Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
17878/16.9T8LSB.L2-2
Relator: JORGE LEAL
Descritores: DEPÓSITOS A PRAZO
BES
NOVO BANCO
TRANSMISSÃO DE CRÉDITO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/21/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: Transmitiram-se para o Novo Banco os créditos emergentes de depósitos a prazo efetuados por clientes do BES, nas instalações deste e perante funcionários deste, ainda que eventualmente os referidos funcionários tenham desviado parte desses fundos em benefício próprio, sendo essa situação conhecida do BES antes da aplicação, pelo Banco de Portugal, da medida de resolução que deu origem ao Novo Banco.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO
Em 13.7.2016 António e Paulo intentaram ação declarativa de condenação contra Novo Banco, S.A. e Banco Espírito Santo, S.A..
Os AA. alegaram, em síntese, que na qualidade de emigrantes na Suíça e sendo clientes do BES, efetuaram diversos depósitos a prazo, que discriminaram, na agência do BES em Lausanne, Suíça. Em certo momento de 2013, tendo os AA. pretendido consultar os seus depósitos a prazo, foi-lhes referido que o Banco não localizava tais depósitos. Em agosto de 2013 o BES solicitou aos AA. que fizessem uma exposição escrita sobre as suas pretensões, o que os AA. fizeram. Após vários meses, foi comunicado aos AA. que o BES devolveria 33,33% dos depósitos não reconstituídos, além do valor dos outros depósitos, em singelo. Entretanto em 03.8.2014 o Banco de Portugal aplicou a medida de resolução que deu origem ao ora R. Novo Banco S.A.. Até à data, apesar de os terem reclamado, os AA. não foram reembolsados dos depósitos e respetivos juros.
Os AA. terminaram pedindo que os RR. fossem condenados, solidariamente, a restituir:
- ao A. António a quantia de € 39 878,00 francos suíços (que corresponde a € 36 474,89) e a quantia de € 24 296,25, no valor total de € 60 771,14;
- ao A. Paulo as quantias de € 34 301,80 e 10 000 francos suíços (que corresponde a € 9 146,62), no valor total de € 43 448,42,
acrescidos de juros de mora sobre o capital, à taxa legal, contados desde a citação até integral pagamento.
O Novo Banco contestou, afirmando que a relação bancária existente entre os AA. e o BES era mediada por um funcionário do BES (falecido em 2013) que, extravasando as suas funções e forjando documentos, desviou fundos dos clientes em proveito próprio, nunca tendo os mesmos sido depositados junto do referido BES. Assim, o BES não pode ser responsabilizado por tais quantias, assim como o não pode ser o Novo Banco, uma vez que o crédito reclamado constitui contingência ou responsabilidade não contabilizada no BES aquando da aplicação da medida de resolução, pelo que não se transmitiu para o Novo Banco.
O Novo Banco concluiu pela improcedência da ação, com a sua absolvição do pedido por exceção perentória de ilegitimidade passiva, ou extinguindo-se a instância por impossibilidade superveniente da lide ou, se assim não se entendesse, com a sua absolvição dos pedidos.
Também o BES contestou, invocando a inutilidade da lide, uma vez que havia sido revogada a autorização para o exercício da sua atividade e havia sido proferido despacho judicial de prosseguimento do respetivo processo de liquidação. No mais, impugnou a ação aderindo, no que fosse aplicável, ao teor da contestação do Novo Banco.
Os AA. responderam às exceções, pugnando pela sua improcedência.
Em 03.4.2017 foi proferido saneador-sentença em que se decretou a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide no que concerne ao BES, considerou-se o Novo Banco parte processualmente legítima e absolveu-se o Novo Banco dos pedidos, por se entender que por força das deliberações do Banco de Portugal a invocada responsabilidade do BES não se havia transferido para o Novo Banco.
Os AA. apelaram desta decisão e, por acórdão da Relação de Lisboa, datado de 12.7.2018, a decisão recorrida foi revogada na parte em que se absolveu o Novo Banco do peticionado, tendo sido determinada a prossecução dos autos nessa parte.
Realizou-se audiência final e em 29.5.2019 foi proferida sentença em que se julgou a ação inteiramente procedente por provada e consequentemente se condenou o R. Novo Banco a pagar aos AA. as quantias peticionadas, acrescidas de juros de mora à taxa legal, contados desde a citação até integral pagamento.
O Novo Banco apelou da sentença, tendo apresentado alegações em que formulou conclusões que, por dificuldades de ordem técnica, não se transcrevem, mas que assim se sintetizam:
A) O tribunal deu como provado, e bem, que A. S., investido da reputação e confiança que detinha junto dos AA., recebeu fundos dos AA. (facto provado 62).
B) O tribunal também deu como provado, e bem, que “parte dos fundos recebidos dos AA. nunca foram depositados, efectivamente, pelo referido A. S.  no Banco Espírito Santo, S.A., tendo o mesmo falsificado documentos oficiais do Banco, como comprovativos de entregas em numerário no balcão e recibos de quitação” (facto provado 63).
C) No entanto, em gritante contradição, o tribunal deu como não provado que “A. S. tivesse extravasado as funções atribuídas pelo Banco Espírito Santo, S.A., (facto não provado j)) e que “tivesse recebido “indevidamente” fundos dos AA.” (facto não provado k).
D) Na sentença fez-se tábua rasa das deliberações emanadas do Conselho de Administração do Banco de Portugal, das quais resultou que as responsabilidades objeto destes autos não se transmitiram para o Novo Banco, por se tratarem de contingências e decorrerem de “fraude ou da violação de disposições ou determinações regulatórias, penais ou contraordenacionais, independentemente da sua natureza (fiscal, laboral, civil ou outra) e de se encontrarem ou não registadas na contabilidade do BES”.
E) Não foi dado como assente que A. S. atuou no âmbito do enquadramento funcional exigido pelo comitente BES, razão pela qual nem o BES nem o Novo Banco poderão ver imputada uma responsabilidade que não lhes cabe.
F) Resulta da prova produzida nos autos que o antigo colaborador do BES desenvolveu uma atividade clandestina, de que os AA. não podiam deixar de ter conhecimento, não tendo nunca o BES recebido qualquer dos mencionados depósitos dos AA.
G) Face aos depoimentos do recorrido António e das testemunhas Albertino, Manuel, Sara e Sérgio, não deveriam ter sido dados como provados os factos 14 a 47.
H) Pelo contrário, deveriam ter sido dados como provados os factos não provados j), k) e l).
O apelante terminou pedindo que a sentença recorrida fosse revogada e, consequentemente, o R. fosse absolvido do pedido.
Os AA. contra-alegaram, pugnando pela improcedência da apelação e consequente manutenção da decisão recorrida.
Foram colhidos os vistos legais.
FUNDAMENTAÇÃO
As questões que fazem o objeto deste recurso são as seguintes: impugnação da matéria de facto; responsabilidade do BES; transmissão da responsabilidade para o Novo Banco.
