Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
350/14.9TYLSB-D.L1-8
Relator: OCTÁVIA VIEGAS
Descritores: PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
APRESENTAÇÃO
ADMINISTRADOR
SOCIEDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/07/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APLELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: - O direito de propriedade protegido constitucionalmente, de que resulta também a protecção do direito dos credores obterem a satisfação do seu crédito através do património do devedor, tem um dos seus expoentes no processo de insolvência, que visa a distribuição do valor obtido com o património, pela satisfação dos créditos detidos pelos credores.
- A apresentação à insolvência pelos administradores da sociedade, a que estão obrigados sob pena de incorrerem nas responsabilidades previstas no art. 186 do CIRE, não põe em causa a propriedade dos sócios sobre as participações no capital da empresa, constituindo um acto de gestão com vista ao cumprimento das dividas da sociedade.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Decisão texto parcial:

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

A, SA, apresentou-se à Insolvência, através de acção declarativa especial, alegando encontrar-se impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas.

Foi proferida decisão que declarou a insolvência da sociedade A, SA

Em primeira instância foram considerados  provados os seguintes factos:

1) A Requerente foi constituída em 1997 e dedica-se, desde então, à indústria de turismo, restauração e realização de eventos e promoções desportivas, merchandising e vendas a retalho, representações, importações e exportações, administração e gestão de bens imóveis, próprios e arrendados, e compra, venda e revenda de imóveis adquiridos para esse fim.

2) A Requerente adquiriu o imóvel em 2002 correspondente ao prédio urbano, designado pelo Lote 1, com a área total de 662.506,00 m2, sito em B.

3) A referida B  tem um empreendimento turístico de que a Requerente é titular, denominado C

4) A actividade da Requerente consiste na exploração do mencionado empreendimento turístico, o qual inclui uma unidade hoteleira, serviços de restauração, spa, salas de conferência, piscina, campo de golfe, academia de golf, instalações e equipamentos do clube de golf.

5) O empreendimento turístico foi renovado no período entre em 2005 e 2009, com abertura ao público em regime de softopening em Maio de 2009, encontrando-se em pleno funcionamento desde Dezembro de 2009 e inclui um hotel com Categoria 4*, inaugurado em Abril de 2009 e que se encontra em pleno funcionamento desde Dezembro de 2009, com 93 quartos repartidos por três tipologias, um restaurante e um SPA cujas explorações foram concessionadas a terceiros bem como salas para eventos, campo de golfe com 18 buracos, inaugurado em Setembro de 2006, com um driving range e um putting green (cerca de 22 mil voltas vendidas/ano).

6) Os principais segmentos alvo motores do crescimento do hotel foram: (i) os clientes golfe, dinamizado por operadores de golfe, (dois períodos de Setembro a Novembro e de Fevereiro a Abril, principalmente provenientes de países escandinavos como Suécia, Finlândia e Dinamarca), (ii) o segmento corporate (colaboradores de empresas ex-Portucel, protocolos) e iii) os clientes diretos ou turismo de lazer (meses de Verão com pricing inferior através essencialmente do canal online).

7) Os fluxos de caixa das actividades operacionais da Requerente tiveram a seguinte evolução:

a) 2010: € 288.713,58;

b) 2011 € -69.792,29;

c) 2012 € 135 792,58

8) No ano de 2007 a Requerente iniciou um elevado investimento na construção de um hotel com o intuito de dinamizar a sua actividade golfista, o qual foi efectuado, em larga medida, com recurso a financiamento bancário.

9) As expectativas da Requerente viram-se comprometidas em face da crise generalizada.

10)ffo ano de 2011 acentuaram-se os efeitos da crise; verificando-se uma diminuição, do número de praticantes da modalidade de golf nos principais mercados emissores, nomeadamente Suécia, Dinamarca e Finlândia.

