ação declarativa a que coube o n.º 3247/19.2T8BRR, posto que esta não faz caso julgado em relação ao aqui Réu (art.º 522.º, do Código Civil). O mesmo é dizer que os factos alegados, para além de inidóneos ao efeito jurídico que, por via deles, se pretende retirar, são insuficientes – senão mesmo inexistentes – para que se conclua pela existência de créditos emergentes do contrato de trabalho, da sua violação ou cessação pelos quais seja solidariamente responsável o Réu.
Doutro passo, os atos praticados pelo gerente, em ordem à sua responsabilização solidária, têm que, por necessário, e estando em causa, como alegado, créditos laborais emergentes de contrato de trabalho, da sua violação ou cessação, ser contemporâneos à execução desse contrato ou à sua cessação, e não atos posteriores, isto é, atos ocorridos em momento em que sequer inexistia já qualquer relação jurídica, sendo que, quanto a atos praticados pelo aqui réu no decurso da execução da relação laboral, suscetíveis de integrar as ações previstas nos artigos 78.º e 79.º, do Código das Sociedades Comerciais, é a petição omissa.
Acresce referir, neste conspecto, que o art.º 519.º, n.º 1, do Código Civil, inibe o credor de proceder judicialmente contra outros devedores solidários quando já exigiu a prestação, judicialmente, de um deles, como sucede no presente caso, cumprindo salientar a inexistência de qualquer alegação relativa à insolvência da sociedade “(...) ou risco de insolvência, do mesmo passo que os factos alegados dificilmente se enquadrarão em motivo atendível ou dificuldade na obtenção da prestação [[1]]. Com efeito e embora se desconheça – porquanto não alegado – que a dissolução e o encerramento da sociedade “(...) haja sido levado a registo, certo é que, desde que verificados os demais pressupostos, nada impediria o Autor de, em sede executiva, promover o seu andamento contra o sócio gerente, nos termos do disposto no art.º 163.º, do Código das Sociedade Comerciais.
Em derradeiro termo se dirá que o que o Autor pretende, em retas contas, é, por via da presente ação, proceder à substituição de um devedor por outro, inclusive no pagamento de custas de parte (cuja condenação não emerge da sentença, ao contrário do que alega), sem que se vislumbre, face ao quadro fáctico alegado, que seja ele enquadrável no regime jurídico eleito, cumprindo salientar que nada impedia que a ação supra identificada tivesse sido, ab initio, também proposta contra o aqui Réu, do mesmo passo que nada impedia que a deliberação social e a alegada dissipação de bens tivessem sido dadas a conhecer logo naquela ação, existindo, como se sabe, mecanismos processuais para o efeito. Ou seja, o que é a pretensão do Autor, por apelo ao regime da solidariedade de dívidas – de todo suscetível de acobertar a sua pretensão, nos moldes expostos – não é que o Réu proceda ao pagamento de quaisquer créditos laborais – não densificados, saliente-se, posto que o Autor parte do princípio da sua existência por mor de uma sentença que não faz caso julgado em relação ao aqui Réu – mas antes que seja este, ao invés da sociedade, a cumprir a sentença (o que é evidenciado no seu pedido).
Em síntese, os factos alegados não são suscetíveis de conduzir ao efeito jurídico pretendido, daí que, por apelo aos preceitos legais citados, o tribunal indefira liminar e totalmente a petição inicial por manifesta improcedência dos pedidos.
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DECISÃO:
Por tudo quanto se deixa exposto, indefiro liminar e totalmente a presente acção por manifesta improcedência dos pedidos.
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Valor da causa: € 17.875,04.
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Custas a cargo do autor, sem prejuízo do apoio judiciário que beneficia.
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Registe. Notifique.»
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O Autor, notificado desse despacho, veio interpor, a fls. 80 e seguintes, recurso do mesmo, que foi admitido a fls. 91 verso dos autos, como de Apelação e a subir nos próprios autos e com o efeito meramente devolutivo previsto no n.º 1 do artigo 83.º do C.P.T.
*
O Apelante apresentou, a fls. 81 e seguintes, alegações de recurso e formulou as seguintes conclusões:
1. O despacho sob recurso constituiu uma decisão-surpresa.
2. Realmente, o Tribunal a quo nunca notificou o Autor, ora Apelante, para se pronunciar sobre a eventual causa de pedir, ou permitir que este pudesse carrear para os autos os elementos que achasse pertinentes para que o Tribunal, quando decidisse, o fizesse na posse do máximo de informação possível.
3. Por isso, o Apelante foi completamente surpreendido com a decisão do Tribunal a quo, uma vez que não foi concedida ao Apelante a possibilidade de se pronunciar, previamente à decisão, sobre os factos alegados que conduzem ao efeito jurídico pretendido.
4. Neste sentido, o douto despacho impugnado constituiu uma decisão-surpresa para o Apelante, expressamente proibida pelos n.ºs 2 e 3, do artigo 3.º do C.P.C., o que enferma a decisão de nulidade nos termos do disposto no artigo 195.º, n.º 2, do C.P.C. (Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 03-03-2009, Processo n.º 2546/06.08TJCBR-B.C1, acessível em www.dgsi.pt), que aqui se argui.
Sem prescindir,
5. Se o Tribunal a quo considerou como insuficiente a causa de pedir vertida em sede de Petição Inicial, estava o mesmo obrigado a proferir Despacho de Aperfeiçoamento, e convidar o Autor, ora Apelante, a aperfeiçoar o seu articulado, cumprindo o disposto na al. b) do n.º 2 do artigo 590.º do C.P.C. aplicável ex vi do artigo 54.º, n.º 1 do Código de Processo do Trabalho (Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 06-10-2016, Processo n.º 6381/12.6TBSTB.E1, www.dgsi.pt).
6. Neste sentido, sempre deverá o douto despacho sob censura ser revogado, por violação do preceituado na alínea b), do n.º 2, e n.º 4, ambos do art.º 590.º do C.P.C.
Sem prescindir,
7. São materialmente competentes os tribunais de trabalho para conhecerem do pedido de créditos laborais do trabalhador que envolvam os pressupostos da responsabilidade solidária do sócio, administrador, gerente ou diretor da entidade empregadora, nos termos do artigo 335.º do Código do Trabalho.
8. O Autor, ora Apelante, alegou na sua Petição Inicial todos os factos que demonstraram que a sociedade “(...) foi dissolvida e liquidada pelo Réu, de forma absolutamente dolosa, no dia 31 de Agosto de 2020, na qualidade de sócio gerente, através da realização de uma Assembleia Geral, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 146.º do Código das Sociedades Comerciais, tendo sido junta à Petição Inicial a Ata elaborada pelo mesmo.
9. Através desta Ata é ainda possível verificar que a dissolução e liquidação da sociedade não cumpriu com o requisito da alínea b) do n.º 1 do artigo 27.º do Regime Jurídico dos Procedimentos Administrativos de Dissolução e Liquidação de Entidades Comerciais, na medida em que na data da realização da Assembleia Geral, no dia 31 de agosto de 2020, o Réu tinha pleno conhecimento de que a sua empresa era devedora do Autor de créditos laborais vencidos e não pagos, tendo declarado ainda que «todo o ativo da sociedade esgotado no passivo, não havendo portanto ativo ou passivo».
10. Nos termos do n.º 2 do artigo 335.º do Código do Trabalho, os gerentes e os administradores respondem perante os trabalhadores, solidariamente com a sociedade comercial, pelos créditos emergentes da cessação do contrato, tendo de estar verificados os requisitos dos artigos 78.º e 79.º do C.S.C.
11. Nesta conformidade, e no entender do Tribunal da Relação de Évora no douto Acórdão de 06-10-2016, proferido no âmbito do processo n.º 6381/12.6TBSTB.E1, acessível em www.dgsi.pt, nos termos do n.º 2 do artigo 335.º do Código do Trabalho, a responsabilidade solidária do sócio gerente depende apenas da verificação dos pressupostos dos artigos 78.º e 79.º do Código das Sociedades Comerciais, sobre a violação de normas de proteção da integridade do capital social, e da prova dos pressupostos gerais da responsabilidade aquiliana, nos termos do artigo 483, n.º 1 do Código Civil.
12. O Apelante demonstrou estarem verificados os requisitos dos artigos 78.º e 79.º do C.S.C, nomeadamente que o gerente da empresa violou culposamente o Regime Jurídico dos Procedimentos Administrativos de Dissolução e Liquidação de Entidades Comerciais
13. E assim se verifica, por parte do Réu, a inobservância culposa das disposições legais ou contratuais destinadas à proteção dos credores laborais, na medida em que pelos seus atos tornou o património social insuficiente para a satisfação dos respetivos créditos.
14. Encontrando-se verificados os requisitos previstos nos artigos 78.º e 79.º do C.S.C., motivo pelo qual deverá o douto Despacho sob recurso ser substituído por outro que determine o prosseguimento dos autos.
A decisão sob censura violou, entre outros, os seguintes preceitos legais:
* Artigo 590.º n.º 2 alínea b) e n.º 4 do C.P.C
* Artigo 3.º n.º 3 do C.P.C e artigo 32.º n.º 5 da C.R.P.
Nestes termos e nos mais de Direito, deve o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa dar provimento ao presente recurso e, por via dele, revogar o despacho recorrido por douto Acórdão favorável in totum às Alegações do Apelante e, consequentemente, ser ordenado o prosseguimento dos autos,
Fazendo-se, assim, a habitual e necessária JUSTIÇA!”.
*
O Réu, citado pessoalmente, veio a responder a tais alegações dentro do prazo legal nos moldes constantes de fls. 92 e seguintes, tendo formulado as seguintes conclusões:
«a) O douto despacho de indeferimento liminar da petição inicial proferido pelo Tribunal “a quo” não consubstancia uma decisão-surpresa.
b) A decisão-surpresa, conforme os vocábulos indicam, faz supor que a parte possa ser apanhada em falta por uma decisão, que, embora pudesse ser juridicamente possível, não esteja prevista nem tivesse sido configurada, por aquela.
c) A decisão proferida está perfeitamente delineada em termos legais.
d) No indeferimento liminar da petição inicial, o princípio do contraditório, não impõe a audição prévia do autor sobre o motivo de indeferimento, a lei prevê o contraditório deferido, dada a ampla admissibilidade legal do recurso, independentemente do valor e da sucumbência, e, em situação de igualdade das partes. (cfr. Acórdão do S. T. J., de 14/05/2002 e Acórdão de Coimbra de 27/02/2018).
e) O Tribunal constitucional tem defendido que o princípio do contraditório se integra no direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20 da C. R. Portuguesa.
f) O princípio do contraditório é um princípio estruturante do processo civil, pelo que, se exige, que se dê a cada uma das partes a possibilidade de apresentar a suas razões de facto de direito, oferecendo provas. (cfr. Acórdão do T. Constitucional nº 177/2000, D.R. II Série, de 27/10/2000).
g) A reforma de 1995/1996 substitui a conceção RESTRTIVA, pela conceção mais AMPLA da contraditoriedade, entendida como participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio.
h) Com a conceção mais lata o escopo principal do princípio do contraditório deixou de ser a DEFESA, ou seja, oposição a atuação alheia para passar a ser influência, ou seja, influir, ativamente no desenvolvimento e no êxito do processo.
i) Com efeito, o princípio do contraditório, cfr, entendimento maioritário e dominante da nossa jurisprudência, postula que, o princípio do contraditório não impõe a audição prévia do autor sobre o motivo do indeferimento liminar. (cfr. Ac. S. T. J. de 24/02/2015, no processo 116/14.6YLSB, Ac. R. Porto de 04/11/2008 no processo nº 0826336, Ac. T.C.A. do Sul de 18/06/2015, no processo 8710/15, entre outros).
j) O indeferimento liminar é em si mesmo contraditório, porque, se o despacho liminar está legalmente previsto no podendo ser rejeição, não faz sentido, a parte, ser ouvida preliminarmente. (cfr. argumento do Ac. S.T.J., de 24/02/2015).
