Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
581/16.7YRLSB-1
Relator: RIJO FERREIRA
Descritores: TRIBUNAL ARBITRAL
ADVOGADO
RECUSA DE ÁRBITRO
INDEPENDÊNCIA
IMPARCIALIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/13/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I.Os tribunais arbitrais são verdadeiros e próprios tribunais, na condição de que seja respeitada a reserva de jurisdição constitucionalmente consagrada para os tribunais estaduais e se garantam as características inerentes ao conceito de tribunal: a independência, a imparcialidade e o julgamento segundo processo equitativo.
II.A LAV garante a independência e imparcialidade dos tribunais arbitrais estabelecendo a independência e imparcialidade dos árbitros, impondo-lhes o dever de revelação das circunstâncias susceptíveis de afectar essa independência e imparcialidade, atribuindo às partes a faculdade de recusar o árbitro com fundamento na falta daqueles atributos e garantindo o acesso aos tribunais estaduais para apreciar a questão.
III.Para densificação e interpretação dos conceitos legais deve recorrer-se aos instrumentos de ‘quase-direito’ disponíveis, sem esquecer que estes não são instrumentos legais e se encontram marcados por circunstancialismos particulares.
IV.Para o indicado árbitro decorre a obrigação primordial de realizar uma diligente auto-avaliação no sentido de aferir se se encontra em condições de exercer o cargo com independência, imparcialidade e de forma competente.
V.Essa avaliação deve ser levada a cabo de uma tríplice perspectiva: do ponto de vista pessoal, de um ponto de vista objectivo segundo o critério do ‘bom pai de família’ e do ponto de vista das partes.
VI.Por ‘ponto de vista das partes’ deve entender-se não a sua arbitrariedade mas a posição que uma parte, agindo segundo padrões de normalidade comportamental e segundo a experiência comum de vida, usando de normal diligência, prudência e boa-fé, colocada nas e com conhecimento das concretas circunstâncias do caso, tomaria.
VII.Sobre o indicado árbitro impende o dever de revelação de todas as circunstâncias que do ponto de vista das partes sejam susceptíveis de afectar a sua independência e imparcialidade.
VIII.Susceptíveis de poder afectar a independência e a imparcialidade do árbitro são circunstâncias relativas às relações profissionais ou pessoais do árbitro com as partes e os seus representantes ou mandatários, interesses económicos ou financeiros do árbitro no objecto do litígio ou o conhecimento prévio pelo árbitro do objecto de litígio
IX.Tal revelação não constitui, só por si, qualquer fundamento de recusa, visando antes habilitar as partes a, caso assim o entendam e pelos seus próprios meios, desenvolver a averiguação; a qual, se pode solicitar a colaboração do árbitro, não habilita a uma reiterada e exaustiva inquirição do mesmo.
X.A omissão do dever de revelação regra geral também não constitui só por si fundamento de recusa, mas em certas circunstâncias pode vir a constituir fundamento para a recusa.
XI.Só as dúvidas fundadas sobre a independência ou imparcialidade do árbitro segundo o critério objectivo do ‘bom pai de família’ podem constituir fundamento da recusa do árbitro.
XII.É sobre a parte que invoca a recusa de árbitro que recai o relativamente pesado e exigente ónus da prova da verificação dos respectivos fundamentos.
XIII.A necessidade de insistência na manutenção do árbitro prevista no art.º 14º, nº 2, da LAV não se aplica ao árbitro presidente.
XIV.O árbitro não está impedido de ser sócio de uma sociedade de advogados nem de nela instalar o tribunal arbitral.
XV.A nomeação para numerosas arbitragens por si só não constitui fundamento de recusa do árbitro a não ser que em função dessa multiplicidade de nomeações ocorra uma transmutação genética do árbitro em juiz.
XVI.A multiplicidade de nomeações por si só não cria dependência económica.
XVII.A resposta à invocação da recusa por interpelação directa dos mandatários da parte que invocou a recusa não constitui antagonismo para com os mesmos susceptível de afectar a independência e imparcialidade do árbitro.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juizes, no Tribunal da Relação de Lisboa.


I-Relatório:


A Autora veio, na pendência de acção arbitral no âmbito da Lei 62/2011 em que é demandada pela Ré, que lhe imputa violação de direitos de propriedade industrial ao pretender introduzir no mercado medicamento genérico contendo a substância valganciclovir, requerer ao tribunal estadual a recusa do árbitro presidente quer porque, por um lado, tal recusa se deve ter por automática face à não oposição da Ré à recusa deduzida na acção arbitral quer porque, por outro lado, tem fundadas dúvidas quanto à independência e imparcialidade que emanam do facto de o referido árbitro presidente não ter cumprido adequadamente o seu dever de revelação, ser sócio de sociedade de advogados que presta serviços a empresas farmacêuticas titulares de patentes de medicamentos com interesses opostos aos da Autora, sendo nas suas instalações que se encontra o tribunal arbitral, ter vindo a ser massivamente nomeado para arbitragens congéneres, havendo o risco de dependência económica, e demonstrar antagonismo relativamente aos mandatários da Autora.

Quer o árbitro recusando quer a Ré responderam no sentido da improcedência do pedido.

A Autora veio pronunciar-se sobre tais requerimentos a título de pronúncia sobre factos novos trazidos pelos mesmos. E, ainda, invocar ter já o Tribunal da Relação anulado um acórdão de tribunal arbitral presidido pelo árbitro recusando por considerar violado o dever de imparcialidade.

A Ré veio arguir a inadmissibilidade de réplica, pugnando pela não admissibilidade de tais requerimentos.

II–Da admissibilidade da Réplica.

Na acção de recusa de árbitro, conforme resulta do art.º 60º LAV, prevê-se apenas a existência de requerimento inicial e resposta; mas a mesma disposição legal deixa campo aberto ao juiz para fazer as indagações que considere necessárias.
Por outro lado, ainda, não pode deixar de se ter presente o princípio geral do contraditório que impõe se garanta a possibilidade de resposta às excepções deduzidas no último articulado (art.º 3º do CPC).
E haverá ainda de atentar às peculiaridades do caso concreto, em particular à estrutura argumentativa da causa (que começa na alegação de falta de informação relevante e imputações genéricas que só se densificam em fundamento da escusa mediante a resposta).
Numa apreciação global entende-se que a questão deve ser resolvida, no respeito pelo processo equitativo, no sentido da admissibilidade de contraditório (em toda a sua extensão, ou seja, quer naquilo a que em concreto se obtempera mas também naquilo que por não contraditado se admite), e consequentemente de resposta ao que foi dito pela outra parte e pelo árbitro recusando, na medida em que esta trás aos autos novas ou mais especificadas circunstâncias.

III–Fundamentos de Facto.

Do conteúdo dos autos (documentos e declarações dos intervenientes) extrai-se a seguinte factualidade relevante:

1.Na sequência da entrada em vigor da Lei 62/2011, que veio estabelecer a arbitragem necessária para composição de litígios emergentes de direitos de propriedade industrial quando estejam em causa medicamentos de referência e medicamentos genéricos, têm vindo a ser instauradas acções arbitrais[1], cujo número excede já as cinco centenas.
2.Por carta datada de 12MAI2015 a Ré comunicou à Autora pretender dar início a uma acção arbitral ao abrigo da Lei 62/2011 relativamente ao medicamento genérico contendo a substância activa valganciclovir para o qual havia solicitado AIM, designando como árbitro o Dr. Manuel F...C... e solicitando a designação de árbitro pela Autora.
3.Não tendo a Autora procedido à nomeação de árbitro foi nomeado como árbitro pelo Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa o Dr. Manuel D...C...C....
4.Por mail de 05JAN2016, enviado por JoãoT..., advogado da S... & Associados Sociedade de Advogados, foi comunicado às partes terem os árbitros nomeados convidado o Prof. Rui M... para presidir ao tribunal arbitral e remeteu-se-lhes as declarações de independência e imparcialidade apresentadas pelos árbitros bem como os projectos de acta de instalação do tribunal e das regras processuais.

5.Na sua declaração de independência e Imparcialidade o Prof. Rui M... entendeu por bem dar a conhecer os seguintes factos:
a)Tenho participado num conjunto vasto de tribunais arbitrais constituídos ao abrigo da Lei nº 62/2011, de 12 de dezembro.
b)A minha participação tem sido sempre como árbitro-presidente.
c)A minha escolha
d)a como árbitro presidente tem resultado sempre da escolha de comum acordo feita pelos árbitros indicados pela(s) diferentes Demandante(s) e Demandada(s) em cada processo ou, quando a(s) Demandada(s) não indica(m) árbitro, pelo árbitro nomeado pelo Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa.
e)A esmagadora maioria das decisões arbitrais proferidas no âmbito de processos em que tenho participado como árbitro-presidente foram decisões adoptadas por unanimidade.
f)Todas as decisões arbitrais foram, para os devidos efeitos, notificadas ao INFARMED, I.P., e ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial, I.P..
g)As arbitragens têm envolvido, não apenas empresas muito diversas, representadas por diferentes sociedade de advogados, mas também colégios arbitrais muito variados.
h)Concretamente, empresas do grupo HOFFMANN já foram partes em processos arbitrais a que presidi.

