Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
22074/22.3T8LSB.L1-7
Relator: DIOGO RAVARA
Descritores: PROCEDIMENTO CAUTELAR COMUM
APREENSÃO DE VEÍCULO AUTOMÓVEL
CONTRATO DE ALD
NÃO PAGAMENTO DA RENDA
RESOLUÇÃO
ABUSO DO DIREITO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/14/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I. Incorre em abuso do direito (art.º 334º do Código Civil[1]) uma locadora que, perante a mora relativa a apenas uma das 48 rendas relativas a um contrato de ALD relativo a veículo automóvel avaliado em cerca de €43.000,00, com opção de compra, mostrando-se pagas mais de 20 rendas, resolve o respetivo contrato com fundamento na falta de pagamento de apenas uma renda, no valor de €655,55, renda essa que a devedora veio a pagar posteriormente, atenta a manifesta desproporção entre o benefício visado pela credora e o sacrifício adveniente para a devedora.
II. Nas circunstâncias referidas em I., intentando a credora um procedimento cautelar comum em que peticiona a entrega judicial do veículo locado, deve o Tribunal concluir pela não verificação do requisito da provável existência de um direito, ou fumus boni iuris e, consequentemente, pela improcedência do mesmo procedimento cautelar.
_________________________________
[1] Adiante designado pela sigla “CC”.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: 1. Relatório[1]
A.  intentou procedimento cautelar comum contra B pedindo que o Tribunal decrete a apreensão do veículo automóvel Volvo XC40 com a matrícula xx-xx-AJ e lho entregue, nomeando-a fiel depositária do mesmo. Mais pede que, sendo a providência decretada, o Tribunal a dispense do ónus de propositura da ação principal.
Para tanto alegou, em síntese, que celebrou com a requerida um contrato de aluguer de veículo, de que é proprietária, e que a requerida não pagou uma das rendas relativas ao mesmo contrato, razão pela qual lhe enviou uma carta, instando-a a pagar tal renda e que, perante a inércia da mesma, lhe remeteu uma segunda carta, resolvendo o contrato.
Citada a requerida, a mesma deduziu oposição, sustentando, em resumo, que não recebeu nenhuma das cartas mencionadas pela requerente, e que quando tomou conhecimento do envio da carta de resolução, liquidou prontamente a renda em falta, tendo posteriormente liquidado as demais.
Conclui pela improcedência do procedimento.
Realizada a audiência final, foi proferida decisão com o seguinte dispositivo:
“Pelos fundamentos expostos, improcede, por não provado, o presente procedimento cautelar.”
Inconformada com tal decisão veio a requerente dela interpor recurso, cuja motivação sintetizou nas seguintes conclusões:
A. O presente recurso vem interposto da douta sentença de fls._, proferida pelo Juiz 5 do Juízo Local Cível de Lisboa, no âmbito do processo n.º 22074/22.3T8LSB, que é uma providência cautelar referente à entrega de uma viatura, objecto de um contrato legitimamente resolvido por incumprimento de pagamentos.
B. O Recorrente não se conforma com a referida sentença e visa com o presente recurso impugnar a decisão proferida.
C. De acordo com o Facto Provados n.º 4 da sentença recorrida a “A Requerida não pagou a mensalidade que se venceu em 01-07-2022, no montante de 655,55€”, tendo, assim, tomado início o incumprimento;
D. Por outro lado, mediante o Facto Provado n.º 5, a sentença recorrida assenta que “em 12-07-2022, a Requerente remeteu para a sede da Requerida carta registada com aviso de recepção,” a informar quanto ao incumprimento e a solicitar regularização.
E. Em seguida, mantendo-se o incumprimento, e agora com mais uma renda não paga (Julho e Agosto), o facto provado n.º 6 refere que “Em 31-08-2022, a Requerente remeteu para a sede da Requerida, carta registada com aviso de recepção” quanto à resolução contratual.
F. Sempre se dirá que, ínsito na carta de dia 31 de Agosto, que põe fim à relação contratual por incumprimento manifesto de 2 rendas, resulta o seguinte: “Impende ainda sobre V/ Exa e por efeito da vertente da resolução, a obrigação de restituição do veiculo e respectiva documentação, no prazo de dois dias”
G. Ora, nem pagamento, nem restituição da viatura ocorreu, o que obrigou a Recorrente a procurar acautelar os seus direitos e fundados receios junto do Tribunal ad quo, por meio da providencia cautelar em questão.
H. Sucede que, a providência foi julgada improcedente tendo em conta um “incumprimento insuficiente”, o que no entendimento da Recorrente constitui um manifesto erro de julgamento (chamado de error in judicando).
I. O error in judicando resulta precisamente de uma distorção da realidade factual (error facti), assente numa errada aplicação do direito (error juris) ao caso concreto.
J. Até porque, a jurisprudência do N/ ordenamento jurídico aponta que “em relações contratuais duradouras, o cumprimento defeituoso da obrigação pode dar origem à resolução do contrato apenas quando esta se concretize em “incumprimentos turbadores”, ou seja, quando por via delas fique abalada a confiança que poderá merecer ao credor o futuro cumprimento exacto por parte do devedor [o que será a “justa causa” para a resolução].” – vide acórdão http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/350d5d4ed27c7fec802584d20051e147?OpenDocument.
K. Recorde-se que o incumprimento, não começou somente em Julho e Agosto, mas sim ao longo de toda a relação contratual em que os débitos directos eram constantemente recusados e pagos em dado posterior.
L. No entanto, naqueles meses, fatídicos e cruciais à resolução contratual, os valores não foram tão pouco regularizados, ainda que a Recorrente várias tentativas de contacto tivesse feito.