l) Em rigor não parece que se deva, falar de decisão-surpresa na prolação de despacho de indeferimento liminar por falta insuprível de pressuposto processual, porquanto, é a própria lei que o prevê, expressamente, como causa especifica de rejeição e admissível à luz da lei processual laboral. (Artigo 590 C. P. Civil e 540 C. P. T.).
m) Ora, a decisão-surpresa prevista no artigo 3, nº 3 do C. P. C. só ocorreria se o Juiz de forma absolutamente inopinada e apertado de qualquer aportamento factual ou jurídico enveredasse por uma solução, que os sujeitos processuais não quiseram submeter ou seu juízo, o que não se verifica “in casu”.
n) O autor não alegou factos necessários e suficientes, suscetíveis de constituírem a causa de pedir, o que conduzirá à improcedência dos pedidos.
o) O Tribunal apreciou os factos alegados pelo Autor (vertidos nas alíneas a) a g) da motivação, às ora, contra-alegações) como inidóneos, insuficientes ou mesmo inexistentes, para se poder concluir pela existência de créditos emergentes do contrato de trabalho, da sua violação ou cessação, pelas quais, seja, solidariamente responsável o Réu BBB.
p) Para ocorrer a responsabilização do Réu, BBB, estando em causa créditos laborais emergentes do contrato de trabalho, da sua violação ou cessação, deverão, os atos praticados serem contemporâneos à execução desse contrato, e, não atos praticados posteriormente, em que já era inexistente qualquer relação jurídica.
q) Sendo que, os atos praticados pelo Réu no decurso da execução da relação laboral, conforme retratam os autos, são omissos na petição, ficando assim, prejudicadas as ações previstas nos artigos 78 e 79 do código das sociedades comerciais.
r) Por outro lado, nos termos do artigo 519.º, n.º 1 do Código Civil, o credor está impedido de proceder judicialmente, contra outros devedores solidários, quando já exigiu a prestação, judicialmente, de um deles.
s) Perante o exposto, a decisão recorrida, não violou o disposto no artigo 590.º, n.º 2 alínea b) e n.º 4, artigo 3, n.º 3 do Código Processo Civil, e, artigos 32.º, n.º 5 e artigo 20.º, n.º 1 da C.R.P., pelo que, deverá o presente recurso interposto ser considerado improcedente, e consequentemente, mantido o douto despacho de indeferimento, nos precisos termos em que foi proferido. ASSIM SE FAZENDO JUSTIÇA!»   
*
O ilustre magistrado do Ministério Público deu parecer no sentido da procedência do recurso de Apelação (fls. 108), não tendo as partes se pronunciado acerca do mesmo, dentro do prazo legal, apesar de notificadas para o efeito.
*
Tendo os autos ido a vistos, cumpre apreciar e decidir.

II – OS FACTOS
Os factos a considerar para efeitos de apreciação e julgamento do presente recurso mostram-se descritos no relatório do presente Acórdão, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
*
III – OS FACTOS E O DIREITO
É pelas conclusões do recurso que se delimita o seu âmbito de cognição, nos termos do disposto nos artigos 87.º do Código do Processo do Trabalho e 639.º e 635.º n.º 4, ambos do Novo Código de Processo Civil, salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 608.º n.º 2 do NCPC).
A– REGIME ADJECTIVO E SUBSTANTIVO APLICÁVEIS
Importa, antes de mais, definir o regime processual aplicável aos presentes autos, atendendo à circunstância da presente ação ter dado entrada em tribunal em 28/12/2021, ou seja, muito depois das alterações introduzidas pela Lei n.º 107/2019, datada de 4/9/2019 e que começou a produzir efeitos em 9/10/2019.
Esta ação, para efeitos de aplicação supletiva do regime adjetivo comum, foi instaurada depois da entrada em vigor do Novo Código de Processo Civil, que ocorreu no dia 1/9/2013.
Será, portanto e essencialmente, com os regimes legais decorrentes da atual redação do Código do Processo do Trabalho e do Novo Código de Processo Civil como pano de fundo adjetivo, que iremos apreciar as diversas questões suscitadas neste recurso de Apelação.
Também se irá considerar, em termos de custas devidas no processo, o Regulamento das Custas Processuais – aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26/02, retificado pela Declaração de Retificação n.º 22/2008, de 24 de Abril e alterado pelas Lei n.º 43/2008, de 27-08, Decreto-Lei n.º 181/2008, de 28-08, Lei n.º 64-A/2008, de 31-12, Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, Decreto-Lei n.º 52/2011, de 13 de Abril com início de vigência a 13 de Maio de 2011, Lei n.º 7/2012, de 13 Fevereiro, retificada pela Declaração de Retificação n.º 16/2012, de 26 de Março, Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, Decreto-Lei n.º 126/2013, de 30 de Agosto, Lei n.º 72/2014, de 2 de Setembro, Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março, Lei n.º 42/2016, de 28 de Dezembro, com entrada em vigor em 1 de Janeiro de 2017, Lei n.º 114/2017, de 29 de Dezembro, com entrada em vigor em 1 de Janeiro de 2018, Lei n.º 49/2018 de 14 de Agosto, com entrada em vigor em 10 de Fevereiro de 2019, Decreto-Lei n.º 86/2018, de 29 de Outubro, com entrada em vigor em 30 de Outubro de 2018 e Lei n.º 27/2019, de 28 de Março, com entrada em vigor em 27 de Abril de 2019, aplicando-se apenas às execuções que se iniciem a partir dessa data, Lei n.º 2/2020, de 31 de Março (Orçamento do Estado para 2020), com entrada em vigor em 1 de Abril de 2020, Lei n.º 7/2021, de 26 de fevereiro, com início de vigência em 27 de Fevereiro de 2021 e Lei n.º 9/2022, de 11 de janeiro, com produção de efeitos a 11 de Abril de 2022 –, que entrou em vigor no dia 20 de Abril de 2009 e se aplica a processos instaurados após essa data.
Importa, finalmente, atentar na circunstância dos factos que se discutem no quadro destes autos terem todos ocorrido na vigência do Código do Trabalho de 2009, que, como se sabe, entrou em vigor em 17/02/2009, sendo, portanto, o regime dele decorrente que aqui irá ser chamado à colação em função da factualidade a considerar.  

B – OBJECTO DO RECURSO

A situação que resulta dos autos traduz-se na análise das duas seguintes questões:
a) Admissibilidade legal ou não da proferição do despacho de indeferimento liminar, nos moldes em que foi prolatado [princípio do contraditório e decisão-surpresa];
b) Despacho de aperfeiçoamento;
c) Fundamentação substantiva do despacho recorrido;

C – DESPACHO JUDICIAL DE INDEFERIMNENTO LIMINAR

O tribunal recorrido proferiu o despacho de indeferimento liminar que é aqui objeto de impugnação a coberto do regime jurídico conjugado dos artigos 54.º, número 1 do C.P.T. [[2]] e 590.º, número 1, do NCPC [[3]].
Sendo, com efeito, obrigatória a abertura de conclusão ao juiz em todos as ações declarativas laborais com processo comum, como é a dos autos, a fim de ser proferido despacho judicial de natureza liminar, há que conceber, naturalmente e em termos normais, ao lado da decisão de marcação de data para a realização de Audiência de Partes, com a subsequente citação/notificação do réu e notificação do autor [número 2 do artigo 54.º do CPT], a possibilidade de, também, prévia e cautelarmente, o julgador titular da ação convidar o demandante a aperfeiçoar a petição inicial [primeira parte do número 1 do artigo 54.º do CPT] ou, finalmente, de indeferir, desde logo e sumariamente, a pretensão ou pretensões requeridas, por falta insanável de elementos formais ou materiais que permitam a sua decisão e/ou o seu diferimento.
Neste contexto, podem ser invocadas como fundamentos de tal indeferimento liminar a falta de pressupostos processuais insupríveis, a nulidade da Petição Inicial por ineptidão desta última ou a óbvia improcedência do pedido ou pedidos, com aquela causa ou causas de pedir específicas, por carência evidente de base legal mínima para a sua procedência.
ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES [[4]], a este respeito, defende o seguinte:
«Os casos de indeferimento liminar correspondem a situações em que a petição apresenta vícios formais ou substanciais de tal modo graves que permitem prever, logo nesta fase, que jamais o processo assim iniciado terminará com uma decisão de mérito ou que é inequívoca a inviabilidade da pretensão apresentada pelo autor. [[5]]
Defendia A. Varela, reportando-se ao sistema anterior, que o des­pacho de indeferimento liminar constituía um julgamento prévio ou pre­liminar através do qual a lei procurava defender o demandado contra os casos de demanda absolutamente injustificada, limitando o exercí­cio do direito de ação aos casos em que existia um mínimo de viabili­dade aparente da pretensão. [[6]]
Mas o mesmo despacho liminar não deixava de constituir também um mecanismo de proteção do próprio autor, naquelas situações em que era desde logo evidente que a sua pretensão não podia ser acolhida por falta de apoio no direito substantivo, assim evitando maiores dispêndios. (…)
7.2. QUANDO O PEDIDO SEJA MANIFESTAMENTE IMPROCEDENTE:
Estamos aqui perante um julgamento antecipado do mérito da cau­sa que se justifica apenas quando seja evidente a inutilidade de qualquer instrução ou discussão posterior: isto é, quando seja inequívoco que a ação nunca poderá proceder qualquer que seja a interpretação jurídica que se faça dos preceitos legais. [[7]]
O juiz deve indeferir a petição apenas nos casos em que a tese pro­pugnada pelo autor não tenha possibilidades de ser acolhida perante a lei em vigor e a interpretação que dela faça a doutrina e jurispru­dência, [[8]] como se decidiu no Ac. da Rel. de Évora, de 2-10-86, in CJ, tomo IV, pág. 283, segundo o qual o indeferimento liminar por manifesta improcedência só será de proferir se "não houver interpretação possível ou desenvolvimento possível da factualidade articulada que vi­abilize ou possa viabilizar o pedido [[9]].
Era esta a solução defendida no Ac. do STJ, de 5-3-87, ias BMJ 365.º/562, segundo o qual só era possível o indeferimento "quando a pretensão não tiver quem a defenda, nos tribunais, ou na doutrina, isto é, quando for evidente que a tese do autor não tem condições para vin­gar nos tribunais". [[10]]
Diferente era a solução encontrada pela Rel. de Lisboa em Acór­dão de 20-5-93, in CJ, tomo III, pág. 107, quando concluiu que "a im­procedência da pretensão do autor em ação ordinária tem-se por evi­dente se o juiz, pressuposta a comprovação dos factos alegados e apli­cação estrita da lei substantiva, puder concluir conscienciosamente que aquele não tem o direito que invoca", acrescentando que "não obsta à prolação do despacho de indeferimento liminar com aquele fundamen­to, a circunstância de haver divergências de interpretação das normas legais aplicáveis ou decisões jurisprudenciais em sentido contrário ao perfilhado pelo juiz".
Este entendimento afigurava-se-nos bastante duvidoso face ao en­tão disposto no art.º 474.º, n° l, al. c), uma vez que parecia partir da equi­paração dos poderes do juiz, na fase liminar do processo, aos poderes que a lei lhe conferia aquando da prolação do despacho saneador.
De facto, segundo a redação anterior do anterior art.º 510.º, n.º 1, al. c), o juiz, no despacho saneador, devia conhecer, desde logo, do pe­dido ou de algum dos pedidos se "o processo contivesse todos os ele­mentos para uma decisão conscienciosa", solução legal que era facilmente justificada pelo facto de, nessa ocasião, o juiz já ter perante si todos os factos alegados pelo autor e pelo réu que lhe permitiam tomar a decisão mais adequada ao caso concreto, antecipando o julgamento de mérito, circunstancialismo que não se verificava na fase liminar, em que apenas tinha perante si a versão apresentada pelo autor.
