Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
213/12.2TELSB.L1-9
Relator: CRISTINA BRANCO
Descritores: COMPETÊNCIA
COMPETÊNCIA TERRITORIAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/07/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIMENTO PARCIAL
Sumário: I – De acordo com o disposto no art. 32.º do CPP, a incompetência territorial pode ser conhecida e declarada oficiosamente pelo tribunal e pode ser deduzida pelo MP, pelo arguido e pelo assistente, mas tal só pode suceder até determinados momentos processuais: até ao início do debate instrutório, tratando-se de juiz de instrução, ou até ao início da audiência de julgamento, tratando-se de tribunal de julgamento.
II – O critério definido na lei teve em atenção as diversas fases processuais, distinguindo a competência territorial do juiz de instrução da competência territorial do tribunal de julgamento, distinção que também assenta nos diferentes poderes de cognição de um e outro, nas diversas áreas de jurisdição próprias e autónomas (cf. arts. 13.º a 17.º do CPP), em atenção, de resto, à estrutura acusatória do processo penal.
III - Estando a actuação do juiz de instrução limitada à fase da instrução, até à remessa do processo para julgamento, bem se compreende que o legislador tenha previsto, de forma autónoma e independente, a possibilidade de o juiz de julgamento declarar a sua própria incompetência, designadamente a territorial, nos termos definidos no art. 32.º do CPP.
IV - Tendo em conta que no termo da decisão instrutória, sendo esta de pronúncia, o juiz de instrução tem sempre de decidir a que tribunal irão os autos ser remetidos para julgamento, o entendimento de que tal decisão impediria o tribunal de julgamento de apreciar a questão da sua própria competência territorial traduziria uma verdadeira subordinação do juiz de julgamento ao juiz de instrução e deixaria sem qualquer campo de aplicação as disposições do n.º 1 e da al. b) do n.º 2 do art. 32.º do CPP sempre que o processo comportasse a fase de instrução (e houvesse decisão de pronúncia pelos factos constantes da acusação do MP), distinção que a norma não prevê e não tem qualquer cabimento.
V – O entendimento de que a circunstância de o juiz de instrução se ter debruçado, na decisão instrutória, sobre a competência territorial do tribunal de julgamento acarretou o esgotamento do poder jurisdicional da primeira instância sobre a questão, pelo que não pode o juiz de julgamento sobre ela emitir pronúncia, não tem qualquer apoio na lei, indo frontalmente contra o preceituado no art. 32.º, n.ºs 1 e 2, al. b), do CPP.
(sumário elaborado pela relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa

I. Relatório
1. Nos autos com o n.º 213/12.2TELSB, finda a instrução, que correu termos no Tribunal Central de Instrução Criminal, foi proferida decisão instrutória no termo da qual se decidiu remeter os autos para julgamento à 1.ª Secção da Instância Central Criminal de Lisboa, por se entender ser a competente.
2. Recebidos nos autos na Comarca de Lisboa, Lisboa – Instância Central – 1.ª Secção Criminal – Juiz 13 e proferido o despacho a que aludem os arts. 311.º a 313.º do CPP, veio a arguida S... suscitar como questão prévia a incompetência territorial do tribunal de julgamento.
3. Foi então proferido, em 12-01-2016, o despacho de fls. 2-3 destes autos de recurso em separado, do qual, relativamente à questão suscitada, consta:
«Fls. 11456 e ss. e 11631
A competência territorial foi determinada por despacho de fls. 10705 dos autos, transitado em julgado. Pelo que se mostra esgotado o poder jurisdicional da primeira instância sobre a questão da competência territorial.»
4. Notificada, veio a arguida S..., por articulado entrado em juízo em 15-01-2016, arguir a nulidade do despacho e requerer a sua reparação e a submissão da questão da incompetência territorial ao tribunal colectivo, e, sem prescindir, interpor o presente recurso, que termina com as seguintes conclusões (transcrição):
«1. A decisão recorrida enferma da nulidade prevista nas alíneas a) e e) do artigo 119º do CPP por incidir sobre questão que, nos termos do artigo 338º do CPP e do artigo 135º da Lei da Organização do Sistema Judiciária, interpretado a contrario sensu, não é da competência da Senhora Juíza Presidente do Tribunal Colectivo mas do próprio Tribunal Colectivo.