M. É certo que houve pagamentos em Outubro e Novembro por parte da Recorrida, mas nunca esses montantes poderiam ser imputados a rendas, uma vez que a cessação da relação contratual, por incumprimento, havia operado, tendo sido, comunicada, como resulta provado.
N. Sempre se dirá que as cartas não foram recebidas pela Recorrida, contudo o artigo 224.º CC é esclarecedor: “2. É também considerada eficaz a declaração que só por culpa do destinatário não foi por ele oportunamente recebida”.
O. Note-se que inexiste prova quanto a qualquer alteração de morada, tendo as cartas sido remetidas a favor da morada contratual.
P. Assim, a declaração de resolução do contrato é legítima, por resultante de incumprimento, e licita, por declaração eficaz.
Q. No entanto, o Tribunal ad quo, dúvidas não tem quanto ao incumprimento e resolução do contrato, entendendo tão só que o incumprimento (de 2 duas rendas + atrasos reiterados nos pagamentos anteriores) não é relevante.
R. Pois bem, recorde-se o momento que o mercado automóvel está atravessar: dificílimo.
S. Desta forma, é notório que o não-pagamento de rendas, seja uma ou duas, afecta o volume de negócio da Recorrente, que se tenta reerguer duma pandemia que tudo fez parar – em especial a produção e venda de automóveis.
T. Assim, entende a Recorrente, que o incumprimento, antecedido de variadíssimos atrasos – confessados pela Recorrida –, é mais do que motivo bastante para resolução do contrato, ao contrário do entendimento do Tribunal ad quo.
U. Por outro lado, refere-se que o preenchimento dos requisitos legais da Providência Cautelar verificam-se através do seguinte:
a. Fundado receio de que outrem cause lesão grave – danos que a viatura pode sofrer ao circular sem legitimidade;
b. Direito dificilmente reparável: a dissipação da viatura, em especial por ser um bem de natureza móvel;
c. Probabilidade séria da existência do direito: prova documental em como a viatura pertence à Recorrente, estando na posse ilegítima da Recorrida, que não a devolveu pos-resolução.
G. Desta forma, sempre se dirá que tudo andou bem nestes autos, a cargo do Tribunal ad quo, menos a aplicação legal da norma que aponta o incumprimento como insuficiente, premiando, assim, unicamente, o infractor – a Recorrida –, que paga quando entende e dispõe de uma viatura largos meses após resolução do contrato em questão.
H. Assim, nada mais resta à aqui Recorrente que não apelar ao mais alto cuidado de V/ Exa, procurando que o fim real da providência seja acautelado: a recuperação do bem supra melhor discriminado.
Remata as suas conclusões nos seguintes termos:
“Nestes termos (…) requer a V.ªs Exas. que julguem procedente o presente recurso e consequentemente se dignem a revogar a decisão recorrida, proferindo uma outra que decrete, por se encontrarem preenchidos os requisitos para tal, o presente Procedimento Cautelar (…).”
A requerida contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.
Recebido o recurso, e subindo o mesmo a este Tribunal, foram colhidos os vistos.
2. Objeto do recurso
Conforme resulta das disposições conjugadas dos art.ºs 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do CPC, é pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso, seja quanto à pretensão dos recorrentes, seja quanto às questões de facto e de Direito que colocam[2]. Esta limitação dos poderes de cognição do Tribunal da Relação não se verifica em sede de qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. art.º 5º n.º 3 do CPC).
Não obstante, a este Tribunal está vedado apreciar questões que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas[3].
Assim sendo, a única questão a apreciar e decidir residem em:
a) determinar se no caso em apreço se acham verificados os pressupostos de que depende o decretamento do procedimento cautelar comum, tendo por referência a providência requerida.
b) Em caso afirmativo, aferir se a requerente deve ser dispensada da propositura da ação principal.
3. Fundamentação
3.1. Os factos
3.1.1. Factos provados
O Tribunal a quo considerou provados os seguintes factos:
1. O veículo acima identificado é de propriedade da Requerente; 
2. O veículo acima identificado foi dado em utilização à Requerida, mediante o pagamento de quarenta e oito mensalidades, nos valores individuais de 532,97€ mais IVA; 
3. O acordo teve como data de início 30-09-2020, destinando-se a vigorar até 29-09-2024, sendo sido assegurado à Requerida, pela Requerente, a possibilidade de aquisição do veículo, a final, mediante o pagamento da quantia de 21.635,04€ mais IVA;
4. A Requerida não pagou a mensalidade que se venceu em 01-07-2022, no montante de 655,55€; 
5. Em 12-07-2022, a Requerente remeteu para a sede da Requerida carta registada com aviso de receção, mediante a qual lhe comunicou o seguinte: 
“Como é do seu/vosso conhecimento, apesar das diversas diligências por nós efetuadas, no âmbito do contrato supra identificado V. Exa(s) não têm cumprido pontualmente às obrigações que lhe(s) assiste(m), encontrando-se em dívida os montantes que constam no extrato em anexo.
De referir que ao total do valor vencido acrescem ainda juros de mora vencidos desde a data do vencimento dos documentos até à presente data, no montante de €1,38 (Um Euro e Trinta e Oito Cêntimos), bem como as despesas de abertura do processo em pré-contencioso, previstas no nosso preçário, no montante de € 123,00 (Cento e Vinte e Três Euros).
Considerando que o incumprimento do referido contrato constitui fundamento de resolução do mesmo pela A, ao abrigo da respetiva cláusula 40ª, vimos por este meio dar-lhe(s) conhecimento de que deve(m) proceder à regularização da situação, mediante o pagamento das quantias em dívida no prazo de cinco dias a contar da data de receção da presente carta, sob pena do contrato poder ser resolvido.
