Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
26935/17.3T8LSB-A.L1-1
Relator: PEDRO BRIGHTON
Descritores: VIDEOVIGILÂNCIA
PROVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/20/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I– A entidade responsável pelo registo de imagem, obtido através de um sistema de segurança de videovigilância, está vinculada a proceder, 30 dias após a sua recolha, à respectiva destruição, sob pena de incorrer na prática de uma contraordenação muito grave.

II– O visado nessas imagens pode consentir e expressamente solicitar às autoridades competentes a respectiva conservação e utilização para além do prazo de 30 dias, como meio de prova em acção judicial que se proponha intentar.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA.


I–Relatório:


1)–  Miguel... instaurou o presente procedimento cautelar comum contra “E...– SGPS, S.A.” e o Director ou Responsável de Segurança do Casino..., pedindo que seja “decretada medida cautelar não especificada que, comunicada da forma mais expedida possível, garanta a preservação das imagens captadas pelas 4 (quatro) câmaras de videovigilância (...) onde são captadas as imagens da agressão perpetrada ao aqui Autor, previna que as mesmas sejam apagadas e que a este seja fornecida uma cópia das aludidas gravações”.

Mais pede que “a presente medida cautelar decretada sem contraditório prévio dos Réus, porquanto não só já manifestaram a sua recusa em facultar o acesso às imagens captadas pelas câmaras de videovigilância como também se deve à sua atuação o facto de o prazo previsto para a preservação de imagens se encontrar a vencer sem que tenham sido acautelados os direitos do aqui Autor”.

Para fundamentar tal pretensão alega o requerente, em resumo, que no dia 19/8/2017 foi ofendido na sua integridade física, tendo as câmaras dos requeridos filmado tais factos.

Apesar de interpelados, os requeridos não forneceram as cópias das aludidas gravações, nem garantiram a preservação das mesmas para além do prazo legal de 30 dias.

O requerente tem fundado receio que o requerido “E...– SGPS, S.A.”, através do requerido Responsável de Segurança do Casino proceda à eliminação dos registos de videovigilância captados pelas câmaras.
2)–Pediu o requerente que a providência fosse decretada sem contraditório prévio dos requeridos.
3)–Tal pretensão foi indeferida por despacho de fls. 21 e 22.
4)–Os requeridos foram citados em 22/9/2017 e 25/9/2017, respectivamente, não tendo deduzido oposição.

5)–Foi proferida decisão a julgar o procedimento cautelar parcialmente procedente, constando da mesma :
“Nos termos do disposto no artigo 567º, nº 1, do Código de Processo Civil consideram-se confessados os factos articulados pelo requerente no requerimento inicial, os quais, desde já, se consideram assentes.
Por outro lado, atento o disposto no nº 3, do citado dispositivo legal, adere-se aos fundamentos de direito invocados, os quais correspondem à correcta interpretação e aplicação das normas legais e determinam a procedência da acção.
No que respeita ao pedido de inversão de contencioso, previsto no artigo 376º, nº 4, do Código do Processo Civil, considerando o prazo de 30 dias estipulado por lei, cf. artigo 31º, nº 1 da Lei 34/2013, de 16 de Maio, indefere-se o pedido de inversão do contencioso.
***
Pelo exposto, julgando-se parcialmente procedente o presente procedimento cautelar:
-Condenam-se os requeridos a garantir a preservação das imagens captadas pelas 4 câmaras de vídeo vigilância situadas na fachada lateral do Casino..., sito na Rua ...,, durante o período compreendido entre a meia-noite e as quatro horas do dia 19.08.2017, onde são captadas as imagens da agressão perpetrada ao aqui requerente, prevenindo que as mesmas sejam apagadas e que a este seja fornecida uma cópia das aludidas gravações.
- Indefere-se o pedido de inversão do contencioso.
Valor da causa: €30.000,01.
Custas pela requerente, a atender, a final na acção respectiva, nos termos do disposto no artigo 539º, nº 1 e nº 2 do Código do Processo Civil.
Registe e Notifique”.