2. A decisão recorrida enferma de erro manifesto na aplicação do direito e se mostra proferida em violação manifesta da lei aplicável, concretamente do disposto no artigo 32º nº 2 alínea b), porque, tratando-se de incompetência territorial, ela pode ser deduzida e declarada até ao início da audiência de julgamento, tratando-se de tribunal de julgamento.
3. A decisão recorrida viola ainda o disposto nos artigos 4º do CPP uma vez que em processo penal não se pode aceitar um princípio geral de preclusão e, consequentemente, o valor do caso julgado formal como regra geral.
4. A decisão recorrida viola ainda o disposto no artigo 310º nº 1 do CPP, por isso que a decisão de fls 10705 dos autos era, é, irrecorrível.
5. Todos os factos que à luz do despacho de pronúncia, como já da acusação, o Ministério Público (MP) do Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP) e o Juiz de Instrução (JI) do Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC) consideram passíveis de integrar as previsões dos tipos legais em causa foram praticados e na área de jurisdição do Tribunal de Leiria, território onde igualmente se terão consumado, de acordo com a acusação e a pronúncia, os crimes imputados aos arguidos, nenhuma razão existe, pois, legalmente admissível, face ao disposto no artigo 19º nºs 1 e 3 e ao disposto no artigo 28º-a) do CPP para atribuir competência neste caso à Comarca de Lisboa, que se mostra territorialmente incompetente para o julgamento, tão pouco existindo motivo válido para considerar aplicável a este caso o disposto no artigo 21º nº 2 do CPP.
TERMOS EM QUE, NA PROCEDÊNCIA DESTE RECURSO,
SE PEDE A VOSSAS EXCELÊNCIAS SE DIGNE REVOGAR A DECISÃO RECORRIDA E DECLARAR COMPETENTE PARA O JULGAMENTO DESTE PROCESSO O TRIBUNAL DA COMARCA DE LEIRIA,
Assim sendo feita a costumada JUSTIÇA!»
5. Na sequência, a Senhora Juiz proferiu, em 18-01-2016, o despacho de fls. 4-8 (11773-11777 dos autos principais), no qual, relativamente à questão da competência territorial do tribunal de julgamento, refere:
«Conforme se referiu no despacho anterior a competência territorial deste tribunal e para julgamento (concorde ou não a signatária) foi expressamente decidida a fls. 10705 e 10706 dos autos terminando o Douto despacho nos seguintes termos… “no caso em presença a notícia do crime ocorreu primeiro em Lisboa, pelo que será competente para julgamento a secção criminal da instância central da comarca de Lisboa.
Oportunamente, logo que certificadas as notificações, remeta os presentes autos á primeira secção da instancia Central Criminal de Lisboa para julgamento á face do disposto no artº 19-3, do C.P.P. por se entender ser esse o Tribunal competente.
Notifique D.N.”
Com o devido respeito, se acaso não concordassem com tal determinação e fundamentação deveriam os arguidos ter suscitado nesse momento a reparação ou nulidade da decisão em causa.
O citado despacho é que decidiu a competência territorial para o julgamento como daí decorre expressamente.
Não se trata da questão preclusiva enunciada pela arguida porque a competência territorial foi considerada decidida para o julgamento da causa e não para a instrução.
*
A signatária não podendo por em crise tal decisão limitou-se a referir que assim foi determinada a competência territorial.
Pelo que entende não estar o seu despacho a coberto de qualquer nulidade e que não pode, consequentemente, ser reparada, a não ser por via de recurso que se irá admitir: (…)»,
prosseguindo com a admissão do recurso.
6. O Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando, sem formular conclusões, pela sua improcedência.
7. Nesta Relação, a Senhora Procuradora-Geral Adjunta apôs o seu Visto, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 416.º, n.º 1, do CPP.
8. Colhidos os vistos legais, foi o processo à conferência, cumprindo apreciar e decidir.
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II. Fundamentação
1. Delimitação do objecto do recurso
Como é jurisprudência assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (art. 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior.
