Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
19176/22.0T8LSB-A.L1-7
Relator: CRISTINA COELHO
Descritores: PROCESSO DE REGRESSO DE MENOR
CONVENÇÃO DE HAIA
REGULAMENTO BRUXELAS II BIS
EXEQUATUR
ESTABILIDADE DA CRIANÇA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/24/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. Na apreciação das questões colocadas no âmbito de processo de regresso de menor há de atentar-se ao estipulado na Convenção de Haia sobre os Aspetos Civis de Rapto Internacional de Crianças concluída em Haia a 25.10.1980 e ratificada pelo Estado Português através do DL. 33/83 de 15.05, completado pelas disposições do Regulamento Bruxelas II bis (aplicável atenta a data de propositura da ação no país de origem), disposições estas que prevalecem sobre as da Convenção em matérias abrangidas pelo Regulamento (art.º 60º do Regulamento).
2. A secção 4 do capítulo III relativo ao “reconhecimento e execução”, do Regulamento Bruxelas II bis, prevê um regime específico/privilegiado, no qual se aboliu o exequatur.
3. Subjacente à decisão deve estar sempre o superior interesse das crianças.
4. A estabilidade emocional da criança não pode ser posta em causa a qualquer preço, sem soluções equilibradas e de continuidade.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO
Em 4.8.2022, J instaurou processo tutelar comum com vista ao regresso imediato à Alemanha dos menores B e C, filhos da Requerente e de G.
Depois de vário processado, em 16.9.2022, foi proferida decisão que julgou inepto o procedimento, em face da sua manifesta inviabilidade, com os seguintes fundamentos: “… Cumpre apreciar e decidir. Visa a Convenção Sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças, assegurar o regresso imediato das crianças ilicitamente transferidas para qualquer Estado Contratante ou nele retidas indevidamente e fazer respeitar de maneira efetiva nos outros Estados Contratantes os direitos de custódia e de visita existentes num Estado Contratante. (Artigo 1º). Deverão os Estados Contratantes deverão tomar todas as medidas convenientes que visem assegurar, nos respetivos territórios, a concretização dos objetivos da Convenção. Para o efeito, deverão recorrer a procedimentos de urgência. A Convenção indica no seu artigo 3º, que se entende por ilícita a deslocação ou a retenção de uma criança quando: - tenha sido efetivada em violação de um direito de custódia atribuído a uma pessoa ou a uma instituição ou a qualquer outro organismo, individual ou conjuntamente, pela lei do Estado onde a criança tenha a sua residência habitual imediatamente antes da sua transferência ou da sua retenção; e este direito estiver a ser exercido de maneira efetiva, individualmente ou em conjunto, no momento da transferência ou da retenção, ou o devesse estar se tais acontecimentos não tivessem ocorrido. Concretiza ainda que o direito de custódia referido na alínea a) pode designadamente resultar quer de uma atribuição de pleno direito, quer de uma decisão judicial ou administrativa, quer de um acordo vigente segundo o direito deste Estado. A Convenção aplica-se a qualquer criança com residência habitual num Estado Contratante, imediatamente antes da violação do direito de custódia ou de visita. A aplicação da Convenção cessa quando a criança atingir a idade de 16 anos. O «direito de custódia» inclui o direito relativo aos cuidados devidos à criança como pessoa, e, em particular, o direito de decidir sobre o lugar da sua residência; O «direito de visita» compreende o direito de levar uma criança, por um período limitado de tempo, para um lugar diferente daquele onde ela habitualmente reside. A autoridade judicial ou administrativa do Estado requerido não é obrigada a ordenar o regresso da criança se a pessoa, instituição ou organismo que se opuser ao seu regresso provar: a) Que a pessoa, instituição ou organismo que tinha a seu cuidado a pessoa da criança não exercia efetivamente o direito de custódia na época da transferência ou da retenção, ou que havia consentido ou concordado posteriormente com esta transferência ou retenção; ou que existe um risco grave de a criança, no seu regresso, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, a ficar numa situação intolerável. A autoridade judicial ou administrativa pode também recusar-se a ordenar o regresso da criança se verificar que esta se opõe a ele e que a criança atingiu já uma idade e um grau de maturidade tais que levem a tomar em consideração as suas opiniões sobre o assunto. Ao apreciar as circunstâncias referidas neste Artigo, as autoridades judiciais ou administrativas deverão ter em consideração as informações respeitantes à situação social da criança fornecidas pela autoridade central ou por qualquer outra autoridade competente do Estado da residência habitual da criança. Na situação em apreço, das alegações de ambas as partes e dos documentos carreados para os autos, resulta que ambos os progenitores exercem de modo conjunto as responsabilidades parentais sobre os filhos que têm em comum. Não invocou nenhum dos progenitores que as responsabilidades parentais tenham sido objeto de qualquer acordo homologado por entidade