6.O árbitro nomeado pela Ré consultou esta acerca da escolha do árbitro-presidente.
7.A Autora requereu a recusa do árbitro nomeado pela Ré e do árbitro-presidente, afirmando, quanto a este último, a insuficiência das informações prestadas, porque indeterminadas, o que constituiria por si só violação do dever de revelação susceptível de levantar dúvidas sobre a sua independência e imparcialidade. Mais adiantou que, em face da ambiguidade das informações prestadas, se lhe afigurava que o Prof. Rui M... teria sido nomeado como árbitro, nos últimos três anos, em mais de três processos envolvendo a Ré e de forma massiva em arbitragens de medicamentos. E ainda que sendo o Prof. Rui M... sócio da sociedade de advogados S... & Associados que se anuncia como prestadora de serviços à indústria farmacêutica de medicamentos de referência, se verificava conflito de interesse e dependência económica.

8.E pediu que o Prof. Rui M... prestasse os seguintes esclarecimentos:
a)Qual o número exacto e actualizado de arbitragens para o qual foi nomeado na qualidade de árbitro-presidente ao abrigo da Lei 62/2011, de 12 de Dezembro?
b)Onde foi sediado o secretariado em todas as arbitragens em que participou e quanto foi cobrado pelos serviços de secretariado prestados na generalidade dessas arbitragens?
c)Quais são as demandantes nessas arbitragens?
d)Em quantas dessas arbitragens foi nomeado por intermédio de árbitros nomeados por empresas do grupo Hoffmann?
e)Mais concretamente, em quantas dessas arbitragens foi nomeado por intermédio do Exmo. Senhor Dr. Manuel F...C...?
f)Quais as substâncias a que dizem respeito essas arbitragens?
g)Qual o seu sentido de voto em cada uma dessas arbitragens quanto ao pedido principal (a condenação das Demandadas a não lançar os seus medicamentos genéricos)?
h)Alguma vez foi questionada a sua imparcialidade no âmbito desses processos? Qual a decisão final proferida pelos tribunais a esse respeito?
i)A quanto ascende o montante total auferido com essas arbitragens?
j)Se algum dos seus colegas de escritório também foi nomeado árbitro pelas Demandantes em processos iniciados ao abrigo da Lei nº 62/2011?

9.Face ao pedido de recusa formulado pela Autora o árbitro Dr. Manuel F...C... renunciou à função de árbitro.

10.O Prof. Rui M... veio reiterar a sua independência e imparcialidade e prestar as seguintes informações complementares:
a)Ter iniciado em 2012 a sua participação em arbitragens no âmbito da Lei 62/2011, integrando 37 tribunais arbitrais, sempre como árbitro-presidente;
b)Nessas designações, que foram sempre efectuadas por acordo dos restantes árbitros, intervieram múltiplos árbitros, identificando 23 de entre juristas e professores universitários;
c)Dessas 37 arbitragens, oito envolveram empresas do grupo da Hoffmann, tendo o Dr. Manuel F...C... participado em sete, apenas duas dessas acções envolvendo medicamentos genéricos contendo a substância activa valganciclovir;
d)A sociedade de advogados S... & Associados, onde é um dos 14 sócios, não prestou ou presta quaisquer serviços ao grupo Hoffmann;
e)Enquanto árbitro nunca teve qualquer intervenção em arbitragens que envolvessem entidades assessoradas pela S... & Associados;
f)Os proventos que aufere enquanto árbitro representam 15% da sua facturação para a S... & Associados.

11.Em face da recusa do árbitro Dr. Manuel F...C... a Ré nomeou como árbitro a Dr.ª Mafalda V...P..., que aceitou o encargo.
12.Em 29FEV2015 foi instalado o tribunal arbitral, o qual ficou sediado “no escritório da sociedade S... & Associados, Sociedade de Advogados RL” tendo sido designado como secretário do mesmo a Dr.ª Francisca M...C..., advogada daquela sociedade, e estabelecendo-se nas regras processuais que os actos do Tribunal Arbitral seriam notificados aos mandatários das partes através de correio electrónico com aviso de recepção enviados para os respectivos endereços electrónicos, considerando-se, para todos os efeitos, as notificações efectuadas no dia seguinte ao do envio por correio electrónico, ou no primeiro dia útil seguinte se aquele o não for.
13.Nessa mesma data foi proferida decisão julgando improcedente a recusa do árbitro-presidente.
14.Tal decisão foi notificada à Autora por carta registada com aviso de recepção a qual foi recepcionada em 10MAR2016.
15.Em 04ABR2016 foi registada neste tribunal a entrada da petição inicial da presente acção, que houvera sido enviada por correio registado em 30MAR2016.

16.O árbitro recusando veio, na sua resposta, adicionar as seguintes informações:
a)Nos 37 colégios arbitrais em que participou apenas foram proferidas dez decisões de fundo, sendo que vinte processos terminaram por acordo das partes ou inutilidade superveniente, estando pendentes sete;
b)Nas arbitragens em que era parte a Ré, apenas em quatro delas houve lugar a decisão de fundo;
c)Em arbitragem que opôs a Ré a uma outra empresa farmacêutica, relativa á substância Bosentano foi requerida (na sequência de despacho que não acolheu a pretensão de uma das partes e cujo sentido veio a ser confirmado pelo Tribunal Constitucional)a sua recusa, a qual foi indeferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa;
d)Em duas outras arbitragens em que as demandadas eram representadas pelos mesmos advogados que a ora Autora foi igualmente por estas requerida a sua recusa, tendo de imediato renunciado ao encargo;
e)A S... & Associados já não assessora empresas farmacêuticas em procedimentos de AIM ou de comparticipação de medicamentos, constituindo a sua participação, nessa área, exclusivamente na intervenção de alguns dos seus advogados na qualidade de árbitros.
17.Por mail de 22ABR2016, enviado por João T..., advogado da S... & Associados Sociedade de Advogados, foi comunicado às partes o envio da petição inicial para a morada da demandada e o link para acesso electrónico aos documentos que a acompanham.
18.Na sua página electrónica, nos separadores ‘Áreas e Sectores’ / ‘Saúde e Indústria Farmacêutica’[2], a S... & Associados anuncia-se da seguinte forma: “A S... dispõe de reconhecida experiência no aconselhamento regulatório de empresas e associações de empresas que atuam na área da saúde, incluindo hospitais com contratos de gestão com o Estado e entidades privadas convencionadas. Merece igualmente especial destaque o apoio à indústria farmacêutica inovadora ou às suas entidades representativas, designadamente face ao INFARMED, I.P., no domínio dos medicamentos (de uso humano ou veterinário), dos dispositivos médicos e dos produtos cosméticos e de higiene corporal - incluindo processos de autorização, nacionais ou europeus, comparticipação, importação paralela ou publicidade. Da mesma forma, a S... tem estado envolvida frequentemente em litígios emergentes de pedidos de autorização de medicamentos genéricos no mercado”.
19.As empresas de medicamentos genéricos, na sua grande maioria representadas pela sociedade de advogados que representa a Autora, têm vindo reiteradamente a levantar incidentes de recusa a árbitros sempre que um determinado árbitro é designado por uma ou mais demandantes mais de tês ou quatro vezes ou seja colega de escritório de um outro árbitro que se encontre naquelas circunstâncias.

IV–Da Tempestividade da Acção.

Segundo o art.º 14º, nº 3, da LAV a acção para apreciação do pedido de recusa de árbitro deve ser intentada no prazo de 15 dias após ter sido comunicada a decisão do tribunal arbitral que rejeitou a recusa.
Trata-se de prazo de caducidade de conhecimento oficioso.
A decisão do tribunal arbitral que rejeitou a recusa foi comunicada à Autora em 10MAR2016, data em que foi assinado o correspondente aviso de recepção[3].
O prazo de 15 dias para intentar a acção, que não se suspendeu durante as férias judiciais da Páscoa dada a natureza urgente do processo (art.º 60º, nº 4, da LAV) terminou em 25MAR2006. Por ser feriado nacional (6ª feira santa) os tribunais encontravam-se encerrados nesse dia transferindo-se o termo daquele prazo para o primeiro dia útil imediato (art.º 138º, nº 2, CPC), ou seja, 28MAR2016. Podendo, ainda, o acto ser praticado, embora sujeito ao pagamento de multa, nos três dias úteis seguintes (art.º 139º, nº 5, CPC); ou seja, até 31MAR2016.
Não sendo aplicável na Relação a apresentação de actos processuais por transmissão electrónica de dados, vale como data da prática do acto a data da efectivação do respectivo registo postal (art.º 144º, nº 7, al. b), do CPC).
A petição inicial foi remetida por correio registado em 30MAR2016, mostrando-se paga a multa devida.
A propositura da acção é, assim, tempestiva.

V–Fundamentos de Direito.

