Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
477/20.8T9ALM.L1 -3
Relator: ANA PARAMÉS
Descritores: CASSAÇÃO DE CARTA
NATUREZA
PERDA DE PONTOS
DURAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/10/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: CONTRAORDENAÇÃO
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: A cassação da carta de condução por efeito da perda total de pontos, não constitui uma sanção acessória e nem sequer pode ser configurada como uma medida de segurança penal mas um efeito da sanção acessória de proibição de conduzir, determinada pela segurança rodoviária, que limita o direito do cidadão a conduzir pelo período de 2 anos.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 3ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa.
 

I.Relatório:


1.No âmbito do processo contraordenacional que sob o nº 477/20.8T9ALM, corre termos pelo Juízo Local Criminal de Almada -Juiz 3, foi determinada a cassação do título de condução nº L-1...... pertencente ao arguido ATL_______, por decisão proferida pela Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, datada de 20/11/2019.
2.Desta decisão interpôs o arguido recurso de impugnação judicial para o Tribunal Judicial – Juízo Local Criminal de Almada, ao abrigo do disposto no art.º 59.º do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro, com os fundamentos constantes do respectivo articulado, pugnando pela sua revogação.
3.Realizou-se audiência de discussão e julgamento, com produção de prova, após o que Tribunal de proferiu sentença, confirmando a decisão da autoridade administrativa nos seus precisos termos e, consequentemente, manteve a cassação do título de condução do arguido ATL_______. 