administrativa ou judicial alemã, inglesa ou de outra nacionalidade. Resulta até da factualidade alegada e dos documentos juntos com a petição inicial, devidamente traduzidos que quando os progenitores divergiram quanto ao aspeto da residência dos menores, o pai, ora requerido, em Julho de 2022, instaurou junto das autoridades judiciárias alemãs, ação destinada a suprir tal consentimento, tendo a mãe contestado tal pedido. Nessa ação invoca o progenitor que a mãe acordou com a alteração de residência dos menores para Lisboa e depois alterou a sua posição, em prejuízo do superior interesse das crianças. Afigura-se-nos, pois, que inexistindo qualquer decisão judicial que tenha fixado a residência das crianças em Berlim, em face da factualidade alegada por ambos os progenitores e dos documentos juntos não é possível concluir que as crianças estejam ilicitamente em território nacional. Com efeito, apenas após a decisão da ação pendente na Alemanha e caso a mesma fixe em Berlim a residência habitual das crianças se poderão considerar preenchidos os pressupostos para a aplicação da Convenção, o que por ora não se verifica, nem tão pouco está alegado. Acresce que o n.º 2 do artigo 19º do Regulamento (CE) n.° 2201/2003 do Conselho, de 27 de Novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental, sob epigrafe “Litispendência e ações dependentes,” prevê que: Quando são instauradas em tribunais de Estados-Membros diferentes ações relativas à responsabilidade parental em relação à uma criança, que tenham o mesmo pedido e a mesma causa de pedir, o tribunal em que o processo foi instaurado em segundo lugar suspende oficiosamente a instância até que seja estabelecida a competência do tribunal em que o processo foi instaurado em primeiro lugar. Quando estiver estabelecida a competência do tribunal em que o processo foi instaurado em primeiro lugar, o tribunal em que o processo foi instaurado em segundo lugar declarar-se incompetente a favor daquele. Neste caso, o processo instaurado no segundo tribunal pode ser submetida pelo requerente à apreciação do tribunal em que a ação foi instaurada em primeiro lugar. Ora, é essa manifestamente a situação em apreço. O prosseguimento deste processo seria sempre suscetível de colidir com o que viesse a ser decidido na ação pendente cujas peças processuais foram juntas aos autos e gerar decisões contraditórias nos dois países. A questão colocada à apreciação deste Tribunal, poderá e deverá ser suscitada no Tribunal que já aceitou a sua competência para a apreciação das questões atinentes à regulação das responsabilidades parentais das duas crianças filhas da Requerente e do Requerido, e nesse Tribunal e País poderá ser suscitada a intervenção da Autoridade Central, caso a decisão sendo favorável à Requerente, não seja cumprida. …”.
Não resulta dos autos que da referida decisão tenha sido interposto recurso.
Em 23.9.2022, a Requerente veio instaurar a presente providência tutelar cível de incumprimento das responsabilidades parentais contra o Requerido, pedindo que se ordene a imediata entrega das crianças à Requerente, sem dependência de prévia audiência do Requerido, procedendo-se à emissão de mandados de entrega das crianças à Requerente.
Fundamentou a sua pretensão nos seguintes termos:
Requerente e Requerido viveram juntos desde 2014, em Berlim, dessa relação tendo nascido as crianças B (nascido a 24.2.2016) e C (nascido a 4.10.2017).
Requerente e Requerido encontram-se definitivamente separados desde o outono de 2019, mantendo-se a situação que se vinha verificando até essa data, ou seja, vivendo as crianças com a mãe em Berlim, pernoitando cerca de 2 vezes por semana no apartamento do Requerido na mesma cidade.
No início de 2021, o Requerido resolveu mudar a sua residência para Malta, e, posteriormente, para Portugal, acabando por fixar residência em Lisboa.
Na sequência de divergências surgidas entre Requerente e Requerido quanto ao lugar de residência das crianças, este instaurou na Alemanha providência cautelar cível, onde ambos os progenitores pretendem que a residência dos filhos seja fixada consigo.
Na sequência de uma estadia de férias em Portugal, o Requerido informou a Requerente que não entregava as crianças conforme estava combinado, ficando estas retidas ilicitamente em Lisboa, o que determinou a Requerente a instaurar a providência tutelar junto do tribunal português, que considerou existir risco da tramitação do processo em Portugal colidir com o processo alemão.
Sucede que o tribunal alemão, em 20.9.2022, indeferiu o pedido do Requerido, atribuindo o direito de residência das crianças à Requerente, decidindo que a retenção das crianças em Lisboa era ilegal.
As decisões são executórias na Alemanha, tendo sido proferidas após a audição das crianças, das partes, ponderadas as provas, ao abrigo do art.º 13º da Convenção de Haia de 1990.
O Requerido foi notificado e interpelado pela Requerente para entregar as crianças, tendo informado que o não vai fazer, continuando as crianças retidas em Portugal.
Existe grave perigo de fuga do Requerido com as crianças, atenta a sua forma de organizar a sua vida, em vários países, e a fortuna que possui.