Primeira questão (impugnação da matéria de facto)
O tribunal a quo deu como provada a seguinte
Matéria de facto
1. O Banco Espírito Santo, S.A., tinha como objecto social o exercício da actividade bancária;
2. O Banco Espírito Santo, S.A., remeteu ao A. Paulo a carta cuja cópia consta de fls. 40 dos autos, que se dá por reproduzida, datada de 07.08.2013, pela qual solicita, nomeadamente, «uma exposição escrita das pretensões de V. Exa., cujos factos que relatou constituem novidade para o Banco Espírito Santo (…). Agradecemos, também, que em tal exposição detalhe, o quanto possível, as relações que manteve com o senhor A. S. (por exemplo, datas, locais, montantes entregues e recebidos (…)»;
3. O  Conselho de Administração do Banco de Portugal, a 03.08.2014, deliberou o seguinte: «É constituído o Novo Banco, SA, ao abrigo do n.º 5 do artigo 145.º-G do Regime Geral das Instituições de Credito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro, cujos Estatutos constam do Anexo 1 à presente deliberação» e «São transferidos para o Novo Banco, SA, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 145.º-H do Regime Geral das Instituições de Credito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro, conjugado com o artigo 17.º-A da Lei Orgânica do Banco de Portugal, os activos, passivos, elementos extrapatrimoniais e activos sob gestão do Banco CC, SA, que constam dos Anexos 2 e 2A a presente deliberação»;  
4. No art. 1.º dos Estatutos do Novo Banco, S.A., que constituem o Anexo 1 à deliberação referida no ponto anterior, consta que o mesmo é constituído nos termos do n.º 3 do artigo 145.º-G do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras ("RGICSF"), aprovado pelo Decreto-Lei n. º 298/92, de 31 de Dezembro”;
5. No art. 3.º dos mesmos Estatutos, consta que «O Novo Banco, SA, tem por objecto a administração dos activos, passivos, elementos extrapatrimoniais e activos sob gestão transferidos do Banco Espírito Santo, SA, para o Novo Banco, SA, e o desenvolvimento das actividades transferidas, tendo em vista as finalidades enunciadas no artigo 145.º-A do RGICSF, e com o objectivo de permitir uma posterior alienação dos referidos activos, passivos, elementos extrapatrimoniais e activos sob gestão para outra ou outras instituições de crédito»;
6. No Anexo 2 à referida deliberação constam os critérios de identificação dos activos, passivos, elementos extrapatrimoniais e activos sob gestão do Banco Espírito Santo objecto de transferência para o Novo Banco, SA e que são: «(…) As responsabilidades do BES perante terceiros que constituam passivos ou elementos extrapatrimoniais deste serão transferidos na sua totalidade para o Novo Banco, SA, com excepção dos seguintes ("Passivos Excluídos"): (…) (v) Quaisquer responsabilidades ou contingências decorrentes de dolo, fraude, violações de disposições regulatórias, penais ou contra-ordenacionais; (vi) Quaisquer responsabilidades ou contingências do BES relativas a emissão de acções ou dívida subordinada; (vii) Quaisquer responsabilidades ou contingências relativas a comercialização, intermediação financeira e distribuição de instrumentos de dívida emitidos por entidades que integram o universo do Grupo Espírito Santo. No que concerne às responsabilidades do BES que não serão objecto de transferência, estes permanecerão na esfera jurídica do BES. (…) Após a transferência prevista nas alíneas anteriores, o Banco de Portugal pode a todo o tempo transferir ou retransmitir, entre BES e o Novo Banco, SA, activos, passivos, elementos patrimoniais e activos sob gestão, nos termos do artigo 145º H, numero 5 (…)»;
7. A 11.08.2014, o Conselho de Administração do Banco de Portugal deliberou “clarificar e ajustar o perímetro dos activos, passivos, elementos extrapatrimoniais e activos sob gestão do Banco Espirito Santo, S A, transferidos para o Novo Banco, S.A.”, tendo, nomeadamente, deliberado que: «(…) H) A subalínea (v) da alínea (b) do Anexo 2 à deliberação de 3 de Agosto, passa a ter a seguinte redacção:“ Quaisquer responsabilidades ou contingências, nomeadamente as decorrentes de fraude ou da violação de disposições ou determinações regulatórias, penais ou contraordenacionais (…)»;
8. A 29.12.2015, o Conselho de Administração do Banco de Portugal, relativamente ao ponto da agenda “Clarificação e retransmissão de responsabilidades e contingências definidas como passivos excluídos nas subalíneas (v) a (vii) da alínea (b) do n.º 1 do Anexo 2 à Deliberação do Banco de Portugal de 3 de agosto de 2014 (20 horas), na redacção que lhe foi dada pela Deliberação do Banco de Portugal de 11 de agosto de 2014 (17 horas)”, adoptou uma deliberação com, no que ora releva, o seguinte teor:
«(...) 4. O Banco de Portugal dispõe de um poder legalmente conferido que pode ser exercido a todo o tempo antes da revogação da autorização do BES para o exercício da actividade ou da venda do Novo Banco, para determinar transferências adicionais de activos e passivos entre o Novo Banco e o BES (o “Poder de Retransmissão”). O Poder de Retransmissão encontra-se previsto no Capítulo III (Resolução) do Título VIII do RGICSF, tendo ficado expressamente estabelecido no número 2 do Anexo 2 da Deliberação de 3 de agosto. 
(…)
7. O Banco de Portugal considerou ser proporcional e de interesse público não transferir para o banco de transição as responsabilidades contingentes ou desconhecidas do BES (incluindo responsabilidades litigiosas relativas ao contencioso pendente e responsabilidades ou contingências decorrentes de fraude ou da violação de disposições ou determinações regulatórias, penais ou contraordenacionais), independentemente de se encontrarem ou não registadas na contabilidade do BES nos termos da subalínea (v) a (vii) da alínea (b) do n.o 1 do Anexo 2 da Deliberação de 3 de agosto, uma vez que a certeza relativamente às responsabilidades do banco de transição é essencial para garantir a continuidade das funções críticas desempenhadas pelo Novo Banco e que anteriormente tinham sido desempenhadas pelo BES.
8. A legitimidade processual do BES tem vindo a ser questionada ou enjeitada em processos judiciais em que este é parte, com base na alegada transferência para o Novo Banco das responsabilidades que se discutem naqueles processos, em que o BES era réu a 3 de agosto de 2014 e que respeitam a factos anteriores à aplicação da medida de resolução ao BES e por efeito da aplicação desta.
9. Importa clarificar que o Banco de Portugal, enquanto autoridade pública de resolução, decidiu e considera que todas as responsabilidades contingentes e desconhecidas do BES (incluindo responsabilidades litigiosas relativas ao contencioso pendente e responsabilidades ou contingências decorrentes de fraude ou da violação de disposições ou determinações regulatórias, penais ou contraordenacionais), independentemente de se encontrarem ou não registadas na contabilidade do BES, estão abrangidas pelas subalíneas (v) a (vii) da alínea (b) do n.º 1 do Anexo 2 da Deliberação, não tendo sido, portanto, transferidas para o Novo Banco.
(…)
12. Se o número de processos pendentes nos tribunais judiciais e a diferente orientação nas decisões até hoje tomadas conduzirem a que, de modo significativo, não venha a ser reconhecida adequadamente a selecção efectuada pelo Banco de Portugal (enquanto autoridade pública de resolução) dos activos, passivos, elementos extrapatrimoniais e activos sob gestão transferidos do BES para o Novo Banco (decisão sobre o «perímetro de transferência»), pode ficar comprometida a execução e a eficácia da medida de resolução aplicada ao BES, a qual, entre outros critérios, se baseou num critério de certeza quanto ao perímetro de transferência.
13. Foi esse critério de certeza que permitiu calcular as necessidades de capital da instituição de transição, o Novo Banco, e foi com base nesse cálculo que o Fundo de Resolução realizou o capital da instituição de transição.
14. Caso viessem a materializar-se na esfera jurídica do Novo Banco responsabilidades e contingências por força de sentenças judiciais, o Novo Banco seria chamado a assumir obrigações que de modo algum lhe deveriam caber e cuja satisfação não foi pura e simplesmente tida em consideração no montante do capital com que aquele banco de transição foi inicialmente dotado.
15. Este risco pode materializar-se ainda antes do trânsito em julgado das decisões judiciais se, de acordo com as regras contabilísticas, for entendido que, não obstante a decisão do Banco de Portugal, aquela materialização é provável.
16. Nos termos da lei, a decisão do Banco de Portugal sobre o perímetro de transferência só pode ser alterada através dos meios processuais previstos na legislação do contencioso administrativo, de acordo com o artigo 145.º-AR do RGICSF (correspondente ao artigo 145.º-N do RGICSF, em vigor à data de aplicação da medida de resolução ao BES).
17. Questionar o referido perímetro de transferência fora do contencioso administrativo constitui um desvio à competência dos tribunais administrativos, legalmente estabelecida, e impede que o Banco de Portugal exerça a prerrogativa que a lei lhe confere de afastar, por motivo de interesse público, a execução de sentenças desfavoráveis, iniciando-se de imediato o procedimento tendente à fixação da indemnização de acordo com os trâmites definidos no Código do Processo nos Tribunais Administrativos.