6)–Inconformado com esta decisão, o requerido “E...– SGPS, S.A.” interpôs recurso de apelação, para tanto apresentando a sua alegação com as seguintes conclusões :
“1. Do facto de se terem por confessados os factos alegados pelo Requente não decorre que as consequências jurídicas e a aplicação do direito que este invoca seja aquele que deva ser aceite pelo Tribunal.
2. Os Requeridos foram citados para se pronunciarem sobre a peticionada providencia em 22-9-2017 e as imagens gravadas, cuja preservação foi requerida, foram captadas no dia 19-08-2017.
3. Nos termos da Lei aplicável, conf. artigo 31º nº 2 da Lei nº 34/2013, de 16 de Maio, “As gravações de imagem obtidas pelos sistemas videovigilância são conservadas, em registo codificado, pelo prazo de 30 dias contados desde a respetiva captação, findo o qual são destruídas”.
4. Portanto, no dia em que os Requeridos foram citados para a presente providência estavam já ultrapassados os 30 dias que a lei determina serem o prazo máximo para a conservação das imagens,
5. Tais imagens só poderiam ainda estar conservadas, para lá desses 30 dias já transcorridos se, contendo elas matéria sob investigação criminal tivessem sido mandadas preservar, por autoridades competente, aí se incluindo o Tribunal, em tempo útil, para poderem ter sido preservadas.
6. Uma carta enviada pelo Requerente, à Requerida pedindo que as imagens sejam preservadas e que uma cópia destas lhe seja entregue, para além de instar a Requerida a praticar actos ilícitos, não a constitui no dever de preservar tais imagens, pelo que esta ficou a aguardar que lhes chegasse o pedido legítimo, oriundo de autoridade judiciária, a quem e apenas a quem, entregariam tais imagens, quando isso lhes fosse também solicitado.
7. Tal carta não legitimaria a preservação das imagens para lá dos 30 dias definidos na Lei e também não legitimaria a entrega de uma cópia das imagens ao Requerente.
8. Efectivamente o Requerente tinha que ter dirigido às entidades de investigação criminal ou ao Tribunal, o pedido para que estas mandassem preservar as imagens.
9. E teria que o ter feito de modo que estas o pudessem fazer em tempo útil, ou seja, antes de estas estarem destruídas.
10. Ora a citação do Tribunal ocorreu para lá dos 30 dias, sendo que o Requerente deu início ao procedimento no último dia do prazo de manutenção das imagens.
11. E a sentença que ainda assim ordena a preservação das imagens é datada de 09-11-2017.
12. A lei comina com responsabilidade contra-ordenacional a manutenção das imagens gravadas para além dos 30 dias, conf. artigo 59º nº 1 i) da referida Lei 34/2013.
13. Ao ordenar a preservação das imagens, na data em que o fez, para além de eventualmente as imagens já estarem materialmente destruídas, a sentença estaria a configurar que a Requerida terá cometido uma infracção muito grave ao manter preservadas as imagens até então.
14. Por outro lado, ao determinar que a Requerida forneça ao Requerente uma cópia das gravações, a sentença ordena à Requerida a prática de acto de onde pode eventualmente decorrer responsabilidade criminal e civil.
15. Efectivamente o Tribunal não sabe quem e em que circunstâncias possa estar representado nas imagens, afigurando-se que a transmissão das imagens ao Requerente e a sua utilização com fins e intenções não confessadas possa estar em colisão frontal com a salvaguardada de direitos de personalidade de outras pessoas que possam eventualmente ter sido filmadas.
16. Por outro lado a conservação e o dever de sigilo sobre as imagens impende sobre o responsável nomeado para preservar tal segredo, o que não é o caso do Requerente.
17. Por outro lado ainda, nem o Requerente sabe, nem pode saber, nem o Tribunal sabe, nem a Requerida sabe se as imagens dizem respeito ao Requerente, se ele nelas aparece, se nelas está contida a cena narrada pelo Requerente, pelo que verdadeiramente, ninguém saberia que imagens é que estaria a dar ao Requerente e caso fosse cumprida a ordem do Tribunal, sem esquecer que se trata efectivamente de uma ordem judicial para cumprir, os Requeridos estariam a agir de forma a configurar eventual responsabilidade criminal e civil suas, em relação a outras pessoas que pudessem ser visadas nas imagens.
18. O Requerente dispunha de 30 dias para solicitar às autoridades competentes a preservação das imagens.
19. Que se saiba fê-lo no Tribunal, pelo presente processo, no 30º dia do prazo de que dispunha. Bem sabia portanto que a providência nunca poderia ser decretada em tempo útil.
20. E ainda assim o Tribunal decretou-a.
21. Em face de tudo o exposto deverá proferir-se Acórdão que revogue integralmente o decidido pelo Tribunal a quo e decidir em não decretar a providência absolver-se a Recorrida de todos os pedidos formulados pelo Requerente
Termos em que, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se integralmente a decisão recorrida e proferindo-se Acórdão que negue a Providencia, que absolva os Requeridos dos pedidos formulados pelo Requerente e que o condene no pagamento das custas de parte.
Assim, fazendo, V. Ex.as Senhores Juízes Desembargadores a sempre e costumada Justiça”.

7)–Não foram apresentadas contra-alegações.
*  *  *

II–Fundamentação.
a)–  A matéria de facto a considerar é a que consta do relatório supra e para o qual se remete e ainda a seguinte :
1- Os factos alegados pelo recorrido para suportarem a sua pretensão ocorreram no dia 19/8/2017.
2- A presente acção deu entrada em Juízo no dia 18/9/2017 (ver fls. 20).  
3- O recorrente foi citado para os termos do presente procedimento cautelar no dia 22/9/2017, enquanto o requerido Responsável de Segurança do Casino... o foi no dia 25/9/2017.
4A decisão que ordenou que os requeridos preservassem as imagens captadas foi proferida em 8/11/2017.

b)–  Como resulta do disposto nos artºs. 635º nº 4 e 639º nº 1 do Código de Processo Civil, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, as conclusões da alegação do recorrente servem para colocar as questões que devem ser conhecidas no recurso e assim delimitam o seu âmbito.
Assim, perante as conclusões da alegação do recorrente, a única questão em recurso consiste em determinar se existem motivos para decretar a providência requerida.
c)–  Alega o recorrido que, no dia 19/8/2017, junto ao Casino..., foi vítima de uma agressão a qual, segundo refere, terá sido filmada pelas quatro câmaras de vigilância que se encontram no exterior do aludido estabelecimento.
Pretende o recorrido que essas imagens sejam preservadas.
Ora, dispõe o artº 7º nº 1 da Lei 34/2013 de 16/5, que “as empresas ou entidades industriais, comerciais ou de serviços abrangidas pela presente lei adotam as medidas de segurança obrigatórias previstas no presente artigo, com a finalidade de prevenir a prática de crimes”.  E acrescenta o nº 3 al. d) do mesmo normativo que “as medidas de segurança obrigatórias podem incluir :  (…)  d) A instalação de dispositivos de videovigilância e sistemas de segurança e protecção ;  (…)”.
Por sua vez, o artº 9º nº 1 do mesmo diploma estipula que “os estabelecimentos de restauração e de bebidas que disponham de salas ou de espaços destinados a dança ou onde habitualmente se dance são obrigados a dispor de um sistema de segurança no espaço físico onde é exercida a atividade, nos termos e condições fixados em legislação própria”.
Há ainda que salientar que o artº 31º da Lei 34/2013 de 16/5 dispõe no seu nº 2 que “as gravações de imagem obtidas pelos sistemas videovigilância são conservadas, em registo codificado, pelo prazo de 30 dias contados desde a respetiva captação, findo o qual são destruídas”, acrescentando o nº 4 do preceito que “é proibida a cessão ou cópia das gravações obtidas de acordo com a presente lei, só podendo ser utilizadas nos termos da legislação processual penal”.
Finalmente, o artº 59º nº 1, al. i) da aludida lei estipula que, “de acordo com o disposto na presente lei, constituem contraordenações muito graves :  (…)  i)  O incumprimento dos deveres previstos nos nºs. 1 e 2 do artigo 31º e no artigo 35º ;  (…)”.
Temos ainda de considerar que, de acordo com o disposto no artº 11º nº 1, al. b) da Lei 67/98 de 26/10, “o titular dos dados tem o direito de obter do responsável pelo tratamento, livremente e sem restrições, com periodicidade razoável e sem demoras ou custos excessivos : (…) b) A comunicação, sob forma inteligível, dos seus dados sujeitos a tratamento e de quaisquer informações disponíveis sobre a origem desses dados”.
d)–  Ora, perante este regime legal, facilmente podemos concluir que o recorrente, considerando que é um estabelecimento de diversão, é obrigado a instalar um dispositivo de videovigilância.
E, efectivamente, verifica-se que o recorrente tem esse dispositivo instalado.
Por outro lado, as imagens em causa nos presentes autos, obtidas com tal sistema, teriam que ser obrigatoriamente guardadas, em registo codificado, pelo prazo de 30 dias contados desde a respetiva captação.
Assim, tendo os factos alegados pelo recorrido ocorrido no dia 19/8/2017, teriam as imagens que ser conservadas até ao dia 19/9/2017.
É certo que o apelado, no dia 11/9/2017 (ver fls. 17) enviou ao recorrente uma carta registada com aviso de recepção (apondo-lhe, por manifesto lapso, a data de 11/8/2017, o que é obviamente impossível, pois é certo que os factos em causa tiveram lugar em 19/8/2017) onde solicita que a gravação das imagens não seja destruída.
No entanto, afigura-se-nos que essa missiva, só por si, não releva para a suspensão do aludido prazo de 30 dias.
Com efeito, estando-se perante uma situação que conduziu à instauração de um processo criminal, e atendendo ao disposto no artº 31 nº 4 da Lei 34/2013 de 16/5 ( segundo o qual “é proibida a cessão ou cópia das gravações obtidas de acordo com a presente lei, só podendo ser utilizadas nos termos da legislação processual penal”), afigura-se-nos que só a autoridade judiciária poderia solicitar essa pretensão.
Por outro lado, há que não esquecer que, de acordo com a Lei 43/2004 de 18/8 (Lei da Organização e Funcionamento da CNPD), cabe à Comissão Nacional de Protecção de Dados autorizar, em casos excecionais, a utilização de dados pessoais para finalidades não determinantes da recolha, cabendo-lhe, ainda, assegurar o direito de acesso a esses dados.
Assim sendo, por via do presente procedimento cautelar sempre poderia o recorrido obter a preservação e salvaguarda da gravação em causa para lá dos 30 dias fixados na lei.
e)–  Porém, essa decisão é, neste momento, inexequível.
Com efeito, e mais uma vez se refere, os factos alegados pelo recorrido para suportarem a sua pretensão ocorreram no dia 19/8/2017.
A presente acção apenas deu entrada em Juízo um dia antes de decorrido o supracitado prazo de 30 dias (mais precisamente no dia 18/9/2017).  
O recorrente veio a ser citado para os termos do presente procedimento cautelar apenas no dia 22/9/2017, isto é, três dias para além do limite de 30 dias.
Acresce que a decisão que efectivamente ordenou a conservação das gravações apenas foi proferida em 8/11/2017.
Ora, o recorrente, de acordo com o disposto no supracitado artº 31º nº 2 da Lei 34/2013 de 16/5 teria que destruir as gravações do sistema de videovigilância passados 30 dias sobre a obtenção das imagens.  E mais :  caso não as destruísse no final daquele prazo, incorreria na prática de uma contraordenação muito grave (artº 59º nº 1, al. i) da Lei 34/2013 de 16/5).
Assim, não lhe era exigível outra conduta que não fosse a de destruir as gravações em causa, pois a ordem legítima para as conservar apenas chegou ao seu conhecimento muito para além do prazo legal de 30 dias.
f)– Não se vislumbram, assim, motivos para que o procedimento cautelar em apreço possa proceder.
Assim sendo, e em conclusão, procedem as razões e argumentos trazidos a juízo pelo apelante, pelo que é de julgar o recurso procedente, revogando-se a Sentença recorrida.
g)  Sumário :
I– A entidade responsável pelo registo de imagem, obtido através de um sistema de segurança de videovigilância, está vinculada a proceder, 30 dias após a sua recolha, à respectiva destruição, sob pena de incorrer na prática de uma contraordenação muito grave.
II–  O visado nessas imagens pode consentir e expressamente solicitar às autoridades competentes a respectiva conservação e utilização para além do prazo de 30 dias, como meio de prova em acção judicial que se proponha intentar.
*  *  *

III–Decisão.
Pelo exposto acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar a apelação procedente e, nessa medida, revoga-se a decisão recorrida.
Sem custas.

Processado em computador e revisto pelo relator




Lisboa, 20 de Fevereiro de 2018



(Pedro Brighton)
(Teresa Sousa Henriques)
(Isabel Fonseca)