1.Pode actualmente considerar-se ser consensual o entendimento de que os tribunais arbitrais são verdadeiros e próprios tribunais, constituindo uma categoria autónoma destes (art.º 209º da Constituição da República), sendo meio de concretização do direito fundamental de acesso à justiça (art.º 20º da Constituição da República), não como consequência de uma renúncia – ainda que necessária - à tutela judicial mas antes como meio alternativo de o obter, desde que seja respeitada a reserva de jurisdição constitucionalmente consagrada (há domínios que estão reservados à jurisdição dos tribunais estaduais) e se garantam as características inerentes ao conceito de tribunal: a independência, a imparcialidade e o julgamento segundo processo equitativo[4].
2.A independência e a imparcialidade do juiz/tribunal encontram-se interrelacionadas (tal como as duas faces de Jano ou as duas faces da mesma moeda) de tal modo que comummente essas duas características são tratadas em conjunto[5].
3.A independência consiste na situação de o tribunal/juiz se encontrar exclusivamente sujeito à lei (ou equidade), sendo insusceptível de subordinação a ordens ou instruções (externas ou internas à ordem judicial), sendo que a eficácia da decisão proferida não fica sujeita a acto exterior ao tribunal nem essa mesma decisão pode ser impedida, modificada ou anulada por acto externo à ordem judicial; e no estabelecimento de um regime legal que não permita que se possam exercer ou exerçam pressões sobre o juiz, quer do exterior da ordem judiciária, quer do interior dessa mesma ordem quer das próprias partes.
4.Por seu turno a imparcialidade deriva do facto de o juiz compor interesses alheios, sendo o seu único interesse o de buscar uma solução correcta, e consiste na ausência de predeterminação ou preconceito[6].
5.Na aferição da independência e da imparcialidade a aparência pode também desempenhar um papel importante na medida em que tais atributos se devem considerar comprometidos quando as concretas circunstâncias envolventes sejam de modo a, segundo o ponto de vista de um observador objectivo, criar um justificado receio de falta de independência ou imparcialidade[7].
6.Não obstante, a independência e a imparcialidade do tribunal/juiz devem ter-se por presumidas até prova em contrário[8].
7.O Legislador português tratou de regular a independência e imparcialidade dos tribunais arbitrais na Lei da Arbitragem Voluntária (LAV) aprovada pela Lei 63/2011, 14DEZ, sendo o regime aí estabelecido aplicável aos tribunais arbitrais necessários (cf. art.º 1085º do CPC e, em particular quanto as tribunais arbitrais necessários em litígios emergentes de direitos de propriedade industrial em que estejam em causa medicamentos de referência e medicamentos genéricos, o art.º 3º, nº 8, da Lei 62/2011).
8.Fê-lo estabelecendo, em primeiro lugar, o dever de os árbitros serem independentes e imparciais (art.º 9º, nº 3), impondo-lhes o exercício das suas funções em conformidade. Estabelecendo, depois, um conjunto de procedimentos tendentes a garantir a efectividade daquela independência e imparcialidade: o dever de revelação das circunstâncias que sejam susceptíveis de afectar a independência e imparcialidade por parte dos árbitros (art.º 13º, nºs 1 e 2) e a possibilidade de recusa do árbitro com fundamento na fundada dúvida sobre a sua independência ou imparcialidade (art.º 13º, nº 3). E, por último, garantindo o acesso aos tribunais estaduais para aferir da independência e imparcialidade dos árbitros, quer através de decisão com tal objecto (art.º 14º, nº 3) quer (nalgumas perspectivas cujo bem ou mal fundado não cabe agora dilucidar) através da anulação da sentença arbitral com fundamento na falta de independência ou imparcialidade (art.º 46, nº 3, al. a), iv, e al. b), ii).
9.Dois aspectos merecem, por constituírem o objecto da presente causa, a nossa particular atenção: o dever de revelação e os fundamentos da recusa.
10.Os conceitos usados no texto legal na regulamentação desses dois aspectos são indeterminados, tornando necessário um intenso esforço interpretativo para a sua densificação e aplicação casuística.
11.Nesse esforço interpretativo é usual fazer apelo às práticas seguidas e aos entendimentos adoptados pelos profissionais e pelos reguladores dos sectores de actividade a que a lei respeita espelhados em diversos instrumentos utilizados no sector (declarações, recomendações, códigos de concuta, códigos de ética, boas práticas, planos de acção, etc.); ou seja ao designado “quase-direito”(‘soft law’, na língua inglesa, ‘loi mou’ou ‘loi doux’, na língua francesa, ‘direito flexível’, na expressão brasileira).
12.O “quase-direito” é uma noção relativa às fontes do direito oriunda do Direito Internacional Público e que consiste num conjunto de práticas, indicações, regras que sendo desprovidas da força vinculativa das normas legais, quer pela sua generalizada aceitação pelos intervenientes no sector envolvido, quer pelo prestígio ou qualidade da entidade emissora são tidas, não só no sector envolvido mas também na opinião pública, como altamente susceptíveis de se vir a transmutar em lei[9]; e daí a sua particular vocação para auxiliarem na interpretação, integração ou densificação dos textos e conceitos legais.
13.De qualquer forma importa nunca perder de vista que, por mais reputados ou apelativos que sejam, tais instrumentos não gozam de força vinculativa, não são instrumentos legais, sendo apenas elementos auxiliares da actividade de interpretação, integração ou densificação dos textos e conceitos legais. E, ademais, eles próprios marcados por particulares circunstancialismos, designadamente, origem geográfica ou cultural ou a defesa de interesses corporativos[10].

14.Como instrumentos de ‘quase-direito’ relevantes para o presente caso consideraremos nove documentos, três nacionais e seis internacionais, a saber:
-Código Deontológico do Árbitro do Centro de Arbitragem Comercial da Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa (2014)[11];
-Código Deontológico do Árbitro da Associação Portuguesa de Arbitragem (2014)[12];
-Código Deontológico do Árbitro do Centro de Arbitragem para a Propriedade Industrial, Nomes de Domínio, Firmas e Denominações (ARBITRARE) (2014)[13];
-The Code of Ethics for Arbitrators in Commercial Disputes da American Arbitration Association e da American Bar Association (2004)[14];
-Recomendaciones del Club Español del Arbitraje relativas a la Independencia e Imparcialidad de los Árbitros (2008)[15]
-The Chartered Institute of Arbitrators Code of Professional and Ethical Conduct for Members (2009)[16];
-Arbitration Rules do International Court of Arbitration da Câmara de Comércio Internacional (2012)[17];
-Guidelines on Conflicts of Interest in International Arbitration da International Bar Association (2014)[18];
-Arbitration Rules da China International Economic and Trade Arbitration Commission (CIETAC) (2015)[19].

15.Ao árbitro, enquanto investido de poder jurisdicional, é imposta uma particular responsabilidade social e deontológica. Nas impressivas palavras do Cânone I, al. A),  do The Code of Ethics for Arbitrators in Commercial Disputes da American Arbitration Association e da American Bar Association, “an arbitrator has a responsibility not only to the parties but also to the process of arbitration itself, and must observe high standards of conduct so that the integrity and fairness of the process will be preserved. Accordingly, an arbitrator should recognize a responsibility to the public, to the parties whose rights will be decided, and to all other participants in the proceeding”.

16.Daí decorre como primordial obrigação de quem seja apontado como árbitro a realização de uma diligente auto-avaliação, em face das concretas circunstâncias do litígio a resolver, no sentido de aferir se se encontra em condições de exercer as funções de árbitro com independência (relativamente ás partes, potenciais testemunhas e restantes árbitros) e imparcialidade, se possui os conhecimentos exigíveis a quem seja chamado a dirimir o litígio em causa e se tem capacidade para devotar tempo e atenção ao processo para que este decorra com a celeridade que as partes razoavelmente podem contar. Só no caso de uma avaliação positiva relativa a todas essas circunstâncias o proposto árbitro se encontra em condições de aceitar o encargo; em caso contrário o seu dever é de recusar a nomeação[20].
17.Essa avaliação deve ser feita numa tríplice perspectiva.
18.Desde logo na perspectiva pessoal do proposto árbitro. Ele deve considerar se se sente pessoalmente capaz, nas concretas circunstâncias do caso e segundo os seus critérios subjectivos de satisfazer as exigências do cargo.
19.Mas a convicção pessoal de satisfação das exigências do cargo, sendo essencial, não basta para que se considerem integralmente satisfeitas essas exigências. É, ainda necessário, uma avaliação objectiva das mesmas; que esse juízo positivo sobre a satisfação das exigências do cargo surja também como formulado por um ‘bom pai de família’ (‘from the point of view of a reasonable third person’) colocado nas mesmas circunstâncias. Numa formulação negativa, se os concretos factos e circunstâncias do caso de um ponto de vista de um ‘bom pai de família’ conhecedor desses mesmos factos e circunstâncias forem susceptíveis de lhe levantar fundadas dúvidas sobre a satisfação das exigências do cargo, nomeadamente quanto à independência e imparcialidade, então o proposto árbitro não deve aceitar o encargo, ainda que pessoalmente se entendesse em condições de o fazer[21] [22].
20.Para além das referidas perspectivas exige-se, ainda, ao proposto árbitro que na realização da sua diligente auto-avaliação vá mais além e que, para além da sua subjectiva perspectiva pessoal e da objectiva perspectiva do ‘bom pai de família’, tenha também em consideração a perspectiva das partes. Pede-se-lhe agora que tenha em consideração a existência de todos os factos ou circunstâncias que possam originar, na perspectiva das partes (‘in the eyes of the parties’), fundadas dúvidas quanto à sua imparcialidade e independência. Não já como causa de impedimento à aceitação do encargo, que se tem por inverificado, mas como causa de um dever de revelação[23].
21.Esse dever de revelação surge, por um lado, como um teste à imparcialidade (enquanto capacidade de atentar de forma neutra, sem predeterminação ou preconceito, mas efectiva na posição das partes e na sua apresentação do caso) do proposto árbitro e, por outro lado, como corolário da transparência inerente ao processo equitativo com o propósito de “to allow the parties to judge whether they agree with the evaluation of the arbitrator and, if thay so wish, to explore the situation further”[24].