Por isso, e tendo em conta que eram diferentes as expressões uti­lizadas pelo legislador no art.º 474.º, n.º 1, al. c), e no art.º 510.º, n.º 1, al. c), o intérprete deveria buscar uma interpretação dessas disposições que não rejeitasse a letra de lei.
Perante este quadro doutrinal e jurisprudencial, e atenta a cor­respondência existente entre o anterior texto do art.º 474.º e a norma que agora rege os casos de inviabilidade manifesta, somos de opinião que deve manter-se a solução que já ao abrigo da lei anterior tínhamos por mais correta.
Sempre que a matéria de facto alegada for insuficiente para nela assentar a procedência da ação, embora as falhas não atinjam tal gra­vidade que tornem inepta a petição inicial por carência de causa de pe­dir, [[11]] deve ser feita a distinção consoante se trate de falhas passíveis de suprimento, através de articulação de matéria de facto, ou de falhas insupríveis, tendo em atenção o regime dos art.ºs 508.º, n.º 3, 508.º-A, n.º l, al. c), e 264.º, n.º 3. (…)».

C – DESPACHO DE INDEFERIMENTO LIMINAR - PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO E DECISÃO-SURPRESA – DOUTRINA E JURISPRUDÊNCIA

Ora, chegados aqui, importa enfrentar a primeira linha de argumentação do recorrente, quando sustenta que o despacho judicial de indeferimento liminar dos autos e que é objeto da presente Apelação, constitui uma «decisão-surpresa», por violação do princípio do contraditório, dado que o Juízo do Trabalho de Almada deveria ter ouvido antecipadamente o Autor relativamente ao seu propósito de indeferir, desde logo e liminarmente, a petição inicial apresentada.
Importa, a este respeito, chamar à colação o disposto no artigo 3.º do Código de Processo Civil de 2013, quando estatui o seguinte:

Artigo 3.º
Necessidade do pedido e da contradição
1 - O tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a ação pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição.
2 - Só nos casos excecionais previstos na lei se podem tomar providências contra determinada pessoa sem que esta seja previamente ouvida.
3 - O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
4 - Às exceções deduzidas no último articulado admissível pode a parte contrária responder na audiência prévia ou, não havendo lugar a ela, no início da audiência final.

Ouçamos, acerca do artigo 3.º, na vertente do princípio do contraditório aí consagrado, os anotadores ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA [[12]], quando afirmam o seguinte:     
«10. Ao princípio do contraditório subjaz a ideia de que repugnam ao nosso sistema processual civil decisões tomadas à revelia de algum dos interessados, regra que apenas sofre desvios quando outros interesses se sobreponham. Posto que a necessidade de observância do contraditório seja replicada em diversos preceitos avulsos, tal não diminui o relevo da sua enunciação como princípio geral que se impõe em todas as fases processuais, especialmente nos articulados e na apresentação e produção de meios de prova (art.º 415.º). […]  
12. A liberdade de aplicação das regras do direito (art.º 52, n.º 3) ou a oficiosidade no conhecimento de determinadas exceções, sem outras condicionantes, potenciariam decisões que, em divergência com as posições jurídicas assumidas pelas partes, constituiriam verdadeiras decisões-surpresa (STJ 17-6-14, 233/2000). A regra do n.º 3 pretende impedir que, a coberto desse princípio, as partes sejam confrontadas com soluções jurídicas inesperadas ou surpreendentes, por não terem sido objeto de qualquer discussão (STJ 15-3-18, 2057/11, STJ 19-5-16, 6473/03 e STJ 27-9-11, 2005/03; em STJ 19-12-18, 543/05 estava em causa o recurso a regras do enriquecimento sem causa numa ação sustentada na responsabilidade civil). Simultaneamente, a solução legal propicia ao juiz melhores condições para uma ponderação mais serena dos argumentos, potenciando designadamente a redução de casos de injustificadas absolvições da instância. A audição das partes apenas pode ser dispensada em casos de "manifesta desnecessidade" (conceito indeterminado que deve ser encarado sob uma perspetiva objetiva), quando se trate de indeferimento de nulidades (art.º 201.º) e sempre que as partes não possam, objetivamente e de boa-fé, alegar o desconhecimento das questões de direito ou de facto a decidir ou as respetivas consequências (RL 24-4-18, 15582/17).
13. Na formulação do n.º 3 foram adotados conceitos indeterminados ou cláusulas gerais cuja maleabilidade permite assegurar a instrumentalidade do processo face ao direito substantivo sem, no entanto, dispensar critérios rigorosos e convincentes relativamente à sua delimitação a partir da análise ou resolução de casos concretos. Cabe ao juiz um papel fundamental na compatibilização dos diversos interesses que no processo se interligam (STJ 19-5-16, 6473/03).
14. Tal como o princípio do contraditório não deve obscurecer o objetivo da celeridade processual, também esta não pode conduzir a uma dispensa do contraditório sob o pretexto da sua desnecessidade. Tal dispensa é prevista a título excecional, apenas se justificando quando a questão já tenha sido suficientemente discutida ou quando a falta de audição das partes não prejudique de modo algum o resultado final.
15. O cumprimento de tal dever é especialmente exigido quando se trate de apreciar questões de conhecimento oficioso que não foram objeto de discussão, como sucede com a exceção de incompetência absoluta. Antes de decidir, o juiz deve facultar às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre a matéria (ou, quiçá, requerer que seja acionado o mecanismo de consulta prejudicial dirigida ao Trib. dos Conflitos, nos termos do art.º 15.º, n.º 2, da Lei n.º 91/19, de 4-9), o que poderá evitar decisões precipitadas ou, no mínimo, decisões que surjam contra a corrente do processo ou contra as expectativas que legitimamente foram criadas quanto à sua evolução no sentido da prolação de uma decisão de mérito (situação tanto mais grave quanto é certo que, em certos casos referidos no art.º 97.º, n.º 1, tal exceção pode ser conhecida a todo o tempo). O mesmo se verifica quando está em causa uma diversa qualificação jurídica dos factos: sendo esta legítima, ao abrigo do art.º 5.º, n.º 3, não dispensa a necessidade de o juiz auscultar as partes, na medida em que uma diversa qualificação jurídica pode contender com a posição que cada uma adotou no processo, interferindo na tutela dos respetivos interesses (sobre a matéria, cf. a fundamentação do AUJ n.º 13/96, onde se alude ao princípio do contraditório como instrumento destinado a evitar as decisões-surpresa, e ainda RC 12-9-17, 444/16).»
Debruçando-nos agora sobre a nossa jurisprudência emanada dos tribunais das relações e do Supremo Tribunal de Justiça:  
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 4/11/2008, Processo n.º 0826336, relator: Mário Serrano, publicado em ECLI:PT:TRP:2008:0826336.D8, com o seguinte Sumário:
«Havendo fundamento (substantivo e processual) para indeferimento liminar, o respetivo despacho liminar negativo deve ser proferido (sem necessidade de prévia audição da parte destinatária dessa decisão negativa), tendo a parte a faculdade de apresentar nova petição, nas condições e com as vantagens previstas no art.º 476.º do CPC — e sem prejuízo da possibilidade de recurso (art.º 234.º-A, n.º 2).»
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27/9/2017, Processo n.º 10. 847/15.8T8LSB-D.L1-4, relator: Leopoldo Mansinho Soares, publicado em ECLI:PT:TRL:2017:10.847.15.8T8LSB.D.L1.48, com o seguinte Sumário:
«Em situação de indeferimento liminar parcial da petição inicial, formulada ao abrigo do artigo 54.º n.º 1 do CPT, por questão de conhecimento oficioso, o princípio do contraditório não obriga a que o Autor seja previamente ouvido sobre esse indeferimento.»
- Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 27/2/2018, Processo n.º 5500/17.0T8CBR.C1, relator: Jorge Arcanjo, publicado em ECLI:PT:TRC:2018:5500.17.0T8CBR.C1.DD, com o seguinte Sumário:
«No caso de indeferimento liminar da petição inicial, o princípio do contraditório não impõe a audição prévia do autor sobre o motivo do indeferimento (despacho preliminar), além do mais porque a lei prevê o contraditório diferido, dada ampla admissibilidade legal de recurso, independentemente do valor e da sucumbência, e em situação de igualdade das partes.»
- Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 28/6/2018, Processo n.º 2621/17.3T8ENT.E1, relator: Vítor Sequinho, publicado em ECLI:PT:TRE:2018:2621.17.3T8ENT.E1.14, com o seguinte Sumário:
«Não tem cabimento a prolação de um despacho prévio ao despacho de indeferimento liminar, nomeadamente com vista a conceder, ao autor ou ao exequente, a possibilidade de se pronunciar acerca de uma questão, a indicar nesse despacho prévio, como podendo vir a constituir fundamento de um projetado indeferimento liminar.» [cf., precisamente no mesmo sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 11/4/2019, Processo n.º 1501/17.7T8SLV.E1, relator: Rui Machado e Moura, publicado em ECLI:PT:TRE:2019:1501.17.7T8SLV.E1.21, com Sumário igual ao transcrito].
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto [tirado por maioria com um Voto de Vencido] de 8/3/2019, Processo n.º 14727/17.4T8PRT-A.P1, relator: Carlos Portela, publicado em ECLI:PT:TRP:2019:14727.17.4T8PRT.A.P1.14, com o seguinte Sumário:
«I - No caso de indeferimento liminar da petição inicial, o princípio do contraditório previsto no art.º 3.º do CPC, não impõe a audição prévia do autor sobre o motivo do indeferimento (despacho preliminar).
II - A decisão-surpresa prevista no n.º 3 do mesmo artigo ocorre se o juiz de forma absolutamente inopinada e apartado de qualquer aportamento factual ou jurídico envereda por uma solução que os sujeitos processuais não quiseram submeter ao seu juízo.
III - No caso dos autos, não pode de todo considerar-se que estamos em presença de uma questão jurídica inesperada ou surpreendente no apontado sentido, porquanto a questão da incompetência material dos tribunais judiciais, para além de conhecimento oficioso do tribunal, tem sido objeto de inúmeras decisões dos tribunais superiores.»
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 4/2/2020, Processo n.º 959/13.8TBALQ-A.L1­7, relator: José Capacete, publicado em ECLI:PT:TRL:2020:959.13.8TBALQ.A.L1.7.6A, com o seguinte Sumário:
«1. A prolação de despacho de indeferimento liminar do requerimento inicial no âmbito de um incidente de habilitação do cessionário não representa violação dos art.ºs 3.º, n.º 3 e 356.º do C.P.C., pois da al. a) do n.º 1 deste artigo não pode inferir-se que o juiz tem necessariamente de ordenar a notificação dos requeridos, antes tendo plena aplicação a regra geral do art.º 590.º, n.º 1, o que significa que havendo motivo para indeferimento in limine, o juiz, em vez de mandar notificar os outros interessados, deve proferir despacho em conformidade com este dispositivo legal.
2. O n.º 3 do art.º 3.º do C.P.C., consagra o chamado contraditório dinâmico, garantindo a participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, facultando-lhes a possibilidade de influírem em todos os elementos processuais (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objeto da causa e que apareçam como potencialmente relevantes para a decisão, pois o escopo principal do princípio do contraditório deixou de ser a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à atuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo do direito à incidência ativa no desenvolvimento e no êxito do processo.
3. A decisão-surpresa de que trata aquele dispositivo, é uma decisão que transporta consigo uma solução jurídica que a parte interessada não podia prever, que não tinha obrigação de prever, ocorrendo uma decisão dessa natureza quando lhe é inexigível que a tivesse perspetivado como possível no processo.
4. Não assume tal natureza um despacho de indeferimento liminar da petição ou requerimento inicial, subespécie no contexto da rejeição liminar da lide, nas situações taxativamente previstas no art.º 590.º, n.º 1, entre elas, a manifesta improcedência do pedido, não sendo, portanto, exigível ao juiz ouça previamente o autor ou o requerente.