Se no prazo de cinco dias sobre a recepção da presente carta não for efetuado o pagamento da dívida, procederemos da forma que entendermos por mais conveniente.”
6. Em 31-08-2022, a Requerente remeteu para a sede da Requerida, carta registada com aviso de receção, mediante a qual lhe comunicou o seguinte: 
Assunto: Resolução do Contrato de Prestação de Serviços Relativos a Veículos Sem Condutor № 5005289
Exmo(s). Senhor(es),
Como é do seu/vosso conhecimento, apesar das diversas diligências por nós efetuadas para obtenção do pagamento das rendas e demais encargos vencidos não pagos pontualmente por V. Exa(s) e face à manutenção do incumprimento do contrato acima identificado, consideramos definitiva a situação de incumprimento.
Na decorrência do supra exposto e nos termos da cláusula (40ª) das condições gerais do referido contrato, consideramos resolvido o mesmo com efeitos a partir da presente data.
Tendo em conta o disposto na cláusula (40.6ª) do contrato, para além de ser devido por V.ªs Ex.ª(s) à A o montante de €1.445,54 (Mil Quatrocentos e Quarenta e Cinco Euros e Cinquenta e Quatro Cêntimos) a titulo de rendas e encargos vencidos e não pagos, a que acrescem juros de mora até ao seu efetivo e integral pagamento, deve(m) igualmente V.ª(s) Ex.ª(s) à A o montante de €5.462,95 (Cinco Mil Quatrocentos e Sessenta e Dois Euros e Noventa e Cinco Cêntimos) correspondente a 1/3 das rendas vincendas, a título de indemnização pelos lucros cessantes.
Impende ainda sobre V.ª(s) Ex.ª(s), e por efeitos da vertente resolução, a obrigação de restituição do veículo e respetiva documentação, no prazo de dois dias a contar da receção da presente.
Se no prazo de cinco dias sobre a receção da presente carta não for efectuado o pagamento da divida, procederemos da forma que entendermos por mais conveniente.”
7. A Requerida não restituiu o veículo e não aceita a validade da declaração referida em 6, tendo vindo a proceder a pagamentos. 
3.1.2. Factos não provados
O Tribunal a quo considerou inexistirem factos não provados.
3.2. Os factos e o Direito
3.2.1. Do mérito do presente procedimento cautelar
3.2.1.1 Considerações gerais
Como já referimos, os presentes autos tramitam um procedimento cautelar comum.
Este tipo processual encontra-se previsto e regulado nos art.ºs 362º a 376º do CPC.
Estabelece o nº 1 do art.º 362º deste código que “sempre que alguém mostra fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente preparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efetividade do direito ameaçado”.
Por seu turno, o nº 2 do mesmo preceito estabelece que “o interesse do requerente pode fundar-se num direito já existente ou em direito emergente de decisão a proferir em ação constitutiva, já proposta ou a propor”.
Finalmente o nº 3 dispõe que “não são aplicáveis as providências referidas no n.º 1 quando se pretenda acautelar o risco de lesão especialmente prevenido por alguma das providências tipificadas no capítulo seguinte” ou seja, o procedimento cautelar comum não é aplicável se a pretensão do requerente for subsumível a um procedimento cautelar especificado.
A delimitação do critério decisório subjacente à apreciação do mérito do procedimento cautelar comum é objeto do art.º 368º do CPC.
Assim, o nº 1 deste preceito estabelece que “a providência é decretada desde que haja probabilidade séria da existência do direito e se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão”[4], o que aponta para um juízo probatório perfunctório.
Por outro lado, o nº 2 dispõe que “a providência decretada pode ser recusada pelo tribunal, quando o prejuízo dela resultante para o requerido exceda consideravelmente o dano que com ela o requerente pretende evitar”, o que parece pressupor que a apreciação do mérito da providência deve ser objeto de um determinado teste de proporcionalidade.
Finalmente, na formulação do juízo de adequação a que se reporta a parte final do n.º 1 do art.º 362º deve ainda atender-se ao que consagra o n.º 3 do art.º 368º, que estatui que “a providência decretada pode ser substituída por caução adequada, a pedido do requerido, sempre que a caução oferecida, ouvido o requerente, se mostre suficiente para prevenir a lesão ou repará-la integralmente.”
Em face deste enquadramento inicial, é de concluir que a procedência do procedimento cautelar comum depende da verificação cumulativa dos seguintes requisitos:
a) Probabilidade séria da existência do direito invocado pelo requerente – aquilo que na tradição latina se designa fumus boni iuris;
b) Fundado receio de que esse direito sofra lesão grave ou de difícil reparação enquanto a causa definitiva não for proposta ou julgada - periculum in mora;
c) Adequação da providência requerida à situação de lesão do direito do requerente;
d) Que o prejuízo resultante da providência não seja superior ao dano que com ela se pretende evitar - Proporcionalidade;
e) Inaplicabilidade de qualquer um dos procedimentos cautelares nominados - Subsidiariedade.
3.1.1.2. O caso dos autos
3.2.1.2.1. Fumus boni iuris, summaria cognitio, e abuso do direito
Reportando-se ao requisito do fumus boni iuris, diz ABRANTES GERALDES[5] que “Quanto ao direito cujo receio de lesão grave constitui a justificação fundamental para a concessão da tutela cautelar não se exige, é claro, um juízo de certeza, bastando-se a lei com um juízo de verosimilhança (“probabilidade séria” (…)) formulado pelo juiz, com base nos meios de prova apresentados ou naqueles que o tribunal oficiosamente aprecie, embora tal juízo não deva ser colocado num patamar tão baixo da escala gradativa da convicção do juiz que se tutelem situações destituídas de fundamento razoável.”