22.O incumprimento do dever de revelação e os factos e as circunstâncias reveladas não constituem em si qualquer fundamento de desqualificação do árbitro; eles apenas podem constituir indícios, a serem explorados e desenvolvidos pelas partes, dos fundamentos de recusa. Isso mesmo resulta explicitamente afirmado na al. (c) da Explanation to General Standard 3 das Guidelines on Conflicts of Interest in International Arbitration da International Bar Association onde se pode ler: “It is hoped that the promulgation of this General Standard will eliminate the misconception that disclosure itself implies doubts sufficient to disqualify the arbitrator, or even creates a presumption in favour of disqualification. Instead, any challenge should only be successful if an objective test, as set forth in General Standard 2 above, is met. Under Comment 5 of the Practical Application of the General Standards, a failure to disclose certain facts and circumstances that may, in the eyes of the parties, give rise to doubts as to the arbitrator’s impartiality or independence, does not necessarily mean that a conflict of interest exists, or that a disqualification should ensue”.

23.O dever de revelação implica a consideração, na perspectiva das partes (‘in the eyes of the parties’), de todos os factos e circunstâncias que possam originar dúvidas fundadas quanto à independência e imparcialidade.
24.Importa, porém, densificar os sublinhados conceitos.

25.O conceito de ‘perspectiva das partes’ não significa arbitrariedade das partes; que fique na inteira disponibilidade das partes definir os factos e circunstâncias elegíveis e o seu grau de relevância na mais absoluta subjectividade e arbitrariedade (até porque não é exigível a ninguém, nomeadamente ao proposto árbitro, o exercício de se ‘meter na cabeça’ das partes e com elas se identificar tão profundamente). Como qualquer conceito operativo ele deve situar-se dentro de limites de razoabilidade[25].
26.A ‘perspectiva das partes’ significa que devemos considerar a posição que uma parte, agindo segundo padrões de normalidade comportamental e segundo a experiência comum de vida, usando de normal diligência, prudência e boa-fé, colocada nas e com conhecimento das concretas circunstâncias do caso, tomaria.
27.Trata-se de um conceito similar aos conceitos de ‘perito na especialidade’ usado no direito das patentes, de ‘público relevante’ utilizado no direito das marcas e de ‘declaratário normal’ utilizado na interpretação das declarações negociais.

28.A menção a todos os factos e circunstâncias deve ser entendida como uma referência à necessidade de diligência na identificação e selecção dos factos e circunstâncias que devem ser considerados. Essa análise deve ser rigorosa, exaustiva e completa, com a presunção de relevância em caso de dúvida[26].

29.Mais complexo se mostra definir os factos e circunstâncias que possam originar dúvidas fundadas.
30. Desde logo haverá de notar a referência a ‘dúvidas fundadas’.
31.‘Dúvida fundada’ é aquela que se apresenta com uma forte probabilidade de se tornar em certeza; de se vir a demonstrar a suspeita nela contida. E isso porque diz respeito a aspectos fundamentais da independência e imparcialidade e se baseia em factos sérios.
32.Também aqui há que fazer apelo aos limites da razoabilidade já acima invocados; e mesmo ter em atenção que “in some situations, an objective test should prevail over the purely subjective test of ‘the eyes’ of the parties”[27].
33.Sendo nesse sentido indicadas em alguns dos referidos instrumentos de ‘quase-direito’ diversas situações “where no appearence and no actual conflict of interest exists from an objective point of view” e, por conseguinte excluídas, do dever de revelação[28].
34.Susceptíveis de poder afectar a independência e a imparcialidade dos árbitros são circunstâncias relativas às relações profissionais ou pessoais dos árbitros com as partes e os seus representantes ou mandatários, interesses económicos ou financeiros do árbitro no objecto do litígio ou o conhecimento prévio pelo árbitro do objecto de litígio[29].

35.Relativamente ao direito de recusa do árbitro desde logo importa realçar que se trata de um direito potestativo das partes; a parte interessada pode usá-lo ou não, desencadeando o respectivo procedimento ou deixando o assunto cair no esquecimento.
36.Na falta de regulação por acordo das partes quanto ao processo de recusa de árbitro, esse direito está, no entanto, sujeito a caducidade uma vez que o procedimento de recusa de árbitro deve ser iniciado nos 15 dias subsequentes ao conhecimento das circunstâncias que fundamentam a recusa ou nos 15 dias subsequentes à comunicação da decisão que rejeita a recusa (art.º 14º, nºs 2 e 3 da LAV).
37.Os fundamentos de recusa são a existência de fundadas dúvidas sobre a independência e a imparcialidade do árbitro ou a falta por parte deste das qualificações convencionadas pelas partes (art.º 13º, nº 3, da LAV).
38.Enquanto o primeiro fundamento se basta com a fundada dúvida sobre a existência de independência ou imparcialidade o segundo necessita de efectiva falta (e não já mera fundada dúvida) de qualificação.
39.A falta de qualificação, dado ser de verificação tendencialmente objectiva, não suscita dificuldades nem particulares observações[30].
40.A dúvida sobre a independência e imparcialidade do árbitro tem de ser fundada, valendo aqui o que acima já se referiu a esse propósito; e o critério de aferição já não é o de ‘aos olhos da parte’, mas antes o critério objectivo do ‘bom pai de família’[31].
41.Por último, porque é à parte que compete expor os motivos da recusa (art.º 14º, nº 2, da LAV), que constituem os factos constitutivos do seu direito, é sobre ela que impende o ónus da prova.

42.Ao analisar as questões relativas ao dever de revelação e da recusa de árbitro haverá, ainda, de ter em conta o contexto em que foram desenvolvidos os instrumentos de ‘quase-direito’ aplicáveis e em que o concreto conflito se desenvolve.
43.Com efeito, as Guidelines da IBA expressamente referem que foram desenvolvidas perante a constatação de uma “increased complexity in the analyses of disclosure and conflict of interest issues” e de que “parties have more opportunities to use challenges of arbitrators to delay arbitrations, or to deny the opposing party the arbitrator of its choice”, tendo em vista “to promote greater consistency and to avoid unnecessary challenges and arbitrator withdrawals and removals” e alcançar uma justa composição da “tension between, on the one hand, the parties’ right to disclosure of circumstances that may call into question an abitrator´s impartiality or independence in order to protect the parties’ right to a fair hearing, and, on the other hand, the need to avoid unnecessary challenges against arbitrators in order to protect the parties’ ability to select arbitrators of their choosing”[32].

44.Por seu turno as Recomendaciones del Club Español del Arbitraje relativas a la Independencia e Imparcialidad de los Árbitros deixam a a seguinte advertência: “La total transparência genera también el riesgo del abuso. Una parte que quiera torpedear el arbitraje puede utilizar la información facilitada para justificar una recusasión improcedente. Por esta razón, los órganos que deben decidir sobre la recusación (árbitros, cortes de arbitraje y, en última instancia, los jueces) deben cerrar el passo a estas tácticas: no toda circunstancia revelada constituye causa válida de recusación, sino que pesa sobre el recusante la carga de probar que, valorando en conjunto todos los aspectos del caso, existe una circunstancia que efectivamente afecta la independencia o imparcialidade del árbito[33].

45.Por outro lado, ainda, haverá de ter em consideração que as Guidelines da IBA foram estabelecidas para a arbitragem internacional e, por conseguinte, haverá lugar a adaptações das mesmas quando se aplicam a arbitragens nacionais/domésticas/internas. Há necessidade de questionar se as razões de ser do estabelecido nas Guidelines se mantêm ou não no caso de arbitragens nacionais/domésticas/internas[34].
46.Com efeito, a arbitragem internacional refere-se a litígios entre pessoas pertencentes a distintos espaços soberanos, onde as partes e os árbitros ficam entregues a si próprios por inexistir uma autoridade supra partes, onde estão envolvidas, as mais das vezes, diversas entidades, ligadas por plúrimos, diversificados e complexos instrumentos contratuais, e interesses económicos de muito elevado montante. Pressupõe, por isso, o mais alto grau de profissionalismo dos árbitros intervenientes, o que leva a um acréscimo de rigor no que diz respeito às exigências e garantias de independência e imparcialidade.
47.Necessidades essas que se não mostram tão acuradas e
pertinentes relativamente às arbitragens nacionais / domésticas / internas).