5. Até porque uma situação de indeferimento liminar da petição ou requerimento inicial por manifesta improcedência do pedido acarreta a imediata inutilidade da prática de qualquer posterior ato de instrução ou de discussão, pelo que a audição prévia do autor ou requerente constituiria a prática de um ato inútil, logo proibido por lei, além de que, em tal situação, a lei permite ao autor ou requerente a apresentação de novo articulado no prazo de 10 dias.
6. Num incidente de habilitação de cessionário em que a cessão de créditos, necessariamente objeto de documentação, ocorreu fora do processo, deve o título de cessão, documento essencial à prova de um pressuposto da situação jurídica que se pretende fazer valer, ser junto com o requerimento inicial.
7. Tal incidente não deve prosseguir termos no caso de o juiz considerar que a cessão não se encontra devidamente documentada, situação que, no entanto, não lhe pode dar azo, sem mais, à drástica decisão de indeferimento liminar do requerimento inicial e consequente rejeição do incidente por manifesta improcedência do pedido, antes lhe sendo imposta prolação de despacho pré-saneador a convidar o requerente a juntar tal documento, em prazo que tiver como razoável para o efeito.
8. É que um despacho de indeferimento liminar da petição ou do requerimento inicial, por manifesta improcedência do pedido, só pode ser proferido se não houver interpretação possível ou desenvolvimento possível da factualidade articulada que viabilize ou possa viabilizar o pedido, ou seja, se a evidência da improcedência tiver um caráter absoluto e objetivo, para poder sê-lo, se nenhuma outra construção jurídica for possível, além da expressa no despacho de indeferimento liminar.»
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14/10/2021, Processo n.º 32/14.1T8PVL-A.G1.S1, relator: João Cura Mariano, publicado em ECLI:PT:STJ:2021:32.14.1T8PVL.A.G1.S1.19, com o seguinte Sumário parcial:
«I - O que distingue, uma decisão de indeferimento liminar de uma decisão que após, assegurado o contraditório da parte contrária, conhece do mérito do pedido deduzido, é o facto de na primeira a decisão ser tomada sem audição da parte contrária e a segunda ser tomada após ambas as partes terem tido oportunidade para se pronunciar sobre o mérito da pretensão formulada pelo demandante.»
Se procedermos ao contraditório entre as anotações doutrinárias acima reproduzidas e os Sumários dos diversos Arestos dos nossos tribunais superiores, constata-se que naquelas nada se refere de específico quanto ao despacho de indeferimento liminar mas que, ainda assim, é possível concluir que para tais autores, mesmo em cenários de proferição de tais despachos liminares, pode ser necessário ouvir, relativamente a questões que saem totalmente fora dos limites materiais da Petição Inicial ou que caem, em absoluto, fora das temáticas que são habituais ou minimamente expectáveis, já as decisões judiciais elencadas, pelos diversos fundamentos que ali se mostram desenvolvidos, entendem, uniformemente, que não há lugar à audiência prévia do autor ou requerente da ação ou procedimento em momento prévio ao despacho de indeferimento liminar [[13]].
Tomando posição em tal controvérsia, admitimos que, excecionalmente, se possa justificar o exercício prévio do princípio do contraditório, nos moldes previstos no número 3 do artigo 3.º do CPC/2013, quando da proferição de despachos judiciais de indeferimento liminar, quando os motivos ou problemáticas que justificam os mesmos não resultem dos elementos constantes do articulado inicial e dos documentos que o complementam ou quando, sendo de conhecimento oficioso, sejam inesperadas, imprevisíveis, «surpreendentes» para a parte demandante.           
D – SITUAÇÃO VIVIDA NOS AUTOS
Imporia tal disposição legal, como defende o recorrente, a sua prévia notificação para se pronunciar sobre o «projeto» de despacho de indeferimento liminar, conforme veio a ser prolatado pelo tribunal recorrido, a fim de evitar que o Autor fosse surpreendido com tal decisão judicial?
Pensamos que não, face ao que já acima deixámos exposto quanto ao regime dos artigos 54.º do CPT e 590.º do NCPC, que, clara e expressamente, preveem a possibilidade de qualquer Petição Inicial, desde que reúna para tal efeito os requisitos legais acima elencados, poder vir a ser objeto de um despacho de indeferimento liminar, sendo certo que o despacho recorrido que se acha elaborado nos autos se radica na matéria de facto e de direito que se mostra alegada na Petição Inicial apresentada pelo trabalhador e nos documentos que os complementam, ou seja é forjado sobre um cenário adjetivo e substantivo que era e é conhecido do recorrente e que, nessa medida, não pode ferir as expetativas legítimas e expetáveis de um qualquer demandante colocado na posição do aqui Autor.
Logo, entendemos não ter havido por parte do Juízo do trabalho de Almada, com a proferição do despacho de indeferimento liminar que aqui se acha em apreciação, qualquer violação do princípio do contraditório, por o mesmo não poder ser configurado juridicamente como uma «decisão surpresa».      
E – MANIFESTA IMPROCEDÊNCIA?
Interessa talvez traçar um quadro fáctico mínimo e essencial do litígio dos autos para depois o cruzarmos com as normas legais invocadas pela parte e no despacho recorrido e averiguarmos do efetivo fundamento de manifesta improcedência invocado neste último ou, ao invés, da suscetibilidade da causa de pedir e correspondentes pretensões alegadas na Petição Inicial, ainda que mediante a eventual e prévia proferição de um despacho de aperfeiçoamento, terem base factual e jurídica suficientes para suportarem a presente ação e lhe consentirem a sua tramitação para a fase processual seguinte.  
Factualidade alegada pelo Autor na sua Petição Inicial:
«1.º - Em 21 de Dezembro de 2009, o Réu constitui a sociedade comercial unipessoal por quotas sob a firma “(...).”, com o …, com capital social de € 50.000,00 e com sede na …. – Cf. Publicação do Portal da Justiça que aqui se junta como Doc. n.º 1 e se dá por integralmente reproduzido.
2.º - A “(...)” tinha como objeto social o comércio a retalho de carnes, salsicharia e charcutaria, explorando um estabelecimento de talho na morada da sua sede. - Cf. Doc. n.º 1.
3.º - O Réu foi o único sócio e gerente da “(...).” - Cf. Doc. n.º 1.
4.º - Por contrato de trabalho celebrado em agosto de 2000, a sociedade comercial “(...)” contratou o Autor para exercer as funções inerentes à categoria profissional de Cortador de Carnes.
5.º - O contrato de trabalho não foi, contudo, refletido em documento escrito.
6.º - Ao fim de 19 anos de trabalho e cansado do ritmo e dos horários praticados pela sociedade, o Autor, por via de missiva datada de 10 de junho de 2019, veio denunciar o referido contrato de trabalho com efeitos a partir de 04 de setembro de 2019, conforme estabelecido no artigo 400.º do Código do Trabalho. – Cf. Carta que aqui se junta como Doc. n.º 2 e se dá por integralmente reproduzido.
7.º - À data da cessação do contrato de trabalho, na sequência da referida denúncia, encontravam-se vencidos, e venceram-se no momento da cessação do contrato de trabalho, créditos laborais de que o Autor é titular sobre a antiga entidade empregadora, a sociedade “(...).”
8.º - No entanto, a sociedade “(...).” não procedeu ao pagamento da totalidade dos créditos laborais devidos, mesmo depois de ter sido interpelada pelo Autor, através da sua mandatária, que dirigiu uma comunicação escrita datada de 28 de outubro de 2019.- Cf. Carta que aqui se junta como Doc. n.º 3 e se dá por integralmente reproduzido.
9.º - Neste sentido, o Autor não viu outra opção se não recorrer à via judicial, demandando a sociedade “(...).”, em 13 de dezembro de 2019, numa ação declarativa comum emergente de contrato de trabalho em processo comum, que correu termos no Juiz 2 do Juízo do Trabalho de Almada, Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, sob o n.º 3247/19.2T8BRR. – Cf. Petição Inicial que aqui se junta como Doc. n.º 4 e se dá por integralmente reproduzido.
10.º - No âmbito do identificado processo, o Autor peticionou o pagamento de créditos laborais já vencidos e de outros que se venceram no momento da cessação do seu contrato de trabalho. – Cf. Doc. n.º 4.
11.º - A “(...).” foi regularmente citada para os termos da identificada ação e para comparecer pessoalmente em tribunal a fim de se proceder a Audiência de Partes. – Cf. citação que se junta como Doc. n.º 5 e se dá por integralmente reproduzido.
12.º - A citação da “(...).” foi efetuada na pessoa do aqui Réu em 13 de janeiro de 2020. – Cf. Aviso de receção da citação que se junta como Doc. n.º 6 e se dá por integralmente reproduzido.
13.º - Saneada e instruída a causa, realizou-se Audiência de Julgamento entre os dias 15 de janeiro de 2021 e 14 de abril de 2021. – Cf. Atas da Audiência Final que aqui se juntam como Docs. n.ºs 7 e 8 e se dão por integralmente reproduzidos.
14.º - Por Sentença proferida em 26 de abril de 2021, no âmbito do processo n.º 3247/19.2T8BRR, foi a sociedade (...) condenada a pagar ao Autor os seguintes créditos laborais:
- € 14.352,32 (catorze mil, trezentos e cinquenta e dois euros e trinta e dois cêntimos) a título de trabalho suplementar;
- € 585,69 (quinhentos e oitenta e cinco euros e sessenta e nove cêntimos) a título de proporcionais de férias do ano da cessação do contrato de trabalho;
- € 723,24 (setecentos e vinte e três euros e vinte e quatro cêntimos) a título de créditos de formação. - Cf. Sentença que aqui se junta como doc. n.º 9 e se dá por integralmente reproduzido.
15.º - A estes valores devidos acrescem juros de mora, vencidos desde a data do vencimento de cada prestação e os vincendos até integral pagamento. - Cf. Doc. n.º 9.
16.º - Além dos créditos laborais, a sociedade “(...).” foi ainda condenada a pagar as custas do processo na quantia de €521,32. - Cf. Doc. n.º 9 e Nota Discriminativa e Justificativa de Custas de Parte que se junta como doc. n.º 10 e se dá por integralmente reproduzido.
17.º - Acontece que a “(...)” não procedeu ao pagamento de qualquer montante, incumprindo com o decidido pelo competente órgão jurisdicional.
18.º - Por carta datada de 23 de julho de 2021, o Autor notificou o Réu, na qualidade de sócio e gerente da “(...).”, para o pagamento voluntário dos créditos laborais e das custas de parte associadas ao processo supra identificado. – Cf. carta que se junta como Doc. n.º 11 e se dá por integralmente reproduzido.
19.º - Para o efeito, o Autor concedeu um prazo de 10 dias para pagamento voluntário dos valores em dívida, sob pena de, não o fazendo, ser instaurada a respetiva ação judicial para cobrança dos créditos laborais em dívida. – Cf. Doc. n.º 11.
20.º - Não obstante a referida missiva ter sido enviada para a morada conhecida da residência habitual do Réu – i.e. …–, tal missiva veio devolvida. – cf. informação do site dos CTT que aqui se junta como Doc. n.º 12.
21.º - Não tendo o Réu, entretanto, se dignado a pagar os valores em dívida ao Autor.
22.º - Pelo que, na presente data, encontra-se em dívida o montante total de € 14.769,50, conforme melhor descrito no artigo 14.º da presente PI.