18. Decisões de tribunais judiciais que, directa ou indirectamente, ponham em causa o perímetro de transferência neutralizam este mecanismo contencioso (e compensatório), legalmente previsto, de impugnação das decisões do Banco de Portugal, enquanto autoridade pública de resolução, e comprometem a execução e a eficácia da medida de resolução.
19. Tem a presente deliberação o seguinte objectivo:
a. Clarificar o tratamento das responsabilidades contingentes e desconhecidas do BES (incluindo responsabilidades litigiosas relativas ao contencioso pendente e responsabilidades ou contingências decorrentes de fraude ou da violação de disposições ou determinações regulatórias, penais ou contraordenacionais), independentemente da sua natureza (fiscal, laboral, civil ou outra) e de se encontrarem ou não registadas na contabilidade do BES, nos termos da subalínea (v) da alínea (b) do n.º 1 do Anexo 2 da Deliberação de 3 de agosto;
b. Se e na medida em que quaisquer responsabilidades contingentes e desconhecidas ou incertas do BES à data de 3 de agosto (incluindo responsabilidades litigiosas relativas ao contencioso pendente e responsabilidades ou contingências decorrentes de fraude ou da violação de disposições ou determinações regulatórias, penais ou contraordenacionais), independentemente de se encontrarem ou não registadas na contabilidade do BES e que devessem ter permanecido na sua esfera jurídica nos termos da Deliberação de 3 de agosto, sejam atribuídas ao Novo Banco, proceder à sua retransmissão, mediante o exercício do Poder de Retransmissão, das referidas responsabilidades contingentes e desconhecidas (incluindo responsabilidades litigiosas relativas ao contencioso pendente e responsabilidades ou contingências decorrentes de fraude ou da violação de disposições ou determinações regulatórias, penais ou contraordenacionais) para o BES; e
c. Determinar que, de acordo com o disposto no n.º 7 do artigo 145.º-P e nos n.ºs 2, 3 e 4 do artigo 145.º-G do RGICSF, o BES e o Novo Banco tomem as medidas previstas nesta deliberação por forma a conferir-lhe eficácia plena.
20. Face ao exposto e de forma a garantir a continuidade das funções essenciais desempenhadas pelo Novo Banco, encontram-se reunidos os pressupostos para o exercício do Poder de Retransmissão, conforme previsto nesta deliberação, exercício que se afigura extremamente necessário, urgente e inadiável.
O Conselho de Administração do Banco de Portugal, ao abrigo da competência conferida pelo RGICSF para seleccionar os activos e passivos a transferir para o banco de transição, delibera o seguinte:
A) Clarificar que, nos termos da alínea (b) do número 1 do Anexo 2 da deliberação de 3 de agosto, não foram transferidos do BES para o Novo Banco quaisquer passivos ou elementos extrapatrimoniais do BES que, às 20:00 horas do dia 3 de agosto de 2014, fossem contingentes ou desconhecidos (incluindo responsabilidades litigiosas relativas ao contencioso pendente e responsabilidades ou contingências decorrentes de fraude ou da violação de disposições ou determinações regulatórias, penais ou contraordenacionais), independentemente da sua natureza (fiscal, laboral, civil ou outra) e de se encontrarem ou não registadas na contabilidade do BES;
B) Em particular, desde já se clarifica não terem sido transferidos do BES para o Novo Banco os seguintes passivos do BES:
(i) todos os créditos relativos a acções preferenciais emitidas por sociedades-veículo estabelecidas pelo BES e vendidas pelo BES;
(…)
(vii) Qualquer responsabilidade que seja objecto de qualquer dos processos descritos no Anexo I.
C) Na medida em que, não obstante as clarificações acima efectuadas, se verifique terem sido efectivamente transferidos para o Novo Banco quaisquer passivos do BES que, nos termos de qualquer daquelas alíneas e da Deliberação de 3 de agosto, devessem ter permanecido na sua esfera jurídica, serão os referidos passivos retransmitidos do Novo Banco para o BES, com efeitos às 20 horas do dia 3 de agosto de 2014;
D) O Conselho de Administração do BES e o Conselho de Administração do Novo Banco praticarão todos os actos necessários à implementação e eficácia das clarificações e retransmissões previstos na presente deliberação. Em particular e de acordo com o disposto no n.o 7 do artigo 145.º-P e nos n.ºs 2, 3 e 4 do artigo 145.º-G do RGICSF, o Novo Banco e o BES devem:
(a) Adoptar as medidas de execução necessárias à adequada aplicação da medida de resolução aplicada pelo Banco de Portugal ao BES, bem como de todas as decisões do Banco de Portugal que a complementam, alteram ou clarificam, incluindo a presente deliberação;
(b) Praticar todos os actos, sejam estes de natureza procedimental ou processual, nos processos em que sejam parte de modo a dar adequada execução às decisões do Banco de Portugal referidas em (a), incluindo aqueles que sejam necessários para reverter actos anteriores que tenham praticado contrários aquelas decisões;
(c) Para efeito de cumprimento do disposto na alínea (b), requerer a imediata junção da presente deliberação aos autos em que sejam parte;
(d) Adequar os seus registos contabilísticos ao disposto nas decisões do Banco de Portugal referidas em (a); e
(e) Abster-se de qualquer conduta que possa por em causa as decisões do Banco de Portugal referidas em (a) (...)».
Factos provados em audiência final:
9. Os AA. são emigrantes na Suíça, residindo desde, respetivamente, 1980 e 1989, na cidade de Genebra, Suíça;
10. Os AA., há vários anos, abriram conta e constituíram depósitos a prazo junto do Banco Espírito Santo, S.A., em Portugal;
11. Dado que os AA. trabalhavam e residiam na Suíça, abriram conta na agência de Lausanne, na Suíça, do Banco Espírito Santo, S.A.;
12. O A. António era titular de uma conta designada CHF …/ACM junto do Banco Espírito Santo, S.A., na agência de Lausanne, Suíça;
13. Tal conta tinha associada uma conta em francos suíços (LAU. …-acm/chf) e uma conta em euros (LAU-…/acm);
14. Entre 1999 e 2013, o A. António efetuou os depósitos e levantamentos constantes dos documentos n.ºs 3 a 19 da petição inicial, na referida agência de Lausanne, Suíça, do Banco Espírito Santo, S.A.;
15. Em 09.06.2008, o A. António constituiu um depósito a prazo no valor de 119.321,55 francos suíços, com início em 09.06.2008 e vencimento em 10/06/2009, com a taxa de juro líquido de 4,25%;
16. Em 24.10.2008 o depósito a prazo referido na alínea anterior foi liquidado e cambiado para euros no montante de 83.814,08 €;
17. Em 25.10.2008, parte do depósito referido foi cambiado para francos suíços e foi constituído um depósito a prazo no valor de 34.636,85 francos suíços, pelo prazo de 365 dias, com vencimento em 26.10.2009, com a taxa de juro de 4,50 %;
18. O referido depósito a prazo foi renovado sucessivamente;
19. O Banco Espírito Santo – Bureau de Representation enviou ao A. António os extratos cujas cópias foram juntas como documentos n.ºs 23 a 26 da petição inicial, com as renovações do referido depósito a prazo e as alterações das taxas de juro;
20. Em 03.11.2009, constava do extrato que o referido depósito a prazo foi renovado por 365 dias, com a taxa de juro líquido de 3,85 % ao ano;
21. Em 03.11.2010, constava do extrato que o depósito a prazo foi renovado por 365 dias, com a taxa de juro líquido de 3,25 % ao ano;
22. Em 03.11.2011, constava do extrato que o depósito a prazo foi renovado por 365 dias, com a taxa de juro líquido de 2,75 % ao ano;
23. Em 10.11.2012, constava do extrato que o depósito a prazo foi renovado por 365 dias, com a taxa de juro líquido de 3,00 % ao ano;
24. À data do último extrato, este depósito a prazo tinha o valor de 39.878,00 francos suíços;