In casu, as questões suscitadas pela recorrente são as de saber se o despacho recorrido padece de nulidade, por se tratar de decisão singular que incide sobre matéria da competência do tribunal colectivo; e se o mesmo enferma de erro na aplicação do direito, por violação do preceituado nos arts. 32.º, n.º 2, al. b), 4.º, 310.º, n.º 1, e 21.º, n.º 2, todos do CPP.
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2. Da análise dos fundamentos do recurso
De acordo com as regras de precedência lógica importará, em primeiro lugar, apreciar as questões que obstem ao conhecimento do mérito da decisão.
Seguidamente das que a este respeitem, começando pelas atinentes à matéria de facto e, por fim, das questões relativas à matéria de direito.
Será, pois, de acordo com estas regras de precedência lógica que serão apreciadas as questões suscitadas.
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A recorrente alega, em primeiro lugar, que a decisão recorrida enferma da nulidade prevista nas als. a) e e) do art. 119.º do CPP, por incidir sobre questão que, nos termos do art. 338.º do CPP e do art. 135.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ), a contrario, não é da competência da Senhora Juiz Presidente do Tribunal Colectivo mas do próprio Tribunal Colectivo.
E isto porque a questão da incompetência territorial, suscitada na sua contestação, obsta à apreciação do mérito da causa e a decisão recorrida, por ser violadora das regras de atribuição da competência territorial (concretamente do disposto no art. 32.º, n.º 2, al. b), do CPP) produzirá a nulidade do julgamento, nos termos do art. 119.º, al. e), do mesmo diploma.
Vejamos.

A competência material e funcional dos tribunais em matéria penal é regulada pelas disposições do Código de Processo Penal e, subsidiariamente, pelas leis de organização judiciária (art. 10.º do CPP), e, como com clareza explica o Senhor Conselheiro Henriques Gaspar[1], «determina-se em razão da natureza das causas e, em certas circunstâncias muito contadas, também da qualidade das pessoas, e, ao mesmo tempo, de acordo com a repartição própria da predefinição das regras sobre competência territorial.
Para respeitar princípios essenciais tem de ser estabelecida uma organização dos tribunais, que deve ir ao ponto de regular o âmbito de actuação de cada tribunal, de modo a que o julgamento de cada concreto caso penal seja deferido a um único tribunal – concretização e determinação da competência do tribunal em matéria penal.
A competência material pode estar, porém, ordenada e delimitada no que respeita ao desenvolvimento do processo dentro de cada instância, mediante competências diversas conforme as fases da promoção e desenvolvimento processual: é o que se designa por competência funcional. No processo penal, designadamente, as diversas fases do processo (ou os actos normativamente delimitados) estão referidas a competências funcionais diversificadas: o inquérito; a instrução; o julgamento, estas sem possibilidade de cumulação funcional do juiz (artigo 40º do CPP».
«A competência territorial constitui uma espécie de competência determinada segundo critérios objectivos, mas essencialmente determinada por finalidades racionais de organização e de operacionalidade. As regras relativas à competência territorial têm por finalidade repartir a competência material pelos vários tribunais da mesma espécie, indicando qual o tribunal que, em cada caso, vai exercer em concreto a jurisdição. Os critérios de determinação da competência territorial procuram por regra, determinar o tribunal que em cada caso esteja em melhores condições de proximidade ou de conexão objectiva relativamente a elementos do crime ou com o seu autor, que devem ser «as condições preferenciais de imediação»»[2].

Importará sublinhar que, como se refere no acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 10-04-2014, proferido no Proc. n.º 56/09.0TELSB.L1 - 9.ª[3], «sendo verdade que o CPP quando se refere a processo engloba o inquérito, a instrução (quando haja) e o julgamento[viii][4], no processo penal, diferentemente do que acontece no processo civil, há uma competência para cada uma destas fases.
Na verdade, existe a competência do MP, no inquérito, a competência do TIC, na instrução, e a competência do tribunal do julgamento.
Durante o inquérito só está definida a competência territorial do MP (art.º 264º do CPP). A competência do JIC[ix][5] para intervir no inquérito só está definida em termos de reserva de jurisdição (art.ºs 17º, 268º e 269º do CPP), não havendo qualquer norma que defina a competência do JIC no inquérito, já que a norma do art.º 288º/2 do CPP, pela sua inserção sistemática se refere à competência para a instrução.