11) Verificou-se igualmente uma política de, preços por parte de "concorrentes" da Requerente, com uma oferta a nível de preço com a qual não era possível competir e que levou com que um dos principais clientes da Requerente, o operador D, deixasse de eleger o C  como destino para os seus jogadores na segunda época de Golfe do ano, o Outono, desviando as reservas para a Região do Oeste.

12) Por outro lado, verificou-se um agravamento do efeito recessivo, particularmente influenciado por consequência directa do aumento da taxa de IVA para 23%.

13) A Requerente sofreu igualmente o impacto da concorrência, dado que Tróia e o Campo Real abordaram o mercado com preços mais competitivos.

14) Em face da incapacidade da Requerente gerar receitas para assegurar o cumprimento da generalidade das obrigações, a Requerente entrou também em incumprimento com as suas obrigações bancárias.

15) No âmbito da sua actividade a Requerente celebrou diversos contratos de financiamento com o E S.A. (doravante "E"), designadamente: (i) contrato de financiamento celebrado em 6 de Novembro de 2008; (ii) contrato de financiamento celebrado em 14 de Dezembro de 2009; (iii) contrato de financiamento celebrado em 16 de Fevereiro de 2011.

16) Em 06.11.2008, a Requerente celebrou com o E um contrato de financiamento no montante de € 13.500.000 (treze milhões e quinhentos mil euros), por um prazo de 240 meses, o qual foi diversas alterações acordadas entre as partes.

17) De acordo com última alteração de 02.11.2012, haveria uma carência de pagamento de capital e juros até 06.02.2013, sendo o reembolso de juros realizado a partir de 06.02.2013 e semestralmente a partir de 06.05.2013 e o reembolso de capital e juros em prestações semestrais constantes, iguais e sucessivas, vencendo-se a primeira em 06.05.2013.

18) O cumprimento das obrigações assumidas no contrato supra referido está garantido por hipoteca sobre o imóvel de que é titular a Requerente e acima identificado.

19) Assim, e por referência ao mencionado contrato, em 06.02.2013 venceu-se uma prestação referente a juros remuneratórios e imposto de selo no valor de € 2.661.561,65.

20) A Requerente não logrou liquidar a referida prestação no seu vencimento, nem posteriormente.

21)Tal incumprimento veio originar a declaração de vencimento antecipado do contrato de financiamento em causa por parte do E, tendo a Requerente ficado obrigada a proceder ao pagamento do montante de € 16.193.780,96 (dezasseis milhões, cento e noventa e três mil, setecentos e oitenta euros e noventa e seis cêntimos)

22) Em 14.12.2009, a Requerente celebrou com o E um contrato de financiamento no montante de € 180.000 (cento e oitenta mil euros), por um prazo de 48 meses, o qual foi objecto de reformalização em 20.09.2011.

23) O cumprimento das obrigações assumidas no contrato supra referido está igualmente garantido por hipoteca sobre o imóvel de que é titular a Requerente e acima identificado.

24) Por referência ao mencionado contrato, venceram-se as prestações de Maio de 2012 a Abril de 2013, no valor total de capital de € 46.668,53 e de € 2.191,66d juros e imposto de selo.

25) A Requerente não logrou liquidar tais prestações no seu vencimento, nem posteriormente.

26) Tal incumprimento veio originar a declaração de vencimento antecipado do contrato de financiamento em causa por parte do E.

27) Nesta sequência, a Requerente ficou obrigada a proceder ao pagamento do montante de € 82.197,26 (oitenta e dois mil, cento e noventa e sete euros e vinte e seis cêntimos).

28) Em 16.02.2011, a Requerente celebrou com o E um contrato de financiamento no montante de € 450.00,00 (quatrocentos e quinhentos mil de euros), com prazo até 25.03.2015.

29) Assim, e por referência ao mencionado contrato, venceram-se as prestações de Setembro de 2012 a Março de 2013, no valor global de € 15.484,64.

30) A Requerente não logrou liquidar tais prestações no seu vencimento, nem posteriormente.

31)Do mesmo modo, o incumprimento da Requerente veio a originar a declaração de vencimento antecipado do contrato de financiamento em causa por parte do E.

32)A Requerente ficou obrigada a proceder ao pagamento do montante de € 465.824,95 (quatrocentos e sessenta e cinco mil, oitocentos e vinte e quatro euros e noventa e cinco cêntimos).

33)Os créditos do BES sobre a Requerente por referência aos contratos de financiamento supra referidos foram, entretanto, objecto de cessão de créditos em 02.08.2013, notificada à aqui Requerente.

34-)A Requerente tem pendentes sete pianos prestac±onais de pagamentos de contribuições e quotizações à Segurança Social, em virtude de não ter logrado proceder ao pagamento de tais contribuições e quotizações atempadamente e viu-se impossibilitada de fazer face ao pagamento dos planos prestacionais de pagamentos, não tendo procedido a qualquer pagamento no corrente ano por não dispor de liquidez para o efeito.

35) A Requerente tem pendente um plano de pagamento a prestações à Autoridade Tributária a Aduaneira referente a Imposto Municipal sobre Imóveis e viu-se impossibilitada de fazer face ao pagamento das prestações vencidas durante o corrente ano, por não dispor de liquidez para o efeito, no valor de € 134.757,59 (cento e trinta e quatro mil, setecentos e cinquenta e sete euros e cinquenta e nove cêntimos)

36) A Requerente tem vindo a proceder ao pagamento dos salários dos seus trabalhadores com sucessivos atrasos e bastantes dificuldades.

37) A Requerente não dispunha de meios financeiros para proceder ao pagamento da totalidade dos salários de Fevereiro de 2014, em montante superior a € 28.000 (vinte e oito mil euros), não logrando efectuar o respectivo pagamento.

38) Refere ter, como cinco maiores credores:

1) F, S.A. -

2) G, Lda. -

3) H , Lda. -

4) I, S.A. -

 

Inconformada, H , Lda, recorreu, apresentando as seguintes conclusões das alegações:

A. A apresentação de uma sociedade à insolvência tem os mesmos efeitos - e é equiparada, até por disposição expressa da lei - à dissolução da sociedade.

B. Assim sendo, tem de ser requerida pelo órgão de administração - em sentido amplo - que pode decidir sobre a dissolução: a assembleia geral.

C. Na falta de disposição especial sobre a matéria no pacto social, vigoram as normas gerais do Código das Sociedades Comerciais, que fixam requisitos procedimentais e de quórum deliberativo para que a decisão de aprovação da dissolução seja legal.

D. Assim, a apresentação da sociedade à insolvência por mera decisão do conselho de administração era ilegítima, como ilegítima foi a sua nomeação, e actuação (esta sobretudo por: i) inviabilizar o PER que foi apresentado pela anterior e única legítima administração com base na sua alegada desnecessidade, como comunicaram a credores, e depois ter apresentado a empresa à insolvência; ii) implicar contradição de interesses entre credor e devedor, uma vez que se confundem na administração e na sede; iii) ter contribuído para o agravamento da situação da A, através da actuação conduzida numa empresa concorrente que também controlavam).

E A interpretação da norma do artigo 24.°, n.° 2, ai. a), do CIRE, no sentido de que a "deliberação da iniciativa do pedido por parte do respectivo órgão social de administração" pode ser uma mera decisão do conselho de administração é inconstitucional, desde logo por violação da tutela constitucional do direito de propriedade dos sócios, que assim podem ser dele privados sem que sequer disso sejam informados.

Termina dizendo que a decisão de insolvência proferida pelo tribunal a quo ser revogada

Massa Falida de A, SA, contra-alegou, apresentando as seguintes conclusões.

1. O presente recurso foi apresentado pela Sra. Dra. A S, com a indicação de que o Sr. Dr. J D deveria igualmente subscrever a peça processual em causa, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 12.°, 11.0 1 da Portaria n.° 28012013, de 26 de Agosto.

2. Nos termos da alínea b) do referido preceito legal, o mandatário indicado no formulário deveria enviar, através do sistema Citius, uma declaração eletrónica de adesão à peça, assinada digitalmente, no prazo máximo de dois dias após a receção da peça processual enviada, o que não se verificou, devendo, por esse motivo, considerar-se a peça processual não apresentada (cfr. artigo 12.0, n.° 3 da Portaria n.° 28012013).

3. Em sede recursal, vem a Recorrente, na qualidade de credora e acionista da Insolvente, insurgir-se contra a declaração de insolvência proferida no âmbito dos presentes autos, por considerar não se encontrarem reunidos os pressupostos de que depende a sua-admissibilidade, centrando o seu recurso na pretensa falta de legitimidade dos administradores da Insolvente para a deliberação de apresentação à insolvência.

4. No entanto, o recurso da sentença de declaração de insolvência tem como pressuposto base a necessária demonstração de que inexistem índices de insolvência da entidade em causa, encontrando-se a mesma em estado de solvência e sendo por isso capaz de honrar os compromissos assumidos, o que não se verifica no caso sub judice.

5. Contrariamente ao que a Recorrente pretende fazer crer, inexiste qualquer iicitude associada ao exercício dos direitos sociais por parte da credora hipotecária da Insolvente, a sociedade Palmela Summer.

6. Com efeito, em 2 de Agosto de 2013, o E cedeu os créditos sobre a Insolvente resultantes de contratos de financiamento celebrados com a mesma, bem como as garantias e direitos acessórios relativos a esses créditos à F.

7. Posteriormente, na qualidade de credora pignoratícia, a F resolveu exercer os direitos sociais inerentes a 100% das ações da Insolvente dadas em penhor ao abrigo de um contrato de financiamento e, nessa medida, deliberou a destituição imediata e com justa causa do Conselho de Administração da Insolvente,  composto por J L e por F S, no dia 19 de Fevereiro de 2014, nomeando dois novos Administradores.

8. Para o efeito, através de carta registada com aviso de receção datada de 17 de Fevereiro de - 2014, a F remeteu notificações aos prestadores das garantias e accionistas H, ora Recorrente, JL e FS, a flui de informar que os direitos sociais inerentes a 100% do capital social da Insolvente passariam a ser por si exercidos.

9. Legitimando, consequentemente, a destituição do anterior Conselho de Administração da Insolvente e a designação de novos membros para a ocupação do cargo de administradores.

10. Sem prejuízo, caso a Recorrente considerasse inválida a deliberação, o meio de reação adequado sempre seria a impugnação da mesma (invocação de nulidade ou anulabilidade da deliberação), nos termos da lei aplicável às sociedades comerciais.

11. Num outro prisma, a Recorrente defende ainda que a Administração da Insolvente, independentemente dos concretos membros que a compõem, não teria competência para deliberar a apresentação da A a insolvência, encontrando-se tal matéria reservada a deliberação de sócios.

12. No entanto, a apresentação de uma sociedade à insolvência não equivale material nem juridicamente à sua dissolução, sendo certo que a liquidação da sociedade em sede de processo de insolvência é sempre decidida pelos credores da Insolvente.

13. No que respeita à dedução de oposição ao processo de insolvência movido pela Good Road contra a A e apresentação de desistência do PER, a Recorrente tem perfeito conhecimento de que as mesmas não foram motivadas por uma "crença" objetiva da Administração da Insolvente na viabilidade da empresa ou na sua capacidade de solver as responsabilidades assumidas.

14. Antes teve subjacente a intenção de "salvar" a ora Insolvente de um esquema fraudulento montado pela anterior Administração em conluio com a putativa credora L  e com o próprio Administrador Judicial Provisório nomeado no âmbito do Processo Especial de Revitalização.

15. Com efeito, no decurso do PER o Dr. RC, Administrador Judicial Provisório da Insolvente, reconheceu na Lista Provisória de Créditos um crédito reclamado pela L no montante de € 50.000.000,00, com base numa escritura pública de reconhecimento de dívida, celebrada em 17 de Outubro de 2013.

16. Tal crédito era alegadamente decorrente do incumprimento de um contrato-promessa de permuta, o qual se encontrava na base do reconhecimento de dívida, o qual constitui um acordo simulatório tendo em vista criar um crédito fictício com base no respetivo incumprimento, com o único intuito de controlar e manipular a negociação das medidas de recuperação no âmbito do PER.

17. Concluindo, o Processo Especial de Revitalização em curso não visava a recuperação da empresa, mas tão-somente assegurar que a anterior Administração/,da Insolvente propusesse e aprovasse o Plano de Recuperação que mais conviesse aos seus interesses pessoais.

18. Este esquema fraudulento contou com a colaboração ativa do Dr. R C, na qualidade de Administrador Judicial Provisório, verificando-se um conluio deste com os demais intervenientes no sentido de criarem um crédito fictício da L, por forma a controlarem o destino da Insolvente, a qual seria gorada com a desistência do Processo Especial de Revitalização.

19. Em face de todo o exposto, crê a Recorrida que os fundamentos invocados pela Recorrente nas alegações a que ora se responde não são suscetíveis de pôr em causa a situação de insolvência da A, a qual foi justificadamente declarada, com base nos indícios fornecidos no Requerimento Inicial dos presentes autos.

20. Por fim, cumpre referir que a Recorrente não cuidou de especificar quaisquer motivos que conduzissem à não verificação de uma situação de impossibilidade de cumprimento das obrigações por parte da Insolvente, nem mesmo negou em momento algum as dificuldades financeiras da sociedade, pelo que deverá ser negado provimento ao recurso.

Termina dizendo que deve ser negado provimento ao recurso, mantendo-se a sentença  recorrida que declarou a insolvência da sociedade A, SA.

Cumpre decidir

O artigo 19 do CIRE atribui competência para iniciativa de apresentação à insolvência ao “órgão social incumbido da sua administração, ou, se não for o caso, a qualquer dos seus administradores”

Carvalho Fernandes e João Labareda,  em Código da Insolvência e Recuperação da Empresa  Anotado dizem que  se o sentido do artigo 19 se esgotasse na confiança aos administradores do poder para, simplesmente , praticar os actos necessárias à concretização da apresentação, ele seria totalmente inútil. O alcance do preceito é, todavia, mais amplo, conferindo aos titulares da administração a faculdade legal de tomarem a decisão de apresentação à insolvência, independentemente do modo como normalmente se organizem e distribuam os poderes e competências para o exercício dos direitos prática de actos e cumprimento de obrigações que incumbem ao devedor. Esta solução ganha nova pujança por força do regime que a lei desencadeia no caso de incumprimento do dever. Como fundamentalmente se pode ver nos artigos 186, nºs 3 e 4 188 e 189 do CIRE  no caso de falta de apresentação atempada, os administradores ficam pessoalmente sujeitos a sanções diversas de caráter pessoal e patrimonial. Ora não pode razoavelmente aceitar-se que os administradores sejam penalizados pela falta de apresentação se simultaneamente eles não estiverem investidos da competência necessária para decidir a instauração da ação . E pois com este conteúdo amplo que deve entender-se a atribuição pela lei aos titulares da administração da iniciativa da apresentação à insolvência.

O conceito de administrador usado no CIRE não tem subjacente nenhuma preocupação dogmática pois tanto abrange os representantes legais e mandatários de pessoa singular, com poderes gerais de administração, como aqueles a quem incumbe administração liquidação da entidade do património em causa, designadamente os titulares do órgão social competente para aqueles efeitos ( artigo 6 do CIRE).

Nos termos do artigo 24, nº 2 do CIRE,  o devedor deve juntar documento comprovativo dos poderes dos administradores que o representam e cópia da acta que documente a deliberação da iniciativa do pedido por parte do respectivo órgão social de administração, se aplicável..

A expressão “se aplicável” usada  no artigo  24, nº2, a)  tal como a expressão “se não for o caso” usada no art. 19 , reporta-se aos casos em que o devedor é uma das entidades, nos mesmos referidas, isto é, entidades colectivas ou  patrimónios autónomos com administração organizada, deferindo a lei ao próprio órgão social a iniciativa do pedido.

Carvalho Fernandes e João Labareda em Código da Insolvência e Recuperação da Empresa Anotado dizem que “continua a ser segura a não vinculação dos administradores a qualquer eventual deliberação do outros órgãos- mesmo se for o caso do colectivo corporativo segundo a qual o devedor não se deva apresentar a insolvência.  Da mesma forma que, sendo a situação de insolvência objectivamente definida em função da situação concreta do devedor será sempre totalmente irrelevante qualquer declaração ou deliberação através da qual se afirme a saúde económico-financeira. Daqui decorrem dois corolários que por assim dizer representam as faces diferentes de uma única moeda. Por um lado, verificada a situação de insolvência cabe aos administradores promover a apresentação, seja qual for o sentido das deliberações de outros órgãos se as houver; por outro, ignorando tais deliberações e agindo contra elas, os administradores não praticam  nenhum acto ilícito e não podem por isso ser penalizados em nenhum plano.”

Pedro de Albuquerque, (em O Direito, ano 137º, 2005, III, página 517) diz que “Não falta quem considere que sendo devedor uma sociedade para além das exigências constantes do artigo 24 nº2, alínea a), se mostraria ainda necessária a apresentação de uma acta da Assembleia Geral (…). E isto porque a dissolução da sociedade depende de deliberação dos sócios ( artigos 1007 e 1008  do Código Civil e artigo 383 nº2 , do Código das Sociedades Comerciais (...). Com a devida vénia não se vê como acompanhar semelhante exigência (...). Levada às suas naturais consequências,  a construção em referência redundaria em exigir uma deliberação dos sócios em todos os casos de dissolução o que é inaceitável. Aliás o artigo 141, nº1, alínea e) do Código das Sociedades Comerciais é claro ao contrapor e distinguir a dissolução por efeito da falência da dissolução por deliberação dos sócios.(...) Acresce não se vislumbrar porque razão se deveria exigir a deliberação dos sócios no caso de apresentação e se não devesse exigir idêntica deliberação nos casos em que processa desencadeado por outra legitimados. Se essa exigência pode faltar nuns casos também também o pode nos outros. Nada impõe outra entendimento. Tanto mais quanto é certa a circunstância de no caso das sociedade recair sobre os gestores um dever de apresentação, cujo cumprimento não pode nem deve ficar condicionados por deliberações dos sócios, pela sua diferente leitura da situação ou sequer pelas dificuldades de convocar imediatamente  assembleias gerais ou de cumprir o respectivo quorum”

Com o regime introduzido pelo CIRE,   face ao teor do artigo 19 a decisão apresentação da sociedade à insolvência não depende de prévia deliberação dos sócios prevista no artigo 383 nº2 do Código das Sociedades Comerciais, cabendo aos administradores a iniciativa da apresentação à insolvência

Como salienta Carvalho Fernandes e João Labareda verdadeiramente o  que importa é que verificada a situação de insolvência do devedor se apresenta atempadamente sendo menor a questão que se prende com quem promova  a apresentação precisamente por isso é que ela estende aos administradores a correspondente competência que frequentemente não teria

Esta solução ganha nova pujança por força do regime que ele desencadeia no caso de incumprimento do dever como fundamentalmente se pode ver nos artigos 186 número 3:04, 188 e 189 no caso de falta de apresentação atempada os administradores ficam pessoalmente sujeitos a  sanções diversas de caráter pessoal e patrimonial. Ora não pode razoavelmente aceitar-se que os administradores sejam penalizados pela falta de apresentação à insolvência e simultaneamente eles não estivessem investidos da competência necessária para decidir a instauração da acção

Quanto à inconstitucionalidade do art. 24, nº2, al. a) do CIRE no sentido de que a “deliberação da iniciativa do pedido por parte do respectivo órgão social de administração” pode ser uma mera decisão do conselho de administração é inconstitucional, por violação da tutela constitucional do direito de propriedade dos sócios, que podem dele ser privados sem ser disso informados.

Nos termos do art. 3º, nº1, do CIRE é considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as obrigações vencidas.

A insolvência, de acordo com esta norma, verifica-se quando existe impossibilidade de cumprimento pontual das obrigações por ausência de liquidez, e não à insuficiência patrimonial, que se traduz numa situação liquída negativa. Uma situação liquida positiva não afasta a insolvência, se se verificar que a falta de crédito não permite ao devedor superar a carência de liquidez para cumprir as suas obrigações (Menezes Leitão, Direito da Insolvência, Almedina, 2009, pág. 79)

O Acórdão do Tribunal Constitucional nº 273/04, entre outros, em www.dgsi.pt, quanto à garantia constitucional da propriedade privada, diz que o direito de propriedade a que se refere o art. 62 da Constituição “não abrange apenas a propriedade rerum, os direitos reais menores, a propriedade intelectual e a propriedade industrial, mas também outros direitos que normalmente não são incluídos sob a designação de «propriedade», tais como, designadamente, os direitos de crédito e os «direitos sociais».

Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª Edição  Revista, Coimbra Editora, 1993, pág. 331) em comentário ao art. 62 dizem que “o espaço semântico-constitucional do direito de propriedade não se limita ao universo das coisas. Parece seguro que ele não coincide com o conceito civilístico tradicional, abrangendo, não apenas a propriedade das coisas (mobiliárias e imobiliárias) mas também (...) outros direitos de valor patrimonial (direitos de autor, direitos de crédito, direitos sociais)”

O Acórdão do Tribunal Constitucional nº 128/95, em www.dgsi.pt, entre outros , diz que “Da garantia constitucional do direito de propriedade privada, há-de, seguramente, extrair-se a garantia (constitucional também) do direito do credor à satisfação do seu crédito. E este direito há-de, naturalmente, conglobar a possibilidade da sua realização coactiva, à custa do património do devedor, como, de resto, se prescreve no art. 601 do Código Civil.[...]”  

Esta garantia constitucional, decorrente da garantia constitucional da propriedade privada, abrange apenas os meios ou instrumentos essenciais à tutela da garantia patrimonial do direito do credor que integram a dimensão essencial do direito de crédito que pode ser objecto de tutela no art. 62 da Constituição.

Nos termos do art. 1º do CIRE, o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores.

Como resulta do exposto, o direito de propriedade protegido constitucionalmente, de que resulta também a protecção do direito dos credores obterem a satisfação do seu crédito através do património do devedor, tem um dos seus expoentes no processo de insolvência, que visa a distribuição do valor obtido com o património, pela satisfação dos créditos detidos pelos credores.

A apresentação da sociedade à insolvência, pelos administradores da sociedade, a que estão obrigados sob pena de incorrerem nas responsabilidades previstas no art. 186 do CIRE, não põe em causa a propriedade dos sócios sobre as participações no capital da empresa, constituindo um acto de gestão da sociedade com vista ao cumprimento das dividas da sociedade.

Face ao exposto, consideramos que não se verifica a invocada inconstitucionalidade, não apresentando qualquer vício a apresentação da Recorrida à insolvência, improcedendo o recurso e mantendo-se a decisão recorrida.

Custas pela Recorrente.

Lisboa,  7.7.2016

Octávia Viegas

Rui da Ponte Gomes

Luís Correia de Mendonça