25. Em 28.10.2008, o A. António constituiu mais um depósito a prazo no valor de 40.130,70 €, pelo prazo de 365 dias, à taxa de juro líquido de 5%, com início em 25.10.2008 e vencimento em 26.10.2009;
26. O referido depósito a prazo foi renovado sucessivamente;
27. O Banco Espírito Santo – Bureau de Representation enviou ao A. António o extrato cuja cópia foi junta como documento n.ºs 28 da petição inicial, com as renovações do referido depósito a prazo e as alterações das taxas de juro;
28. Em 03.11.2009, constava do extraco que o depósito a prazo foi renovado por 365 dias, com a taxa de juro de 4,25 % ao ano;
29. No dia 22.11.2012, o A. António constituiu o depósito a prazo em euros, no valor de 24.296,25 €, pelo prazo de 365 dias, à taxa de juro de 5,25, com início em 23.11.2012 e termo e 24.12.2013;
30. À data do último extrato, este depósito a prazo tinha o valor de 24.296,25 euros;
31. O A. Paulo era titular de uma conta designada CHF …/PAM junto do Banco Espírito Santo, S.A. na agência de Lausanne, Suíça;
32. Associada a essa conta, foram atribuídos os nºs … – PAL;
33. Em 25.10.2008, o A. Paulo constituiu um depósito a prazo no valor de 7.102,04 euros, a 360 dias, com início em 25.10.2008, com vencimento em 26.10.2009, com a taxa de juro líquido de 4,5 %;
34. O referido depósito a prazo foi renovado sucessivamente;
35. O Banco Espírito Santo – Bureau de Representation enviou ao A. Paulo os extratos cujas cópias foram juntas como documentos n.ºs 33 e 34 da petição inicial, com as renovações do referido depósito a prazo e as alterações das taxas de juro;
36. Em 30.10.2009, constava no extrato que o depósito a prazo foi renovado por 365 dias, com a taxa de juro de 3,90 % ao ano;
37. Em 30.10.2010, constava no extrato que o depósito a prazo foi renovado por 365 dias, com a taxa de juro líquido de 4 % ao ano;
38. Em 27.10.2009, o A. Paulo constituiu um depósito a prazo no valor de 7.615,85 €, a 365 dias, com início em 27.10.2009 e vencimento a 28.10.2010, com a taxa de juro líquido de 3,90 % ao ano;
39. Em 30.10.2010, o A. Paulo recebeu o extrato do qual consta que este depósito se renovou por mais 365 dias, com início em 29.10.2010 e vencimento a 30.10.2011, com a taxa de juro liquido de 4% ao ano;
40. Em 17.06.2010, o A. Paulo depositou e constitui depósito a prazo no valor de 8.297,00 €, a 365 dias, com início em 17.06.2010 e vencimento a 18.06. 2011, com a taxa de juro líquido de 3,90 % ao ano;
41. Em 19.12.2012, o A. Paulo decidiu constituir novo depósito a prazo no valor de 8.350,00 €, por 183 dias, com início em 19.12.2012 e vencimento a 19.06.2013, com a taxa de juro de 2,75 %;
42. Em 20.06.2011, o A. Paulo constitui um depósito a prazo no valor de 24.893,81 €, pelo prazo de 365 dias, com início em 20.06.2011 e termo a 21.06.2012, à taxa de juro de 4,25 % ao ano;
43. O referido depósito a prazo foi renovado;
44. O Banco Espírito Santo – Bureau de Representation enviou ao A. Paulo o extrato cuja cópia foi junta como documento n.ºs 39 da petição inicial;
45. Em 25.06.2012, constava desse extrato que o depósito a prazo foi renovado por 365 dias, com a taxa de juro de 4,25 % ao ano, com início em 22.06.2012 e vencimento em 23.06.2013;
46.  À data desse extrato, este depósito tinha o valor de 25.951,80 €;
47. Em 04.04.2013, o A. Paulo entregou ao Banco Espírito Santo – Bureau de Representation a quantia de 10.000,00 francos Suíços, com vista a constituir um depósito a prazo;
48. Na altura, o funcionário referiu que não tinha sistema informático e por isso emitiu o documento n.º 41 junto com a p.i., referindo, ainda, que enviaria o respetivo documento para a sua morada;
49. O A. António pretendeu consultar os seus depósitos a prazo e deslocou ao escritório de representação do Banco Espírito Santo, S.A., na Suíça, mas foi-lhe referido que não localizavam as contas;
50. Tal motivou uma reclamação verbal do referido A. junto do escritório de representação do Banco Espírito Santo, S.A.;
51. O A. Paulo deslocou-se ao escritório de representação daquele Banco, na Suíça, e foi confrontado também com o facto de as suas contas não terem sido localizadas;
52. Tal motivou uma reclamação verbal do A. Paulo junto do escritório de representação do Banco Espírito Santo, S.A.;
53. Na sequência da carta referida no n.º 2, o A. António reclamou dois depósitos a prazo com os saldos de 39.878,00 francos suíços e 24.296,25 €, acrescidos dos respetivos juros;
54. E o A. Paulo reclamou três depósitos com os saldos de 25.951,80 €; 8.350,00 € e 10.000,00 francos suíços, acrescidos dos respetivos juros;
55. Entretanto, realizaram-se reuniões entre os AA. e funcionários do Banco Espírito Santo, S.A., e foi-lhes dito que não conseguiam encontrar e reconstituir alguns dos depósitos supra referidos nos n.ºs 14 a 47;
56. Após vários meses, o Banco Espírito Santo, S.A., comunicou aos AA. uma proposta que consistia na entrega do capital em singelo relativamente aos depósitos que havia conseguido reconstituir e apenas 33,33 % dos depósitos que não tinham conseguido reconstituir;
57. Sendo que entregaria ao A. António 13.292,67 francos e 8.098,75 €, relativos aos depósitos a prazo reclamados;
58. E sendo que entregaria ao A. Paulo a quantia de 11.432,78 €, e 3.333 francos suíços;
59. A partir da data da resolução do Banco de Portugal de 03.08.2014, foram interrompidas as negociações entre os AA. e o Banco Espírito Santo, S.A.;
60. O R Novo Banco, S.A., até à presente data, tem-se recusado a entregar aos AA. o capital e os juros por eles reclamados;
61. A relação existente entre os AA. e o Banco Espírito Santo, S.A., era mediada principalmente por um colaborador daquele Banco, no balcão sediado em Lausanne, na Suíça, de nome A. S.;
62. O referido A. S., investido da reputação e confiança que detinha junto dos AA., recebeu fundos dos AA.;
63. Parte dos fundos recebidos dos AA. nunca foram depositados, efetivamente, pelo referido A. S. no Banco Espírito Santo, S.A., tendo o mesmo falsificado documentos oficiais do Banco, como comprovativos de entregas em numerário no balcão e recibos de quitação;
64. O referido A. S. nunca foi colaborador do R. Novo Banco, S.A..
Na sentença foram enunciados os seguintes
Factos não provados
a) que o A. António tenha ordenado a transferência da conta referida no n.º 16 dos factos provados da quantia de 60.000,00 € para Portugal, destinando tal montante para pagamento de parte do preço de um apartamento que comprou;
b) que, em 18.11.2010, o depósito a prazo referido no n.º 25 dos factos assentes tenha sido renovado por 365 dias, com a taxa de juro líquido de 3,25 % ao ano;
c) que, em Novembro de 2011, o A. António tenha decidido que a conta referido no n.º 25 dos factos assentes ficaria à ordem, já que ia fazer um empréstimo de 8.000,00 € a um familiar e pretendia fazer obras;
d) que, relativamente ao depósito referido no n.º 40 dos factos provados, o A. Paulo tenha decidido que o mesmo ficaria à ordem, por necessitar daquele valor disponível a qualquer momento;
e) que o depósito referido no n.º 42 dos factos provados resultasse da junção dos três depósitos que o A. Paulo tinha a prazo;
f) que o depósito a prazo referido no n.º 47 fosse a 90 dias;
g) que o A. António tivesse comunicado ao A. Paulo o que lhe tinha acontecido na agência do Banco Espírito Santo, S.A.;
h) que o que consta dos n.ºs 49 a 52 dos factos provados tivesse ocorrido na agência do BES na Suíça; 
i) que o que consta do n.º 53 tenha sido feito na agência do Banco Espírito Santo, em Genebra, através de uma exposição;
j) que A. S. tivesse extravasado as funções atribuídas pelo Banco Espírito Santo, S.A.;
k) que A. S. tivesse recebido “indevidamente” fundos dos AA.;
l) que, em 03.08.2014, os depósitos mencionados pelos AA. não constassem nos sistemas do Banco Espírito Santo, S.A., nem se encontrassem registados na sua contabilidade.