Após despacho a ordenar a remessa dos autos, com menção de urgente, para apensação ao P. xxx/22.0T8LSB, em 6.10.2022, foi proferido o seguinte despacho: “… Cumpre apreciar e decidir. Visa a Convenção Sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças, assegurar o regresso imediato das crianças ilicitamente transferidas para qualquer Estado Contratante ou nele retidas indevidamente e fazer respeitar de maneira efetiva nos outros Estados Contratantes os direitos de custódia e de visita existentes num Estado Contratante. (Artigo 1º). Deverão os Estados Contratantes deverão tomar todas as medidas convenientes que visem assegurar, nos respetivos territórios, a concretização dos objetivos da Convenção. Para o efeito, deverão recorrer a procedimentos de urgência. A Convenção indica no seu artigo 3º, que se entende por ilícita a deslocação ou a retenção de uma criança quando: - tenha sido efetivada em violação de um direito de custódia atribuído a uma pessoa ou a uma instituição ou a qualquer outro organismo, individual ou conjuntamente, pela lei do Estado onde a criança tenha a sua residência habitual imediatamente antes da sua transferência ou da sua retenção; - e este direito estiver a ser exercido de maneira efetiva, individualmente ou em conjunto, no momento da transferência ou da retenção, ou o devesse estar se tais acontecimentos não tivessem ocorrido. Concretiza ainda que o direito de custódia referido na alínea a) pode designadamente resultar quer de uma atribuição de pleno direito, quer de uma decisão judicial ou administrativa, quer de um acordo vigente segundo o direito deste Estado. A Convenção aplica-se a qualquer criança com residência habitual num Estado Contratante, imediatamente antes da violação do direito de custódia ou de visita. A aplicação da Convenção cessa quando a criança atingir a idade de 16 anos. O «direito de custódia» inclui o direito relativo aos cuidados devidos à criança como pessoa, e, em particular, o direito de decidir sobre o lugar da sua residência; O «direito de visita» compreende o direito de levar uma criança, por um período limitado de tempo, para um lugar diferente daquele onde ela habitualmente reside. A autoridade judicial ou administrativa do Estado requerido não é obrigada a ordenar o regresso da criança se a pessoa, instituição ou organismo que se opuser ao seu regresso provar: a) Que a pessoa, instituição ou organismo que tinha a seu cuidado a pessoa da criança não exercia efetivamente o direito de custódia na época da transferência ou da retenção, ou que havia consentido ou concordado posteriormente com esta transferência ou retenção; ou que existe um risco grave de a criança, no seu regresso, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, a ficar numa situação intolerável. A autoridade judicial ou administrativa pode também recusar-se a ordenar o regresso da criança se verificar que esta se opõe a ele e que a criança atingiu já uma idade e um grau de maturidade tais que levem a tomar em consideração as suas opiniões sobre o assunto. Ao apreciar as circunstâncias referidas neste Artigo, as autoridades judiciais ou administrativas deverão ter em consideração as informações respeitantes à situação social da criança fornecidas pela autoridade central ou por qualquer outra autoridade competente do Estado da residência habitual da criança. Na situação em apreço, a mãe logrou juntar aos autos cópia de decisão cautelar proferida em Tribunal Alemão que lhe atribui a exclusiva residência dos menores. Sem descurarmos que não consta dos autos que tal decisão tenha transitado, certo é que a mesma foi proferida, com realização do contraditório, devendo ser assegurada a sua imediata execução. Com efeito, está pendente ação na Alemanha e fixou a residência habitual das crianças junto da mãe pelo que estão preenchidos os pressupostos para a aplicação da Convenção. Deste modo, julgo procedente o presente procedimento e consequentemente a) determino a imediata entrega das crianças B e C à sua mãe J. b) Nos termos do artigo 11º da referida Convenção, determino ainda que se: - Oficie ao Gabinete Sirene, com vista à inclusão dos dados de B e C nos SIS (Sistema de Informação Schengen) como MD (Menor Desaparecido), impedindo deslocações no interior ou para o exterior Espaço Schengen, desde que acompanhadas da sua progenitora; - Oficie o DIRD (Departamento de Imigração, Registo e Difusão), comunicando as informações atinentes às crianças para efeito de controle de saída do espaço aéreo e marítimo dentro do Espaço Schengen. Notifique.”.
Em 7.10.2022, foi proferido o seguinte despacho: “Com vista a serem acionados os mecanismos de controle SIRENE antes da notificação do Requerido, de modo a não se frustrarem o objetivo dos autos, a notificação do progenitor requerido sé deverá ser realizada 78 depois da notificação das referidas entidades.”.
Foram notificados o Gabinete SIRENE e o DIRD.
Em 10.10.2022, a Requerente informou que se encontrava em Portugal, podendo as crianças ser-lhe entregues “desde já”.
Em 11.10.2022, o Requerido foi notificado do despacho de 6.10.2022.
Feita vista ao MP, este após “Visto (o douto despacho proferido no âmbito destes autos a 6 de Outubro de 2022 não teve prévia promoção do MP).”.
Em 12.10.2022 foi proferido o seguinte despacho: “… Estando a progenitora já em Portugal, passe mandados de entrega das crianças à progenitora, determinando o seu cumprimento de modo articulado com a mesma. As comunicações deverão ser realizadas com o Ilustre mandatário da mãe, por ser desconhecido o domicílio desta e poder não haver domínio da língua portuguesa, por parte da progenitora. O ofício à PSP para cumprimento de mandados, deverá ser acompanhado do requerimento da progenitora, no sentido de ser solicitada a presença de agentes e veículo descaracterizado, se possível, de modo a procurar minimizar o impacto psicológico nas crianças. No momento da entrega, deverá ser entregue ao progenitor ou a quem o representar cópia do despacho 76 a 77 verso e do presente despacho.”.
Em 14.10.2022, o Requerido veio invocar a nulidade do despacho proferido a 6.10.2022, pedindo que se declare tal nulidade, bem como da entrega dos menores, e da emissão de mandados, sejam ouvidas as crianças e o Requerido, e, após, citado o MP e o Requerido para contestarem, e ordenada a entrega dos menores ao Requerido face à nulidade das decisões proferidas e executadas.
O MP promoveu o indeferimento do requerido, pois o decidido não teve por base o preceituado no RGPTC, para além do meio utilizado não ser adequado.