Por outro lado, a competência territorial do MP pode-se ir modificando em face dos resultados da investigação (art.º 264º/2 do CPP), sendo, nesse caso, os autos transmitidos ao MP competente (art.º 266º do CPP). Isto acontece porque a realidade dos factos pode divergir da constante da notícia do crime.
Por isso é que o objecto do processo só se fixa com a acusação[x][6] ou com o RAI[xi][7] (no caso de arquivamento pelo MP)[xii][8].
Até lá podemos dizer que o objecto do processo está em aberto.
Consequência dessa fixação do objecto do processo é que, posteriormente, só se podem fazer alterações nos casos dos art.ºs 358º e 359º do CPP.»

No caso em apreço, finda a fase de instrução e tendo esta culminado com um despacho de pronúncia, foram os autos remetidos para a fase de julgamento.
Não vindo posta em causa a competência material do Tribunal colectivo para proceder ao julgamento, em face do objecto do processo fixado com o despacho de pronúncia e do estabelecido nos arts. 135.º da LOSJ e 14.º do CPP, a questão resume-se à de saber se, perante ela, cabia ou não ao juiz titular do processo pronunciar-se sobre a incompetência territorial suscitada pela recorrente na sua contestação ou se tal matéria teria de ser objecto de decisão colegial.
De acordo com o disposto no art. 311.º do CPP [que, com a epígrafe “Saneamento do Processo”, dá início ao Título I (Dos Actos Preliminares) do Livro VII do CPP, relativo à fase do Julgamento], recebidos os autos no tribunal, depois de deduzida a acusação ou, caso tenha havido instrução, após o despacho de pronúncia, «o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que desde logo possa conhecer» (n.º 1).
«Manda a lei que o juiz examine o processo e se certifique da inexistência de motivo impeditivo do conhecimento do seu objecto, para o que deverá pronunciar-se sobre a ocorrência de qualquer nulidade ou outra questão prévia ou incidental que obste à apreciação do mérito da causa.
Deverá verificar, pois, da ocorrência de qualquer circunstância, seja de natureza substantiva, seja de natureza adjectiva, que impeça o conhecimento da questão de fundo. Podem impedir a apreciação do mérito a existência de invalidade processual, excepção dilatória ou peremptória, bem como a ocorrência de causa extintiva do procedimento ou da responsabilidade criminal que ponha termo ao processo.»[9]
Se assim não suceder, não fica, no entanto, impedido de, posteriormente, se pronunciar sobre as circunstâncias a que alude o referido art. 311.º, n.º 1, a menos que sobre elas tenha emitido pronúncia expressa e não se verifique alteração superveniente, pois que a decisão genérica sobre elas proferida não tem valor de caso julgado formal.
Uma das circunstâncias processuais que, ocorrendo, impedirá o prosseguimento dos autos para julgamento, é a incompetência do tribunal, já que, uma vez declarada, determina a remessa dos autos para o tribunal competente (cf. art. 33.º, n.º 1, do CPP).
Por isso, dúvidas não há de que compete ao juiz titular do processo (a quem corresponderá a função de presidente, no caso de o julgamento dever ter lugar perante tribunal colectivo) apreciar tal questão, desde logo aquando do saneamento do processo.
E se, como sucede no caso vertente, a questão da incompetência do tribunal vem a ser suscitada na contestação, é ainda ao juiz titular do processo que incumbe apreciá-la, evitando, caso a mesma proceda, a prática de actos inúteis, designadamente o prosseguimento dos autos até ao início do julgamento, com as inerentes convocatórias de todos que a ele devam comparecer.
Só no caso de – em desrespeito ao princípio da economia processual[10] – a decisão da questão anteriormente colocada ser relegada para o momento processual a que alude o art. 338.º, n.º 1 do CPP [em que, uma vez aberta a audiência e antes do início do contraditório, compete ao tribunal verificar se alguma questão obsta ao conhecimento do mérito da causa], é que essa apreciação caberá já (se for caso de julgamento por tribunal colectivo) ao tribunal colectivo e não ao respectivo presidente (cf. arts. 322.º e 323.º do CPP)[11].
Em suma, atendendo a que, antes de aberta a audiência de discussão e julgamento (cf. art. 329.º do CPP), a competência para a tramitação do processo cabe ao respectivo titular, não enferma a decisão recorrida de qualquer nulidade por incidir sobre questão cuja apreciação competiria ao tribunal colectivo.
Improcede, pois, este segmento do recurso.

A recorrente alega, por outro lado, que a decisão recorrida enferma de erro de direito, violando o preceituado no art. 32.º, n.º 2, al. b), do CPP, uma vez que a incompetência territorial pode ser deduzida e declarada até ao início da audiência de julgamento, tratando-se de tribunal de julgamento, e que a decisão do Juiz de Instrução não preclude a possibilidade de a mesma ser de novo suscitada perante o tribunal de julgamento ou por este oficiosamente declarada, desde que até àquele momento.
No despacho recorrido o Tribunal considerou que a circunstância de o despacho de fls. 10705 se ter pronunciado sobre a questão da competência territorial, tendo o mesmo transitado em julgado, determinava o esgotamento do poder jurisdicional da primeira instância sobre tal questão.
E posteriormente, no despacho de sustentação, acrescentou que caso não concordassem com o teor daquela decisão «deviam os arguidos ter suscitado nesse momento a reparação ou nulidade da decisão em causa.»

Salvo o devido respeito por opinião diversa, não nos parece que assim seja.
O art. 32.º do CPP, sob a epígrafe “Conhecimento e dedução da incompetência”, estabelece:
«1 - A incompetência do tribunal é por este conhecida e declarada oficiosamente e pode ser deduzida pelo Ministério Público, pelo arguido e pelo assistente até ao trânsito em julgado da decisão final.
2 - Tratando-se de incompetência territorial, ela somente pode ser deduzida e declarada:
a) Até ao início do debate instrutório, tratando-se de juiz de instrução; ou
b) Até ao início da audiência de julgamento, tratando-se de tribunal de julgamento.»

Assim, de acordo com esta norma, a incompetência territorial pode ser conhecida e declarada oficiosamente pelo tribunal e pode ser deduzida pelo MP, pelo arguido e pelo assistente, mas tal só pode suceder até determinados momentos processuais: até ao início do debate instrutório, tratando-se de juiz de instrução, ou até ao início da audiência de julgamento, tratando-se de tribunal de julgamento [12].
Fazendo, mais uma vez, apelo aos ensinamentos do Senhor Conselheiro Henriques Gaspar[13], diremos que «a natureza das normas de competência com a consequência da violação das normas de competência do tribunal (nulidade insanável), exige uma acentuada margem de intervenção oficiosa do tribunal; a incompetência é «conhecida e declarada oficiosamente pelo tribunal», sendo também faculdade dos sujeitos processuais deduzir a incompetência «até ao trânsito em julgado da decisão final». Esta solução, fixada expressamente, resultaria já da qualificação do vício de incompetência como nulidade insanável e do respectivo regime – conhecimento «em qualquer fase do procedimento».
O regime da incompetência territorial apresenta, porém, especialidades quanto ao tempo e momento de dedução e declaração – início do debate instrutório no caso de instrução, ou início da audiência de julgamento. A justificação do limite processual para a dedução ou declaração de incompetência territorial está no menor potencial de afectação de princípios essenciais estando em causa esta espécie de competência, nomeadamente na prevenção da manipulação da competência pelos sujeitos processuais em processo penal (evitar o “forum shopping”), e na conjugação equilibrada dos princípios processuais com a razoabilidade, a economia e a eficácia do processo.
A definição dos momentos processuais nas alíneas a) e b) do nº 2, todavia, é própria de cada fase e não preclusiva. A declaração de incompetência na fase de instrução não afasta a possibilidade de decisão em sentido não coincidente do tribunal ao qual o processo for remetido após decisão instrutória de pronúncia.»

À luz destas considerações, afigura-se-nos evidente que o critério definido na lei teve em atenção as diversas fases processuais, distinguindo a competência territorial do juiz de instrução da competência territorial do tribunal de julgamento, distinção que também assenta nos diferentes poderes de cognição de um e outro, nas diversas áreas de jurisdição próprias e autónomas (cf. arts. 13.º a 17.º do CPP), em atenção, de resto, à estrutura acusatória do processo penal.
Estando a actuação do juiz de instrução limitada à fase da instrução, até à remessa do processo para julgamento, bem se compreende que o legislador tenha previsto, de forma autónoma e independente, a possibilidade de o juiz de julgamento declarar a sua própria incompetência, designadamente a territorial, nos termos definidos no art. 32.º do CPP.
É que, tendo em conta que no termo da decisão instrutória, sendo esta de pronúncia, o juiz de instrução tem sempre de decidir a que tribunal irão os autos ser remetidos para julgamento, o entendimento de que tal decisão impediria o tribunal de julgamento de apreciar a questão da sua própria competência territorial traduziria uma verdadeira subordinação do juiz de julgamento ao juiz de instrução e deixaria sem qualquer campo de aplicação as disposições do n.º 1 e da al. b) do n.º 2 do art. 32.º do CPP sempre que o processo comportasse a fase de instrução (e houvesse decisão de pronúncia pelos factos constantes da acusação do MP), distinção que a norma não prevê e não tem qualquer cabimento.[14]
Haja ou não instrução em determinado processo, o disposto no art. 32.º, n.º 2, al. b), do CPP permite que, até ao início da audiência de julgamento, seja suscitada ou declarada pelo juiz de julgamento a incompetência territorial do tribunal para o julgamento.
Ou seja, o entendimento seguido pelo despacho recorrido de que a circunstância de o juiz de instrução se ter debruçado, na decisão instrutória, sobre a competência territorial do tribunal de julgamento acarretou o esgotamento do poder jurisdicional da primeira instância sobre a questão, pelo que não podia sobre ela emitir pronúncia, não tem qualquer apoio na lei, indo frontalmente contra o preceituado no art. 32.º, n.ºs 1 e 2, al. b), do CPP.

E também não colhe o argumento, aduzido no despacho de sustentação do recurso, de que «se acaso não concordassem com tal determinação e fundamentação deveriam os arguidos ter suscitado nesse momento a reparação ou nulidade da decisão em causa.»
Não se vislumbra que nulidade, nesta matéria, poderiam invocar, e a figura da “reparação” pressupõe a interposição de recurso.
Ora a decisão na qual se insere a tomada de posição do juiz de instrução relativamente à competência territorial do tribunal do julgamento e à remessa dos autos para esse tribunal é a decisão instrutória.
Como é sabido, a decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, formulada nos termos do artigo 283.º ou do n.º 4 do artigo 285.º, é irrecorrível, mesmo na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias ou incidentais e determina a remessa imediata dos autos ao tribunal competente para o julgamento – cf. art. 310.º, n.º1, do CPP.
Constatando-se que a decisão instrutória proferida nos autos não introduziu na acusação do MP qualquer alteração de factos relevante[15], teremos de concluir que, à luz do disposto no art. 310.º, n.º 1, do CPP, a mesma é irrecorrível, mesmo na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias ou incidentais[16].
Na verdade, com a alteração operada neste preceito pela Lei n.º 48/2007, de 29-08, o legislador tomou posição na querela jurisprudencial anteriormente instalada, deixando claro que a irrecorribilidade do despacho de pronúncia que confirma os factos da acusação do Ministério Público abrange a apreciação sobre questões prévias e incidentais efectuada nesse mesmo despacho.[17]
Esta solução legislativa determinativa da irrecorribilidade da decisão instrutória que pronuncia o arguido pelos factos constantes da acusação do MP remonta à versão originária do CPP (DL n.º 78/87, de 17-02), e foi objecto de inúmeras decisões por parte do Tribunal Constitucional que, embora com alguns votos discordantes, sempre entendeu não violar as garantias de defesa (art. 32.º, n.º 1, da CRP) a circunstância de não haver recurso da decisão instrutória que pronuncie o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, mesmo na parte em que aprecie e indefira nulidades do inquérito[18].
É que, como se lê no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 95/2009[19], «O Acórdão nº 387/2008, funda-se, decisivamente, no entendimento de que a lei “desvaloriza” a força jurídica do despacho de pronúncia formulado nos termos do nº 1 do artigo 310º do Código de Processo Penal, ao impor a sua irrecorribilidade, e transfere para uma fase posterior – a fase de julgamento – a obrigação de o tribunal proceder à apreciação, com força de determinação jurídica, de toda a matéria de que a pronúncia conhece.
Na verdade, da irrecorribilidade da decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público na parte em que aprecie nulidades e outras questões prévias ou incidentais (segunda parte do nº 1 do artigo 310º do Código de Processo Penal, na redacção da Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto) só pode extrair-se, na falta de disposição expressa contrária, que sobre tal parte da decisão não se forma caso julgado. Ou seja, que se transfere para a fase de julgamento a apreciação de nulidades e outras questões prévias ou incidentais ainda que já tenham sido conhecidas na decisão instrutória proferida nos termos do nº 1 do artigo 310º do Código de Processo Penal (neste sentido, NUNO BRANDÃO, “A nova face da instrução”, ponto 3.2, texto a publicar na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, 2008).
(…)
o artigo 311º, nº 1, do Código de Processo Penal aponta, de facto, no sentido de a decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público não constituir decisão final, também na parte em que aprecie nulidades e outras questões prévias ou incidentais. Neste preceito sobre o saneamento do processo na fase de julgamento permite-se, sem qualquer limitação, que o presidente do tribunal se pronuncie sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer. Já no artigo 338º, nº 1, em audiência de julgamento, o tribunal só pode conhecer e decidir das nulidades e de quaisquer outras questões prévias ou incidentais susceptíveis de obstar à apreciação do mérito da causa acerca das quais não tenha ainda havido decisão e que possa desde logo apreciar; e no artigo 368º, nº 1, no momento de elaborar a da sentença, o tribunal só pode começar por decidir separadamente as questões prévias ou incidentais sobre as quais ainda não tiver recaído decisão. Numa palavra: os poderes de cognição do tribunal de julgamento em matéria de questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa estão limitados apenas quando a lei o determine expressamente.»[20]

Por todo o exposto, haverá que revogar a decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra que se pronuncie sobre a invocada incompetência territorial do tribunal.

Na verdade, contrariamente ao que pretende a recorrente, não pode este Tribunal pronunciar-se sobre a competência territorial do tribunal de julgamento, pois que estaria a conhecer ex novo de uma questão que não foi apreciada pelo tribunal recorrido, o que não é admissível, pois que os recursos são um meio de impugnação e de correcção de decisões judiciais e não um meio de obter decisões novas.
Procede, pois, apenas parcialmente o recurso interposto.
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III. Decisão
Em face do exposto, acordam os Juízes da 9.ª Secção Criminal da Relação de Lisboa em, concedendo parcial provimento ao recurso interposto pela arguida, S..., revogar o despacho recorrido e determinar que o mesmo seja substituído por outro que aprecie a suscitada questão de incompetência territorial do Tribunal de julgamento.
Sem tributação (arts. 513.º, n.º 1, do CPP).
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(Certifica-se, para os efeitos do disposto no art. 94.º, n.º 2, do CPP, que o presente acórdão foi elaborado e revisto pela relatora, a primeira signatária)
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Lisboa, 07-04-2016

Cristina Branco
Filipa Costa Lourenço

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[1] Em anotação ao art. 10.º do Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2014, págs. 53-54 e, anteriormente, no acórdão do STJ de 21-06-2006, Proc. n.º 1573/06, in www.dgsi.pt.
[2] Ibidem, pág. 83.
[3] In www.dgsi.pt.
[4] [viii] Nesse sentido, por todos, ver o acórdão da RP de 13/04/2011, relatado por Maria do Carmo da Silva Dias, in JusNet 2115/2011, do qual citamos: “…a própria alteração da redacção actual do art. 17º do CPP (tendo o legislador substituído a expressão "inquérito" por "processo"), fruto da reforma aprovada pela, «só pode querer significar que se pretendeu, no conceito de "processo", abarcar todas as situações que a doutrina, por simplificação ou convicção científica, apresenta somente três (inquérito, instrução e julgamento), mas também (...) abrange já a fase da "Notícia do crime", consubstanciada no auto de notícia por detenção em flagrantes delito".…”.
[5] [ix] Juiz de Instrução Criminal.
[6] [x] Neste sentido, ver Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, III, Editorial Verbo, 2009. p. 130.
[7] [xi] Requerimento para a abertura da instrução.
[8] [xii] Neste sentido ver, por todos, Vinício Ribeiro, in “Código de Processo Penal, Notas e Comentários”, Coimbra Editora, 2º Edição, 2011, p. 763.