48.Feito este enquadramento global, atentemos agora nos concretos fundamentos da recusa; a saber:
-tal recusa se deve ter por automática face à não oposição da Ré à recusa deduzida na acção arbitral;
-o árbitro recusando não ter cumprido adequadamente o seu dever de revelação;
-o árbitro recusando ser sócio de sociedade de advogados que presta serviços a empresas farmacêuticas titulares de patentes de medicamentos com interesses opostos aos da Autora;
-ser nela que se encontra instalado o tribunal arbitral;
-o árbitro recusando ter vindo a ser massivamente nomeado para arbitragens congéneres;
-haver o risco de, em face da circunstância anterior, de o árbitro recusando se encontrar numa situação de dependência económica;
-o árbitro recusando demonstrar antagonismo relativamente aos mandatários da Autora.

49.Segundo o disposto na parte final do nº 2 do art.º 14º da LAV, e não existindo procedimento convencionado, tendo uma das partes invocado a recusa de um árbitro este pode[35] renunciar à função que lhe foi confiada. Não o fazendo, é passada a apreciação da questão para a parte que o nomeou: esta pode, reconhecendo ou condescendendo com os fundamentos da recusa, aceitar a recusa do árbitro, devendo proceder à indicação de um outro; ou, pelo contrário, refutando a existência de fundamento para a recusa, manter a designação efectuada. Nas duas primeiras hipótese – renúncia e aceitação da recusa – a questão fica logo e definitivamente resolvida; na última hipótese – manutenção da designação – a resolução da questão passa para o próprio tribunal arbitral (e, eventualmente, para o tribunal estadual – art.º 14º, nº 3, da LACV).
50.Da expressão literal da norma legal em causa – “se a parte que o designou insistir em mantê-lo” – resulta, no entanto uma particularidade: a parte que designou o árbitro alvo de recusa tem de insistir na nomeação, e porque essa atitude de insistência é por natureza uma atitude pró-activa, ela tem de ser expressa; a falta de insistência na nomeação equivale a uma aceitação, ainda que tácita, da invocação de recusa. Para que a invocação de recusa não produza efeitos e a sua apreciação passe para a jurisdição do tribunal arbitral é necessário que o árbitro não tenha recusado e, cumulativamente, a parte não tenha insistido em mantê-lo. Caso contrário a recusa torna-se eficaz.
51.É essa situação que a Autora vem invocar, uma vez que a Ré não deduziu qualquer resposta à invocação de recusa que formulou relativamente ao árbitro presidente (cf. supra III. 7,8,10 e 11).
52.Ocorre, porém, que no caso o árbitro recusando é o árbitro presidente o qual, segundo o art.º 10º, nº 3, da LAV, é escolhido, não pelas partes, mas pelos restantes árbitros.
53.E ainda que, segundo as boas práticas[36], o árbitro de parte deva consultar a parte que o nomeou sobre a escolha do árbitro presidente, o certo é que a designação compete em última instância aos árbitros de parte[37], a estes, e não às partes, sendo imputada. Não tendo as partes o poder de designar o árbitro presidente também lhes terá de ser recusado o poder de o destituir.
54.Em consequência impõem-se uma interpretação restritiva do art.º 14º, nº 2, da LAV, no sentido de que a necessidade de insistência da parte na manutenção do árbitro para que a sua recusa não se torne eficaz não se aplica no caso de a recusa ser dirigida contra o árbitro presidente.
55.Nesse caso a (re)apreciação da designação do árbitro presidente cabe aos árbitros de parte, na decisão que o tribunal arbitral sobre a matéria venha a tomar.
56.Conclui-se, pois, que a recusa deduzida contra o árbitro presidente pela Autora não se tornou eficaz pela falta de insistência da Ré na sua manutenção.
57.O eventual incumprimento (ou cumprimento defeituoso) do dever de revelação, conforme já explanado supra nos §§ 20 e 22, não constitui só por si motivo de desqualificação do árbitro.
58.Para que tal possa ocorrer é necessário que nesse incumprimento se manifestem circunstâncias donde se possam extrair indícios que permitam, objectivamente, fundar um juízo de afectação da independência e imparcialidade.
59.E nesse conspecto, só se configura que o incumprimento do dever de revelação possa constituir desde logo justificação de recusa naqueles casos extremos em que a omissão de revelação se refira a circunstância tão fundamental que, por si só, revela afectação da independência ou imparcialidade, conforme referido supra no § 21[38].
60.Por outro lado não se nos afigura que se possa sequer qualificar a conduta do árbitro recusando como de cumprimento defeituoso do seu dever de revelação. Pelo contrário, entende-se que cumpriu adequadamente o seu dever de diligência na indagação das circunstâncias no caso sujeitas a revelação e que, na sua essencialidade, expôs na sua declaração de independência (cf. supra III.5).
61.Se é verdade que na Explanation to General Standard 3 das Guidelines on Conflicts of Interest in International Arbitration da International Bar Association se associa o dever de revelação ao interesse das partes em ‘being fully informed’ não cremos que tal deva ser interpretado de forma extremamente rigorosa ao ponto de se exigir uma particular minudência e especialidade na descrição dos factos ou circunstâncias, bastando um enunciado apropriado a que as partes possam adequadamente ‘if thay so wish, to explore the situation further’ (cf. supra §§ 55-59).
62.Se a exploração do revelado pela parte interessada pode passar pelo pedido de esclarecimentos adicionais ao árbitro isso não implica, em nosso modo de ver, uma sucessão de pedidos de esclarecimento nem que estes pedidos extravasem o que é pertinente e razoável, designadamente tendo em conta que o ónus do desenvolvimento da investigação e da prova é da parte, e se transmutem numa investigação especiosa e extensa sobre toda a actividade pretérita do árbitro; que se torna desrespeitosa para com este e, consequentemente, inquinadora do processo arbitral.
63.Pelo exposto entende-se que o árbitro recusando com as declarações que prestou na sua declaração de independência e imparcialidade (cf. supra III.5) e na informação complementar (cf. supra III.10) cumpriu diligentemente a sua dever de revelação, não se revelando nesse comportamento qualquer indício de quebra de independência ou imparcialidade.

64.Um dos fundamentos invocados para a recusa é o árbitro recusando ser sócio de sociedade de advogados que presta serviços a empresas farmacêuticas titulares de patentes de medicamentos com interesses opostos aos da Autora.
65.A esse propósito apenas resulta da matéria de facto que o árbitro recusando declarou ser sócio da sociedade de advogados ‘S... & Associados’, que esta não prestou nem presta serviços ao grupo da Ré sendo que, relativamente a outras empresas de medicamentos deixou de prestar assessoria em matéria de AIM’s e fixação de preços, dedicando-se os seus advogados exclusivamente a intervir na qualidade de árbitros e que enquanto árbitro nunca teve qualquer intervenção em arbitragens que envolvessem entidades assessoradas pela S... & Associados (cf. supra III.5.10 e 16.).
66.O facto de na página electrónica não estar explícita a invocada cessação de assessoria em matéria de AIM’s não põe em causa a veracidade dessa afirmação (sendo que a demonstração da sua eventual falsidade constituiria, aliás, ónus da Autora).
67.A Autora firma-se apenas nessas declarações, daí extrapolando consequências, sem no entanto materializar qualquer facto ou indício susceptível de pôr em causa a exactidão daquelas declarações, sendo que, como já foi acima referido, é sobre ela que impende o ónus da prova dos fundamentos da recusa.
68.A propósito das relações entre os árbitros e as sociedades de advogados de que são sócios ou colaboradores as Guidelines on Conflicts of Interest in International Arbitration da International Bar Association são bem explícitas na afirmação de que se ‘the arbitrator is in principle considered to bear the identity of his or her law firm’ no entanto ‘the fact that the activities of the arbitrator’s firm involve one of the parties shall not necessarily constitute a source of such conflict, or a reason for disclosure[39].Da sua Orange List (circunstâncias susceptíveis de ser reveladas mas que não implica a existência de conflito de interesses) apenas constam que a sociedade de advogados do árbitro tenha nos três anos anteriores actuado em representação ou contra uma das partes em matéria não relacionada com a arbitragem e sem o envolvimento do árbitro e que, também sem o envolvimento do árbitro, preste serviços a uma das partes[40].
69.Não se evidenciando que o árbitro recusando tenha tido qualquer intervenção em arbitragens em que às partes tenham sido prestados serviços pela S... & Associados nem que esta sociedade tenha prestado quaisquer serviços ao grupo da Ré, nem actuado contra a Autora, nem que, tão pouco, presta assessoria em matéria de AIM’s a outras empresas farmacêuticas não se vislumbra, de acordo com as referidas Guidelines, a existência de qualquer conflito de interesses susceptível de, segundo padrões objectivos[41], afectar a independência e imparcialidade do árbitro recusando.