O Direito
Nos termos do n.º 1 do art.º 662.º do CPC “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”
Pretendendo o recorrente impugnar a decisão relativa à matéria de facto, deverá, nos termos do art.º 640.º do CPC, sob pena de rejeição, especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
No caso destes autos, o apelante entende que não deveriam ter sido dados como provados os factos 14 a 47 dos factos provados, e deveriam ter sido dados como provados os factos não provados j), k) e l).
Tal seria decorrência lógica dos factos provados 62 e 63 e resultaria das declarações do recorrido António e do depoimento das testemunhas Albertino, Manuel, Sara e Sérgio.
Vejamos.
Em relação aos factos dados como provados sob os n.ºs 62 e 63, dos quais emergiria, por coerência lógica, segundo o apelante, a não prova dos factos 14 a 47, são os seguintes – incluindo-se aqui, para melhor compreensão, também o dado como provado sob o n.º 61:
61. A relação existente entre os AA. e o Banco Espírito Santo, S.A., era mediada principalmente por um colaborador daquele Banco, no balcão sediado em Lausanne, na Suíça, de nome A. S.;
62. O referido A. S., investido da reputação e confiança que detinha junto dos AA., recebeu fundos dos AA.;
63. Parte dos fundos recebidos dos AA. nunca foram depositados, efetivamente, pelo referido A. S. no Banco Espírito Santo, S.A., tendo o mesmo falsificado documentos oficiais do Banco, como comprovativos de entregas em numerário no balcão e recibos de quitação.
Em suma, nestes factos dá-se como provado que os AA. efetivamente entregaram fundos ao BES, fundos esses que foram principalmente entregues a um determinado colaborador do BES, no balcão de Lausanne, Suíça. Parte desses fundos que os AA. entregaram ao A. S. nunca foram por este depositados no BES. O A. S. falsificou documentos oficiais do Banco, como comprovativos de entregas em numerário no balcão e recibos de quitação.
Nos números questionados pelo apelante, n.ºs 14 a 47 da matéria de facto, dá-se como provado que os AA. efetuaram diversos depósitos a prazo e levantamentos na agência do BES em Lausanne, nos valores aí indicados.
Não se vê que haja contradição entre estes factos e os enunciados nos n.ºs 62 e 63. As partes, nomeadamente o apelante, aceitam que A. S. trabalhava para o BES, exercendo funções no balcão do BES em Lausanne. Também aceitam que os AA. eram clientes do BES e entregaram fundos naquele balcão. Logo, depositaram fundos no BES. Assim, as entregas efetuadas a A. S. incluem-se nas entregas realizadas no BES. Questão diversa será a do extravio que A. S. fez de parte dessas verbas, após a dita entrega.
Como comprovativos das entregas efetuadas pelos AA. no balcão do BES em Lausanne foram entregues aos AA. os documentos juntos nos autos (documentos 3 a 41 apresentados com a petição inicial). Trata-se de documentos oficiais do BES (embora, segundo o apelante, indevidamente usados para esse fim) e estão assinados por um funcionário do BES. Não se vislumbra que eventuais disparidades quanto à referência, em certos documentos, a ”succursale de Lausanne” e, noutros, a “bureau de représentation”, afetem a credibilidade dos valores aí constantes, tanto mais que em todos eles se identifica a mesma entidade emitente, ou seja, o Banco Espírito Santo, Av. de Montchoisi 15 CH 1006 Lausanne.
Os AA. depuseram no sentido da confirmação das entregas dos aludidos valores, que afirmaram terem efetuado nas instalações do BES em Lausanne, na maioria das vezes a A. S., mas também a outras pessoas que lá estivessem, tendo mencionado nomes de funcionários como Rodrigo, Francisco Andrade, Iolanda. No mesmo sentido depuseram, de forma que nos pareceu isenta e credível, as testemunhas Albertino e Manuel, clientes do BES que confirmaram como as coisas se passavam no balcão de Lausanne, onde A. S., que agia como diretor, e outros trabalhadores, recebiam dos clientes do BES quantias destinadas a serem depositadas no banco ou transferidas para Portugal, sendo emitidos, como comprovativos, documentos idênticos aos apresentados pelos AA. neste processo. Todos os depoentes coincidiram, de forma que nos pareceu sincera, no sentido de que para eles o balcão de Lausanne funcionava como uma agência normal, fazendo a atividade habitual de qualquer balcão, nomeadamente recebendo depósitos, nunca lhes tendo sido dito nada em contrário. Note-se que não se encontra qualquer evidência, contrariamente ao alegado pelo apelante no seu recurso, de que estava em causa, da parte dos AA., qualquer atividade clandestina ou paralela, de que estes tivessem conhecimento, nomeadamente com pagamentos de juros em envelopes (no seu depoimento a testemunha Sara, que procedeu à inspeção cujo relatório foi junto aos autos a fls 591 e seguintes, com os anexos respeitantes aos autores constantes a fls 760 e seguintes, nada garantiu a esse respeito, no que concerne aos AA.).
Ponderados todos os elementos constantes dos autos, à luz do já exposto, não vemos razões para dar como provados os factos não provados enunciados nas alíneas j), k) e l), que têm a seguinte redação:
j) que A. S. tivesse extravasado as funções atribuídas pelo Banco Espírito Santo, S.A.;
k) que A. S. tivesse recebido “indevidamente” fundos dos AA.;
l) que, em 03.08.2014, os depósitos mencionados pelos AA. não constassem nos sistemas do Banco Espírito Santo, S.A., nem se encontrassem registados na sua contabilidade.
Quanto às alínea j) e k), sendo A. S. colaborador do BES, agindo como diretor do Banco em Lausanne, não vemos que, nas suas relações com os AA., tivesse extravasado as suas funções, nomeadamente ao receber fundos da parte dos clientes do Banco. Afinal, para que serve um funcionário de uma instituição bancária, se não for, em última análise, para receber poupanças disponíveis no mercado? Questão diversa será o eventual desvio desses fundos. Mas aí não está em causa a ultrapassagem de competências, mas a violação, a posteriori, dos deveres funcionais. Quanto à alínea l), na sentença motivou-se a decisão de facto desta forma:
“- quanto à al. l), do relatório de inspecção já referenciado, elaborado pelo próprio BES, decorre que, já em 2013, foi possível reconstituir a quase totalidade dos depósitos reclamados pelos AA., não tendo sido feita qualquer prova de que na data de 03.08.2014 os mesmos já não constassem da contabilidade ou sistemas do BES (cfr. fls. 763 e 791).”
Note-se que 03.8.2014 é a data da declaração de resolução do BES e da criação do Novo Banco. Ora, a essa data havia muito que as pretensões dos AA. estavam a ser analisadas pelo BES, que havia feito uma proposta de pagamento nos termos dados como provados nos n.ºs 56 a 58 da matéria de facto. Não pode, pois, dar-se como provado que essa realidade não constava na contabilidade do BES à data da sua resolução.
Em suma, nesta parte a apelação improcede, devendo manter-se a decisão da matéria de facto.
Segunda questão (responsabilidade do BES)
Provou-se que os AA. eram clientes do BES, mantendo, pois, com o banco uma relação contratual, iniciada com abertura de conta, naturalmente associada a um depósito à ordem e, em simultâneo ou sucessivamente, seguida de abertura de contas de depósito a prazo.
A relação negocial bancária, assim constituída (vide António Pedro de Azevedo Ferreira, A relação negocial bancária, citada, pp. 591 e ss.; Almeno de Sá, Direito Bancário, 2008, Coimbra Editora, 2008, pp. 13 e ss.; António Menezes Cordeiro, Direito Bancário, 6.ª edição, 2016, Almedina, pp. 266, 286 a 291), desencadeia entre as partes um elo de confiança, que tenderá a reforçar-se com o seu prolongamento. O particular, ao abrir conta num banco, dá a este acesso à sua vida patrimonial e até pessoal, decorrente de todo o giro de prestações a débito e a crédito patenteadas na respetiva conta-corrente, para além das informações decorrentes de concretas operações realizadas, nomeadamente as de concessão de crédito. Os bancos têm interesse em que a sua atuação capte e reforce a confiança do cliente, assim mantendo a seu favor o acesso às respetivas poupanças, manancial essencial da atividade dos bancos, enquanto entidades de intermediação creditícia, ou seja, intermediárias entre aqueles, como o público em geral, maxime as famílias, que em matéria de créditos se encontram em posição excedentária (depositantes) e agentes económicos, maxime as empresas, que se encontram numa posição deficitária (vide José E. Engrácia Antunes, Direito dos Contratos Comerciais, Almedina, 2009, pp. 470 e 471). Os clientes reconhecem aos bancos um superior conhecimento da sua atividade proveniente da sua profissionalização e especialização, confiando que estes atuarão, não só de acordo com normais padrões de diligência e correção ao nível da genérica boa-fé exigida na execução dos contratos (art.º 762.º n.º 2 do CC) ou da sua negociação prévia (art.º 227.º n.º 1 do CC), mas, mais do que isso, esperarão que estes, tal como expressamente enunciado no RGICSF, pautarão a sua atuação por elevados padrões de competência técnica (art.º 73.º do RGICSF), os quais se refletirão na “diligência, neutralidade, lealdade, discrição e respeito consciencioso dos interesses que lhes estão confiados”, que deverão nortear as suas relações com os clientes (art.º 74.º RGICSF). Sendo certo que o banco responderá diretamente pela atuação dos seus funcionários, nos termos do art.º 800.º do CC (cfr. Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, “Informação bancária e responsabilidade”, in Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Inocêncio Galvão Telles, II volume, Direito Bancário, Almedina, 2002, p. 242).
Ora, provou-se que os AA., clientes do BES, nele efetuaram depósitos a prazo.
O depósito a prazo é um depósito bancário, isto é, uma disponibilidade monetária entregue a uma entidade que está sujeita a um conjunto de deveres prudenciais de natureza legal e administrativa que se destinam a garantir que essa entidade pode, a todo o momento e salvo particular acordo inter partes, restituir ao depositante o valor correspondente à totalidade ou parte da quantia depositada (art.º 1.º do Dec.-Lei n.º 430/91, de 02.11). O depósito bancário é um depósito irregular (artigos 1185.º e 1205.º do CC), um negócio em que predomina o interesse do depositante, conforme decorre do regime decorrente do Dec.-Lei n.º 430/91 e é confirmado pela tradicional proteção legal conferida aos depósitos bancários, nomeadamente através do fundo de garantia de depósitos, em caso de insolvência da instituição bancária (cfr. artigos 164.º a 166.º do RGICSF; Manuel Carneiro da Frada, “Crise financeira mundial e alteração das circunstâncias: contratos de depósito vs. contratos de gestão de carteiras”, in ROA, 2009, ano 69.º, vol. III/IV, p.647; António Pedro de Azevedo Ferreira, A relação negocial bancária, 2005, Quid Juris, p. 131).
Efetuados os depósitos, como se provou, ficou o BES obrigado à sua restituição, total ou parcial, conforme pretendido pelos AA. e a menos que alguma limitação em contrário tivesse sido acordada, o que não foi alegado nem provado. Ou seja, o BES obrigou-se a entregar aos seus clientes o valor dos montantes depositados, acrescido dos respetivos juros (art.º 1187.º al. c)).
Note-se que está aqui, pois, a mera reclamação do cumprimento de um contrato.
Na petição inicial não foi suscitada a questão da responsabilização do BES pelo risco, nos termos do art.º 500.º do Código Civil. A causa de pedir desta ação não se insere na responsabilidade por factos ilícitos, na modalidade de responsabilidade pelo risco, ou seja, não emerge de danos culposamente causados por um funcionário do BES, que este (BES), na qualidade de comitente, teria de suportar independentemente de culpa. O fundamento desta ação reside no princípio geral contido no art.º 406.º do Código Civil, “os contratos devem ser pontualmente cumpridos.”
Se algum funcionário do BES, nomeadamente A. S., violou os seus deveres para com o Banco, essa é uma questão interna do BES, a que os AA. são alheios.
Cabia, pois, ao BES, quando para tal solicitado pelos AA., pagar a estes os valores depositados, acrescidos dos juros contratualizados.
À mesma conclusão chegaram o presente relator e o também aqui 2.º adjunto, no acórdão proferido no processo n.º 17566/16.6T8LSB.L1, datado de 21.6.2018, confirmado pelo acórdão do STJ de 30.4.2019, documentado nestes autos e que incide sobre realidade factual idêntica à desta causa.
Terceira questão (transmissão da responsabilidade para o Novo Banco)
É sabido que a crise financeira internacional despoletada em 2007 mostrou a insuficiência e inadequação dos meios de supervisão e intervenção públicos então existentes para fazer face aos desequilíbrios ocorridos no setor financeiro. Por um lado, evidenciou-se a necessidade de reforçar drasticamente os instrumentos e poderes de supervisão públicos (embora exercidos por entidades independentes) da atividade financeira, de molde a garantir uma atuação prudencial e preventiva seriamente minimizadora de riscos. Por outro lado, consensualizou-se o propósito de incrementar a capacidade de intervenção junto das instituições de crédito, através de medidas de saneamento que poderão culminar na aplicação de medidas de resolução, em que o paradigma da assunção, pelo Estado, das perdas da instituição bancária (“too big to fail”), é substituído pela responsabilização primeira dos acionistas e, depois, dos credores, salvaguardando-se a proteção dos depositantes, a estabilidade do sistema financeiro como um todo e o erário público.
Foi à luz deste consenso fundamental, formado, nomeadamente, em fóruns no âmbito do G20 e da União Europeia, cuja aplicação em Portugal o Memorando de Entendimento sobre as Condicionalidades de Política Económica, formalizado em 17.5.2011 entre Portugal, a União Europeia, o Banco Central Europeu e o FMI (a famosa troika), apressou, que foi aprovado e publicado o Dec.-Lei n.º 31-A/2012, de 10.02. Este diploma visou ajustar o ordenamento jurídico português às referidas preocupações e objetivos, alterando, nomeadamente, o Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF, aprovado pelo Dec.-Lei n.º 298/92, de 31.12, com as alterações publicitadas), o Dec.-Lei n.º 199/2006, de 25.10, que regula a liquidação de instituições de crédito e sociedades financeiras, e a Lei Orgânica do Banco de Portugal, aprovada pela Lei n.º 5/1998, de 31.01 (com as alterações publicitadas).
Mais tarde foi publicada a Diretiva 2014/59/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de maio de 2014, que estabelece um enquadramento para a recuperação e a resolução de instituições de crédito e de empresas de investimento, a qual visou harmonizar nos Estados-Membros a legislação atinente a estas matérias. Consequentemente o RGICSF foi alterado, ajustando-se o regime ao teor da Diretiva, nomeadamente através da Lei n.º 23-A/2015, de 26.3. Uma vez que à data da deliberação do Banco de Portugal que sujeitou o BES à medida de resolução que deu origem ao Novo Banco (3 de agosto de 2014) estava em vigor, no essencial, a redação introduzida pelo Dec.-Lei n.º 31-A/2012, é a esta que nos reportaremos primordialmente, sempre que tal não seja referenciado em contrário.
Por força do Dec.-Lei n.º 31-A/2012 o título VIII do RGICSF, anteriormente designado “Saneamento”, passou a ostentar a epígrafe “Intervenção correctiva, administração provisória e resolução.”
O art.º 139.º enuncia os princípios gerais que deverão nortear a intervenção do Banco de Portugal no âmbito deste Título VIII. Assim, a adoção das respetivas medidas visará “a salvaguarda da solidez financeira da instituição de crédito, dos interesses dos depositantes ou da estabilidade do sistema financeiro” (n.º 1). A sua aplicação está sujeita “aos princípios da adequação e da proporcionalidade, tendo em conta o risco ou o grau de incumprimento, por parte da instituição de crédito, das regras legais e regulamentares que disciplinam a sua actividade, bem como a gravidade das respectivas consequências na solidez financeira da instituição em causa, nos interesses dos depositantes ou na estabilidade do sistema financeiro” (n.º 2).
As denominadas “medidas de resolução” (expressão que constitui tradução da terminologia utilizada na língua inglesa, “resolution”, ou “resolution measures”, que não corresponde ao seu significado jurídico tradicional) constituem a grande novidade do novo regime de recuperação de instituições de crédito em dificuldades.
Estas, conforme dimana do art.º 144.º, serão aplicadas quando, por um lado, se mostrarem insuficientes as medidas de intervenção corretiva e, por outro, inadequadas tanto a nomeação de uma administração provisória como a revogação de autorização para o exercício da atividade, com a sequente liquidação nos termos da lei aplicável.
Tais medidas são, conforme decorre do n.º 1 do art.º 145.º-C:
a) Alienação parcial ou total da actividade a outra instituição autorizada a desenvolver a actividade em causa;
b) Transferência, parcial ou total, da actividade a um ou mais bancos de transição.
A sua aplicação pressupõe que a instituição de crédito não cumpra, ou esteja em risco sério de não cumprir, os requisitos para a manutenção da autorização para o exercício da sua actividade”, e ainda, que a medida seja “indispensável para a prossecução de qualquer das finalidades previstas no artigo 145.º-A” (n.º 1 do art.º 145.º), que são:
a) Assegurar a continuidade da prestação dos serviços financeiros essenciais;
b) Acautelar o risco sistémico;
c) Salvaguardar os interesses dos contribuintes e do erário público;
d) Salvaguardar a confiança dos depositantes.
O n.º 3 do art.º 145.º-C esclarece que se considera que “uma instituição de crédito está em risco sério de não cumprir os requisitos para a manutenção da autorização para o exercício da sua actividade quando, entre outros factos atendíveis cuja relevância o Banco de Portugal apreciará à luz das finalidades enunciadas no artigo 145.º-A, se verifique alguma das seguintes situações:
a) A instituição de crédito tiver tido prejuízos ou haja fundadas razões para considerar que a curto prazo possa vir a ter prejuízos susceptíveis de consumir o respectivo capital social;
b) Os activos da instituição de crédito se tornem inferiores ou haja fundadas razões para considerar que a curto prazo se tornem inferiores às respectivas obrigações;
c) A instituição de crédito estiver impossibilitada de cumprir as suas obrigações, ou haja fundadas razões para considerar que a curto prazo o possa ficar.
Nos termos do art.º 145.º-B, na aplicação da medida de resolução “procura assegurar-se que os accionistas e os credores da instituição de crédito assumem prioritariamente os prejuízos da instituição em causa, de acordo com a respectiva hierarquia e em condições de igualdade dentro de cada classe de credores”, ressalvando-se, porém, os depositantes garantidos pelo Fundo de Garantia de Depósitos (n.º 2 do art.º 145.º-B).
A segunda medida de resolução, legalmente prevista ao tempo da criação do Novo Banco, é a transferência, parcial ou total, da atividade da instituição de crédito em crise para bancos de transição (“bridge banks”).
Nos termos do art.º 145.º-G, com a redação introduzida pelo Dec.-Lei n.º 114-B/2014, de 04.8 (com início de vigência a 05.8), “o Banco de Portugal pode determinar a transferência, parcial ou total, de activos, passivos, elementos extrapatrimoniais e activos sob gestão de uma instituição de crédito para um ou mais bancos de transição para o efeito constituídos, com o objectivo de permitir a sua posterior alienação a outra instituição autorizada a desenvolver a actividade em causa.” Igual medida pode ser aplicada a duas ou mais instituições de crédito incluídas no mesmo grupo.
O banco de transição é uma instituição de crédito com a natureza jurídica de banco, cujo capital social é realizado e detido pelo Fundo de Resolução. O banco de transição é constituído por deliberação do Banco de Portugal, que aprova os respetivos estatutos, ficando desde logo autorizado a exercer as atividades permitidas aos bancos. Os membros dos respetivos órgãos de administração e fiscalização são nomeados pelo Banco de Portugal. O banco de transição tem uma duração limitada a dois anos, prorrogável por períodos de um ano com base em fundadas razões de interesse público, nomeadamente se permanecerem riscos para a estabilidade financeira ou estiverem pendentes negociações com vista à alienação dos respetivos ativos, passivos, elementos extrapatrimoniais e ativos sob a sua gestão, não podendo exceder a duração máxima de cinco anos.
Nos termos do art.º 145.º-H (redação introduzida pelo Dec.-Lei n.º 114-A/2014, de 01.8), que regula a matéria do património e financiamento do banco de transição, o Banco de Portugal seleciona os ativos, passivos, elementos extrapatrimoniais e ativos sob gestão a transferir para o banco de transição no momento da sua constituição. Não poderão ser transferidas para o banco de transição quaisquer obrigações contraídas pela instituição de crédito originária perante os respetivos acionistas, cuja participação no momento da transferência seja igual ou superior a 2% do capital social, as pessoas ou entidades que nos dois anos anteriores à transferência tenham tido participação igual ou superior a 2 % do capital social, os membros dos órgãos de administração ou de fiscalização, os revisores oficiais de contas ou sociedades de revisores oficiais de contas ou as pessoas com estatuto semelhante noutras empresas que se encontrem em relação de domínio ou de grupo com a instituição, as pessoas ou entidades que tenham sido acionistas, exercido as funções ou prestado os serviços atrás referidos nos quatro anos anteriores à criação do banco de transição, e cuja ação ou omissão tenha estado na origem das dificuldades financeiras da instituição de crédito ou tenha contribuído para o agravamento de tal situação, os cônjuges, parentes ou afins em 1.º grau ou terceiros que atuem por conta das pessoas ou entidades atrás referidas, os responsáveis por factos relacionados com a instituição de crédito, ou que deles tenham tirado benefício, diretamente ou por interposta pessoa, e que estejam na origem das dificuldades financeiras ou tenham contribuído, por ação ou omissão no âmbito das suas responsabilidades, para o agravamento de tal situação, “no entender do Banco de Portugal” (n.º 2 do art.º 145.º-H).
Os ativos, passivos, elementos extrapatrimoniais e ativos sob gestão selecionados para a transmissão devem ser objeto de uma avaliação, reportada ao momento da transferência, realizada por uma entidade independente designada pelo Banco de Portugal, em prazo a fixar por este, a expensas da instituição de crédito, devendo a mesma avaliação incluir também uma estimativa do nível de recuperação dos créditos de cada classe de credores, de acordo com a ordem de prioridade estabelecida na lei, num cenário de liquidação da instituição de crédito originária em momento imediatamente anterior ao da aplicação da medida de resolução. Esta estimativa releva para os efeitos previstos no n.º 3 do art.º 145.º-B, na redação introduzida pelo Dec.-Lei n.º 114-A/2014, de 01.8, que consagra o princípio “no creditor worse off”:
Caso se verifique, no encerramento da liquidação da instituição de crédito objeto da medida de resolução, que os credores dessa instituição cujos créditos não tenham sido transferidos para outra instituição de crédito ou para um banco de transição assumiram um prejuízo superior ao montante estimado, nos termos da avaliação prevista no n.º 6 do artigo 145.º-F e no n.º 4 do artigo 145.º-H, que assumiriam caso a instituição tivesse entrado em processo de liquidação em momento imediatamente anterior ao da aplicação da medida de resolução, têm os credores direito a receber essa diferença do Fundo de Resolução.
Este princípio (“no creditor worse off”) está atualmente consagrado no art.º 145.º-D, n.º 1, alínea c), na redação introduzida pela Lei n.º 23-A/2015, prevendo-se no n.º 16 do art.º 145.º-H a responsabilidade do Fundo de Resolução no pagamento da diferença que se apure entre o que o credor recebeu e o que receberia se a instituição tivesse entrado logo em liquidação.
No Fundo de Resolução participam todas as instituições de crédito com sede em Portugal (art.º 153.º-D, na redação introduzida pela Lei n.º 23-A/2015), sendo também mobilizados para ele recursos do Estado, que, no entanto, funcionam como forma de financiamento e não de capitalização (Ana Mafalda Castanheira Neves de Miranda Barbosa, “A propósito do caso BES: algumas notas acerca da medida de resolução”, in “Direito Civil e Sistema Financeiro, Principia 2016, página 53).
Nos termos do n.º 5 do art.º 145.º-H, após a transferência inicial, o Banco de Portugal pode, a todo o tempo: a) Transferir outros ativos, passivos, elementos extrapatrimoniais e ativos sob gestão da instituição de crédito originária para o banco de transição; b) Transferir ativos, passivos, elementos extrapatrimoniais e ativos sob gestão do banco de transição para a instituição de crédito originária.
Estes poderes de transmissão adicional e de retransmissão para a instituição de crédito originária estão atualmente previstos no n.º 4 do art.º 145.º-Q (redação introduzida pela Lei n.º 23-A/2015, de 26.3), nos seguintes termos:
Após a transferência prevista no n.º 1 e 2 do artigo 145.º-O, o Banco de Portugal pode, a todo o tempo:
a) Transferir direitos e obrigações da instituição de transição para um veículo de gestão de ativos, constituído para o efeito, aplicando-se o disposto nos artigos 145.º-S e 145.º-T, quando tal seja necessário para assegurar as finalidades previstas no n.º 1 do artigo 145.º-C ou para facilitar a cessação da atividade da instituição de transição nos termos do disposto no n.º 1 do artigo seguinte;
b) Transferir outros direitos e obrigações e a titularidade de ações ou de títulos representativos do capital social da instituição de crédito objeto de resolução para a instituição de transição;
c) Devolver à instituição de crédito objeto de resolução direitos e obrigações que haviam sido transferidos para a instituição de transição ou devolver a titularidade de ações ou de títulos representativos do capital social da instituição de crédito objeto de resolução aos respetivos titulares no momento da deliberação prevista no n.º 1 do artigo 145.º-P, não podendo a instituição de crédito objeto de resolução ou aqueles titulares opor-se a essa devolução, desde que estejam reunidas as condições previstas no número seguinte.
Sendo que, nos termos do n.º 5 do preceito, a mencionada “devolução” à instituição de crédito objeto de resolução de direitos e obrigações que haviam sido transferidos para a instituição de transição ou a devolução da titularidade de ações ou de títulos representativos do capital social da instituição de crédito objeto de resolução aos respetivos titulares no momento da deliberação de resolução está sujeita às seguintes condições:
“…quando tal esteja expressamente previsto na decisão do Banco de Portugal prevista nos n.os 1 e 2 do artigo 145.º-O [decisão de aplicação da medida de resolução], quando as condições de transferência dos direitos, obrigações, ações e títulos representativos do capital social da instituição de crédito objeto de resolução aí previstas não se verifiquem ou quando aqueles direitos, obrigações, ações e títulos representativos do capital social da instituição de crédito objeto de resolução não se insiram nos critérios para a transferência aí definidos.”
Após a transferência prevista no n.º 1, deve ser garantida a continuidade das operações relacionadas com os ativos, passivos, elementos extrapatrimoniais e ativos sob gestão transferidos, devendo o banco de transição ser considerado, para todos os efeitos legais e contratuais, como sucessor nos direitos e obrigações transferidos da instituição de crédito originária (n.º 9).
Revertamos ao caso dos autos.
Nesta ação os AA. apresentam-se como depositantes, reclamando do Novo Banco, na qualidade de sucessor do BES, o pagamento do que lhes é devido, nessa qualidade.
Na sua contestação o Novo Banco alegou que o Banco de Portugal, no uso das suas competências, excluiu da transmissão do BES para o Novo Banco as contingências ou responsabilidades por factos ilícitos ocorridos antes da medida de resolução.
Vejamos.
Na deliberação do Banco de Portugal de 03.8.2014, que aprovou a resolução do BES e a constituição do Novo Banco, expressamente se diz que a aludida medida era imperativa e inadiável, como “medida de defesa dos depositantes” (ponto 8 da deliberação). Mais aí se escreveu que a constituição do novo banco permitiria aos seus depositantes (do primitivo BES) “manter um relacionamento estável com a sua instituição e a continuidade do acesso aos serviços por ele prestados” (ponto 12 da deliberação).
Nos termos do anexo II da deliberação, “as responsabilidades do BES perante terceiros que constituam passivos ou elementos extrapatrimoniais deste serão transferidos na sua totalidade para o Novo Banco, SA, com exceção dos seguintes (“Passivos Excluídos”)”…, aí se mencionando, seguidamente, a exclusão, da transferência para o Novo Banco, de “quaisquer responsabilidades ou contingências decorrentes de dolo, fraude, violações de disposições regulatórias, penais ou contra-ordenacionais” (subalínea v)) da alínea b) do número 1 do anexo). Tal exclusão manteve-se na deliberação do Banco de Portugal, de 11.8.2014, (em que a subalínea v) passou a ter a seguinte redação: “Quaisquer responsabilidades ou contingências, nomeadamente as decorrentes de fraude ou da violação de disposições ou determinações regulatórias, penais ou contra-ordenacionais (…)”. Essa exclusão manteve-se, à luz da deliberação do Banco de Portugal de 29.12.2015, sobre “contingências”, na qual o Banco de Portugal declarou clarificar que “nos termos da alínea (b) do número 1 do Anexo 2 da deliberação de 3 de agosto, não foram transferidos do BES para o Novo Banco quaisquer passivos ou elementos extrapatrimoniais do BES que, às 20:00 horas do dia 3 de agosto de 2014, fossem contingentes ou desconhecidos (incluindo responsabilidades litigiosas relativas ao contencioso pendente e responsabilidades ou contingências decorrentes de fraude ou da violação de disposições ou determinações regulatórias, penais ou contraordenacionais), independentemente da sua natureza (fiscal, laboral, civil ou outra) e de se encontrarem ou não registadas na contabilidade do BES”.
Ora, provou-se que os créditos dos AA. emanam de depósitos a prazo, efetuados no BES, anos antes da medida de resolução.
Tais créditos não eram contingentes nem desconhecidos. Pelo contrário, mesmo a própria responsabilização de um funcionário perante o BES, relacionada com a constituição desses depósitos, era bem conhecida pelo BES, conforme resulta do relatório de inspeção constante nos autos, datado do ano anterior à resolução do BES.
Note-se que o relacionamento havido entre os AA. e o BES se traduziu na simples contratação de depósitos bancários, não constituindo fraude ou violação de disposições ou determinações regulatórias, penais ou contraordenacionais. O descaminho que um funcionário do BES terá dado a essas verbas é questão ulterior ao depósito em si.
Assim, o Novo Banco não logrou demonstrar que os créditos dos AA., que estes detinham sobre o BES, não se lhe transmitiram.
Pelo que a apelação é improcedente.
DECISÃO
Pelo exposto, julga-se a apelação improcedente e consequentemente mantém-se a decisão recorrida.
As custas da apelação são a cargo do apelante, que nela decaiu (art.º 527.º n.ºs 1 e 2 do CPC).

Lisboa, 21.5.2020
Jorge Leal
Nelson Borges Carneiro
Pedro Martins