23.º - Ao valor de € 14.769,50 acrescem ainda juros de mora, que se liquidam da seguinte forma:
- Trabalho suplementar prestado em 2014 (€255,72): juros de mora entre 31/12/2014 e 27/12/2021…………………...…...€71,55;
- Trabalho suplementar prestado em 2015 (€2.812,92): juros de mora entre 31/12/2015 e 27/12/2021.…………...……….€674,48;
- Trabalho suplementar prestado em 2016 (€2.812,92): juros de mora entre 31/12/2016 e 27/12/2021…………..……..……€561,66;
- Trabalho suplementar prestado em 2017 (€2.812,92): juros de mora entre 31/12/2017 e 27/12/2021..............……………..€449,14;
- Trabalho suplementar prestado em 2018 (€2.812,92): juros de mora entre 31/12/2018 e 27/12/2021…………..………..…€336,63;
- Trabalho suplementar prestado em 2019 (€1.534,32): juros de mora entre 04/09/2019 e 27/12/21...…………………...…..€142,08;
- Trabalho suplementar prestado em dia feriado em 2015 (€ 218,30): juros de mora entre 31/12/2015 e 27/12/2021…......€52,34;
- Trabalho suplementar prestado em dia feriado em 2016 (€291,28): juros de mora entre 31/12/2016 e 27/12/2021…...€58,16;
- Trabalho suplementar prestado em dia feriado em 2017 (€327,69): juros de mora entre 31/12/2017 e 27/12/2021…...€52,32;
- Trabalho suplementar prestado em dia feriado em 2018 (€364,10): juros de mora entre 31/12/2018 e 27/12/2021.......€43,57;
- Trabalho suplementar prestado em dia feriado em 2019 (€109,23): juros de mora entre 04/09/2019 e 27/11/2021…...€10,11;
- Proporcionais de férias, subsídio de férias e subsídio de natal (€585,69): juros de mora entre 04/09/2019 e 27/12/2021…...€54,24;
- Crédito por formação não ministrada (€ 723,24): juros de mora entre 04/09/2019 e 27/12/2021…........................………….€66,97.
24.º - A tais valores acresce ainda a quantia de €521,32 referente às custas de parte a que a sociedade (...). foi condenada a pagar. - Cf. Docs. n.ºs 9 e 10.
25.º - Bem como os juros de mora, contabilizados à taxa legal, desde a data de vencimento da obrigação de pagamento das custas de parte (18/06/2021) até efetivo e integral pagamento, liquidando-se os juros vencidos, na presente data (27/12/2021), em €10,97.
26.º - Por conseguinte, encontram-se em dívida ao Autor os seguintes montantes:
- Montante global dos créditos laborais………..….……€14.769,50
- Juros de Mora sobre os créditos laborais……....….…....€2.573,25
- Montante global referente às custas de parte…..……….. €521,32
- Juros de Mora sobre as custas de parte……....................….€10,97
                                                                      Total = €17.875,04
27.º - Nas diligências encetadas com vista à cobrança coerciva dos créditos laborais em dívida, ficou o Autor a saber que o Réu, após tomar conhecimento da pendência da ação n.º 3247/19.2T8BRR, encerrou a empresa e dissipou o património que fazia parte da mesma.
28.º - Com efeito, pouco depois de a sua empresa ser citada para a ação n.º 3247/19.2T8BRR, mais concretamente no dia 31 de agosto de 2020, o Réu, na qualidade de sócio gerente, determinou a dissolução e liquidação da sociedade (...)., através da realização de uma Assembleia Geral, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 146.º do Código das Sociedades Comerciais. - Cf. Ata que aqui se junta como Doc. n.º 13 e se dá por integralmente reproduzido.
30.º - Pelo que, na sobredita Assembleia Geral, realizada no dia 31 de agosto de 2020, o Réu decidiu pela cessação de toda a atividade da sociedade com efeitos a partir do dia 31 de dezembro de 2019, mais declarando que «todo o ativo da sociedade esgotado no passivo, não havendo, portanto, ativo ou passivo». - Cf. Doc. n.º 13.
31.º - Afirmação que o Réu sabia ser falsa, já que a empresa era devedora do Autor de créditos laborais vencidos e não pagos, reclamados na ação n.º 3247/19.2T8BRR.
32.º - Desta forma, não está verificado o requisito da alínea b) do n.º 1 do artigo 27.º do Regime Jurídico dos Procedimentos Administrativos de Dissolução e Liquidação de Entidades Comerciais.
33.º - Teve o Autor ainda conhecimento de que o Réu somente retirou os bens que se encontravam no interior do estabelecimento comercial da empresa em fevereiro de 2021, ou seja, durante o período temporal em que decorreu o julgamento do processo n.º 3247/19.2T8BRR, não deixando nada no interior do mesmo. – Cf. Docs. n.ºs 7 e 8.
34.º - Sendo que o património, que pertenceria à sociedade (...)., era composto por arcas frigoríficas e outros bens de considerado valor, na medida em que o objeto social da sociedade era o comércio a retalho de carnes, salsicharia e charcutaria, explorando um estabelecimento de talho para este efeito.
35.º - Ao retirar e ocultar os bens da sociedade (...)., o Réu quis frustrar, de forma dolosa, o direito do Autor de ser pago dos créditos laborais que lhe são devidos, na medida em que tinha conhecimento desde o dia 10 de Junho de 2019 que o Autor iria cessar o seu contrato de trabalho e que os seus créditos laborais se tornariam exigíveis, devendo ser pagos até à data da cessação.- Cfr. Doc. n.º 2.
36.º - Tendo o Réu pleno conhecimento que a sociedade era devedora do Autor de créditos laborais conformou-se com essa situação e, depois de saber que o Autor, de forma a reivindicar os créditos laborais em dívida, vencidos a 04 de Setembro de 2019, instaurou a identificada ação judicial a 13 de Dezembro de 2019, procedeu, com dolo, à decisão de dissolver e dissipar o património da sociedade em 31 de Agosto de 2020, com efeitos a partir do dia 31 de Dezembro de 2019.
37.º - Nesta conformidade, o Réu, sócio gerente da sociedade, incumpriu culposamente as disposições legais destinadas à proteção dos créditos laborais do Autor.»
Debatemo-nos aqui com o não pagamento de créditos laborais de natureza retributiva [trabalho suplementar prestado e não liquidado + proporcionais de férias do ano de cessação do contrato de trabalho dos autos + horas de formação não dadas], devidos e reclamados após a cessação do vínculo de trabalho, sendo certo que a retribuição tem conhecido nos três últimos regimes laborais que se sucederam, uma proteção legal significativa e acrescida.
A este propósito, destaquem-se, desde logo, os artigos 21.º [garantias do trabalhador, entre as quais as remuneratórias], 82.º [princípios gerais da retribuição] e 95.º [compensação e descontos], todos da LCT, tudo sem prejuízo, entre outros, dos artigos 97.º da LCT - insusceptibilidade de cessão -, Decreto-Lei n.º 69-A/87, de 9/02 - salário mínimo nacional -, Lei n.º 17/86, de 14/06 - salários em atraso -, Decreto-Lei n.º 219/99, de 15/06 - Fundo de Garantia Salarial -, 34.º e 35.º, números 1, alíneas a), b) e e) e 2, alínea c) do Decreto-Lei n.º 64-A/89, de 27/02 - resolução com justa causa por iniciativa do trabalhador -, Decreto-Lei n.º 398/83, de 2/11 - suspensão ou redução da prestação de trabalho -, 737.º, números 1, alínea d) e 2 do Código Civil, sem olvidar a regra especial do artigo 12.º da já aludida Lei dos Salários em Atraso e a Lei n.º 96/2011, de 20/08 - privilégios creditórios - bem como o artigo 824.º, números 1, alínea a) e 2 a e ou a 5 do Código de Processo Civil, na sua redação anterior ou atual).
Essa mesma problemática da retribuição e das garantias legais que sobre a mesma incidiam continuou a ser regulada, na sua essência e entre 1 de Dezembro de 2003 a 16 de Fevereiro de 2009, no âmbito do Código do Trabalho de 2003, pelo disposto nos artigos 122.º, 249.º e 270.º, se bem que sem olvidar, entre outros, os artigos 271.º - insusceptibilidade de cessão -, 266.º (em conjugação com os artigos 207.º a 210.º da Lei n.º 35/2004, de 29/07) - retribuição mínima -, 364.º (em conjugação com os artigos 300.º a 315.º da Lei n.º 35/2004, de 29/07) - mora -, 441.º, números 2, alíneas a), b) e e) e 3, alínea c) - resolução com justa causa por iniciativa do trabalhador -, 377.º (sem esquecer o artigo 737.º, números 1, alínea d) e 2 do Código Civil) - privilégios creditórios -, 335.º e seguintes - redução do período normal de trabalho ou suspensão do contrato de trabalho -, 380.º (em conjugação com os artigos 316.º a 326.º da Lei n.º 35/2004, de 29/07) - Fundo de Garantia Salarial - todos do Código do Trabalho de 2003, bem como o artigo 824.º, números 1, alínea a) e 2 a 5 do Código de Processo Civil).          
Finalmente e já no quadro do Código do Trabalho de 2009 e a partir de 17 de Fevereiro de 2009, sem ignorar as demais normas, quer substantivas como adjetivas, do regime geral e comum antes mencionadas, importa atentar também no estatuído nos dispositivos legais correspondentes e que são os dos artigos 129.º, número 1, alínea d), 258.º e 279.º, sem prejuízo também das regras contidas nos artigos 280.º (cessão), 273.º a 275.º (RMMG), 333.º (privilégios creditórios), 323.º (incumprimento/mora), 336.º (Fundo de Garantia Salarial) e 394.º, números 1, alínea a), 3, alínea c) e 5 (resolução com justa causa promovida pelo trabalhador).
Esta primeira linha de proteção tem de ser ainda conjugada com um segundo nível garantístico e protetor formado, no atual quadro legal, por algumas das regras contidas nos artigos 3.º [relações entre fontes de regulação], 101.º [pluralidade de empregadores], 106.º a 109.º [Informação sobre aspetos relevantes na prestação de trabalho], 120.º [Mobilidade Funcional], 121.º a 125.º [Invalidade do contrato de trabalho], 127.º [Deveres do empregador], 146.º [Igualdade de tratamento no âmbito do contrato a termo], 248.º a 257.º [Faltas], artigos 294.º a 316.º [Redução da atividade e suspensão do contrato de trabalho], 324.º [Efeitos para o empregador de falta de pagamento pontual da retribuição], 325.º a 327.º [Suspensão de contrato de trabalho por não pagamento pontual da retribuição], com remissão para o disposto nos artigos 313.º [Atos proibidos em casos de encerramento temporário] e 314.º [Anulabilidade de ato de disposição], que, por força do artigo 315.º se estendem aos casos de encerramento definitivo e, no que para aqui nos interessa particularmente, os artigos 334.º e 335.º, que regulam, respetivamente, a responsabilidade solidária de sociedade em relação de participações recíprocas, de domínio ou de grupo, conforme definida pelos artigos 481.º e seguintes do CSC, e a responsabilidade de sócio, gerente, administrador ou diretor, nos termos aí referenciados e devidamente conjugados com os artigos 83.º, 78.º, 79.º do Código das Sociedades Comerciais.
Finalmente - e embora não possa ser perspetivado nos mesmos moldes desses outros institutos e disposições normativas -, refira-se ainda aqui o regime jurídico regulador da dissolução e liquidação das sociedades comerciais que se acha previsto nos artigos 141.º a 165.º do CSC e legislação complementar [[14]], que contém algumas regras jurídicas de proteção dos interesses dos credores em geral.                         
Chegados aqui e face a este multifacetado quadro normativo, caberá perguntar o seguinte: será que, como afirma o despacho recorrido, só restava ao Autor e Apelante, com vista a obter o pagamento dos aludidos créditos laborais, lançar mão desse último regime jurídico – v.g., dos artigos 162.º, 163.º, números 2, 4 e 5 e 164.º, números 2 e 5 - , em sede da referida ação declarativa ou, pelo menos, no âmbito da subsequente execução da sentença judicial condenatória da sociedade unipessoal que foi empregadora daquele entre agosto de 2000 e 4 de setembro de 2019 e da qual foi único sócio e gerente o aqui Réu?