4.Inconformado com esta decisão, dela interpôs recurso o arguido para este Tribunal da Relação, com os fundamentos descritos na respectiva motivação e contidos nas seguintes “conclusões”:
« A–Impugnou judicialmente o arguido a decisão de cassação do seu título de condução, proferida pelo Presidente da ANSR (Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária), pugnando pela invalidade desta e bem assim alegando a inconstitucionalidade material das normas conjugadas previstas no n.º 2 e alínea c) n.º 4, ambas do art.º 18º do Código da Estrada, na medida em que a cassação do título de condução derivou, no caso em concreto, da prática de 2 crimes de desobediência, considerando-se que a norma que a prevê consubstancia um efeito automático das condenações, violando o n.º 4 do art.º 30º da CRP; mais invocou a inconstitucionalidade do n.º 11 do art.º 148º, por violação do material do n.º 1 do art.º 30º da CRP, porquanto este normativo, na sua redacção actual estipula apenas uma duração mínima da medida, no sentido em que prevê não poder ser concedido ao condutor, que vê a sua carta cassada, novo título de habilitação para conduzir antes de decorridos 2 anos e por último alegou ainda não se encontrar estipulado na lei um prazo prescricional quer do procedimento do instituto da cassação, quer da sua medida, previsto no art.º 148º do Código da Estrada, concluindo que tal lacuna era susceptível de violar os princípios constitucionais previstos nos artigos 30º, n.º 1, 18º, n.º2 e 2º da CRP.
B–Por sentença decidiu a MMª Juíza pela improcedência, na sua totalidade, da impugnação judicial, mantendo a decisão administrativa recorrida nos seus precisos termos.
C–Remeteu para o Acórdão do TRP citado na decisão judicial, entre outros, os fundamentos para considerar que o n.º 2 conjugado com a alínea c) do n.º 4 do art.º 148º do CE não violavam o disposto no n.º 4 do art.º 30º da CRP porquanto não estamos perante a perda de um direito civil mas tão só a aplicação de uma medida de segurança de natureza administrativa, sendo certo que no próprio Acórdão do TRP se conclui que a subtracção de pontos ao condutor habilitado com carta de condução é efeito automático da infracção cometida.
D–Mas também se afirma, nesta sentença recorrida, e no citado Acórdão Do Tribunal Constitucional, de 13/05/2020, e nalguma Jurisprudência, sobre a matéria, que a cassação não tem natureza sancionatória. Ora se não tem natureza sancionatória como pode ser simultaneamente considerada medida de segurança administrativa?
E–Aliás, firme-se desde já que não podemos concordar com o vertido no Ac., do TC n.º260/2020, estranhando até a sua posição, porquanto a sua existência se deve à defesa dos princípios Constitucionais, quando neste se afirma que a cassação da carta de condução surge, portanto, não como uma pena acessória ou medida de segurança, mas antes como uma consequência, legalmente prevista, da aplicação de penas de inibição de conduzir, pressupondo-se desde logo nesta afirmação a existência de uma automaticidade, proibida pela CRP. Não obstante, e em nosso entender, a cassação da carta de condução é uma verdadeira medida de segurança, a qual deveria ser – como o já foi – aplicada pelos Tribunais.
F–Ainda com interesse para esta questão invocamos a decisão proferida pelo Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 224/90, publicado no Diário da República n.º 182/1990, Série I de 1990-08-08, que abordou a problemática da sanção de inibição de conduzir e o seu efeito automático, concluindo pela inconstitucionalidade por violação do art.º 30º, n.º 4 da CRP, e a cujos fundamentos aderimos por se encontrar actual à luz do disposto no n.º 2 e n.º 4 alínea c) do art.º 148º Código da Estrada, e bem assim 
G–O Acórdão n.º 202/2000, do Tribunal Constitucional, que embora se debruce sobre a interdição do direito de caçar pelo período fixo de 5 anos, os seus fundamentos são transponíveis para o âmbito deste recurso, quer quanto ao efeito automático da medida de segurança, quer ao prazo.
HOu seja, e no caso concreto, a decisão de cassação fundou-se no facto de o arguido ter sido condenado em 1 crime de condução em estado de embriaguez e outro de desobediência, tendo a cada um deles sido atribuído 6 pontos, na data do trânsito em julgado das respectivas sentenças, atribuição essa automática, por via do disposto no n.º 2 do art.º 148º do CE.
IAutomática também é a consequência prevista na alínea c) do n.º 4 do art.º 148º do CE, a cassação do título de condução do arguido advém, por isso, não de qualquer conduta, mas sim da perda de pontos atribuídos pela condenação pelos crimes.
J–Cassação esta que o priva do exercício de um direito de conduzir, por ver o seu título cancelado ( art.º 130º, n.º alínea b) e n.º 5 do Código da Estrada), como consequência da condenação em crime de condução em estado de embriaguez, sendo que a proibição de conduzir veículos automóveis como consequência necessária da condenação do condutor por crime de certa natureza ou em pena de certa espécie, sempre essa proibição deverá considerar-se como um efeito da pena, como refere o Acórdão do TC n.º n.º224/90, como aliás é defendido pelo Prof. Cavaleiro de Ferreira, in Direito Penal Português, Parte Geral II, 1982, n. 0 375, II, e), cujo trecho se transcreve:
“Esta inibição [a inibição do direito de conduzir automóveis] constitui uma inabilidade ou incapacidade (privação do exercício de um direito), que pode tomar a natureza de pena (enquanto efeito da pena), ou de medida de segurança.
Será efeito de pena quando constitui uma incapacidade resultante de uma ou várias condenações penais.
Será medida de segurança quando a interdição é decretada judicialmente, autonomamente ou como acessória de uma pena, e não em consequência de condenações anteriores.”
L–Os pressupostos da cassação da carta de condução previstas no n.º 2 conjugado com a alínea c) do n.º 4 do art.º 148º do Código da Estrada derivam precisamente de condenações anteriores, embora disfarçadas sobre a atribuição de pontos, de forma absolutamente automática, sem que, como medida de segurança que é, e não é igualmente por se dizer que é administrativa que deve oferecer menos garantias do que a medida de segurança imposta pelos Tribunais, nos termos do art.º 101º do C. Penal, não pode nunca ser automática, como se decidiu no Ac. TC n.º 362/92, pelo que entendemos violam as normas citadas o n.º4 do art.º 30º da CRP, ao estipularem a aplicação obrigatória da medida da cassação da carta de condução por via da condenação transitada em julgado de dois crimes a que seja aplicada a pena de proibição de conduzir, ao qual se fazem corresponder 12 pontos, como estipulado n.º 2 do art.º148º do CE., requerendo desde já a este Venerando tribunal se pronuncie e declare a inconstitucionalidade das normas conjugadas do n.º 2 e n.º 4 alínea c) do C.E., com as legais consequências.
MA redacção vigente do n.º 11 do art.º 148º do Código da Estrada não estipula um período fixo, como aludido na sentença recorrida, proíbe outrossim o arguido de obter novo título de condução antes de decorridos dois anos, sobre a efetivação da medida de cassação! O que de todo em todo não é o mesmo do que estipular, como aconteceu na vigência do Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23/02, “pelo período de 2 anos”!
N–Não fixou, portanto, o prazo máximo de duração desta medida, o que fere directamente o disposto no art.º 30, n.º 1 da CRP que proíbe as penas ou medidas de segurança de duração indefinida. E assim será mesmo que se entenda, como entendeu a MMª Juíza, que esta norma estatui um prazo fixo de 2 anos, em se que estabelece uma medida oncreta fixa da medida de cassação a
aplicar, sem atender ao suporte axiológico normativo da culpa concreta que toda a pena tem de ter, viola o princípio da culpa, e o disposto no art.º 18º, n.º 2 e 30º, n.º 1 ambos da CRP. Inconstitucionalidade esta que requer seja declarada, com as legais consequências.
ONão se pronunciou a MMª Juiz sobre a lacuna relativa ao prazo prescricional, já que conclui somente. “Donde, está legalmente previsto o momento em que se inicia o procedimento, pelo que é evidente que não existe qualquer lacuna e improcede, também, o alegado pelo recorrente.
“., pelo que, e nesta parte, a sentença recorrida enferma da nulidade prevista no art.º379º, n.º 1 alínea c) do Código Processo Penal, e que requer desde já seja declarada comas legais consequências.
Todavia, e quanto a este aspecto cremos que o prazo prescricional a aplicar no processo autónomo de cassação da carta de condução reflecte uma verdadeira lacuna, que não pode ser resolvida com o disposto no art.º 100º, n.º 3 por remissão do art.º 101º, n.º 3, ambos do Código Penal, porquanto ao se defender, como alguma Jurisprudência o faz neste sentido, o RGCO não prevê a interdição do exercício de actividades como medida de segurança, nem o art.º 148º do Código da Estrada remete subsidiariamente para o Código Penal.
PPor outro lado, se entendermos que tal lacuna seria colmatada pelo Código Penal, então o mesmo argumento seria válido para se considerar que a medida de segurança administrativa deveria seguir os mesmos princípios da proporcionalidade e da culpa previstos no art.º 101º do C. Penal.
Caso contrário, sobre o mesmo assunto, existirá dois pesos e duas medidas, aplicando-se apenas o que convém.
QComo em direito contra-ordenacional, tal como no penal, não há lugar à integração de lacunas por via da analogia, e ainda porque não lhe é igualmente aplicável o instituto da prescrição previsto no Código da Estrada, pois estamos perante uma medida de segurança e não uma sanção acessória, conclui-se, e salvo melhor opinião, que se encontram violados os direitos e garantias do arguido, que presidem ao Direito Contra-Ordenacional, mormente o estatuído no n.º 1 do art.º 30º da CRP , e que pretende ver declarado.
S–Todavia, se assim não o entenda este douto Tribunal, a integração da lacuna relativa à prescrição da medida da cassação deve sempre atender ao princípio mais favorável ao arguido, pelo que será de aplicar o prazo prescricional do art.º 189º do C. da Estrada».

5.O Ministério Público, em primeira instância, apresentou resposta ao recurso requerendo que recurso seja julgado improcedente e se mantenha sentença recorrida por a mesma não sofrer de qualquer nulidade, designadamente, de omissão de pronúncia e por as normas do Código da Estrada aplicadas na decisão não sofrerem de qualquer umas das inconstitucionalidades mencionadas no recurso.
6.O Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto, neste Tribunal, apôs visto.
7.Procedeu-se a exame preliminar e foram colhidos os vistos, após o que o processo foi à conferência, cumprindo apreciar e decidir.

IIFundamentação

1-Delimitação do objecto do recurso.
Tendo em conta as conclusões apresentadas pelo arguido e acima transcritas, as quais delimitam o objecto do recurso e definem os poderes cognitivos deste tribunal ad quem, nos termos do disposto no artigo 412º, nº 1, do CPP, sem prejuízo das questões que devem ser conhecidas oficiosamente, como sucede com os vícios a que alude o art.º 410.º, n.º 2 ou o art.º 379.º, n.º 1, do CPP (cfr., por todos, os acórdãos do STJ de 11/4/2007 e de 11/7/2019, disponíveis em www.dgsi.pt), as questões colocadas à apreciação deste tribunal, são as seguintes:
 
a)-Revogação da sentença recorrida por terem sido aplicadas normas do Código da Estrada que violam os princípios constitucionais.
 
b)-Nulidade da sentença por omissão de  pronúncia sobre a inexistência na lei de um prazo prescricional quer do procedimento do instituto da cassação, quer da sua medida (art.º379º, n.º 1 alínea c) do Código Processo Penal).
 
2A decisão recorrida deu como provados os seguintes factos :
«Da prova documental junta aos autos e daquela que foi produzida em julgamento com interesse para a boa decisão da causa, resultaram assentes os seguintes factos
1.-O arguido foi julgado e condenado, no processo n.º 177/17.6PASXL, por sentença transitada em julgado em 27.09.2018, pela prática em 06.04.2017 de um crime de desobediência (por infracção à alínea a) do n.º 1 do art. 348.º do Código Penal), tendo perdido seis pontos nos termos previstos no art. 148.º, n.º 2 do Código da Estrada. 
2.-O arguido foi julgado e condenado, no processo n.º 511/18.1PVLSB, por sentença transitada em julgado em 10.09.2018, pela prática em 29.05.2018 de um crime de desobediência (por infracção à alínea a) do n.º 1 do art. 348.º do Código Penal), tendo perdido seis pontos nos termos previstos no art. 148.º, n.º 2 do Código da Estrada. 

Factos não provados: 
Com interesse para a boa decisão da causa, não ficaram por provar quaisquer factos. 

*** 

O Tribunal respondeu à matéria de facto da forma supra descrita e dada como provada, tendo em consideração os documentos juntos aos autos, mormente fls. 4 a 43. 

O Direito:  

Através da decisão administrativa proferida, foi determinada a cassação da carta de condução do arguido, uma vez que o mesmo foi condenado em dois crimes rodoviários, o que implicou a subtracção total de pontos, após 01.06.2016, data de entrada em vigor da Lei n.º 116/2015 de 28 de Agosto. 

Cumpre apreciar o recurso.
 
*** 

Da notificação do requerente:
 
Alega o recorrente que não foi notificado da decisão final proferida pela Autoridade Administrativa, por nenhuma das formas previstas na lei. 
Ora conforme resulta dos autos, mormente de fls. 118, após ter sido devolvida a carta registada com aviso de recepção correspondente à notificação da decisão final ao recorrente, foi a mesma reenviada por carta simples “conforme ofício em anexo, e cuja notificação foi efectuada na pessoa da sua Mandatária”. 
Nos termos previstos no art. 176.º do Código da Estrada “1- As notificações efetuam-se: a) Por contacto pessoal com o notificando no lugar em que for encontrado; b) Mediante carta registada com aviso de receção expedida para o domicílio ou sede do notificando; c) Mediante carta simples expedida para o domicílio ou sede do notificando. 
2-A notificação por contacto pessoal deve ser efetuada, sempre que possível, no ato de autuação, podendo ainda ser utilizada quando o notificando for encontrado pela entidade competente. 
3-A notificação por contacto pessoal pode ainda ser utilizada para qualquer outro ato do processo se o notificando for encontrado pela entidade competente.   
4-Se não for possível, no ato de autuação, proceder nos termos do n.º 2 ou se estiver em causa qualquer outro ato, a notificação pode ser efetuada através de carta registada com aviso de receção, expedida para o domicílio ou sede do notificando. 
5-Se, por qualquer motivo, a carta prevista no número anterior for devolvida à entidade remetente, a notificação é reenviada ao notificando, para o seu domicílio ou sede, através de carta simples. 
6-Nas infrações relativas ao exercício da condução ou às disposições que condicionem a admissão do veículo ao trânsito nas vias públicas, considera-se domicílio do notificando, para efeitos do disposto nos n.os 4 e 5: a) O que consta na base de dados da AT como domicílio fiscal; b) (Revogada.) c) O que conste dos autos de contraordenação, nos casos em que o arguido não seja residente no território nacional; d) Subsidiariamente, o que conste do auto de contraordenação, nos casos em que este tenha sido indicado pelo arguido aquando da notificação pessoal do auto. 
7-Para as restantes infrações e para os mesmos efeitos, considera-se domicílio do notificando: a) O que conste no registo organizado pela entidade competente para concessão de autorização, alvará, licença de atividade ou credencial; ou b) O correspondente ao seu local de trabalho. 
8-A notificação por carta registada considera-se efetuada na data em que for assinado o aviso de receção ou no terceiro dia útil após essa data, quando o aviso for assinado por pessoa diversa do arguido. 
9-Na notificação por carta simples, prevista na alínea c) do n.º 1, deve ser junta ao processo cópia do ofício de envio da notificação com a indicação da data da expedição e do domicílio para o qual foi enviada, considerando-se a notificação  efetuada no quinto dia posterior à data indicada, cominação que deve constar do ato de notificação. 
10-Quando a infração for da responsabilidade do titular do documento de identificação do veículo, a notificação, no ato de autuação, pode fazer-se na pessoa do condutor. 
11- Sempre que o notificando se recusar a receber ou a assinar a notificação, o agente certifica a recusa, considerando-se efetuada a notificação.”. 
Ora, como é bom de ver, no caso dos autos foram cumpridas todas as formalidades relativas à notificação do arguido, pois que, tendo sido frustrada a notificação por carta registada com aviso de recepção, se deu cumprimento ao disposto no n.º 5 do citado artigo. 
Nestes termos e sem necessidade de mais considerações, improcede o alegado pelo recorrente. 

***
 
Da inconstitucionalidade do art. 148.º, n.º 2 e 4, alínea c) e n.º 11 do Código da Estrada.  
Vem também o recorrente invocar a inconstitucionalidade do art. 148.º do Código da Estrada (n.ºs 2, 4 e 11). 
Ora, no caso em apreço temos que o recorrente foi condenado, por duas vezes, pela prática de crimes rodoviários e, na sequência disso, foram-lhe subtraídos 6 pontos por cada condenação. 
Em consequência dessas subtrações ficou sem pontos na carta, tendo tal situação como consequência a cassação da carta (al. c) do nº 4 do artº 148º acima referido), pelo que lhe foi instaurado processo autónomo para esse feito (nº 10 do artº 148º acima referido), do qual resultou a decisão o Presidente da A.N.S.R. de cassação da carta (decisão recorrida). 
Adiantando desde já, diremos que temos para nós como certo que não ocorre qualquer inconstitucionalidade. 
Na verdade, perante o elevado índice de sinistralidade rodoviária existente no nosso país e a premente necessidade de o combater eficazmente, para o que se têm revelado insuficientes as sucessivas campanhas de prevenção rodoviária, a alteração ao Código da Estrada que originou o sistema de “pontos” teve o propósito assumido de provocar uma alteração no comportamento dos condutores em ordem a alcançar esse desiderato. 
Resulta, pois, que o que se pretendeu com a introdução da carta por pontos, ou melhor, com as suas melhor concretização e maior abrangência, foi o de provocar uma alteração no comportamento dos condutores, conhecido que é o elevado grau de sinistralidade existente no nosso país. 

Nessa sequência, sob a epígrafe “Sistema de pontos e cassação do título de condução”, o art. 148º do Código da Estrada, na parte que para o caso releva, passou a dispor o seguinte: “(…) 2 - A condenação em pena acessória de proibição de conduzir e (…), determinam a subtração de seis pontos ao condutor. (…) 4 - A subtração de pontos ao condutor tem os seguintes efeitos:
a) Obrigação de o infrator frequentar uma ação de formação de segurança rodoviária, de acordo com as regras fixadas em regulamento, quando o condutor tenha cinco ou menos pontos, sem prejuízo do disposto nas alíneas seguintes; b) Obrigação de o infrator realizar a prova teórica do exame de condução, de acordo com as regras fixadas em regulamento, quando o condutor tenha três ou menos pontos; c) A cassação do título de condução do infrator, sempre que se encontrem subtraídos todos os pontos ao condutor (…)” 10 - A cassação do título de condução a que se refere a alínea c) do n.º 4 é ordenada em processo autónomo, iniciado após a ocorrência da perda total de pontos atribuídos ao título de condução. 11 - A quem tenha sido cassado o título de condução não é concedido novo título de condução de veículos a motor de qualquer categoria antes de decorridos dois anos sobre a efetivação da cassação (…).
 
Por seu turno, de acordo com o disposto no art. 121º-A, n.º 1, do Código da Estrada, a cada condutor são atribuídos 12 pontos. 
Ora, como referimos, da análise do quadro legal resulta com nitidez que com o sistema da carta por pontos teve o legislador o propósito de incutir no espírito dos condutores uma mais completa percepção sobre as consequências das infracções de trânsito, incluindo, agora, para efeitos de cassação do título de condução não só os ilícitos contraordenacionais graves e muito graves como outrossim os crimes rodoviários, entre eles a condução de veículo em estado de embriaguez e a desobediência, cuja prática tem como consequência o desconto de metade dos pontos inicialmente atribuídos a cada condutor, o que ocorre independentemente da sanção acessória imposta pelo tribunal pelo cometimento do crime rodoviário. 

Como refere o acórdão do TRP de 06.10.2004 (proc. n.º 0345913), “O que está em causa não é um novo sancionamento pela prática daquelas contraordenações (concretas), mas, pelo contrário, o sancionamento pela prática reiterada de contraordenações graves ou muito graves (sejam elas quais forem) que revela a inidoneidade para o exercício da  condução (…). Existe um mais, que não foi nem podia ser considerado e é, precisamente, esse mais (inidoneidade) a causa da cassação da carta de condução. O condutor revelou, com a sua conduta (prática sucessiva de contraordenações graves ou muito graves) que não tem condições para o exercício da condução. Às coimas e sanções acessórias já aplicadas acresce agora uma outra sanção que já não pune os factos (as concretas contraordenações) praticados, mas a perigosidade, a ineptidão, a inidoneidade entretanto reveladas. Com a sua conduta, o arguido demonstrou que as sucessivas condenações em coima e em sanção acessória não foram suficientes para o afastar da prática de infrações estradais e, por isso, que é incapaz de conduzir com observância dos preceitos estabelecidos na lei. Em resumo: que é inidóneo para o exercício da condução”.
 
O ne bis in idem encontra consagração no artigo 29.º, n.º 5 da CRP enquanto dispõe que “Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”, princípio igualmente acolhido no direito internacional e europeu.  Afigura-se-nos pacífico na doutrina e jurisprudência o entendimento de que do princípio em questão decorre quer a proibição de duplo julgamento quer a proibição de dupla punição pelo mesmo crime. 

Nas palavras de Eduardo Correia, “o fundamento central do caso julgado radica-se numa concessão prática às necessidades de garantir a certeza e, a segurança do direito. Ainda mesmo com possível sacrifício da justiça material, quer-se assegurar através dele ao cidadão a sua paz jurídica, quer-se afastar definitivamente o perigo de decisões contraditórias.” – [cf. A Teoria do concurso em direito criminal, II CASO JULGADO e PODERES DO JUIZ, Coimbra, 1983, pág. 302]. 

De qualquer modo, como, a propósito de um caso similar, salienta o citado acórdão do TRP de 06.10.2004, na situação em apreço “A solução do problema  
é (...) a mesma, independentemente da posição que se perfilhe para a determinação da «identidade do facto». Seja do ponto de vista naturalístico, seja do ponto de vista normativístico, seja, ainda, do ponto de vista do «concreto pedaço de vida» a consequência é a mesma (…). Não há qualquer violação do ne bis in idem. Os factos não são os mesmos (…), as normas aplicáveis não são as mesmas (…) e o pedaço de vida também não é o mesmo (…)”, pois – prossegue –, “… o facto de o arguido já ter sido condenado na sanção acessória de inibição de conduzir por cada uma das contraordenações, não impede a aplicação da cassação por esta não violar o princípio ne bis in idem, consagrado na Constituição e aplicável por força do art.º 41.º do D.L. n.º 433/82, de 27/10. Aliás, a condenação por tais contraordenações – o mesmo se diga da condenação pelos dois crimes de desobediência – constitui até um pressuposto necessário da aplicação da medida de cassação da carta para se aquilatar da idoneidade ou não para a condução de veículos a motor”.  Em suma, afastada a verificação de duplicação de factos, distintos que são os fundamentos que conduziram à aplicação das penas acessórias por um lado, e da medida de cassação da licença de condução, por outro lado, sendo diferentes as finalidades que presidem a umas e outra, conclui-se no sentido de não ocorrer violação do caso julgado e/ou do ne bis in idem. 

Por outro lado, tanto a atribuição da licença de condução, em função da qual a lei faz conceder ao respectivo titular os referidos 12 pontos, como a sua cassação, pela perda de todos os pontos, mas perda esta que tem materialmente subjacente a condenação ou a verificação prévia de infracções contraordenacionais ou penais, nos termos supra referidos, traduzem decisões de carácter administrativo: a primeira um ato administrativo permissivo de conteúdo positivo, ou mais precisamente autorização permissiva expressa na licença ou carta de condução, ou habilitação, relativa a direito cujo exercício “pode importar em sacrifícios especiais para um quadro de interesses públicos que convém acautelar”, entendendo o legislador introduzir limitações no exercício da liberdade individual de modo a garantir em certas actividades um determinado padrão de competência técnica, fazendo-o através de actos que são pressuposto da atribuição daquela licença de condução; enquanto que a segunda se traduz numa medida de segurança, também de carácter administrativo, que pressupõe um juízo prévio de inaptidão para o exercício da condução, relativamente a alguém que já havia obtido a concessão de autorizaçãohabilitação para conduzir, mas cujas condutas, material e processualmente determinadas, com respeito pela estrutura acusatória do processo, assim como pelas garantias de defesa e controlo jurisdicional efectivos, vieram revelar a existência daquela inaptidão, e em respeito, portanto, das normas constitucionais. 

E sendo tais condutas o fundamento material da cassação que eventualmente venha a ser determinada e não propriamente a atribuição de pontos, sendo estes somente o índice ou uma tradução numérica daquela gravidade, ainda por cima de um modo que resulta ser proporcionado àquela gravidade, não vislumbramos onde possa estar a inconstitucionalidade das normas dos art.s 148º, nºs 1 e 2, 149º, nºs 1, al. c), e 2, do CE, nomeadamente por violação do disposto no art. 30.º da CRP, nomeadamente porque o legislador, ao instituir o regime “por pontos”, com a possibilidade de cassação do título de condução em caso de subtracção da totalidade dos pontos decorrente de sucessivas condenações por crimes ou contraordenações rodoviárias, o legislador estabeleceu mais uma condição negativa para a atribuição do título de condução. 

Também nesta situação não estamos perante a perda de um direito adquirido, perda a que se reporta o art. 30º, n.º 4, da Constituição, mas sim a verificação de uma condição negativa a que o mesmo (que não é absoluto e incondicional) está à partida e continuamente sujeito. 
Ao fim e ao cabo, com o sistema de “pontos” o título de condução nunca se pode considerar definitivamente adquirido, pois está permanentemente sujeito a uma condição negativa atinente ao bom comportamento rodoviário do condutor.  O direito a conduzir decorre da titularidade da respectiva licença, mas não existe um direito absoluto. 
Não estamos perante a perda definitiva da faculdade de conduzir. A cassação apenas determina que o recorrente perde a habilitação que detinha para conduzir e que durante dois anos fica impedido de obter novo título (cfr. art. 148º, n.º 11, do Código da Estrada). 
Podemos, pois, afirmar que o que determina a cassação da licença de condução, com eventuais consequências gravosas a nível profissional ou pessoal são as sucessivas condenações do condutor na pena acessória de proibição de conduzir, que implicaram a sucessiva perda de pontos, verificando-se ainda que nem o decurso do tempo nem a consequente conduta posterior lhe permitiram a angariação de outros pontos. 
Por si só, a perda de pontos não acarreta a perda de quaisquer direitos a que alude o n.º 4 do art. 30º da Constituição. 
Por outro lado, não existe um absoluto direito a conduzir e, no que respeita à cassação da carta, o que está em causa é tão-somente a aplicação de uma medida de segurança de natureza administrativa, de aplicação automática, desde que verificados os respectivos pressupostos. 
Termos em que improcede a invocada inconstitucionalidade pois que não esta em causa a perda de qualquer direito civil mas apenas a aplicação de uma medida de segurança de natureza administrativa. 

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O recorrente alega, ainda, que não se encontra prevista a prescrição do procedimento de cassação do título de condução. 
Ora, a cassação tem natureza administrativa e funda-se na perda de pontos, resultantes da prática das infracções a que se reportem. É automática, caso se verifiquem os pressupostos previstos na lei. Opera, por determinação do Presidente da ANSR, logo após a subtracção total dos pontos do respectivo condutor. 
Com efeito, segundo o art. 121.º-A do CE, aditado pela Lei n.º 116/2005, de 28.08: “1- A cada condutor são atribuídos doze pontos. 2 - Aos pontos atribuídos nos termos do número anterior podem ser acrescidos três pontos, até ao limite máximo de quinze pontos, nas situações previstas no n.º 5 do artigo 148.º. 3 - Aos pontos atribuídos nos termos dos números anteriores pode ser acrescido um ponto, até ao limite máximo de dezasseis pontos, nas situações previstas no n.º 7 do artigo 148.º”. 
Como se sublinhou no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 260/2020, de 13.05, a cassação da carta de condução surge, portanto, não como uma pena acessória ou medida de segurança, mas antes como uma consequência, legalmente prevista, da aplicação de penas de inibição de conduzir. 
Essa cassação decorre de um juízo feito pelo legislador sobre a perda das condições exigíveis para a concessão do título de condução, designadamente por verificação de ineptidão para o exercício da condução, que implica o termo da concessão da autorização administrativa para conduzir. 
Para além disso, nos termos do n.º 10 do art. 148.º, “A cassação do título de condução a que se refere a alínea c) do n.º 4 (como no caso sucede) é ordenada em processo autónomo, iniciado após a ocorrência da perda total de pontos atribuídos ao título de condução”.  
Donde, está legalmente previsto o momento em que se inicia o procedimento, pelo que é evidente que não existe qualquer lacuna e improcede, também, o alegado pelo recorrente. 

* * *        Decisão: 
Por todo o exposto, julgo totalmente improcedente o presente recurso e, em consequência, mantenho a decisão administrativa proferida».
 
* Analisando:                                
Apreciemos, então, os fundamentos do recurso, sendo que este visa apenas matéria de direito, nos moldes já delimitados, encontrando-se definitivamente fixados os factos com relevo para a decisão.
 
a)-Revogação da sentença recorrida por terem sido aplicadas normas do Código da Estrada que violam os princípios constitucionais.
O regime da “carta por pontos” foi introduzido pela Lei n.º 116/2015, de 28 de agosto, que alterou os artigos 121.º e 148.º do Código da Estrada.
 
O propósito prosseguido pelo legislador com a implementação desse regime decorre da Exposição de Motivos que acompanhou a proposta de Lei n.º 336/XII, onde se consigna o seguinte:
«A presente proposta de lei destina-se a alterar o Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de maio, implementando o regime da carta por pontos.
O atual regime contempla já um sistema aproximado da carta por pontos, embora bastante mitigado. Trata-se, assim, de promover uma atualização do regime vigente, acompanhando a maioria dos países europeus, onde o regime da carta por pontos se encontra plenamente consagrado e estabilizado. A carta por pontos constitui uma das ações chave da Estratégia Nacional de Segurança Rodoviária, aprovada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 54/2009, de 14 de maio. Pretende-se, com a sua implementação, aumentar o grau de perceção e de responsabilização dos condutores, face aos seus comportamentos, adotando-se um sistema sancionatório mais transparente e de fácil compreensão.
A análise comparada com outros países europeus demonstra que é expetável que a introdução do regime da carta por pontos venha a ter um impacto positivo significativo no comportamento dos condutores, contribuindo, assim, para a redução da sinistralidade rodoviária e melhoria da saúde pública

Resulta do enunciado regime de carta por pontos por pontos, contemplado nos artigos 121.º- A e 148.º do Código da Estrada, o seguinte conjunto de regras e de consequências:
- É atribuído a cada condutor, 12 pontos (n.º 1 do artigo 121º-A), podendo estes ser acrescidos de: 
a)-3 pontos até ao limite máximo de 15 (se, em cada período de três anos, inexistir no registo de contraordenações graves ou muito graves ou crimes de natureza rodoviária no registo de infracções – cfr. artigos 121º A, nº 2 e 148º, nº 5); 
b)-1 ponto até ao limite de 16 (se, em cada período de revalidação da carta de condução, não constarem registo de crimes de natureza rodoviária e o condutor, voluntariamente, frequentar ações de formação – cfr. artigos 121º, nº 3 e 148º, nº 7).
- A subtração de pontos ao condutor ocorre, em consequência da condenação, transitada em julgado, pela prática de contra-ordenações graves ou muito graves referenciadas nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 148º do CE ou de crimes enunciados no n.º 2, do mesmo artigo, em pena acessória de proibição de conduzir ou em caso de suspensão provisória do processo em que seja cumprida injunção de proibição de conduzir, nos termos previstos no n.º 3 do artigo 281º do CPP;
Se na decorrência da subtracção de pontos, o condutor tiver cinco ou menos pontos, fica sujeito à obrigação de frequentar uma acção de formação de segurança rodoviária (cf. al. a) do n.º 4 do artigo 148º) e se tiver três ou menos pontos fica sujeito à obrigação de realizar a prova teórica do exame de condução (cf. al. a) do n.º 4 do artigo 148º); finalmente, se forem subtraídos todos os pontos ao condutor, a subtracção tem como efeito a cassação do título de condução (cf. al. c) do n.º 4 do artigo 148º).

Ao instituir o regime da “carta por pontos”, prevendo a cassação do título de condução em caso de subtracção da totalidade dos pontos (al. c) do n.º 4 do artigo 148º do CE), o legislador estabeleceu mais um requisito ou condição negativa para a manutenção do título de condução atribuído, qual seja, a de o condutor não praticar infracções rodoviárias por que venha a ser condenado (e especificamente as contra-ordenações graves ou muito graves, referenciadas nas alíneas a) e b) do n.º 1 e no n.º 2 do artigo 148º do CE ou os crimes enunciados no n.º 2 do mesmo artigo, em pena acessória de proibição de conduzir ou em caso de suspensão provisória do processo em que seja aplicada e cumprida a injunção de proibição de conduzir), e que determinem a perda da totalidade dos pontos atribuídos. 

Nesta perspectiva, e como vem sendo jurisprudência dominante dos tribunais da Relação, importa notar que com o sistema de “pontos” o título de condução nunca se pode considerar definitivamente adquirido, pois está permanentemente sujeito a uma condição negativa atinente ao bom comportamento rodoviário do condutor.

O regime da carta por pontos, como é afirmado no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 260/2020 acessível em http://www. tribunal constitucional. pt/tc /acordaos/ 20200260.html « (…) tem, assim, um sentido essencialmente pedagógico e de prevenção, visando sinalizar, de uma forma facilmente perceptível pelo público em geral e através de um registo centralizado, as infracções cometidas pelos condutores bem como os respectivos efeitos penais ou contraordenacionais. Deste modo, permite-se também à administração verificar se o titular da licença ou carta de condução reúne as condições legais para continuar a beneficiar da mesma».

A vigência do título que habilita conduzir veículos automóveis depende, assim, do comportamento estradal do condutor, conforme este observe ou viole as regras estradais. No primeiro caso são atribuídos pontos à sua carta de condução, no segundo são-lhe retirados pontos, de acordo com a gravidade da infracção cometida.

Relativamente à natureza da medida que nos ocupa sufragamos o entendimento defendido pelo TC no citado Acórdão n.º 260/2020, sendo também nosso entendimento que a cassação da carta de condução, neste âmbito, não surge como uma pena acessória ou medida de segurança, mas antes como uma consequência, legalmente prevista, da aplicação ao condutor de penas acessórias de proibição de conduzir e consequente perda da totalidade dos pontos concedidos – situação que o legislador fez equivaler à verificação de ineptidão para o exercício da condução.

Não se trata de uma sanção acessória e nem sequer pode ser configurada como uma medida de segurança penal - cuja aplicação dependa da verificação, em concreto, de um estado de perigosidade do agente, revelado pela sua personalidade, para a condução, conforme previsto no artigo 101º do Código Penal -, tratando-se de uma medida administrativa que se prefigura como uma medida de avaliação negativa da conduta estradal dos condutores, conforme a gravidade da infracção cometida e que tem na sua base a finalidade visada pelo legislador de sinalizar em termos de perigosidade determinadas condutas rodoviárias, contraordenacionais ou criminais, que põem em causa bens jurídicos fundamentais, constitucionalmente protegidos, como sejam, a segurança, a integridade física e a vida das pessoas, sobretudo em face da dimensão do risco que para esses valores um tal tipo de condutas comportam, pondo em causa a segurança rodoviária e a vida de todos os que circulam nas estrada - cfr. neste sentido o acórdão do TRE de 20/10/2020 publicado em www.dgsi.pt 
 
De igual modo, a cassação da carta de condução por efeito da perda de pontos não constitui uma condenação pela prática dos mesmos crimes, como parece pressupor o recorrente.

Com efeito, a medida de cassação da carta de condução determinada pela ANSR no âmbito do processo de cassação de título de condução, não constitui punição pelos mesmos factos objecto dos processos que determinaram a aplicação de duas penas acessórias de proibição de conduzir, em conformidade com o artigo 69.º, n.º 1, al. a), do C.P.

O processo administrativo instaurado contra o ora recorrente pela Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, ao abrigo do disposto no n.º 10 do artigo 148.º do Código da Estrada, para a cassação da carta de condução por efeito da perda de pontos atribuídos, tem por objecto não a prática de qualquer daqueles crimes, mas sim, como se refere no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 13/11/2019 disponível em www.dgsi.pt.  «o registo de infrações relativas ao exercício da condução, a perda de pontos em virtude das sucessivas penas acessórias até ao total esgotamento dos créditos inicialmente concedidos, e a consequente inaptidão do recorrente para a condução decorrente do risco causado por aquelas condutas criminosas, para a segurança rodoviária.» Como se afirma na sentença recorrida o que determina a cassação da licença de condução, com eventuais consequências gravosas a nível profissional ou pessoal são as sucessivas condenações do condutor na pena acessória de proibição de conduzir, que implicaram a sucessiva perda de pontos, verificando-se ainda que nem o decurso do tempo nem a consequente conduta posterior lhe permitiram a angariação de outros pontos. 
 
Por si só, a perda de pontos não acarreta a perda de quaisquer direitos a que alude o n.º 4 do art. 30º da Constituição. 

Em suma, entendemos pelas razões supra expostas, que a cassação da carta de condução por efeito da perda total de pontos, não constitui uma sanção acessória e nem sequer pode ser configurada como uma medida de segurança penal mas um efeito da sanção acessória de proibição de conduzir, determinada pela segurança rodoviária, que limita o direito do cidadão a conduzir. não se vislumbra a invocada insconstitucionalidade no art.º 148.º do CE .

Afirma, ainda o recorrente que a redacção do nº 11 do art. 148º do Código da Estrada não fixa um prazo máximo de duração da medida de cassação, o que no seu entender viola o disposto no art. 30º, nº 1 da CRP, que proíbe as penas ou medidas de segurança de duração indefinida.

Ora, também quanto a esta questão não tem razão o recorrente. 
Na verdade a própria redacção do nº 11 do art. 148º do C.E. é bastante clara a este respeito ao estabelecer que “A quem tenha sido cassado o título de condução não é concedido novo título de condução de veículos a motor de qualquer categoria antes de decorridos dois anos sobre a efetivação da cassação.”.

Daqui decorre, manifestamente, que esta medida tem uma duração fixa de dois anos, e não uma duração indefinida, como defende o recorrente, significando tal que durante aquele período o ex-condutor está impedido de obter novo título de condução, mas logo que o mesmo tenha decorrido, só dependerá de si, da sua diligência e do seu empenho, a obtenção de novo título.

Conclui-se assim que art. 148º do C.E conforma-se com os princípios ínsitos no art. 30º da CRP, não violando qualquer preceito e/ou princípio constitucionais 
 
Improcede, por conseguinte, este fundamento do recurso.
b)-Nulidade da sentença por omissão de pronúncia sobre a inexistência na lei de um prazo prescricional quer do procedimento do instituto da cassação, quer da sua medida (art.º379º, n.º 1 alínea c) do Código Processo Penal);
Alega, ainda, o recorrente que a sentença recorrida é nula por o Tribunal não se ter pronunciou sobre argumentos e factos que invocou, designadamente, por não se ter pronunciado sobre a alegada lacuna relativa ao prazo prescricional.

Como é consabido a sentença só tem que se pronunciar sobre matéria relevante para a decisão da causa. A omissão de pronúncia é um vício que ocorre quando o Tribunal não se pronuncia sobre questões com relevância para a decisão de mérito e não quanto a todo e qualquer argumento aduzido.

O Tribunal deve resolver todas que as questões que lhe sejam submetidas a apreciação. Mas o vocábulo “questões” não abrange os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, antes se reportando às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, ou seja, entendendo-se por “questões” as concretas controvérsias centrais a dirimir (vide, por todos, Ac. do STJ de 02/10/2003, in “Rec. Rev. nº 2585/03 – 2ª sec.” e Ac. do STJ de 02/10/2003, in “Rec. Agravo nº 480/03 – 7ª sec.”). No caso dos autos verifica-se que na decisão recorrida, a Mmª Juíza tomou posição sobre a alegada existência de lacuna, considerando que a mesma não existe por se encontrar legalmente previsto o momento em que se inicia o procedimento.

E dado que no seu recurso, em nenhum momento o recorrente alegou a prescrição do procedimento de aplicação da medida de cassação não se impunha ao Tribunal apreciar tal matéria, designadamente, sobre qual o prazo prescricional aplicável.

Por outras palavras, a apreciação da existência ou não de lacuna quanto ao prazo prescricional do procedimento em causa invocada, foi analisado pelo tribunal, não se impondo, porém, ao tribunal pronunciar-se sobre o prazo prescricional aplicável. Por um lado tal questão não se colocava e, por isso, não tinha o tribunal que dela conhecer oficiosamente e, por outro lado, porque o recorrente não tinha sequer suscitada a prescrição do procedimento criminal nos autos, que culminaram com a decisão da cassação da sua carta de condução.

Concluímos, assim, que a decisão recorrida não merece censura, improcedendo na totalidade o presente recurso.

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III–Dispositivo

Pelo exposto, acordam os juízes da 3ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso do arguido ATL_______, confirmando-se integralmente a sentença recorrida.  
Custas pelo recorrente, com 4 UC de taxa de justiça. Notifique.


 
Lisboa, 10 de Outubro de 2021


 
Assinaturas Digitais: Ana Costa Paramés -(relatora)
                                    Maria da Graça Santos Silva