A necessidade de encontrar um tal ponto de equilíbrio justifica-se porquanto um patamar demasiado baixo de exigência probatória poderia conduzir a situações injustas e, por isso contrárias ao Direito.
Como certeiramente observa MARCO CARVALHO GONÇALVES[6], “A natureza tendencialmente sumária da cognição do direito invocado em sede cautelar (summaria cognitio) suscita graves problemas de segurança jurídica, seja pelo facto de a prova produzida revestir uma natureza superficial e perfunctória, seja pela influência que essa prova poderá vir a ter na ação de composição definitiva do litígio”.
Contudo, cremos que o primeiro risco deverá ser mitigado através da procura do ponto de equilíbrio a que se reportava ABRANTES GERALDES, e bem assim, como refere MARCO CARVALHO GONÇALVES[7], por uma certa atitude de prudência do julgador “no que concerne à avaliação das consequências danosas que poderão advir para o requerido em consequência do decretamento da providência, designadamente aquelas que possam implicar um prejuízo grave, irreparável, ou irreversível”; porquanto “a jurisprudência tem vindo a demonstrar que, por vezes, a providência cautelar é utilizada de forma abusiva como meio de coagir a parte contraria à satisfação das pretensões do requerente (…)“.
Quanto ao segundo risco a que se reporta MARCO CARVALHO GONÇALVES, o mesmo é neutralizado pelo disposto no nº 4 do art.º 364º do CPC que estabelece que “Nem o julgamento da matéria de facto, nem a decisão final do proferida no procedimento cautelar têm qualquer influência no julgamento da ação principal.”
No caso dos presentes autos, o direito invocado pela requerente emerge da outorga com a requerida de um contrato denominado “de prestação de serviços relativos a veículo sem condutor”, do seu incumprimento, e da subsequente resolução do mesmo, sem que a requerida o tenha restituído.
Ora, como é sabido, a qualificação jurídica de um contrato constitui tarefa relativamente à qual o tribunal goza de inteira liberdade (art.º 5º, nº 2 do CPC) e que assenta na interpretação do mesmo. Nas palavras certeiras de MOTA PINTO, tal tarefa consiste em “determinar o conteúdo das declarações de vontade e, consequentemente os efeitos que o negócio visa produzir em conformidade com tais declarações …”[8].
E, nesta sede, a regra é a de que prevalece a vontade real do declarante sempre que conhecida pelo declaratário (art.ºs 236º n.º 2 e 238º nº 2 do CC), sendo certo que quando a vontade real não for conhecida, “a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal colocado na posição do real declaratário possa deduzir do comportamento do declarante” (art.º 236º nº 1 do CC).
Ora, reportando ao caso dos autos temos que entre a requerente e a requerida foi celebrado um contrato pelo qual aquela se obrigou, contra o pagamento de um determinado número de prestações periódicas em dinheiro (48), a conceder a esta o gozo temporário de um veículo automóvel[9].
Mais se apurou que aquela cedência vigoraria de 30-09-2020 até 29-09-2004, e que a requerente assegurou à requerida que após esta data tinha a possibilidade de adquirir o veículo pelo valor de €21.635,04 acrescido de IVA.[10]
O acordo global resultante da conjugação dos dois mencionados contratos - aluguer de veículo e promessa de venda – terá possibilitado à requerente pretendido realizar proventos pela colocação à disposição da requerida do veículo em apreço (recebendo os respetivos alugueres), e a esta aceder de imediato ao uso e fruição do veículo automóvel que pretendia eventualmente adquirir (mediante o pagamento, a final, de determinado montante, muito inferior ao preço do veículo à data do início do aluguer) sem que, contudo, tivesse de desde logo, dispor do respetivo valor de aquisição.
Trata-se de um quadro negocial vulgarmente designado por aluguer de longa duração de veículos automóveis que se distingue quer da locação, quer da compra e venda com reserva de propriedade, quer até da locação financeira, antes se caracterizando como um contrato misto indireto.
Com efeito, como ensina PAIS DE VASCONCELOS[11], «O contrato de “aluguer de longa duração” de automóveis novos é um contrato indirecto em que o tipo de referência é o aluguer e o fim indirecto é o da venda a prestações com reserva de propriedade. Qualificar este contrato simplesmente como contrato de aluguer de automóveis ou como contrato de compra e venda a prestações com reserva de propriedade resulta, em qualquer dos casos, no desrespeito pela vontade contratual».
Sob a capa de um tipo de contrato (aluguer) se visa atingir um objetivo de tipo diferente (compra e venda a prestações) sem que, no entanto, as partes abdiquem da regulamentação própria do contrato típico escolhido como referência (ou seja, o aluguer), e não a de outro tipo qualquer (neste caso a compra e venda a prestações com reserva de propriedade, ou a locação financeira).
Importante será reter que neste esquema negocial a renda constitui não apenas a contrapartida pelo gozo temporário da coisa, mas uma amortização do preço total da aquisição do veículo.
Neste sentido cfr. acs.:[12]
- RP 19-04-1999 CJ, III, 207;
- RP 19-12-2000 (Mário Cruz), p. 0021386;
- RL 18-06-2009 (Maria José Mouro), p. 626/1998.L1-2;
- RG 25-01-2011 (Teresa Pardal), p. 4877/09.6TBGMR.G1;
- RE 10-01-2013 (António Cardoso), p. 770/09.0TBELV.E1;
- STJ 12-10-2010 (Moreira Alves), p. 67/07.0TCGMR.G1.S1;
- STJ 25-10-2011 (Alves Velho), p. 1320/08.1YXLSB.L1.S1;
Mais recentemente, alguns arestos vêm considerando que esta figura contratual configura uma coligação funcional de três tipos contratuais distintos: um contrato de aluguer de longa duração, um contrato de compra e venda a prestações e um contrato promessa de compra e venda do bem alugado – vd. acs:
- RL 08-05-2014 (Maria Manuela Gomes), p. 196/11.6TVLSB.L1-6,
- STJ 27-04-2017 (Alexandre Reis), p. 300/14.2TBOER.L2.S1
Temos então que o regime do contrato dos autos há-de resultar da conjugação das cláusulas convencionadas pelas partes, (cfr. art.º 405º n.º 1 do CC), em tudo o que não seja contrário a disposições legais imperativas respeitantes aos contratos típicos de referência, ou seja:
- o contrato de aluguer de viatura sem condução (D.L. 359/86 de 23-10, alterado pelo DL 373/90, de 27-11, e 44/92, de 31-03) e subsidiariamente as normas relativas ao contrato de locação (art.ºs 1022º e segs. do CC);
- o contrato de compra-e-venda (art.ºs 874º e segs. do CC);
- o contrato-promessa (art.ºs 410º e segs. e 830º, do CC).
No caso vertente, verifica-se que em 01-07-2022 se venceu uma das 48 rendas convencionadas, e que em 12-07-2022, a mesma não se achava liquidada.[13]
Tratando-se de uma obrigação com prazo certo, a requerida constituiu-se em mora na data do vencimento da mesma prestação – art.º 805º, nº 2, al. a) do CC.
E, como é sabido, perante a mora do devedor, pode o credor interpelá-lo para cumprir, fixando-lhe um prazo razoável para o efeito, sob pena de, na ausência de cumprimento até ao termo do prazo, a mora se converter em incumprimento definitivo e, perante este, o credor ficar habilitado a resolver o contrato com fundamento nesse incumprimento – art.ºs 808º, nº 1, 2ª parte, e 801º, nº 2, ambos do CC.
No caso vertente, como referimos, perante a mora da requerida relativamente à renda vencida em 01-07-2012, a requerente enviou-lhe uma carta, instando-a a pagar no prazo de 5 dias[14].
Trata-se de uma declaração recetícia, pelo que a mesma produziria efeitos com a sua receção – art.ºs 224º, nº 1 e 436º, nº 1 do CC.
No sentido exposto, pugnando pela admissibilidade da resolução do contrato de ALD por via extrajudicial vd. ac. RL 02-2009 (Mª do Rosário Barbosa), p. 1004/07.8TJLSB.L1-1 e a inúmera jurisprudência ali referida.
Porém, não resulta da factualidade provada se a referida carta foi ou não recebida pela requerida.
A este propósito a requerida sustentou não ter recebido a mencionada carta por a mesma ter sido remetida em período de férias[15]. Contudo, esta circunstância não resultou provada, sendo certo que nenhuma das partes impugnou a decisão sobre matéria de facto.
Nesta conformidade, tendo resultado provado que a mesma foi remetida para a sede da requerida, a sua eventual não receção sempre seria imputável à requerida, razão pela qual sempre se teria de considerar que a interpelação admonitória produziu os seus efeitos – vd. art.º 224º, nº 2 do CC.
Assim, não tendo a renda vencida em 01-07-2022 sido liquidada no assinalado prazo de 5 dias, a mora da requerida converteu-se em incumprimento definitivo.
Aqui chegados cumpre precisar que muito embora a apelante sustente que em 01-08-2022 já se tinha vencido outra renda, e que esta não foi paga, o certo é que no requerimento inicial não alegou tal mora, nem essa mora resulta da factualidade provada, pelo que irreleva para aferição do incumprimento definitivo.
Donde, o que se conclui é que esgotado aquele prazo, a mora da requerida no tocante à renda vencida em 01-07-2022 se transmutou em incumprimento definitivo.
Como já referimos, o art.º 801º do CC habilita o credor de obrigação emergente de contrato bilateral a, perante incumprimento definitivo imputável à parte contrária,  resolver o contrato.
Sucede, contudo, que em determinadas circunstâncias, o exercício de tal direito pode considerar-se inadmissível.
E foi isso mesmo que o Tribunal a quo entendeu.
Com efeito, sobre esta matéria expendeu o Tribunal a quo:
“A resolução constitui uma forma de extinção do contrato, integrando, tecnicamente, a categoria dos direitos potestativos, que operam mediante declaração unilateral, receptícia e motivada à contraparte e que pode ter por fundamento a lei ou o contrato (cfr. artigos 432.º e 434.º do Código Civil).
No caso, a Requerente limitou-se a invocar genericamente incumprimento do contrato, quando se encontrava por liquidar o pagamento de duas rendas (cfr. pontos 6 e 7 dos factos provados). 
O incumprimento que é susceptível de fundamentar a resolução tem que ser relevante, não podendo o ordenamento dar cobertura a uma clausula, como a 40.ª das condições gerais do contrato, que estabelece que: 
 40.1. A ALD Automotive poderá resolver o contrato em caso de incumprimento do Cliente de quaisquer obrigações que para si decorram do presente Contrato.
 Com efeito, na estipulação de clausulas contratuais, as partes encontram-se limitadas, na sua autonomia, pelas normas decorrentes da boa fé (cfr. artigo 227.º do Código Civil).
 O incumprimento que pode sustentar a resolução tem, pois, que ser relevante, dentro da economia do contrato, sob pena de constituir um exercício inadmissível de posição. 
 A circunstância de um contrato de aluguer de veículo sem condutor prever uma clausula como a acima citada não afasta as regras gerais da boa fé, na estipulação e cumprimento contratual. 
 A alegação de não pagamento de duas mensalidades, no montante de 1.455,54€, como fundamento para a resolução, quando o contrato se destinava a durar quatro anos, tendo o cliente, a final, a possibilidade de aquisição do veículo mediante o pagamento da quantia de 21.635,04€ mais IVA, não assume relevância bastante para fundamentar a resolução contratual, não podendo a Requerente sustentar a pretensão de resolução do contrato e subsequente entrega numa mera clausula de estilo da qual nenhum concreto incumprimento contratual/previsão se retira, sob pena de, por essa via, se poder contornar um ponto fulcral do regime da resolução e que é o da sua essencialidade dentro da economia do contrato.
Em suma e atentando: 
- aos termos lacónicos da carta remetida para efeitos de resolução e que tem que valer por si só para servir de fundamento ao exercício do direito, por força do carácter receptício da declaração (não cumprindo indagar de fundamentos hipotéticos, nomeadamente os que poderão ter estado presentes no pensamento da testemunha aludida em a) e que não se mostram plasmados na carta referida em 7); 
- ao valor do incumprimento, na economia do contrato dos autos, o qual muito embora se designe de aluguer reveste de contornos de concessão de crédito, ainda que por forma indirecta relativamente a um veículo cujo valor ascende a 38.211,38€ (cfr. proposta de aluguer operacional junta a 16-12-2022), 
concluo que a Requerente não demonstra fundamento bastante para a resolução (e consequente pedido de entrega).”
Muito embora o Tribunal a quo não o afirme, o seu raciocínio convoca claramente o instituto do abuso do direito, exceção essa expressamente invocada pela requerida, na oposição[16].
Estabelece o art.º 334º do Código Civil que “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Interpretando este preceito, diz ANTUNES VARELA[17] que “Não é necessária a consciência, por parte do agente, de se excederem com o exercício do direito os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito; basta que, objectivamente, se excedam tais limites”. Quer isto dizer que o Código Civil consagrou uma conceção objetiva de abuso do direito.
No que respeita aos limites impostos pela boa-fé, avulta em especial a vertente da tutela da confiança legítima. A este propósito sublinhou BAPTISTA MACHADO[18] que “Dentro da comunidade das pessoas responsáveis (ou imputáveis), a toda a conduta (conduta significativa, comunicativa) é inerente uma “responsabilidade” – no sentido de um “responder” pelas pretensões de verdade, de rectitude ou de autenticidade inerentes à mensagem que essa conduta transmite (...).
Desta “autovinculação” inerente à nossa conduta comunicativa derivam ao mesmo tempo regras de conduta básicas, também postuladas pelas exigências elementares de uma ordem de convivência e de interacção, que o próprio direito não pode deixar de tutelar, já que sem a sua observância nem essa ordem de convivência nem o direito seriam possíveis (...).
Do exposto podemos também concluir que o princípio da confiança é um princípio ético-jurídico fundamentalíssimo e que a ordem jurídica não pode deixar de tutelar a confiança legítima baseada na conduta de outrem”.
Nesta medida, ensina MENEZES CORDEIRO[19] que a figura do abuso do direito abrange uma tipologia diversificada de situações de exercício inadmissível de posições jurídicas e que compreende, nomeadamente, as seguintes modalidades:

- a exceptio doli: o exercício de uma posição jurídica poderia ser detido com a alegação de que o seu autor incorre em dolo, isto é (neste caso), defronta diretamente a boa fé;
- o venire contra factum proprium: o exercente deixa entender – ou declara – ir tomar uma certa atitude e, depois, toma atitude contrária ou diversa;
- as inalegabilidades formais: o exercente vem alegar a invalidade de um negócio jurídico por vício de forma, em termos contrários à boa fé;
- a supressio: o exercente deixa passar um tal lapso de tempo sem exercer o seu direito que, quando o faça, contraria a boa fé;
- a surrectio: por força da boa fé, o exercente vê, contra ele ou em termos que ele deva respeitar, formar-se um direito que, de outro modo, não existiria;
- o tu quoque: o exercente pratica um facto ilícito ou indevido e depois alega-o contra outrem;
- o exercício em desequilíbrio: o exercente desenvolve uma atividade danosa inútil, o exercente exige algo que deve restituir de seguida (…) ou o exercente provoca uma desproporção inadmissível entre a vantagem própria e o sacrifício que impõe a outrem.”
Por outro lado, assentando no exercício de um direito que excede manifestamente os limites impostos pela boa-fé, os bons costumes ou o fim social ou económico do direito, o funcionamento do instituto do abuso do direito pressupõe o reconhecimento de uma relação de desequilíbrio entre o exercício de determinado direito, e um daqueles limites.
No abuso do direito verifica-se assim um sacrifício desproporcional de um dos mencionados valores.
A verificação de uma tal situação traz à colação a necessidade de aplicação de um teste de proporcionalidade, fortemente inspirado pelo regime do art.º 18º da Constituição da República e por diversas disposições da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (cfr. v.g. os art.ºs 8º, nº 2; 9º, nº 2; 10, nº s; 11º, nº 2).
Esse teste de proporcionalidade é igualmente aflorado em inúmeras disposições do Código Civil (v.g., os art.ºs 566º, nº 1, parte final; 802º, nº 2; e 829º, nº 2), e pode concretizar-se nos seguintes critérios decisórios: a necessidade, a adequação, a justa medida (proporcionalidade stricto sensu), e o interesse legítimo.
Desta forma, será ilegítimo o exercício de um direito, que contrariando um dos seus critérios específicos (boa fé, bons costumes, finalidade económica ou social), revele, em concreto e atendendo à globalidade das circunstâncias, que o benefício decorrente desse direito é injustificadamente desproporcional relação ao sacrifício que para a contraparte representa a estrita observância do correspondente dever, não se revelando aquele ou este como necessários, adequados, na justa medida e para assegurar interesses legítimos.
Este entendimento havia sido consagrado, entre outros, no ac. RP 23-01-2020 (Joaquim Correia Gomes), p. 369/12.4TMMTS-A.P1, que discorreu sobre o tema do abuso do direito processual, e, de uma forma mais ampla, sobre a questão do abuso do direito constitucional de acesso ao Direito e aos Tribunais (art.º 8º da CRP) nos seguintes termos:
«A Constituição, como já referimos, está impregnada por uma ideia de justiça, mais precisamente da prevalência da justiça substantiva, o que não afasta uma ideia de justiça processual (artigo 2.º, 13.º Constituição), como decorre expressamente do seu artigo 20.º, n.º 4, ao consagrar o direito fundamental a um processo justo. Este compreende duas vertentes essenciais, que são o direito a um processo equitativo e a obtenção de uma decisão em prazo razoável, mas que se desdobra em outras dimensões, sendo uma delas o direito de acesso à justiça. A propósito o NCPC, estabelece no seu artigo 2.º a garantia de acesso aos tribunais, considerando como tal que “A proteção jurídica através dos tribunais implica o direito de obter, em prazo razoável, uma decisão judicial que aprecie, com força de caso julgado, a pretensão regularmente deduzida em juízo, bem como a possibilidade de a fazer executar” (n.º 1), bem como que “A todo o direito, exceto quando a lei determine o contrário, corresponde a ação adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente, bem como os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da ação.” (n.º 2). Isto significa que a todo o direito substantivo, corresponde um direito de ação.
Mas essa garantia de acesso aos tribunais está desde logo conformada pelo princípio da boa-fé processual, uma vez que o NCPC, através do artigo 8.º, consagra que “As partes devem agir de boa-fé e observar os deveres de cooperação resultantes do preceituado no artigo anterior”. Como emanação deste dever de boa-fé processual temos desde logo a responsabilidade por má-fé, consagrada no artigo 542.º NCPC, sendo que as posturas de parte de má fé, tanto por dolo, como mediante negligência grave (n.º 1), reconduzem-se a situações de má fé material ou má fé instrumental (n.º 2). As primeiras compreendem a dedução de pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia de ignorar (a), a alteração consciente da verdade dos factos ou a omissão de factos essenciais (b). As segundas incluem a omissão grave do dever de cooperação (c), o uso manifestamente reprovável do processo ou dos meios processuais para se conseguir um fim ilegal (i), impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça (ii) ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão (iii) (d). E também como violação desse dever de boa-fé processual encontramos o instituto do uso anormal do processo, preceituado no artigo 612.º NCPC, o qual ocorre “Quando a conduta das partes ou quaisquer circunstâncias da causa produzam a convicção segura de que o autor e o réu se serviram do processo para praticar um ato simulado ou para conseguir um fim proibido por lei, a decisão deve obstar ao objetivo anormal prosseguido pelas partes”.
Mas cremos que a boa-fé processual não se fica por estas duas vias (litigância de má-fé; uso anormal do processo), porquanto seria extremamente redutora, já que aquelas centram-se na correspondente intencionalidade do demandante, quando a boa-fé tanto pode ter uma dimensão subjetiva, como uma dimensão objetiva. E convém recordar que o abuso de direito previsto no artigo 334.º do Código Civil veio consagrar a formulação objetiva da boa-fé – Ac. TRP de 27/jun./2018, www.dgsi.pt.[20]Nesta conformidade, a boa-fé processual, na sua dimensão objetiva, corresponde a um padrão de comportamento procedimental, o qual desdobra-se, entre outros, através da lealdade, fidelidade, confiança, cooperação e informação. A boa-fé processual abrange todos os processos e em qualquer das suas fases (cautelar, declarativo, executivo), assim como todas as instâncias (1.ª instância, recurso).
A jurisprudência tem vindo, de resto, a aceitar o abuso de direito processual, como ficou registado no Ac. do STJ de 04/nov./2008 (Cons. Fonseca Ramos, www.dgsi.pt)[21] ao considerar que “O princípio da boa-fé não é exclusivo do direito substantivo, também pode ser violado numa perspectiva de actuação processual, mormente pelo recurso a juízo através de acções ou procedimentos cautelares abusivos”. Mais recentemente o Ac. TRP de 22/out./2018 (Des. Fernanda Almeida, www.dgsi.pt)[22] posicionou-se no sentido de que “O abuso de direito no campo processual, numa perspetiva macroscópica, pode aferir-se tendo em conta, designadamente, os seguintes índices: - o exercício gratuito do direito com o único e manifesto propósito de negar interesses dos outros, revelando-se, em contrapartida uma falta de interesse objetivo para o exercente (ex. a vingança e a pura finalidade de prejudicar terceiros);- a afirmação de interesses próprios mas em que se patenteia uma lesão ponderosa (mas de todo escusada) de interesse alheio (ainda que não dolosa); - o exercício do direito desviado do interesse que lhe é imanente e que justificou a sua atribuição, sendo abusiva qualquer situação subjetiva processual que se desvie manifestamente desse interesse;- a ação por má vontade ou para pressionar o lesado (ex., a ação sem fundamento relativa a um imóvel e registo da mesma, com isso podendo impedir a comercialização do imóvel, causando danos em cadeia); - o pedido manifestamente vexatório ou desprovido de qualquer propósito real.”