Começaremos por referir, no que concerne à aplicação de tal regime legal de cariz societário e comercial e à proteção que pode garantir a um credor laboral como o Autor, que, não somente e em situações normais, o sócio responde apenas até ao valor dos bens da sociedade que lhe foram distribuídos, no final da liquidação do ativo e passivo do ente societário [número 1 do artigo 163.º do CSC] como não tem, por outro lado, grande aplicação prática, em cenários de micro [como parecia ser o caso da empregadora do Autor], pequenas ou até médias empresas, o regime de responsabilidade pessoal dos liquidatários, em caso de prestação culposa e falsa de informação por parte dos mesmos aos sócios quanto à inexistência de dívidas sociais [artigo 158.º do CSC], dado que tais sociedades se extinguem, as mais das vezes, nos termos do «Procedimento Especial de Extinção Imediata de Entidades Comerciais» regulado nos artigos 27.º a 30.º do «Regime Jurídico dos Procedimentos Administrativos de Dissolução e de Liquidação de Entidades Comerciais» [Nota de Rodapé n.º 16], por simples Ata de Assembleia Geral, onde é deliberada, de forma mais ou menos sigilosa ou desapercebida, tal dissolução, na sequência da declaração – verdadeira ou falsa - de inexistência de passivo e/ou ativo, procedendo-se depois ao registo na Conservatória do Registo Comercial de tal ato e à eliminação da devedora do mundo dos negócios e do direito.
Importa dizer que sobre as consequências jurídicas de tais dissoluções por mera declaração/deliberação dos seus sócios, com base numa realidade, em termos de substrato material, falseada ou omitida, existe uma assinalável controvérsia doutrinária e jurisprudencial e uma flutuação ou ambiguidade quanto às respostas possíveis a dar às mesmas.     
Este coletivo já teve oportunidade de abordar as dúvidas e perplexidades que tal regime simplificado [facilitista?] da dissolução de entes societários suscita [designadamente, ao nível da proteção dos créditos sociais e das garantias que confere aos seus titulares] no Acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 12 de fevereiro de 2020, Processo n.º 3/05.9TTALM-B.L1, que foi tirado por maioria e com um voto de vencido, que não se encontrando publicado, possui o seguinte Sumário:                   
«I - Os sócios-gerentes da Executada originária assumiram, por acordo judicial e em nome e representação da dita sociedade uma dívida no montante de 15.000,00€ para com o seu trabalhador e aqui Exequente e, não obstante nunca a haverem satisfeito, foram deliberar a dissolução e liquidação imediatas daquele ente coletivo e aí declarar (falsamente) que este último não tinha passivo, passando assim uma esponja por de cima do dito crédito laboral e também que não possuía ativo, não obstante terem inscrito em nome daquela três viaturas automóveis e terem vendido no dia 22/6/2006 e pelo preço de €190.000,00 o imóvel onde aquele funcionava e liquidado apenas com tal importância dívidas ao Fisco e à Segurança Social no valor global de €71.825,47, verificando-se assim uma diferença positiva para a aludida quantia de €190.000,00 de €118.174,53.
II - A Oponente deveria não somente ter alegado de forma circunstanciada, em termos de modo, tempo e lugar, como depois demonstrado em termos objetivos, fidedignos e fiáveis, conforme lhe exigia o correspondente ónus de alegação e prova que a referida verba de €118.174,53 havia efetivamente sido consumida na liquidação de dívidas do ente societário e que, nessa medida, não tinha sobrado nada do referido montante, que pudesse ter sido partilhado pelos dois sócios-gerentes.
III - Não foi isso que aconteceu nesta Oposição à Execução, tendo ficado por saber o que aconteceu efetivamente ao valor de €118.174,53, dúvida essa quanto à realidade desses factos que, nos termos do art.º 414.º do NCPC, se resolve contra quem aproveitaria ou beneficiária com os mesmos, ou seja, a Apelada.
IV - Sendo assim, não é possível concluir, como pretende a Apelada, que a sociedade não tinha qualquer ativo, na data da sua dissolução e liquidação e de que não foi partilhado entre ambos quaisquer bens ou quantias pecuniárias, pois, no mínimo – e dando de barato os três veículos automóveis da empresa extinta e a muito prolongada e significativa impossibilidade da sua apreensão efetiva por parte do solicitador de execução - existia aquela importância sobrante de €118.174,53, cujo destino ficou por apurar. 
V - A extinção jurídica de tal ente societário e devedor originário do crédito laboral de €15.000,00 assentou em falsas declarações, quer no respeita à inexistência de ativo, como no que concerne à liquidação oportuna de todo o passivo, declarações essas feitas pelos seus únicos dois sócios e gerentes, o que os faz incorrer, desde logo, na responsabilidade pela liquidação da quantia exequente em causa nos autos, quer por força da aplicação direta artigos 162.º e 163.º, número 1 do CSC, quer em função da aplicação analógica do disposto no artigo 158.º do mesmo diploma legal, para quem não aceite aquela aplicação direta.» [15]
Do que se deixou dito deriva que não é certo nem seguro que tal regime geral ou essencial de dissolução e liquidação de sociedades, como a empregadora do Autor, assegure a este último a cobrança coerciva, quer total, quer apenas parcial, dos seus direitos de cariz remuneratório e laboral.
A acrescer ao que se deixou referido, em termos jurídicos e práticos, importa também não olvidar – como o próprio despacho de indeferimento liminar aqui impugnado reconhece, em parte – que existem factos que não são conhecidos e que são relevantes, no quadro de tal regime legal, como os respeitantes à eventual comunicação da sua dissolução por parte da então Ré no quadro da ação declarativa, com o número 3247/19.2T8BRR, proposta contra ela pelo aqui Apelante, à inscrição no registo comercial de tal dissolução da sociedade “(...), à data em que essa inscrição ocorreu e ao seu conhecimento efetivo e superveniente por parte do trabalhador, havendo elementos nos autos que indiciam que tal não acontecia em 23/7/2021 [data da carta enviada pelo Autor à referida empresa, reclamando o pagamento voluntário das quantias em que a mesma foi condenada por sentença judicial transitada em julgado].
Mas, como ressalta da Petição Inicial do trabalhador [ou ex-trabalhador, conforme precisa o despacho recorrido] e é igualmente afirmado por essa decisão judicial, o Autor pretende responsabilizar pessoal e em termos solidários, o sócio e gerente da empregadora [ou ex-empregadora] pelo pagamento dos créditos laborais declarados e reconhecidos pela sentença judicial de 24/4/2021 e proferida nos autos acima identificados, ao abrigo do artigo 335.º do Código do Trabalho e 78.º, 79.º e 83.º do Código das Sociedades Comerciais.
O despacho de indeferimento liminar fecha a porta a essa possibilidade, por entender, por um lado, que tal deveria ter sido requerido, em simultâneo, no quadro da ação declarativa de condenação com processo comum laboral que o Autor propôs contra a empresa “(...) e, por outro, que os atos a que se referem, em termos conjugados, os artigos 335.º do CT/2009 e 78.º, 79.º e 83.º do CSC têm de ser contemporâneos ou, melhor dizendo, levados a cabo durante a existência do vínculo laboral e já não após a sua cessação, como parece ter sido o caso dos presentes autos, dado que o recorrente nada terá alegado a esse respeito quanto à sua execução na pendência do contrato de trabalho.
Ora, salvo o devido respeito pela posição adotada pelo despacho recorrido, temos sérias reservas quanto à dita posição de cariz processual, como no que respeita aquela outra perspetiva de índole material.
No que concerne ao primeiro aspeto, não vislumbramos regra no regime adjetivo e substantivo aplicável, que vede, de uma forma clara e impressiva, ao trabalhador, após a condenação da sua entidade patronal no âmbito de uma ação declarativa laboral que propôs contra a mesma e face à prática de atos por parte do sócio ou do gerente daquela que se reconduzam ao regime das referidas disposições legais [artigos 335.º do CT/2009 e 78.º e, 79.º e 83.º do Código das Sociedades Comerciais], a propositura de uma nova ação contra o sócio ou o gerente, administrador ou diretor, com vista a responsabilizá-los, pessoal e solidariamente, com fundamento em tais atos voluntários, culposos e lesivos do património da empregadora, que têm como consequência a diminuição efetiva da garantia material dos seus credores.
Também temos sérias dúvidas no que concerne à interpretação do regime legal aplicável feito pelo despacho recorrido e que parece ir no sentido de confinar o seu funcionamento ou acionamento apenas quanto a atos daquela natureza executados durante a vigência da relação de trabalho e já não após a sua extinção, dado tal restrição parecer não ter na devida consideração normas como as dos artigos 337.º [prescrição] e 313.º a 315.º do Código do Trabalho de 2009 ou a possibilidade de um ex-assalariado, face a um cenário de esvaziamento do estabelecimento onde desenvolveu funções profissionais, através da injustificada e rápida retirada e/ou desvio para uma empresa terceira dos bens que integravam aquele, lançar mão do procedimento cautelar de arresto, de maneira a obter do tribunal de trabalho uma apreensão judicial e cautelar do património suficiente para garantir o pagamento dos seus créditos laborais.
Afigura-se-nos que o legislador laboral, quer quanto ao primeiro, como ao segundo nível de proteção e garantia legais da retribuição dos trabalhadores [acima mencionados], pretendeu conferir-lhes uma aplicação bastante mais abrangente e lata do que a sustentada no despacho impugnado, sob pena de lhe retirar boa parte da sua relevância, significado e eficácia jurídica.
O despacho recorrido também radica a impossibilidade do Autor propor uma ação como a presente [responsabilização pessoal e solidária do sócio gerente da empregadora pelos créditos laborais alvo da dita condenação judicial], não apenas por tal decisão judicial não formar caso julgado material quanto ao aqui Réu, como por o artigo 519.º, número 1, do Código Civil obstar a demanda deste último, face à dita condenação da empregadora [também responsável solidária] [[16]].
Ora, também aqui, tendemos a afastar-nos do raciocínio exposto, não apenas porque nos deparamos com um regime especial [ou especialíssimo, pois o artigo 335.º, não somente remete para o artigo 334.º do CT/2009, como ainda chama à colação os artigos 78.º, 79.º e 83.º do CSC] por referência ao consagrado na lei geral civil, como, principalmente, por não nos parecer que o artigo 519.º em questão tenha sido pensado e delineado para cenários como o dos autos, em que a solidariedade não é simultânea nem originária, mas antes de cariz sancionatório/indemnizatório e, normalmente, cumulativa e superveniente.
Afigura-se-nos, contudo, que ainda que não se concorde com o que se deixou antes afirmado quanto ao regime do número 1 do artigo 519.º do CC, parece-nos que, mesmo assim, tal regra jurídica não veda em absoluto tal demanda posterior de um outro devedor solidário, face à parte final de tal norma jurídica que, ao lado da insolvência ou risco de insolvência do demandado, prevê também «dificuldade, por outra causa, em obter dele a prestação».  
Mais complexa e duvidosa é a questão da não vinculação do Réu pelo caso julgado material da sentença condenatória da empregadora, por aquele, apesar de ser sócio e gerente da mesma e de nesta última qualidade, como legal representante da empregadora, ter tido intervenção na referida ação laboral, não ter sido demandado pessoal e simultaneamente com aquela sociedade unipessoal e, nessa medida, não se ter podido pronunciar sobre as pretensões do ali e aqui Autor e não ter tido oportunidade de recorrer daquela decisão judicial final [o que significa, em última análise, que o Autor tinha de alegar, de novo, na presente ação, os factos e as normas jurídicas de cariz laboral que fundaram a condenação da sociedade naqueles primeiros autos].
Pensamos que a resposta a tal problemática passa pela análise do regime dos artigos 335.º e 334.º do CT/2009 e 83.º, 78.º e 79.º do CSC, pois o Autor, conforme parece ressaltar da sua Petição Inicial, ainda que de uma forma nem sempre clara e suficiente, quer em termos jurídicos, como factuais [que são, por vezes, nesta matéria, genéricos ou conclusivos] parece querer responsabilizar o Réu pelo pagamento dos ditos créditos laborais, quer enquanto sócio, quer enquanto gerente, de uma forma direta ou indireta, ao abrigo de todas as vertentes consentidas pelos referidos normativos legais.