Em 20.10.2022, foi proferido o seguinte despacho: “Como bem alega a Digna Magistrada do Ministério Público  o despacho colocado em crise foi decretado ao abrigo da Convenção Sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças, e em função da decisão entretanto proferida nos autos que correm termos perante Autoridades Judiciárias Alemãs e não no Regime Geral do Processo Tutelar Cível, aprovado pela Lei nº 141/2015, de 8 de setembro, pelo que a decisão não padece de vício, ou nulidade, por omissão de pronúncia do Ministério Público. Acresce que encontra-se ainda em curso prazo para contraditório. Notifique.”.
Em 24.10.2022, o Requerido veio pronunciar-se sobre a ordenada entrega das crianças, arguindo nulidades nos termos já invocados, que colocam em risco o superior interesse dos menores.
A Requerente pugnou no sentido de serem desatendidas as nulidades invocadas e mantida a decisão de entrega das crianças.
O MP renovou a promoção anterior, sustentado mostrar-se esgotado o objetivo pretendido com a instauração destes autos, uma vez que as crianças já se encontram na Alemanha.
Em 2.11.2022 [1], o Requerido apelou da decisão de 6.10.2022 tendo no final das respetivas alegações formulado as seguintes conclusões, que se reproduzem:
1. Não poderia o Tribunal a quo ter julgado procedente o procedimento intentado pela Recorrente e ter, em consequência, ordenado a imediata entrega dos menores à Recorrida, sem ter ordenado a realização de diligências que resultam, seja da própria Convenção de Haia de 1980, seja do Regulamento 2201/2003, seja do Regulamento que o substituiu, o Regulamento 2019/1111, seja ainda da própria lei interna portuguesa.
2. Diligências estas que visam permitir que o progenitor que retém a criança se pronuncie e que faça, eventualmente, prova da existência de situações que determinem que o Tribunal não ordene o regresso da criança.
3. Preteriu o Tribunal a quo o cumprimento de formalidades legais ao omitir seja a possibilidade de o Recorrente se pronunciar, seja a realização de diligências que o mesmo pudesse vir a requerer, o que acarreta a nulidade da decisão recorrida.
4. Com a preterição de diligências que permitissem averiguar a situação em que as crianças ficariam no seu regresso à Alemanha, situação essa que poderia determinar que não fosse ordenado o seu regresso, impediu o Tribunal a quo que fossem provados factos que fundamentassem uma alteração da decisão recorrida, no sentido de não ser ordenado o regresso das crianças.
5. Deve, pois, ser anulada a decisão recorrida, com todas as consequências legais.
Termina pedindo que se anule a decisão recorrida, com todas as demais consequências legais.
A progenitor contra-alegou, pugnando pela intempestividade do recurso, ou assim não se entendendo, pela sua improcedência, com confirmação do despacho recorrido.
O MP contra-alegou, pugnando pela rejeição liminar do recurso por inutilidade, uma vez que, com a entrega das crianças à progenitora, que já se concretizou, nada mais se conseguirá executar e efetivar no âmbito dos autos em apreço.
QUESTÕES A DECIDIR
Sendo o objeto do recurso balizado pelas conclusões do recorrente (arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do CPC) a única questão a decidir é se ocorre nulidade processual por preterição de formalidade legais [2].
Cumpre decidir, corridos que se mostram os vistos.
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A factualidade relevante é a constante do relatório.
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
QUESTÕES PRÉVIAS
Nas contra-alegações, a apelada invocou:
- a intempestividade do recurso interposto pelo Requerido.
Esta questão foi apreciada em sede de despacho liminar, no qual se julgou o recurso tempestivo atendendo à data de registo no correio do envio da referida peça processual, não obstante a sua digitalização no citius em data posterior.
- a extemporaneidade da arguição da nulidade em sede de recurso.
Em primeiro lugar cumpre referir que o Requerido invocou, tempestivamente, perante o tribunal de 1ª instância, as nulidades processuais que entende terem ocorrido, que foram apreciadas por despacho de 20.10.2022.
Em segundo lugar, as nulidades invocadas (omissão de audição do Requerido e de realização de diligências antes de proferir o despacho recorrido) estão a coberto de despacho que decidiu omitindo os referidos atos.
Alberto dos Reis, no Comentário ao CPC, Vol. 2º, pág. 507, escrevia que “a arguição da nulidade só é admissível quando a infração processual não está ao abrigo de qualquer despacho judicial; se há um despacho a ordenar ou autorizar a prática ou omissão do ato ou da formalidade, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade que se tenha cometido, não é a arguição ou reclamação por nulidade, é a impugnação do respetivo despacho pela interposição do recurso competente”. E, na pág. 508, explicava que se a infração cometida foi efeito do despacho, então, “estamos em presença dum despacho ilegal, dum despacho que ofendeu a lei de processo. Portanto a reação contra a ilegalidade traduz-se num ataque ao despacho que a autorizou ou ordenou; ... Se em vez de recorrer do despacho, se reclamasse contra a nulidade, ir-se-ia pedir ao juiz que alterasse ou revogasse o seu próprio despacho, o que é contrário ao princípio de que, proferida decisão, fica esgotado o poder jurisdicional de quem decidiu (art. 666º)”.
Também Manuel de Andrade, em Noções Elementares de Processo Civil, pág. 183, escrevia que “se a nulidade está coberta por uma decisão judicial (despacho), que ordenou, autorizou ou sancionou o respetivo ato ou omissão em tal caso o meio próprio para a arguir não é a simples reclamação, mas o recurso competente, a deduzir (interpor) e tramitar como qualquer outro do mesmo tipo. É a doutrina tradicional, condensada na máxima: dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se”.