[9] Cf. o comentário do Senhor Conselheiro Oliveira Mendes em anotação ao art. 311.º no Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2014, pág. 1029.
[10] Entendida esta como a proibição da prática de actos inúteis, conforme estabelece o art. 130.º do (N)CPC, aplicável ex vi art. 4.º do CPP.
[11] Cf. o comentário do Senhor Conselheiro Oliveira Mendes em anotação ao art. 323.º no Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2014, pág. 1054.
[12] Cf., a propósito, os Acórdãos do STJ de 28-06-2006, Proc. n.º 1600/06 – 3.ª, de 09-05-2007, Proc. n.º 632/07 - 3.ª, de 04-07-2007, Proc. n.º 808/07 - 3.ª, todos in www.stj.pt (Jurisprudência/Sumários de Acórdãos).
[13] Ob. e loc. cit., págs. 112-113.
[14] Cf., a propósito o acórdão do STJ de 20-02-2003, Proc. n.º 177/03 - 5.ª, in www.stj.pt (Jurisprudência/Sumários de Acórdãos): «I - Atento o disposto no art. 32.º, n.º 2, do CPP, urge entender que a posição que se assuma quanto à competência (ou à incompetência) territorial ainda em fase de instrução não pode condicionar e, muito menos, precludir a posição que se entenda dever assumir, já em fase post-instrução, prévia à fase de julgamento, no tocante à mesma competência (ou incompetência) territorial.
II - É inaceitável que a assunção da competência territorial (para a instrução) pelo juiz de instrução acarrete, sob a pretensa influência de um caso julgado formal, a impossibilidade do tribunal do julgamento recusar, para o julgamento, essa competência.»
[15] Tendo sido decidido pronunciar os arguidos pelos factos constantes da acusação, com excepção do art.º 656.º, cuja redacção foi alterada.
[16] Só assim não seria se tivesse ocorrido alteração substancial de factos na transição da acusação para a pronúncia – cf., para além do acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 13-04-2010, Proc. n.º 457/08.1TALLE-A.E1, a decisão sumária proferida, em 09-02-2011, no Proc. n.º 20/08.7TAFCR.C1 do Tribunal da Relação de Coimbra, ambos in www.dgsi.pt.
[17] Anteriormente à entrada em vigor da Lei n.º 48/2007, de 29-08, a questão da recorribilidade do despacho de pronúncia que confirmasse a acusação pública foi bastante controvertida no tocante à parte dessa decisão que conhecesse de nulidades de actos do inquérito ou de questões prévias e incidentais, vindo o STJ, através do seu Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 6/2000, de 19-01-2000 (in DR I-A, de 07-03-2000), a fixar jurisprudência no sentido de que esse despacho era recorrível na parte em que decidia sobre nulidades e questões prévias ou incidentais; e pelo acórdão n.º 7/2004 a estabelecer que subia imediatamente o recurso da decisão instrutória que conhecia de nulidades.
[18] Cf., entre outros, os Acórdãos do TC de 265/94, 610/96, 468/97, 45/98, 101/98, 156/98, 238/98, 266/98, 299/98, 300/98, 216/99, 387/99, 30/2001, 463/2002, 481/2003, 79/2005, 242/2005, 460/2008, 51/2010, 477/2011, 146/2012, 265/2012, 437/2013 e 482/2014, todos in www.tribunalconstitucional.pt.
[19] De 17-02-2009, proferido no Proc. n.º 891/08, 1.ª Secção, ibidem.
[20] No artigo “A Nova Face da Instrução”, publicado na RPCC, Ano 18, n.ºs 2-3, Abril-Setembro de 2008, a págs. 239-240, Nuno Brandão refere ainda: «(…) Por fim, a decisão instrutória não forma caso julgado sobre questões que possam contender com a afirmação da responsabilidade penal do arguido em julgamento, como a amnistia do crime ou a prescrição do procedimento criminal, não só porque a decisão do juiz de instrução que se debruce sobre estas questões é irrecorrível e como tal não pode assumir carácter definitivo, como ainda porque a última palavra sobre essas questões, atenta a sua natureza, deve caber sempre ao juiz de julgamento (ou, eventualmente, de recurso).»