Chegados aqui, importa talvez realçar que os diversos regimes jurídicos que ressaltam dos artigos 335.º e 334.º do Código de Trabalho de 2009 e 83.º, 78.º e 79.º do Código das Sociedades Comerciais não são de interpretação unívoca ou inequívoca nem de aplicação simples e fácil, havendo, ao que nos parece, diversas divergências ao nível doutrinário e jurisprudencial quanto a distintos aspetos de tais regimes de responsabilidade civil extracontratual [dado os sócios ou os gerentes, diretores ou administradores não terem qualquer relação contratual com os credores da sociedade] [[17]].  
Se compulsarmos a nossa doutrina sobre as diversas vias de responsabilização civil do sócio ou do gerente, que são admitidas pelas disposições legais acima identificadas, veremos que as mesmas [caso artigo 79.º do CSC] podem visar a reparação de danos causados diretamente por qualquer uma daquelas pessoas, em cada uma daquelas qualidades ou estatutos jurídicos, aos credores sociais das empresas [como será o caso dos trabalhadores ou ex-trabalhadores, como o Autor] como os danos provocados, de uma forma indireta, por aqueles mesmos sujeitos a tais credores sociais [caso artigo 78.º do mesmo diploma legal].
Ora, se não temos dúvidas de que, nos cenários em que estão em causa prejuízos diretos provocados pelo sócio ou pelo representante legal aos credores sociais, tem os factos respeitantes a tais danos e as normas jurídicas pertinentes de ser alegadas numa ação como a presente [ainda que já o tenham sido numa anterior e tenha sido obtida, com base nos mesmos, uma condenação contra a pessoa coletiva envolvida], já se nos suscitam dúvidas de que tal tenha de acontecer no que toca a pretensões que tenham como fundamento danos indiretos causados pelo sócio ou pelo gerente, diretor ou administrador a um credor social, trabalhador ou não.       
A posição sustentada no despacho liminar recorrido não faz tal distinção entre autos que pedem uma indemnização por prejuízos diretos ou indiretos mas afigura-se-nos defensável que, em situações de danos indiretos, a circunstância do novo devedor [legalmente solidário, desde que verificados os pressupostos previsto na norma ou normas jurídicas aplicáveis] não ter sido demandado na ação condenatória e não estar vinculado ao caso julgado material aí formado não impõe que se volte a discutir de novo numa nova ação aqueles mesmos factos, regras jurídicas e direitos reclamados.
Quando tal afirmamos, estamos a pensar em situações como a dos autos em que um trabalhador ou ex-trabalhador pede e obtém no juízo do trabalho a condenação no pagamento de créditos laborais da sua entidade patronal [ou ex-empregadora] e o sócio ou o gerente, cientes de tal condenação ou, tão-somente, da pendência da correspondente ação declarativa com processo comum laboral e da possibilidade de a sua empresa vir a ser condenada, total ou parcialmente, no que é peticionado pelo ali demandante, desenvolve comportamentos no sentido de, intencionalmente ou com negligência grosseira, esvaziar a mesma do seu património [logo, da garantia da liquidação dos créditos sociais] ou de promover, por um dos meios simplificados permitidos por lei e de forma desconforme com as exigências desta última, a rápida liquidação, dissolução e extinção daquela, assim obviando a que os credores sociais consigam obter satisfação dos seus créditos, reconhecidos ou não por uma sentença judicial.
Tendo em linha de conta um cenário como o descrito, em que um credor social, apesar de ter uma sentença condenatória/título executivo que lhe permitiria, em tese, cobrar coercivamente os seus créditos, se vê impedido de o fazer, em termos integrais ou apenas parciais, por força de tais condutas do sócio ou gerente, será, de facto, exigível e necessário que o mesmo, na causa de pedir de uma segunda ação como a presente, volte a ter de integrar e discutir em juízo os factos, as normas legais e os pedidos relativos aos mencionados créditos laborais?       
Pensamos que, nestes casos, não se tem na devida consideração que a causa de pedir de uma e de outra ação não são coincidentes mas antes substancialmente diversas, dado terem finalidades e objetivos distintos [podendo, nessa medida, dispensar-se a reintrodução na segunda causa da matéria relativa aos créditos laborais devidos].
Admitimos, ainda que assim não se entenda, que o réu ou réus nessas segundas ações possam vir a discutir, em termos impugnatórios ou excecionais, na sua contestação e quanto aos créditos em questão, os pagamentos já efetuados, o valor em dívida e a exigibilidade dos mesmos, assim como o registo da extinção da sociedade empregadora e seu conhecimento por parte do autor e todas as outras questões relevantes e relacionadas, designadamente, com o ativo e passivo da sociedade dissolvida e liquidada, património existente e sua utilização ou transmissão lícitas, etc. 
Resta-nos abordar a questão das custas de parte que, em casos como os expostos, em que estão implicados danos indiretos [e não diretos] causados pela atuação do sócio ou gerente da sociedade empregadora devedora, podem também e em nosso entender, ser encarados em moldes semelhantes aos dos créditos judicialmente impedidos de serem satisfeitos, por força daquela conduta, ainda que o título legitimador daquelas não seja apenas a sentença condenatória mas ainda a Nota discriminativa das Custas de Parte atempadamente apresentada no processo e as normas legais que tutelam tal junção e documento [artigos 25.º a 26.º-A do RCP].                    
F – SITUAÇÃO VIVIDA NOS AUTOS
Ora, chegados aqui e face à interpretação que é feita pela nossa melhor doutrina e jurisprudência relativamente aos fundamentos que podem sustentar um despacho de indeferimento liminar que pode ser proferido no âmbito da ação declarativa com processo comum ou especial e à argumentação de cariz factual e jurídico que acima desenvolvemos quanto ao teor da decisão liminar em análise, afigura-se-nos, ressalvado o devido respeito pela autora do mesmo, que não se pode reconduzir o nosso despacho recorrido a qualquer uma das situações a seguir indicadas:
«3. Os casos de indeferimento liminar correspondem a situações em que a petição apresenta vícios substanciais ou formais de tal modo graves que permitem ante­ver, logo nesta fase, a improcedência inequívoca da pretensão apresentada pelo autor ou a verificação evidente de exceções dilatórias insupríveis, incluindo a ineptidão da petição.
Assim acontece quando seja manifesto que a ação nunca poderá proceder, qualquer que seja a interpretação que se faça dos preceitos legais aplicáveis à situação factual configurada pelo autor, ou quando seja inequívoca a caducidade repor­tada a direitos indisponíveis. Outrossim perante a constatação de alguma exceção dilatória de conhecimento oficioso que não possa ser suprida nem por convite ou iniciativa do juiz, nem por atuação do autor: v.g. incompetência absoluta (art.º 97.º, n.º 1), falta de personalidade judiciária (fora dos poucos casos que admitem a sanação), ilegitimidade singular (art.º 577.º, al. e)), ineptidão da petição inicial (art.º 186.º, n.º 1), caso julgado material (art.º 577.º, al. i)) ou inadequação absoluta da forma de processo que se revele insuscetível de ser corrigida, nos termos do art.º 193.º.» [[18]]
Pensamos, assim, que o Juízo do Trabalho de Almada, no despacho liminar que prolatou e na apreciação necessariamente limitada e perfunctória [digamos assim] que fez, não perspetivou a viabilidade dos pedidos e fundamentos factuais e jurídicos formulados pelo Autor, em função das diversas e possíveis interpretações jurídicas e soluções de direito, sendo certo que o despacho liminar de aceitação da petição inicial em questão não forma caso julgado formal ou material quanto a qualquer uma das dúvidas e questões antes levantadas, podendo a presente ação ser, a final, julgada total ou parcialmente improcedente, por alguns dos fundamentos constantes do despacho liminar recorrido ou outros que se deixaram ou não aflorados na nossa fundamentação.
Não ignoramos que o Autor aventou a hipótese, nas suas alegações e conclusões recursórias, de o despacho recorrido poder ser, por ordem deste Tribunal da Relação de Lisboa, substituído por um despacho de aperfeiçoamento, apreciação e determinação específica essa que entendemos, contudo, não dever fazer, por se traduzir, de alguma maneira, numa forma de conduzir e condicionar o julgamento de forma e de mérito a fazer pelo tribunal da 1.ª instância, tudo sem prejuízo de deixamos em aberto e ao critério da ilustre julgadora do Juízo do Trabalho de Almada tal possibilidade de mandar aperfeiçoar a Petição Inicial do Autor [o que cabe dentro da normal tramitação desta ação, conforme irá ser por nós decidido].   
Sendo assim, o presente recurso de Apelação tem de ser julgado procedente, com a revogação do despacho recorrido, que deverá ser substituído por um outro que, admitindo a petição inicial do trabalhador, determine a normal tramitação destes autos de ação declarativa com processo comum, de acordo com o regime legal aplicável.
IV – DECISÃO
Por todo o exposto, nos termos dos artigos 87.º do Código do Processo do Trabalho e 663.º do Novo Código de Processo Civil, acorda-se, neste Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar procedente o presente recurso de apelação interposto por AAA com a revogação do despacho recorrido e sua substituição por um outro que, admitindo a petição inicial do trabalhador, determine a normal tramitação destes autos de ação declarativa com processo comum, de acordo com o regime legal aplicável.
Custas a final pela parte vencida – artigo 527.º, n.º 1, do Novo Código do Processo Civil.
Registe e notifique.

Lisboa, 18 de janeiro de 2023     
José Eduardo Sapateiro
Alves Duarte
Maria José Costa Pinto

Declaração de voto
Não acompanho a solução que fez vencimento por considerar, essencialmente, que o A. não alegou na petição inicial os factos mínimos e indispensáveis para se concluir pela existência de créditos emergentes do contrato de trabalho, da sua violação ou cessação, pelos quais possa vir a ser considerado solidariamente responsável o R., gerente da sociedade com quem manteve um contrato de trabalho, nos termos previstos no artigo 335.º, n.º 2, do Código do Trabalho, em cujo regime jurídico o A. fundou o pedido formulado na presente acção.
Como bem se nota na decisão sob recurso, não basta ao A. alegar o que resultou da condenação proferida na ação declarativa que instaurou contra aquela sociedade, a que coube o n.º 3247/19.2T8BRR, posto que a sentença nela proferida não faz caso julgado em relação ao aqui R., que nela não foi parte, pelo que não pode considerar-se por ela vinculado - cfr. o artigo 522.º, do Código Civil e os artigos  581.º, 619.º e 621.º do Código de Processo Civil.
Não vejo como dispensar a alegação e prova, nesta segunda causa, da matéria de facto relativa aos créditos laborais devidos, nem se me afigura que a falta que se verifica possa ser colmatada com uma eventual discussão, em termos impugnatórios ou excecionais, que o réu introduza na sua contestação sobre a existência e exigibilidade dos créditos laborais em questão.
E, salvo o devido respeito, creio que esta conclusão não depende da qualificação como directo (artigo 79.º do CSC), ou indirecto (artigo 78.º do CSC), do nexo de causalidade entre o acto do gerente e o dano causado. No caso, está em causa a existência do próprio dano (a titularidade dos indicados créditos vencidos há mais de três meses) enquanto pressuposto da responsabilidade civil.
Assim, uma vez que à luz da alegação constante da petição inicial, o pedido nela formulado se prefigura como manifestamente improcedente, confirmaria a decisão da 1.ª instância de indeferimento daquele articulado nos termos dos artigos 54.º, n.º 1 do Código de Processo do Trabalho e 590.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Lisboa, 18 de janeiro de 2023     
Maria José Costa Pinto
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[1] «Sendo que o autor sequer alega ter solicitado, coercivamente, o cumprimento da sentença proferida na ação declarativa identificada impediria o autor de, em sede executiva, promover o seu andamento contra o sócio gerente, nos termos do disposto no art.º 163.º, do Código das Sociedade Comerciais.»