No mesmo sentido, Anselmo de Castro, no Direito Processual Civil Declaratório, vol. III, 1982, pág. 134, escrevia que “(…) Tradicionalmente entende-se que a arguição da nulidade só é admissível quando a infração processual não está, ainda que indireta ou implicitamente, coberta por qualquer despacho judicial; se há um despacho que pressuponha o ato viciado, diz-se, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade cometida, não é a arguição ou reclamação por nulidade, mas a impugnação do respetivo despacho pela interposição do competente recurso, conforme a máxima tradicional – das nulidades reclama-se, dos despachos recorre-se. A reação contra a ilegalidade volver-se-á então contra o próprio despacho do juiz; ora o meio idóneo para atacar ou impugnar despachos ilegais é a interposição do respetivo recurso (art. 677, nº 1), por força do princípio legal de que, proferida a decisão, fica esgotado o poder jurisdicional (art. 666). (…).”
Com interesse nesta matéria, pode ver-se o Ac. do STJ de 23.6.2016, P. 1937/15.8T8BCL.S1 (Abrantes Geraldes), em www.dgsi.pt, em cujo sumário se escreve que “… III. A omissão de ato destinado a proporcionar ao autor o contraditório relativamente à exceção de caducidade do exercício do direito de reconhecimento da paternidade deduzida ao abrigo do art. 1817º, nº 1, ex vi art. 1873º do CC, determina a nulidade do despacho saneador onde tal exceção foi apreciada e julgada procedente. …”.
Nesta conformidade, a arguição da nulidade é tempestiva.
*
Entremos no objeto do recurso.
Os presentes autos, intentados como providência tutelar cível de incumprimento das responsabilidades parentais, foram autuados como providência judicial de entrega de menor, conforme ordenado no despacho de 6.10.2022.
A presente ação visava a imediata entrega das crianças à Requerente, em execução da decisão provisória do Tribunal Distrital de Kreuzberg, de 19.9.2022, com base em certidões emitidas ao abrigo do Regulamento (CE) nº 2201/2003, de 27 de novembro.
Conforme resulta da certidão da decisão provisória de 19.9.2022, junta aos autos:
- o Tribunal Distrital de Kreuzberg decidiu “1. Por decisão provisória, o direito de residência das crianças B, nascido a 24.2.2016, e C, nascido a 4.10.2017, é atribuída à mãe, a título exclusivo. 2. Os pedidos do pai são rejeitados. 3. O pai é obrigado a entregar os filhos B, nascido a 24.2.2016, e C, nascido a 4.10.2017, à mãe. …”;
- o tribunal alemão considerou-se competente nos termos do art. 8º do Regulamento (CE) nº 2201/2003 do Conselho, e aplicou a lei alemã de acordo com o art. 15º da Convenção de Haia, devido à residência habitual das crianças na Alemanha;
- na referida decisão provisória foram apreciados os pedidos formulados pelo progenitor (“o pai pediu provisoriamente a transferência para si do exercício das responsabilidades parentais, a título exclusivo, no que diz respeito à residência, e à inscrição das crianças na Escola Britânica de Lisboa, pedindo que as crianças fossem levadas para Lisboa (aqui em curso).”), e pela progenitora (“pediu o indeferimento dos pedidos do pai e, por sua vez, solicitou que lhe fosse atribuído o direito de residência dos dois filhos”);
- foi nomeado curador ad litem às crianças que procedeu à sua audição;
- realizou-se audição dos pais, das crianças, do Gabinete da Juventude, e do curador ad litem;
- o pedido do pai foi indeferido “A fim de evitar um risco agudo para o bem-estar das crianças, sob a forma de danos psicológicos iminentes para as crianças em virtude da cessação iminente do contacto com a mãe, apoiado pelas influências presumivelmente ocorridas contra a mãe no agregado familiar do pai”);
- consta da decisão: “…, as acusações graves do pai sobre a mãe, de que a mãe é mentalmente instável e teria agredido as crianças no passado, também devem ser tidas em conta. A ser verdade, tal poderia constituir um obstáculo à transferência do direito de residência. No que diz respeito à estabilidade psicológica da mãe, há que ter em conta que esta lida abertamente com a sua crise na primavera do ano passado e que recebeu tratamento especializado, tanto antes como depois da crise. O terapeuta que a acompanha nega a existência de limitações às competências parentais devido ao estado mental. Alem disso, a mãe está disposta a cooperar intensamente com o Gabinete da Juventude, o que garante que será visitada regularmente por especialistas que certamente perceberiam uma instabilidade psicológica da mãe, especialmente porque estão especialmente alertados para essa possibilidade. Além disso, deve também ser tomado em consideração que, no agregado familiar da mãe, trabalha uma ama, e contactaria o Gabinete da Juventude ou os profissionais encarregues da promoção e proteção de crianças caso tal se mostrasse pertinente. …”;
- consta da decisão: “Pelas mesmas razões pelas quais o direito de residência deve ser atribuído à mãe, deverá igualmente determinar-se a entrega das crianças à mãe, nos termos do § 1632 para. 1 do Código Civil. Nos termos do § 1632 para. 1 do Código Civil, os cuidados pessoais também incluem o direito de exigir a entrega da criança a qualquer pessoa que a retenha ilegalmente de um progenitor. Este é o caso aqui.  … A mãe deseja exercer o direito de residência de forma a que as crianças continuem a viver com ela, na casa de morada de família. O pai, no entanto, reteve as crianças na sua casa de Lisboa. Esta já era uma retenção ilegal, porque mesmo no caso de exercício conjunto do direito de residência, nenhum dos pais está autorizado, sozinho, a alterar a residência habitual das crianças. Isto é ainda mais verdade depois da decisão de hoje sobre o direito de determinar a residência.”.
Foram juntas certidões, “ANEXO II CERTIDÃO REFERIDA NO ARTIGO 39º RELATIVA A DECISÕES EM MATÉRIA DE RESPONSABILIDADE PARENTAL”, da qual consta que a referida decisão provisória não foi emitida à revelia, é executória nos termos da lei do Estado-Membro de origem, e implica o regresso da criança, e “ANEXO IV CERTIDÃO REFERIDA NO Nº 1 DO ARTUIGO 42º RELATIVA AO REGRESSO DA CRIANÇA”, da qual consta, também, que a decisão implica o regresso da criança, e é executória nos termos da lei do Estado-Membro de origem, e ainda que a criança e as partes tiveram oportunidade de ser ouvidas, e o tribunal teve em conta na sua decisão os motivos e elementos de prova, assentando a decisão nos termos da alínea b) do artigo 13º da Convenção de Haia, de 25 de outubro de 1980.
Na apreciação das questões colocadas na presente ação há de atentar-se ao estipulado na Convenção de Haia sobre os Aspetos Civis de Rapto Internacional de Crianças concluída em Haia a 25.10.1980 e ratificada pelo Estado Português através do DL. 33/83 de 15.05, completado pelas disposições do Regulamento nº 2201/2003 do Conselho da União Europeia de 27.11.2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental (denominado Bruxelas II bis), disposições estas que prevalecem sobre as da Convenção em matérias abrangidas pelo Regulamento (art. 60º do Regulamento) [3].
Como escrevem Helena Bolieiro e Paulo Guerra, em A Criança e a Família – Uma Questão de Direito(s), pág. 437, “As normas da Convenção visam um processado expedito para fazer cessar uma situação ilícita de retirada de uma criança, com base na ideia de que há efeitos prejudiciais dessa retirada. Tal imposição visa evitar a legitimação, contra os interesses da criança, de comportamentos dos progenitores, com condutas contrárias às decisões assumidas de guarda e, sobretudo, independentemente da questão de fundo, fazer retornar, de forma célere e expedita, a criança a quem foi retirada”.
É inquestionável o carácter célere que tem de ser atribuído a este tipo de processos [4].
O fim visado é a restauração efetiva, o mais rápido possível, da situação precedente ao rapto ou retenção ilícita.
A Convenção reproduz no artigo 1º os seus objetivos (principais), de acordo, aliás, com o constante do respetivo Preâmbulo, dispondo que a Convenção “tem por objeto: a) Assegurar o regresso imediato das crianças ilicitamente transferidas para qualquer Estado Contratante ou nele retidas indevidamente; b) Fazer respeitar de maneira efetiva nos outros Estados Contratantes os direitos de custódia e de visita existentes num Estado Contratante”.
Dispõe o art.º 12º da Convenção e Haia de 1980 que “Quando uma criança tenha sido ilicitamente transferida ou retida nos termos do Artigo 3.º e tiver decorrido um período de menos de 1 ano entre a data da deslocação ou da retenção indevidas e a data do início do processo perante a autoridade judicial ou administrativa do Estado contratante onde a criança se encontrar, a autoridade respetiva deverá ordenar o regresso imediato da criança. A autoridade judicial ou administrativa respetiva, mesmo após a expiração do período de 1 ano referido no parágrafo anterior, deve ordenar também o regresso da criança, salvo se for provado que a criança já se encontra integrada no seu novo ambiente. …”.
Por seu turno, o art.º 13º estatui que “Sem prejuízo das disposições contidas no Artigo anterior, a autoridade judicial ou administrativa do Estado requerido não é obrigada a ordenar o regresso da criança se a pessoa, instituição ou organismo que se opuser ao seu regresso provar: a) Que a pessoa, instituição ou organismo que tinha a seu cuidado a pessoa da criança não exercia efetivamente o direito de custódia na época da transferência ou da retenção, ou que havia consentido ou concordado posteriormente com esta transferência ou retenção; ou b) Que existe um risco grave de a criança, no seu regresso, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, a ficar numa situação intolerável. A autoridade judicial ou administrativa pode também recusar-se a ordenar o regresso da criança se verificar que esta se opõe a ele e que a criança atingiu já uma idade e um grau de maturidade tais que levem a tomar em consideração as suas opiniões sobre o assunto. Ao apreciar as circunstâncias referidas neste Artigo, as autoridades judiciais ou administrativas deverão ter em consideração as informações respeitantes à situação social da criança fornecidas pela autoridade central ou por qualquer outra autoridade competente do Estado da residência habitual da criança.”.
Como referido, as disposições do Regulamento Bruxelas II bis prevalecem sobre as da Convenção em matérias abrangidas pelo Regulamento, na medida em que este visou aperfeiçoar e completar o sistema daquela, tentando garantir um regresso efetivamente rápido da criança ao país de residência habitual antes da deslocação ilícita, como resulta do considerando (17) do Preâmbulo do Regulamento e do art.º 11º, nº 1.
Dispõe o art.º 11º do Regulamento Bruxelas II bis que “1. Os n.ºs 2 a 8 são aplicáveis quando uma pessoa, instituição ou outro organismo titular do direito de guarda pedir às autoridades competentes de um Estado-Membro uma decisão, baseada na Convenção da Haia de 25 de Outubro de 1980 sobre os aspetos civis do rapto internacional de crianças (a seguir designada «Convenção de Haia de 1980»), a fim de obter o regresso de uma criança que tenha sido ilicitamente deslocada ou retida num Estado-Membro que não o da sua residência habitual imediatamente antes da deslocação ou retenção ilícitas. 2. Ao aplicar os artigos 12º e 13º da Convenção da Haia de 1980, deve-se providenciar no sentido de que a criança tenha a oportunidade de ser ouvida durante o processo, exceto se tal for considerado inadequado em função da sua idade ou grau de maturidade. … 4. O tribunal não pode recusar o regresso da criança ao abrigo da alínea b) do artigo 13.o da Convenção da Haia de 1980, se se provar que foram tomadas medidas adequadas para garantir a sua proteção após o regresso. … 6. Se um tribunal tiver proferido uma decisão de retenção, ao abrigo do artigo 13º da Convenção da Haia de 1980, deve imediatamente enviar, diretamente ou através da sua autoridade central, uma cópia dessa decisão e dos documentos conexos, em especial as atas das audiências, ao tribunal competente ou à autoridade central do Estado-Membro da residência habitual da criança imediatamente antes da sua retenção ou deslocação ilícitas, tal como previsto no direito interno. O tribunal deve receber todos os documentos referidos no prazo de um mês a contar da data da decisão de retenção. 7. Exceto se uma das partes já tiver instaurado um processo nos tribunais do Estado-Membro da residência habitual da criança imediatamente antes da retenção ou deslocação ilícitas, o tribunal ou a autoridade central que receba a informação referida no nº 6 deve notificá-la às partes e convidá-las a apresentar as suas observações ao tribunal, nos termos do direito interno, no prazo de três meses a contar da data da notificação, para que o tribunal possa analisar a questão da guarda da criança. Sem prejuízo das regras de competência previstas no presente regulamento, o tribunal arquivará o processo se não tiver recebido observações dentro do prazo previsto. 8. Não obstante uma decisão de retenção, proferida ao abrigo do artigo 13.o da Convenção da Haia de 1980, uma decisão posterior que exija o regresso da criança, proferida por um tribunal competente ao abrigo do presente regulamento, tem força executória nos termos da secção 4 do capítulo III, a fim de garantir o regresso da criança.”.
O art.º 21º, nº 1, do Regulamento Bruxelas II bis (“As decisões proferidas num Estado-Membro são reconhecidas nos outros Estados-Membros, sem quaisquer formalidades”) estabelece, como regra geral, o reconhecimento automático das decisões proferidas num Estado Membro em todo o território da UE (exceto na Dinamarca), em que é aceite na ordem jurídica interna, atribuindo-se-lhe todos os efeitos de uma decisão judicial, exceto o executivo.
Concretamente em matéria de responsabilidades parentais, estipula o nº 1 do art.º 28º do Regulamento Bruxelas II bis que “As decisões proferidas num Estado-Membro sobre o exercício da responsabilidade parental relativa a uma criança, que aí tenham força executória e que tenham sido citadas ou notificadas, são executadas noutro Estado-Membro depois de nele terem sido declaradas executórias a pedido de qualquer parte interessada”, nos termos estabelecidos nos art.ºs 29º a 39º.
Prevê, contudo, a secção 4 do capítulo III relativo ao “reconhecimento e execução”, um regime específico, também apelidado de privilegiado, no qual se aboliu o exequatur.
A referida secção é aplicável, no que ora importa, “Ao regresso da criança, na sequência de uma decisão que exija o regresso da criança, nos termos do nº 8 do artigo 11º” – art.º 40º, nº 1, al. b) do Regulamento Bruxelas II bis.
Assim, estipula o art.º 42º do regulamento Bruxelas II bis que “1. O regresso da criança referido na alínea b) do nº 1 do artigo 40º, resultante de uma decisão executória proferida num Estado-Membro é reconhecido e goza de força executória noutro Estado-Membro sem necessidade de qualquer declaração que lhe reconheça essa força e sem que seja possível contestar o seu reconhecimento, se essa decisão tiver sido homologada no Estado-Membro de origem, nos termos do nº 2. Mesmo se a legislação nacional não previr a força executória de pleno direito de uma decisão que exija o regresso da criança previsto no nº 8 do artigo 11º, o tribunal pode declarar a decisão executória, não obstante qualquer recurso. 2. O juiz de origem que pronunciou a decisão referida na alínea b) do nº 1 do artigo 40º só emite a certidão referida no nº 1, se: a) A criança tiver tido oportunidade de ser ouvida, exceto se for considerada inadequada uma audição, tendo em conta a sua idade ou grau de maturidade; b) As partes tiverem tido a oportunidade de ser ouvidas; e c) O tribunal, ao pronunciar-se, tiver tido em conta a justificação e as provas em que assentava a decisão pronunciada ao abrigo do artigo 13º da Convenção de Haia de 1980. Se o tribunal ou qualquer outra autoridade tomarem medidas para garantir a proteção da criança após o seu regresso ao Estado-Membro onde reside habitualmente, essas medidas deverão ser especificadas na certidão. O juiz de origem emite a referida certidão, por sua própria iniciativa, utilizando o formulário constante do anexo IV (certidão relativa ao regresso da criança). …”.
Nos termos do art.º 45º, nº 1, do Regulamento Bruxelas II bis, a parte que requer a execução de uma decisão deve apresentar uma cópia dessa decisão, que satisfaça os requisitos de autenticidade necessários, e a certidão referida no nº 1 do art.º 42º.
Por força do disposto no nº 2 do art.º 47º do Regulamento Bruxelas II bis, tal decisão (proferida pelo tribunal de outro Estado Membro, e homologada nos termos do nº 1 do art.º 42º) é executada no Estado-Membro de execução como se nele tivesse sido emitida.
Analisado o regime aplicável, apreciemos o caso sub judice.
Não desconhecemos que a decisão do tribunal alemão apresentada nos autos não foi proferida depois de uma decisão de retenção proferida ao abrigo do artigo 13º da Convenção da Haia de 1980.
O que o Regulamento Bruxelas II bis prevê (nos art.ºs 11º, nº 8 e 40, nº 1, al. b) é que, tendo sido recusado por um tribunal do país para o qual a criança foi ilicitamente deslocada o seu regresso ao abrigo do disposto no art. 13º da Convenção de Haia de 1980, o tribunal do Estado Membro da residência habitual da criança (antes de tal deslocação ilícita) possa proferir decisão que, mesmo assim, decrete o regresso da criança, sobrepondo-se à que o negou.
No caso, o tribunal português (país para onde as crianças foram deslocadas) não negou o regresso ao abrigo do mencionado art.º 13º da Convenção de Haia de 1980.
Não menos certo é, porém, que, no processo de que os presentes autos são apenso, negou a aplicação da referida Convenção, entendendo que não se podia concluir que existisse uma deslocação ilícita, e que só após decisão a proferir no processo que corria seus termos na Alemanha, se poderia, eventualmente, vir a aplicar a Convenção de Haia de 1980.
E, nos presentes autos, perante a decisão provisória e Anexos II e IV apresentados, e por ter aquela sido proferida com contraditório, entendeu que devia ser assegurada a sua imediata execução, mostrando-se preenchidos os pressupostos para a aplicação da Convenção.
Tendo em conta que a decisão provisória concluiu que se verificava deslocação ilícita das crianças, foi precedida de contraditório, audição das crianças, e outras diligências, e apreciou os argumentos/motivos invocados pelo progenitor para, nos termos do art.º 13º da Convenção de Haia, ser recusado o regresso das crianças à Alemanha, e emitiu certidões (conforme Anexo II e Anexo IV), afigura-se-nos que assiste razão ao tribunal recorrido quando entendeu que devia ser assegurada a sua imediata execução, sem quaisquer outras diligências, nomeadamente, a audição do progenitor, tendo em vista um regresso, sem demoras, das crianças ao país da sua residência habitual.
Nesta conformidade, não se nos afigura que se verifiquem as nulidades invocadas.
Ainda que assim não se entenda, afigura-se-nos que o recurso nunca poderia proceder, tendo em conta o superior interesse das crianças B e C, que, anulando-se a decisão recorrida, teriam de mudar, de novo, e a meio do ano letivo, de país de residência, sendo que eventual decisão proferida neste processo no sentido da sua retenção não teria caráter definitivo (art.º 11º, nº 8 do Regulamento Bruxelas II bis), e a decisão provisória estará a ser objeto de recurso (como alega o apelante), e corre processo de regulação das responsabilidades parentais na Alemanha.
A estabilidade emocional das crianças não pode ser posta em causa a qualquer preço, sem soluções equilibradas e de continuidade.
Por outro lado, verificando-se alteração das circunstâncias que determinaram a decisão provisória, tem o apelante mecanismos para assegurar os interesses das crianças.
Não merece, pois, provimento o recurso, devendo manter-se a decisão recorrida.
As custas da apelação ficam a cargo do apelante, por ter ficado vencido – art.º 527º, nºs 1 e 2, do CPC.
DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente.
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Lisboa, 2023.01.24
Cristina Coelho
Edgar Taborda Lopes
Luís Filipe Pires de Sousa

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[1] Requerimento de recurso enviado em 28.10.22, conforme envelope junto a fls. 177.
[2] O apelante não indicou as normas jurídicas violadas nas conclusões, nos termos do nº 2 do art.º 639º, do CPC. Optou-se, porém, por não convidar o apelante a aperfeiçoar as conclusões, nos termos do nº 3 do referido preceito legal, atenta a natureza urgente do processo e porque resulta das alegações as normas que o apelante considera violadas.
[3] O Regulamento (UE) nº 2019/1111 do Conselho, de 25 de janeiro de 2019, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade paternal e ao rapto internacional de crianças (reformulação), denominado Regulamento Bruxelas II ter, não é aplicável atento o disposto nos art.ºs 100º e 104º, nº 1, na medida em que a ação foi proposta no tribunal alemão em 11.7.2022, como resulta da decisão provisória (pág. 5 desta - pág. 29 dos autos). Neste sentido, cfr. João Gomes de Almeida, Âmbito de aplicação, definições e relações com outros atos do Regulamento Bruxelas II ter, na Revista Julgar, nº 47, maio-agosto de 2022, págs. 14/15, e António José Fialho, O rapto internacional de crianças no regulamento (UE) 2019/1111 (Bruxelas II ter), no loc. cit., pág. 72.
[4] Atente-se no disposto nos artigos 2º e 11º da Convenção, bem como no estipulado no art.º 11º, nº 3, do Regulamento.