70.O tribunal arbitral necessita de instalações para se instalar e de um secretariado de apoio, circunstância que, aliás, implica custos a suportar pelas partes, a definir, na falta de estipulação das partes, pelo próprio tribunal.
71.Entre a opção de angariar/construir ex novo tais suportes de apoio à actividade do tribunal arbitral ou a de se servir de estruturas já existentes, designadamente as instalações e serviços de apoio da sociedade de advogados o árbitro presidente, até se afigura como economicamente mais racional o segundo termo da alternativa, sendo certo que, na esteira do que acabou de ser dito relativamente às relações entre o árbitro e a sociedade de advogados de que é sócio ou colaborador, não se vislumbra que daí possa resultar qualquer conflito de interesses susceptível de objectivamente afectar a independência imparcialidade do árbitro.
72.E a intervenção, acidental e em termos mera colaboração executiva em actos de comunicação[42], de um advogado da sociedade que não o secretário do tribunal não cria qualquer circunstância capaz de afectar objectivamente a independência e imparcialidade dos árbitros.

73.Invoca, também, a Autora que o árbitro recusando ter vindo a ser massivamente nomeado para arbitragens congéneres, sendo que tal situação – ‘repeat arbitrator’ – é geralmente tida como desqualificante.
74.Como circunstâncias factuais para a análise da questão devemos ter em mente que na sequência da entrada em vigor da Lei 62/2011 têm vindo a ser instauradas acções arbitrais, cujo número excede já as cinco centenas; desde 2012 o árbitro recusando participou em 37 arbitragens no âmbito da Lei 62/2011, em todas elas como árbitro presidente nomeado pelos restantes árbitros, sendo que em 8 delas a Ré era parte (sendo em 7 delas o árbitro nomeado pela Ré a mesma pessoa) e dessas, duas diziam respeito à substância activa ‘valganciclovir[43].
75.Tem vindo a discutir-se no âmbito da arbitragem a desqualificação dos árbitros que sejam sucessivamente nomeados pelas mesmas partes ou advogados ou para inúmeras arbitragens congéneres, na medida em que tal circunstância é susceptível de criar ou, no mínimo, gerar uma aparência de falta de independência e imparcialidade[44].
76.As Guidelines on Conflicts of Interest in International Arbitration da International Bar Association incluem na sua ‘orange list’  o facto de ter sido apontado como árbitro em duas ou mais ocasiões por uma das partes ou seu associado nos últimos três anos (ponto 3.1.3) e o facto de ser, ou ter sido nos últimos três anos, árbitro numa outra arbitragem sobre assunto semelhante (ponto 3.1.5). Mas logo abrem uma excepção para as múltiplas nomeações para os casos em que, face à especialidade da matéria, é prática corrente extrair os árbitros de um conjunto limitado ou especializado de pessoas, em que é dispensado o dever de revelação.
77.Na ponderação dessa problemática desde logo haverá de atentar que as circunstâncias elencadas na ‘orange listsão circunstâncias sujeitas ao dever de revelação porque susceptíveis de, aos olhos das partes, gerar dúvidas quanto à independência e imparcialidade dos árbitros, mas que a sua existência ou revelação não implicam só por si falta de independência ou imparcialidade ou sequer presunção dessa falta.
78.Por outro lado haverá de chamar aqui as considerações deixadas supra nos §§ 45 a 47 sobre a aplicabilidade das regras da IBA para as arbitragens internacionais às arbitragens decorrentes da Lei nº 62/2011.
79.A doutrina[45] sobre a questão dos ‘repeat arbitrators’ tem vindo a afirmar que as dúvidas levantadas quanto à independência e imparcialidade dos árbitros no caso de nomeações sucessivas só são susceptíveis de ser fundadas se implicarem outros elementos objectivos susceptíveis de beliscar aquela independência e imparcialidade para além da sucessividade das nomeações.
80.Por outro lado tem dado como não verificado o ‘senso comum’ de que nomeação sucessiva é sinónimo de falta de independência e imparcialidade afirmando que a multiplicidade de nomeações resulta da reputação dos árbitros e que estes, zelosos dessa reputação, se preocupam sobremaneira em resguardar a sua independência e imparcialidade. Daí que Rachel Bendayan termine o seu estudo concluindo :”The real question is whether there is reason to fear that an arbitrator will favour the party that named him or her if there is, for example, a possibility that he or she will be reappointed by that party in the future. Probably not. Arbitrators deserve a little more of our confidence, and a little less of our cynicism”.
81.Como ‘leading case’ sobre os ‘repeat arbitrators’ é recorrentemente apontada a decisão de 20MAI2011 proferida no caso ‘Universal Compression International Holdings, S.L.U. v. The Bolivarian Republic of Venezuela’[46] onde se considerou que ‘”a manifest lack of the required qualities must be proved by objective evidence. A simple belief that an arbitrator lacks independence or impartiality is not sufficient to disqualify an arbitrator” pelo que, “accordingly, in order to succeed, a proposal to disqualify an arbitrator must (1) establish the facts underlying the proposal, and (2) demonstrate that these facts give rise to a manifest lack of the required qualities[47]. Não bastando a simples demonstração de múltipla nomeação para alcançar a recusa do árbitro, sendo antes necessária a alegação e prova de circunstâncias objectivas que tornem manifesta, ou seja óbvia ou evidente, a falta de independência ou imparcialidade; o que implica um relativamente pesado e exigente ónus da prova por banda da parte que invoca a recusa.
82.Se as múltiplas nomeações, pelo exposto, não nos surgem como susceptíveis de fundar um juízo de desqualificação se desacompanhadas de circunstâncias objectivas que corroborem tal juízo, entendemos no entanto que existe uma situação limite - uma linha vermelha, como agora se usa dizer – que não pode ser ultrapassada e que é quando, em função da múltipla nomeação, o árbitro se descaracteriza, transmutando-se em juiz.
83.Com efeito, conforme se refere no preâmbulo do The Code of Ethics for Arbitrators in Commercial Disputes da American Arbitration Association e da American Bar Association se é verdade que os árbitros, tal como os juízes, têm o poder de decidir litígios, “however, unlike full-time judges, arbitrators are usually engaged in other occupations before, during, and after the time that they serve as arbitrators”, sendo essa uma característica genética da arbitragem.
84.Se com a múltipla nomeação o árbitro se descaracteriza enquanto tal, deixando de poder ser visto como alguém com outra ocupação antes, durante e depois da sua ocasional função jurisdicional, passando a ser árbitro a tempo inteiro (ou seja, juiz), pode ser recusado, em bom rigor não por falta de independência ou imparcialidade mas por falta da qualidade intrínseca de árbitro[48].
85.Com a Lei nº 62/2011 originou-se a necessidade de providenciar tribunais arbitrais para dirimir mais de cinco centenas de litígios relativos a patentes de medicamentos. É de mediana evidência que não abundam nos meios jurídicos e académicos do país pessoas qualificadas para exercerem as funções de árbitro em tais litígios (e em particular especialistas em propriedade industrial) pelo que não só surge como natural que as partes extraiam os árbitros de um núcleo restrito de pessoas (que são as que conhecem como qualificadas na matéria) como a própria realidade impõem, para satisfação das necessidades criadas, a múltipla nomeação para diversas arbitragens; sob pena, até, de paralisação do sistema. Aqui o limite será a referida linha vermelha, ou seja, que a multiplicidade se não transforme em exclusividade e que, consequentemente, a multiplicidade se não confine a um núcleo restrito de pessoas mas antes utilize extensivamente a diversidade, ainda que limitada, proporcionada pelo meio jurídico e académico nacional.
86.Nesse enquadramento não se vislumbra que a nomeação do árbitro recusando, de 2012 a inícios de 2016, para 37 arbitragens, seja susceptível de ser considerada como invadindo o domínio proibido da exclusividade.
87.Ou que tal facto, aliado ao de 8 dessas nomeações terem sido em processos em que eram parte empresas do grupo da Ré, ademais desacompanhados da alegação e prova de quaisquer circunstâncias objectivas nesse sentido, seja susceptível de pôr em causa a independência e imparcialidade do árbitro recusando.
88.O facto de ter sido nomeado árbitro presidente por acordo de uma multiplicidade de árbitros de parte (indicou 23) mais do que indiciar qualquer enfeudamento afigura-se-nos clara indicação de reputada e reconhecida competência, imparcialidade e independência.

89.Dessa multiplicidade de nomeações para 37 arbitragens não se vislumbra igualmente a existência de uma situação de dependência económica susceptível de afectar a independência e imparcialidade do árbitro recusando.
90.A invocação de dependência económica é feita em duas tonalidades: uma de que a multiplicidade de nomeações pelas mesmas partes colocariam o árbitro na situação de ficar economicamente dependente dessa parte para lhe continuar a assegurar nomeações e os consequentes honorários; outra, de que essa multiplicidade de nomeações lhe proporcionaria, pela multiplicação dos elevados honorários cobrados nas arbitragens, um acervo patrimonial de tal modo elevado que surge como inadequado e injustificado para a situação[49].
91.Desde já importa deixar bem claro que esta segunda perspectiva é absolutamente irrelevante para a dependência económica. A actividade de árbitro é uma actividade remunerada e o facto de com ela se auferir, ainda que elevado, rendimento é próprio do exercício de uma actividade profissional numa sociedade de economia de mercado e do aproveitamento das respectivas ‘janelas de oportunidade’. Bem como existem meios próprios para reagir a abusos na fixação de honorários (Art.º 17º, nº 3, da LAV). O sucesso económico da actividade de árbitro no sentido de participar em muitas arbitragens não o faz ficar particularmente vulnerável perante uma das partes, designadamente por ser esta que lhe assegura aquele sucesso económico. Este advém das múltiplas arbitragens e não de um único pagador.
92.Para que possa ocorrer dependência económica é essencial que uma pessoa se veja na contingência de estar sujeita ao que outra lhe esteja disposta a prestar para assegurar as suas necessidades económicas; que a satisfação dessas necessidades fique seriamente comprometida caso falhe aquela prestação. E para tal ocorrer é necessário que se encontre perante um prestador único ou em parte muito significativa das necessidades.
93.O que, manifestamente, não é o caso do árbitro recusando uma vez que não é indicado unicamente ou numa parte muito significativa por uma das partes. E, por outro lado, a sua actividade como árbitro representa apenas 15% dos rendimentos da sua actividade profissional enquanto advogado.

94.Por último é invocado como fundamento da recusa o antagonismo do árbitro recusando relativamente aos mandatários da Autora evidenciado, segundo esta, no facto de na sua resposta se referir directamente aos mandatários da Autora imputando-lhes o conteúdo dos respectivos articulados e, em sua opinião, em termos inapropriados.
95.Se é certo que as peças processuais exprimem as posições das partes e a estas são imputadas, não é menos certo que quem as escreve são os seus mandatários e dentro da autonomia técnica da sua profissão liberal. E por isso não podem deixar de admitir, na esteira de um conceito de responsabilidade anglo-saxónico que se vai impondo na sua deontologia profissional, ser confrontados com as posições que expressam, em particular quando elas pela sua acutilância (ainda que própria da lide) contende com as susceptibilidades, valores ou sentimentos da outra parte ou interveniente. Já não vigora hoje, como pretendem os advogados da Autora em exclusivo a regra latina de que os advogados estão sempre cobertos pela figura das partes suas mandantes e imunes ao diálogo ou confronto com os outros intervenientes processuais.
96.Daí que se não encontre qualquer inadequação no comportamento do árbitro recusando ao referir-se aos mandatários da Autora como autores dos requerimentos que formularam nos autos e até àquilo que vem sendo a sua estratégia processual.
97.Por outro lado a própria natureza da questão – recusa com fundamento na falta de independência e imparcialidade – impõe acutilância, acrimónia e contenda. Não se pode esperar que alguém a quem se imputa falta de independência e imparcialidade proteste por tais qualidades sem afrontar essas mesmas imputações.
98.Mas tal não é causa de susceptibilidade de afectação da independência e imparcialidade na resolução do litígio.

VI-Decisão:

Termos em que se julga improcedente o pedido de recusa do árbitro.

Custas pela Autora, aplicando-se a tabela I-C dada a especial complexidade da causa (derivada de se tratar de questão recente, com resposta ainda não consolidada, cuja apreciação implicou uma alocação dos recursos do tribunal muito superior ao que é normal para uma apelação – artigos 6º, nº 5, do RCP e 530º, nº 7, al. b) do CPC).



Lisboa, 13SET2016



(Rijo Ferreira)                                                                      
(Afonso Henrique)                                                                      
(Rui Vouga)


[1]-para além do que vem nesse sentido afirmado nos autos veja-se, também, ‘Arbitrating Intellectual Property Disputes in
Portugal: A Case Study’ (http://kluwearbitrationblog.com/2015/11/13/arbitrating-intellectual-property-disputes-in-portugal-a-case-study/).
[2] - http://www.servulo.com/pt/sectores/Saude-e-Industria-Farmacutica/5067/, consultada em 15JUL2016.
[3]-sendo irrelevante, uma vez que não foi arguida oportunamente, a irregularidade de tal comunicação ter sido feita através de carta registada com aviso de recepção e não por correio electrónico como determinado nas regras processuais definidas pelo tribunal arbitral.
[4]-cf., por todos, os acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 52/92 (05FEV1992), 311/08 (30MAI32008), 230/2013 (24ABR2013), 781/2013 (20NOV2013), 123/2015 (12FEV2015), 108/2016 (24FEV2016) e o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12JUL2011 (Proc. 170751/08.7YIPRT.L1.S1. E, ainda, Miguel Galvão Teles, A Independência e Imparcialidade dos Árbitros
como Imposição Constitucional (http://www.mlgts.pt/xms/files/Publicacoes/Artigos/2011/A_independencia_e_imparcialidade_dos_arbitros_como_imposicao_constitucional.pdf).
[5]-designadamente pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem a propósito do ‘tribunal independente e imparcial’ referido no artº 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (cf. acórdão Kleyn and Others v. The Netherlands [GC], § 192).
[6]-sobre tais conceitos cf. o citado estudo de Miguel Galvão Teles e os acórdãos do Tribunal Constitucional 71/84, 104/85 (ambos sobre o Regulamento Geral das Capitanias), 135/88 (proibição de juiz se julgar impedido ou a ele ser oposto impedimento na acção penal relativa a ofensas no exercício de funções), 443/91 (Comissão Liquidatária da Caixa Económica Faialense),52/92 (condições gerais de venda de energia eléctrica em alta tensão), 171/92 (liquidação de instituições de crédito) e 279/98 (capacidade eleitoral de magistrados em comissão de serviço).
[7]-cf. acórdãos do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Sramek v. Austria (§ 42), Sacilor-Lormines v. France (§ 63), Clarke v. United Kingdom, Morel v. France (§§ 45-50), Pescador Valero v. Spain (§ 23), Luka v. Romania (§ 40), Wettstein v. Switzerland (§ 44), Pabla Ky v. Finland (§ 30), Micalleff v. Malta [GC] (§ 96); e, ainda, mais recentemente, Gerovska Popćevska v. The Former Yugoslav Republic of Macedonia (queixa 48783/07), Jakšovski and Trifunovski v. The Former Yugoslav Republic of Macedonia (queixas 56381/09 e 58738/09) e Dāvidsons and Savins v. Latvia (queixas 17574/07 e 25235/07).
[8]-cf. acórdãos do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem Le Compte, Van Leuven and De Meyere v. Belgium (§ 56) e Driza v. Albania (§ 75).
[9]-ou de nelas se vir a transmutar a lei, como é o caso no direito da União Europeia das ‘comunicações’ da Comissão Europeia, mormente no domínio da concorrência, em que esta indica como tenciona usar os poderes que lhe estão conferidos e como interpreta as disposições legais.
[10]-a esse propósito e relativamente a um dos instrumentos de ‘quase-direito’ a que iremos fazer referência vejam-se os comentários nºs 32 e 33 ao art.º 13º da LAV em António Menezes Cordeiro, ‘Tratado da Arbitragem’, 2015, pg.156.
[11]-consutável em http://www.centrodearbitragem.pt/images/pdfs/Legislacao_e_Regulamentos/Regulamento_de_Arbitragem/Codigo_Deontologico_2014.pdf.
[12]-consultável em http://arbitragem.pt/projetos/cda/2014-04-11-cda.pdf.
[13]-consultável em https://www.arbitrare.pt/sub_regulamentos.php?id=47&sbid=59.
[14]-consultável em https://www.adr.org/aaa/ShowProperty?nodeId=%2FUCM%2FADRSTG_003867&revision=latestreleased.
[15]-consultável em http://www.clubarbitraje.com/sites/default/files/recomendaciones_independencia_arbitral_esp_0.pdf.
[16]-consultável em http://www.ciarb.org/docs/default-source/ciarbdocuments/guidance-and-ethics/practice-guidelines-protocols-and-rules/code-of-professional-and-ethical-conduct-october-2009.pdf?sfvrsn=2.
[17]-consultável em http://www.iccwbo.org/products-and-services/arbitration-and-adr/arbitration/icc-rules-of-arbitration/.
[18]-consultável em http://www.ibanet.org/Publications/publications_IBA_guides_and_free_materials.aspx.
[19]-consultável em http://cn.cietac.org/rules/rule_E.pdf.
[20]-cf. art.º 2º do Código Deontológico do Árbitro do Centro de Arbitragem Comercial da Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa, art.º 2º do Código Deontológico do Árbitro da Associação Portuguesa de Arbitragem, art.º 2º do Código Deontológico do Árbitro do ARBITRARE, cânone I, al. B) do The Code of Ethics for Arbitrators in Commercial Disputes da American Arbitration Association e da American Bar Association, ponto 8 das Recomendaciones del Club Español del Arbitraje relativas a la Independencia e Imparcialidad de los Árbitros, regras 3 e 4 da Parte 2 do The Chartered Institute of Arbitrators Code of Professional and Ethical Conduct for Members, art.º 11 das Arbitration Rules do International Court of Arbitration da Câmara de Comércio Internacional, e general standard (2) das Guidelines on Conflicts of Interest in International Arbitration da International Bar Association.
[21]-cf. general standard (2)(b) e (c) das Guidelines on Conflicts of Interest in International Arbitration da International Bar Association.
[22]-constituem, nomeada mas não exclusivamente, circunstâncias que levantam a um ‘bom pai de família’ fundadas dúvidas sobre a independência ou imparcialidade do árbitro as constantes da lista vermelha anexa às Guidelines on Conflicts of Interest in International Arbitration da International Bar Association (inelutavelmente as constantes da  lista vermelha ‘não renunciável’; susceptíveis de dissipação, se reveladas e expressamente aceites pelas partes, as constantes da lista vermelha ‘renunciável’ (cf. general standard (2) (d) e (4) (c) das Guidelines on Conflicts of Interest in International Arbitration da International Bar Association e ponto 2. da Practical Application of the General Standards dessas mesmas Guidelines).
[23]-cf. art.º 4º do Código Deontológico do Árbitro do Centro de Arbitragem Comercial da Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa, art.º 4º do Código Deontológico do Árbitro da Associação Portuguesa de Arbitragem, art.º 4º do Código Deontológico do Árbitro do ARBITRARE, cânone II do The Code of Ethics for Arbitrators in Commercial Disputes da American Arbitration Association e da American Bar Association, ponto 11 das Recomendaciones del Club Español del Arbitraje relativas a la Independencia e Imparcialidad de los Árbitros, regra 3 da Parte II do The Chartered Institute of Arbitrators Code of Professional and Ethical Conduct for Members, art.º 11 das Arbitration Rules do International Court of Arbitration da Câmara de Comércio Internacional, general standard (3) das Guidelines on Conflicts of Interest in International Arbitration da International Bar Association e art.º 31 das Arbitration Rules da China International Economic and Trade Arbitration Commission.
[24]-cf. al. (c) da Explanation to General Standard 3 das Guidelines on Conflicts of Interest in International Arbitration da International Bar Association.
[25]-“… there should be a limit to disclosure, based on reasonableness” – cf. ponto 7 da Part II: Practical Application of the General Standards das Guidelines on Conflicts of Interest in International Arbitration da International Bar Association.
[26]-cf. art.º 4º, nº 4, do Código Deontológico do Árbitro do Centro de Arbitragem Comercial da Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa, art.º 4º, nº 4, do Código Deontológico do Árbitro da Associação Portuguesa de Arbitragem, art.º 4º, nº 4, do Código Deontológico do Árbitro do ARBITRARE, cânone II, als. B. e D., do The Code of Ethics for Arbitrators in Commercial Disputes da American Arbitration Association e da American Bar Association, ponto 12 das Recomendaciones del Club Español del Arbitraje relativas a la Independencia e Imparcialidad de los Árbitros, general standard (3)(e) e (7)(d) das Guidelines on Conflicts of Interest in International Arbitration da International Bar Association.
[27]-cf. ponto 7 da Part II: Practical Application of the General Standards das Guidelines on Conflicts of Interest in International Arbitration da International Bar Association.
[28]-cf. a ‘green list’ constante da Part II: Practical Application of the General Standards das Guidelines on Conflicts of Interest in International Arbitration da International Bar Association e os Ejemplos de Circunstancias que no precisan ser reveladas constantes do ponto 14 das Recomendaciones del Club Español del Arbitraje relativas a la Independencia e Imparcialidad de los Árbitros.
[29]-cf. art.º 4º, nº 2, do Código Deontológico do Árbitro do Centro de Arbitragem Comercial da Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa, art.º 4º, nº 2, do Código Deontológico do Árbitro da Associação Portuguesa de Arbitragem, art.º 4º, nº 2, do Código Deontológico do Árbitro do ARBITRARE, cânone II, al. A., do The Code of Ethics for Arbitrators in Commercial Disputes da American Arbitration Association e da American Bar Association.
[30]-não obstante a questão não se discutir nos presentes autos, deixa-se em aberto a dúvida sobre se a falta de qualificações justificadora da renúncia se limita às qualificações acordadas pelas partes ou se, pelo contrário, se deve estender a um mínimo de qualificações objectivas (ainda que se presuma tacitamente acordado pelas partes) para o desempenho da função de árbitro.
[31]-o ‘reasonable third person test’ a que se refere a general rule (2)(b) e na al. (b) da sua Explanation das Guidelines on Conflicts of Interest in International Arbitration da International Bar Association.
[32]-cf. §§ 1., 2. e 3 da correspondente Introduction.
[33]-cf. ponto V do respectivo prâmbulo.
[34]-cf. comentários nºs 1 a 4 á introdução aos artigos 49º a 54º da LAV e comentário nº 73 ao art.º 13º da LAV em António Menezes Cordeiro, ‘Tratado da Arbitragem’, 2015, pgs.476 e 161 e Manuel Pereira Barrocas, ‘Lei de Arbitragem Comentada’, 2013, pg. 189-190, e ‘Manual de Arbitragem’, 2010, §§ 589-592, pgs. 549-551.
[35]-da própria economia do preceito legal em análise transparece que o legislador vislumbrou essa atitude como a mais adequada, pelo que nos deparamos com um ‘poder’ muito aproximado de um ‘poder-dever’.
[36]-cf. cânone III.B.(2) do The Code of Ethics for Arbitrators in Commercial Disputes da American Arbitration Association e da American Bar Association (onde se afasta da proibição de comunicações unilaterais com as partes os casos em que “in an arbitration in which the two party-appointed aibitrators are expected to appoint the third arbitrator, each party-appointed arbitrator may consult with the party who appointed the arbitrator concerning the choice of the third arbitrator”), ponto 18.2 das Recomendaciones del Club Español del Arbitraje relativas a la Independencia e Imparcialidad de los Árbitros (onde da proibição de comunicações unilaterais com as partes “se exceptúan los intercâmbios de información entre las partes e los co-árbitros que éstas hubieran designado, relativos a la selección y designación de Presidente del colegio arbitral”) e comentário nº 49 ao art.º 13º da LAV em António Menezes Cordeiro, ‘Tratado da Arbitragem’, 2015, pg.158 (onde se refere que o árbitros de parte, na escolha do árbitro presidente, serão apoiados em quem os tenha designado).
[37]-excluindo-se, por impertinente para os autos, qualquer análise sobre a eventualidade de nomeação do árbitro presidente pelo tribunal estadual, designadamente se nesse caso lhe pode ser oposta recusa.
[38]-o que terá ocorrido no caso decidido no acórdão da Relação de Lisboa  de 29SET2015 (Proc. 827/15.9YRLSB-1), em que se verificou a omissão de revelação de já ter exercido as funções de árbitro em várias arbitragens do âmbito da Lei nº 62/2011.
[39]-cf. General Standard (6).
[40]-cf. pontos 3.1.4 e 3.2.1.
[41]-cf. supra § 40 e 19.
[42]-cf. supra III.4 e 17.
[43]-cf. supra III. 1 e 10.
[44]-cf. Vanessa Giroud, “The problem of Repeat Arbitrators in Investement Arbitration” em http://kluwerarbitrationblog.com/2014/09/01/the-problem-of-repeat-arbitrators-in-investment-arbitration/, Houchih Kuo, “The Issue of Repeat Arbitrators: Is it a Problem and How Should the Arbitration Institutions Respond?” em http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=1966459, Natalia Giraldo-Carrillo, “The 'Repeat Arbitrators' Issue: A Subjective Concept” em http://www.scielo.org.co/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1692-81562011000200004, Fatima Zahra-Slaoui, “The Rising Issue of ‘Repeat Arbitrators’: A Call for Clarification”, em http://arbitration.oxfordjournals.org/content/25/1/103, Daphna Kapeliuk “The Repeat Appointment Factor: Exploring Decision Patterns of Elite Investment Arbitrators” em http://www.lawschool.cornell.edu/research/cornell-law-review/upload/Kapeliuk-final.pdf e Rachel Bendayan, “Better the arbitrator you know than the one you don't?” em http://www.nortonrosefulbright.com/knowledge/publications/53477/better-the-arbitrator-you-know-than-the-one-you-dont.
[45]-cf. os elementos indicados na nota anterior.
[46]-International Center for Settlement of Investment Disputes (ICSID) case nº ARB/10/9, consultável em https://icsid.worldbank.org/ICSID/FrontServlet?requestType=CasesRH&actionVal=showDoc&docId=DC2411_En&caseId=C1021.
[47]-cf. §§ 70 e 71 dessa decisão.
[48]-situação que, a nosso ver, se verificava no caso decidido no acórdão da Relação de Lisboa de 24MAR2015 (Proc. 1361/14.0YRLSB.L1) em que em SET2014 o mesmo árbitro havia já sido nomeado em 50 arbitragens no âmbito da Lei 62/2011, sendo em 19 delas indicado pelas mesmas demandantes.
[49]-denotando-se mesmo um sibilino, mas desapropriado, apelo a uma comparação com os magistrados judiciais, que necessitam acumular vários meses de salário para auferirem um rendimento
equivalente ao dos honorários de uma arbitragem.