[2] «                                                                    Artigo 54.º
Despacho liminar
1 – Recebida a petição, se o juiz nela verificar deficiências ou obscuridades, deve convidar o autor a completá-la ou esclarecê-la, sem prejuízo do seu indeferimento nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 234.º-A do Código de Processo Civil.
2 – Estando a ação em condições de prosseguir, o juiz designa uma audiência de partes, a realizar no prazo de 15 dias.
3 – O autor é notificado e o réu é citado para comparecerem pessoalmente ou, em caso de justificada impossibilidade de comparência, se fazerem representar por mandatário judicial com poderes especiais para confessar, desistir ou transigir.
4 – Com a citação é remetido ou entregue ao réu duplicado da petição inicial e cópia dos documentos que a acompanhem.
5 – Se a falta à audiência for julgada injustificada, o faltoso fica sujeito às sanções previstas no Código de Processo Civil para a litigância de má-fé.»
[3] «                                                Artigo 590.º
Gestão inicial do processo
1 - Nos casos em que, por determinação legal ou do juiz, seja apresentada a despacho liminar, a petição é indeferida quando o pedido seja manifestamente improcedente ou ocorram, de forma evidente, exceções dilatórias insupríveis e de que o juiz deva conhecer oficiosamente, aplicando-se o disposto no artigo 560.º.
2 - Findos os articulados, o juiz profere, sendo caso disso, despacho pré-saneador destinado a:
a) Providenciar pelo suprimento de exceções dilatórias, nos termos do n.º 2 do artigo 6.º;
b) Providenciar pelo aperfeiçoamento dos articulados, nos termos dos números seguintes;
c) Determinar a junção de documentos com vista a permitir a apreciação de exceções dilatórias ou o conhecimento, no todo ou em parte, do mérito da causa no despacho saneador.
3 - O juiz convida as partes a suprir as irregularidades dos articulados, fixando prazo para o suprimento ou correção do vício, designadamente quando careçam de requisitos legais ou a parte não haja apresentado documento essencial ou de que a lei faça depender o prosseguimento da causa.
4 - Incumbe ainda ao juiz convidar as partes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido.
5 - Os factos objeto de esclarecimento, aditamento ou correção ficam sujeitos às regras gerais sobre contraditoriedade e prova.
6 - As alterações à matéria de facto alegada, previstas nos n.ºs 4 e 5, devem conformar-se com os limites estabelecidos no artigo 265.º, se forem introduzidas pelo autor, e nos artigos 573.º e 574.º, quando o sejam pelo réu.
7 - Não cabe recurso do despacho de convite ao suprimento de irregularidades, insuficiências ou imprecisões dos articulados.»
[4] Em “Temas da Reforma do Processo Civil”, I Volume, «I – Princípios Fundamentais 2 – Fase Inicial do Processo Declarativo», 2.ª Edição Revista e Ampliada, janeiro de 2003, Almedina, págs. 243 e seguintes.
[5] «A. Reis justificava a previsão do despacho de indeferimento liminar como um dos corolários do princípio da economia processual, com vista "a evitar o dispên­dio inútil da atividade judicial" (cfr. CPC Anot. vol. II, pág. 373).
Ainda segundo o mesmo autor, "o indeferimento liminar pressupõe que ou por motivos de forma, ou por motivos de fundo, a pretensão do autor está irremediavel­mente comprometida, está votada ao insucesso" (loc. cit.).
A. Castro, por seu lado, considerava igualmente que o indeferimento liminar tinha por fim "eliminar à nascença processos desprovidos das necessárias condições de viabilidade formal e substancial, sem prejuízo das garantias do autor que ficará acau­telado de todos os riscos" (in PCD, vol. III, pág. 199).» - Nota de Rodapé do texto transcrito
[6] «In RLJ, ano 126.º, pág. 104. Mais recentemente, a respeito do novo regime, veja-se o que refere na RLJ, ano 130.°, pág. 99, onde conclui que o anterior despacho de indeferimento deveria visar a "rejeição imediata das pretensões cuja inviabilidade era tida como praticamente certa", evitando a inglória e inútil perda de tempo neces­sário à atividade do tribunal e livrando o réu de despesas, incómodos, preocupações ou vexames.» - Nota de Rodapé do texto transcrito
[7] «Cfr. A. Reis, CPC Anot., vol. II, pág. 385, e A. Varela, in RLJ, ano 130.º, págs. 98 a 100.» - Nota de Rodapé do texto transcrito
[8] «Neste sentido cfr. C. Mendes, ob. cit., pág. 61.» - Nota de Rodapé do texto transcrito
[9] «No mesmo sentido cfr. V Serra, in RLJ ano 101.º, pág. 181, o Ac. da Rel. de Coimbra, de 18-11-97, pág. CJ, tomo V, pág. 12, o Ac. da Rel. de Coimbra, de 31-3-92, in BMJ 415.º/736, e o Ac. da Rel. de Évora, de 24-10-85, in CJ, tomo IV, pág. 302.» - Nota de Rodapé do texto transcrito
[10] «Cfr. também o Ac. da Rel. do Porto, de 15-10-81, in BMJ 310.º/336.» - Nota de Rodapé do texto transcrito
[11] «A. Varela apresenta na RLJ do ano 136.º, pág. 47, um caso em que, em seu entender, a petição era manifestamente inviável, pois, pedindo-se a condenação no pagamento de diferenças salariais, o autor limitara-se a alegar que exercera as funções de chefe de divisão, sem discriminar as tarefas que executou e as circunstâncias de tempo e modo.» - Nota de Rodapé do texto transcrito
[12] No seu «Código de Processo Civil Anotado - Parte Geral e Processo de Declaração – artigos 1.º a 702.º», Volume I, 2.ª Edição, setembro de 2020, Almedina, páginas 21 a 23, Notas 10 a 19 ao artigo 3.º.
[13] Importa não ignorar contudo os Arestos identificados na anotação transcrita, bem como o seguinte Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11/5/2021, Processo n.º 82020/19.9YIPRT.L1-7, relatora: Micaela Sousa, publicado em ECLI:PT:TRL:2021:82020.19.9YIPRT.L1.7.E8, com o seguinte Sumário:
«1 - O princípio do contraditório consagrado no artigo 3.º, n.º 3 do Código de Processo Civil confere à parte o direito ao conhecimento de que contra ela foi proposta uma ação e um direito à audição prévia antes de ser tomada qualquer decisão ou providência, mas também um direito a conhecer todas as condutas assumidas pela contraparte e a poder tomar posição sobre elas, ou seja, um direito de resposta.
2 – Apenas em caso de manifesta desnecessidade poderá ser dispensada a audição prévia.
3 – Será esse o caso do despacho de indeferimento liminar, pois que este apenas pode ter lugar em face de razões evidentes e indiscutíveis, em termos de razoabilidade, que determinem a manifesta improcedência do pedido ou a verificação evidente de exceções dilatórias insupríveis e de conhecimento oficioso, que tornam inútil qualquer instrução e discussão posterior.
4 – O indeferimento liminar por verificação de exceção dilatória insuprível pressupõe que esta se apresente, de modo evidente, em face dos próprios termos da petição, sem necessidade de produção de qualquer tipo de prova, ou seja, há-de tal exceção ser absolutamente indiscutível, não suscitar qualquer dúvida e dispensar, por manifesta desnecessidade, a audição da parte, diligência que, a ter lugar, não teria utilidade.
5 – Porque o despacho de indeferimento liminar é, pelos seus fundamentos, excecional, não deve ser proferido quando esteja em causa uma exceção dilatória de conhecimento oficioso cujos pressupostos não emanam, de forma evidente, da petição inicial, situação que pode justificar, pelo contrário, mesmo numa fase liminar, a prolação de um despacho de convite ao esclarecimento quanto à sua verificação.»
[14] Com especial relevância para o Regime Jurídico dos Procedimentos Administrativos de Dissolução e de Liquidação de Entidades Comerciais aprovado pelo Decreto-Lei n.º 76-A/2006,de 29 de Março, retificado pela Declaração de Retificação n.º 28-A/2006, publicada no n.º 102 Série I-A 1.º Suplemento, de 26 de Maio e alterado pelos Decretos-Lei n.º 8/2007, de 17 de Janeiro, n.º 318/2007 de 26 de Setembro, n.º 90/2011, de 25 de Julho e n.º 209/2012, de 19 de Setembro, este último com entrada em vigor em 1 de Outubro de 2012. 
[15] O Voto de Vencido da Exma. Juíza-Desembargadora Maria José Costa Pinto reza o seguinte:
«Não obstante reconheça o melindre da questão e a controvérsia que a envolve, não acompanho a decisão do acórdão na medida em que perfilho, e já expressei noutras decisões, a tese de que incumbia ao exequente, como facto constitutivo do direito que pretende exercer contra a ex-sócia da sociedade extinta, o ónus de alegar e provar que esta recebeu bens na partilha o que, nos termos do art.º 163.º do C. S. Comerciais, constitui condição para que a mesma responda pelo passivo social – neste sentido, além dos citados no acórdão, vide o Acórdão do STJ de 1 Out. 2019, Proc. n.º 4022/06.0TCLRS.L2.S1.)»
[16] O artigo 519.º do Código Civil, que se acha inserido na SUBSECÇÃO II intitulada «Solidariedade entre devedores» possui a seguinte redação:
Artigo 519.º
Direitos do credor
1. O credor tem o direito de exigir de qualquer dos devedores toda a prestação, ou parte dela, proporcional ou não à quota do interpelado; mas, se exigir judicialmente a um deles a totalidade ou parte da prestação, fica inibido de proceder judicialmente contra os outros pelo que ao primeiro tenha exigido, salvo se houver razão atendível, como a insolvência ou risco de insolvência do demandado, ou dificuldade, por outra causa, em obter dele a prestação.
2. Se um dos devedores tiver qualquer meio de defesa pessoal contra o credor, não fica este inibido de reclamar dos outros a prestação integral, ainda que esse meio já lhe tenha sido oposto.
[17] Cf., a este respeito, entre outros, os seguintes autores, obras e estudos:
- RAÚL VENTURA e LUÍS BRITO CORREIA, «Responsabilidade Civil dos Administradores de Sociedades Anónimas e dos Gerentes de Sociedades por Quotas», 1970, Livraria PETRONY, páginas 291 e segs.;
- J. M. COUTINHO DE ABREU e ELISABETE RAMOS, «Responsabilidade Civil de Administradores e Sócios Controladores [notas sobre o art.º 379.º do Código do Trabalho]», publicado em «MISCELÂNEAS N.º 3», Instituto de Direito do Trabalho e das Empresas [IDTE], 2004, páginas 9 a 55;
- FILIPE AVEIRO MARQUES, «Responsabilidade civil dos gerentes e administradores das sociedades comerciais por danos causados aos trabalhadores», publicado em Revista JULGAR, edição em papel, número 42, setembro/dezembro de 2020, Associação Sindical dos Juízes Portugueses, páginas 13 a 32 e link em http://julgar.pt/julgar_em_papel/julgar-n-o-42/;
- FILIPE RODRIGUES VALENTIM RAMOS, «Da Responsabilidade dos Membros dos Órgãos de Administração e dos Sócios Controladores pelos Créditos Laborais - o artigo 335.º do Código do Trabalho», Dissertação de Mestrado em Direito Empresarial, maio de 2015, Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Direito, Escola de Lisboa, 98 páginas, em https://repositorio.ucp.pt/handle/10400.14/18884.
 - JOANA VASCONCELOS, em «Código do Trabalho Anotado» [anotadores: Pedro Romano Martinez, Luís Miguel Monteiro, Joana Vasconcelos, Pedro Madeira de Brito, Guilherme Dray e Luís Gonçalves da Silva], setembro de 2017, 11.ª Edição, Almedina, páginas 774 a 784, em anotação aos artigos 334.º e 335.º do CT/2009 [cf., por exemplo, Nota X ao artigo 335.º].  
[18] Em ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA, obra citada, página 699, Notas 4 e 5.
Decisão Texto Integral: