Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
13670/16.9T8LRS-C.L1-6
Relator: ANA PAULA A. A. CARVALHO
Descritores: DEPOIMENTO DE PARTE
DIREITOS INDISPONÍVEIS
CONVOLAÇÃO
DECLARAÇÕES DE PARTE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/04/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I– O depoimento de parte, quando é requerido pela própria parte, numa ação versando sobre direitos indisponíveis, deve ser entendido como requerimento de declarações de parte, pois esta é livre de requerer as respectivas declarações dentro do limite temporal imposto no artigo 466º nº 1 do C.P.C, desde que o requeira relativamente a factos em que tenha intervindo pessoalmente ou de que tenha conhecimento directo.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 6ª Seção do Tribunal da Relação de Lisboa:


RELATÓRIO


Na ação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, instaurada por A  [ Joana ….]  contra B , o tribunal, por despacho proferido em 06.07.2018, admitiu a contestação, indeferindo o requerido depoimento de parte, por força do disposto no artigo 354º al. b) do Código Civil.
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Não se conformando, o réu interpôs recurso de apelação, em separado, pedindo a revogação do despacho recorrido e a sua substituição por decisão que defira o requerido.

O apelante formula as seguintes conclusões das alegações de recurso:
«A) Instrumento jurídico, da descoberta da verdade material, a Lei Processual Civil, concita a consideração, pelo Tribunal a quo da plenitude de todos os meios de prova, (arts. 411.º, par. único, 417.º, n.º 1, do CPC), arrimando a produção da prova, mesmo que desfavorável à parte que a invoque, à realidade dos factos (art. 413.º, par. único, do CPC, conjugado com o art. 341.º, par. único, do CC), tendo que se sujeitar ao pedido temporão de depoimento de parte, (arts. 466.º, n.º 1, e n.º 2, em conjugação com o art. 452.º, n.º 1, e ainda, o par. único do art. 411.º, par. único, do CPC).
B) Perante a liberdade inquisitiva do juiz, ainda que emirjam declarações sobre factos atinentes a direitos indisponíveis, como é o caso do divórcio, decerto ineficazes para produzir confissão, (art. 354.º, par. único, al. b), do CC), tal não obsta a que, o exercício prático da confissão judicial provocada, (art. 356.º, n.º 2, do CPC), rectius depoimento de parte, na sua imediação, cumpra, mormente como base da construção de presunções judiciais, parte essencial da formação da convicção do Tribunal a quo (arts. 349.º, par. único, e 351.º, par. único, do CC, em conjugação com o art. 607.º, n.º 4, do CPC), pelo que não pode ser recusado nos termos do art. 354.º alínea b) do CPC.
2 Ac. do TRL, de 10-04-2014, Proc. N.º 2022/07.1TBCSC-B.L1-2, Relator: Ondina Carmo Alves, disponível em:
http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/a513acb99d4c9b6b80257cc2004449c1?OpenDocument

VI

Das Alterações Pretendidas
Nestes termos, por ser de direito, e estar em tempo (art. 638.º, n.º 1, segunda parte, conjugado com o art. 138.º, n.º 1, do CPC), deverá ser recebido o presente requerimento e, por via dele:
Sem prejuízo de ser imediatamente corrigido, o lapso de escrita, assinalado, supra, nos arts. 1.º, a 4.º, desta peça, para onde respeitosamente se remete, nos termos e para os efeitos do n.º 2, do art. 146.º, do CPC.
Ser o despacho recorrido revogado, e ser deferido o requerido depoimento de parte, por tal imediação, ser fundamento decisivo para a plena convicção do julgador. Fazendo-se assim a Vossa Costumada e Prudentíssima:
JUSTIÇA!»

Foram oferecidas contra-alegações pela autora, pugnando pela manutenção do despacho recorrido.

Nas contra-alegações são apresentadas as seguintes conclusões:
«I. O douto despacho a quo, na parte em que o Recorrente delimita o objecto do seu recurso, não merece censura, devendo ser mantido qua tale.
II. Porquanto, o peticionado colide com a natureza do expediente de prova em causa.
III. Com efeito, o depoimento de parte, seja pela sua inserção sistemática no diploma legislativo em apreço, bem como, pela letra da lei, que regula o mesmo, apenas se aplica a factos que sejam suscetíveis de confissão.
IV. O Capítulo III do CPC, (respeitante à Prova por confissão e por declarações das partes), faz uma separação cirúrgica entre os dois meios de prova que o integram, colocando sob a Secção I, o depoimento de parte e na Secção II, a respeitante á prova por declarações de parte.
V. Esta separação teve um propósito, o de separar o que é intrinsecamente diferente.
VI. Pelo que, ainda que por remissão seja aplicável, à prova por declarações de parte, o disposto na Secção I (n.º2 do artigo 466.º), o inverso não sucede.
VII. Assim, sendo situações estanques, não pode ora o Recorrente pretender aplicar subsidiariamente porque conveniente, o regime das declarações de parte.
VIII. Neste sentido e estando perante um direito indisponível e por tal, insusceptível de confissão, deve ser indeferido o depoimento de parte.
IX. Mais, acresce que o Recorrente, quando solicitou o depoimento de parte, não deu cumprimento ao dever de indicar concretamente quais os pontos a que pretendia depor.
X. Face ao exposto, sempre a sua pretensão teria que improceder.
XI. Pelo que, se requer a improcedência do presente recurso, confirmando o despacho recorrido.
NESTES TERMOS, negando provimento ao recurso e confirmando o Douto despacho recorrido, farão V. Exas., como sempre, INTEIRA JUSTIÇA!»
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Obtidos os vistos legais, cumpre apreciar.
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Questões a decidir:
O objeto e o âmbito do recurso são delimitados pelas conclusões das alegações, nos termos do disposto no artigo 635º nº 4 do Código de Processo Civil. Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº 3, do Código de Processo Civil). Similarmente, não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas (Abrantes Geraldes, Recursos no N.C.P.C., 2017, Almedina, pág. 109).
Importa apreciar unicamente se a decisão recorrida violou o disposto nos artigos 411º, 417º nº 1, 466º nº 1 e nº 2 do C.P.C., e ainda o artigo 341º do Cód. Civil pelos motivos invocados pelo apelante?
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FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
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O despacho recorrido, devidamente rectificado, é do seguinte teor:
«Admito a contestação junta aos autos pelo réu, indeferindo o requerido depoimento de parte do mesmo atento, desde logo, o disposto no artigo 354º alínea b) do Código Civil.»

No entender do apelante, «a Lei Processual configura, uma obrigação genérica do Juiz proceder a atividade processual à descoberta da verdade, mediante “todas as diligências necessárias” (art. 411.º, par. único, do CPC), à qual corresponde o princípio do inquisitório». «Ademais, cumpre ao Tribunal, tomar em consideração todas as provas produzidas, tenham ou não emanado da parte que devia produzi-las, ou seja, e praticamente, um facto alegado pelo autor, e que só a si aproveita, pode ser provado pela parte contrária, ou seja, a quem o facto é desfavorável, mediante a solução normativa do art. 413.º, par. único, do CPC, que visa exatamente a solução judicial mais próxima da realidade material, e da própria função da prova, afinal a demonstração da realidade dos factos, como prevê o art. 341.º, par. único, do CC».

O depoimento de parte é por natureza pessoal, conforme resulta do disposto no nº 1 do artigo 452º nº 1 do C.P.C., prevendo que o juiz pode em qualquer estado do processo determinar a comparência pessoal das partes para a prestação de depoimento, informações ou esclarecimentos sobre factos que interessem à decisão da causa, tal como pode ser requerido por alguma das partes, desde que se indiquem logo de forma discriminada os factos sobre que há de recair (nº 2 do artigo 452º). Similarmente, as partes podem requerer atualmente, por força do artigo 466º nº 1 do C.P. Civil, a prestação de declarações sobre factos em que tenham intervindo pessoalmente ou de que tenham conhecimento direto.

Na verdade, o depoimento de parte, quer a requerimento da parte contrária ou da comparte (artigo 453º nº 3), quer por iniciativa oficiosa do juiz, destina-se à obtenção da prova por confissão, podendo de acordo com o novo regime legal consagrado (artigo 466º e seg.) servir igualmente como elemento de prova relativamente a factos que sejam favoráveis à própria parte, sujeito à livre apreciação do julgador. Mas neste último caso, não se trata do depoimento de parte, mas sim das declarações de parte, que constitui um verdadeiro meio de prova – instituto de direito probatório material, portanto – não previsto no Código Civil (Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao N.C.P.C., Vol. I, pág. 364).

No caso em apreço, está em causa o depoimento de parte do réu, que foi requerido pelo mesmo na contestação. Afigura-se que o ora apelante pretendia requerer as suas próprias declarações de parte, pois conforme já se assinalou o depoimento de parte é, por regra, requerido pela parte contrária ou pela comparte, e naturalmente o réu pretendia através deste meio de prova fazer a demonstração dos factos que lhe sejam favoráveis, e não o inverso.

Consequentemente, a fundamentação do despacho recorrido é correta, pois a ação de divórcio versa sobre direitos indisponíveis, considerando que a dissolução do casamento está submetida às regras dos artigos 1773º e seguintes do C.C., com natureza imperativa, mas o tribunal não teve em linha de conta que o requerimento em causa partia da própria parte, e que esta é livre de requerer as respectivas declarações dentro do limite temporal imposto no artigo 466º nº 1 do C.P.C, na condição de o requerer relativamente a factos em que tenha intervindo pessoalmente ou de que tenha conhecimento direto.

Por força do poder-dever de gestão processual e do princípio de adequação formal, tal como é delimitado no artigo 6º nº 1 do C.P.C., incumbe ao tribunal dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação e recusando o que for impertinente ou meramente dilatório.

Na situação em apreço, o requerimento do réu deve ser entendido como requerimento de declarações de parte, a quem incumbe apresentar o rol de testemunhas e requerer outros meios de prova, juntamente com a contestação – artigo 572º alínea d) do C.P.C.

Nesta medida, deve ser revogado o despacho de indeferimento e substituído por outro, com acolhimento das pretensões do apelante.
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DECISÃO
Em face do exposto, acorda-se em julgar a apelação procedente e em revogar o despacho recorrido, substituindo-se por outro em que se convole a pretensão do réu/apelante na prestação de declarações de parte, nos termos do artigo 466º do C.P.C., convidando-se ainda o requerente, se necessário, a indicar de forma discriminada os factos sobre os quais irão incidir as pretendidas declarações.
Custas a cargo da apelada (artigo 527º, nº 1 e nº 2 do C.P.C.).



Lisboa, 04.07.2019



(Ana Paula Albarran Carvalho)
(Nuno Lopes Ribeiro)
(Gabriela Fátima Marques)