Nesta conformidade, o abuso de direito processual corresponde essencialmente ao exercício impróprio, no plano funcional, do direito à ação, distorcendo o direito fundamental a um processo justo e equitativo, na dimensão de garantia de acesso aos tribunais, mediante uma tutela judicial efectiva, o qual deve ser aferido a partir da noção de boa-fé processual objetiva. Verifica-se a violação da boa-fé processual quando ocorre o exercício ilegítimo do direito de ação, em virtude do seu titular ao demandar outra pessoa e atenta a realidade que lhe está subjacente, acaba por exceder manifestamente os limites impostos por um standard de integridade e lealdade procedimental. Tal ocorre, entre outras situações, quando aquele que tem legitimidade processual faz um uso da ação para um fim diverso daquele para o qual estava legalmente reconhecido, acabando por promover uma lide ilegítima em virtude da mesma ser contrária ao direito substantivo que lhe está subjacente.»
E apreciando uma situação com contornos semelhantes aos do caso dos autos, referiu o ac. RP 09-09-1997 (João Vaz), p. 9830204, em cujo sumário se pode ler:
“I - O fim económico do direito de resolução de contrato de locação há-de medir-se pela violação do legítimo interesse do locador em que a parte contrária cumpra com a sua obrigação de pagar as prestações que representam a contrapartida pela entrega temporária da coisa.
II - Em contrato de aluguer de veículo automóvel, celebrado como " contrato de adesão ", há abuso do direito de resolução do contrato, pelo locador, se a prestação em falta, pelo locatário, é de diminuto valor e tem carácter acessório, face ao valor global do contrato e à sua natureza.”
No caso vertente, está em causa a resolução de um contrato de ALD relativo a uma viatura avaliada que a requerente adquiriu por €43.886,98[23], em que haviam sido convencionadas 48 rendas mensais, e ajustada a faculdade de a requerida adquirir o veículo mediante o pagamento do remanescente da viatura, no valor de €21.635,04 + IVA[24], findo o prazo de 48 meses,  numa altura em que já se mostravam liquidadas as rendas vencidas desde outubro de 2020 e junho de 2022, num total de 21.
Portanto, no momento em que se verificou a mora da requerida no tocante à renda vencida em junho de 2022, já a requerida havia pagou quase metade das rendas ajustadas, as quais, como já vimos, visavam não só retribuir a cedência do gozo do veículo, como amortizar o valor da sua aquisição, caso a requerida optasse nesse sentido, pagando um “valor residual” correspondente a cerca de 50% do valor do mesmo veículo.
Aqui chegados, cumpre ainda recordar que, como já referimos, a apelante sustentou que aquando da resolução já se tinha vencido a renda de agosto, a qual se encontrava igualmente em mora.
Contudo, como também já mencionámos, nem esse facto foi alegado no requerimento inicial, nem resulta da factualidade provada.
Sustentou igualmente a apelada que ao longo da vigência do contrato se verificaram outras situações de mora da requerida e pagamento de rendas após o respetivo prazo de pagamento, e que o mercado da comercialização de veículos automóveis se encontra num momento difícil.[25]
Mas também estes factos foram omitidos no requerimento inicial e não resultam da factualidade assente na decisão apelada, nem configuram factos notórios.
Assim, e porque os recursos não servem para suscitar questões que não tenham sido invocadas e debatidas nos articulados (exceto se as mesmas configurarem questões de conhecimento oficioso, o que seguramente não é o caso), forçoso é concluir pela total irrelevância deste argumento.
Relevante se revela ainda a circunstância de a requerida ter liquidado rendas mesmo após a resolução[26], revelando intenção de cumprir o contrato, e atuando em conformidade.
Assim, sopesando todas as considerações acima vertidas é de considerar que o sacrifício decorrente da resolução do contrato de ALD celebrado entre requerente e requerida com fundamento na falta de pagamento de uma única renda, que a requerida veio a liquidar revela uma manifesta desproporção entre a vantagem que para a requerente advém da resolução, e o sacrifício que a mesma implica para a requerida.
Daí que se considere verificada a exceção de abuso do direito.
O abuso do direito configura um facto impeditivo do exercício do direito da requerente, obstando assim ao exercício do direito à resolução do contrato.
Procedendo tal exceção, não pode considerar-se verificado o requisito da provável existência de um direito, ou fumus boni iuris.
3.2.1.2.2. Síntese conclusiva
Sendo os requisitos da procedência do procedimento cautelar comum de verificação cumulativa, tal implica necessariamente a improcedência do presente procedimento cautelar.
Daí a total improcedência da presente apelação.
3.2.2. Das custas
Nos termos do disposto no art.º 527º, nº 1 do CPC, “A decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito.”
A interpretação desta disposição legal, no contexto dos recursos, deve atender ao elemento sistemático da interpretação.
Com efeito, o conceito de custas comporta um sentido amplo e um sentido restrito.
No sentido amplo, as custas tal conceito inclui a taxa de justiça, os encargos e as custas de parte (cf. art.ºs 529º, nº1, do CPC e 3º, nº1, do RCP).
Já em sentido restrito, as custas são sinónimo de taxa de justiça, sendo esta devida pelo impulso do processo, seja em que instância for (art.ºs 529º, nº 2 e 642º, do CPC e 1º, nº 1, e 6º, nºs 2, 5 e 6 do RCP).
O pagamento da taxa de justiça não se correlaciona com o decaimento da parte, mas sim com o impulso do processo (vd. art.ºs 529º, nº 2, e 530º, nº 1, do CPC). Por isso é devido quer na 1ª instância, quer na Relação, quer no STJ.
Assim sendo, a condenação em custas a que se reportam os art.ºs 527º, 607º, nº 6, e 663º, nº 2, do CPC, só respeita aos encargos, quando devidos (art.ºs 532º do CPC e 16º, 20º e 24º, nº 2, do RCP), e às custas de parte (art.ºs 533º do CPC e 25º e 26º do RCP).
Tecidas estas considerações, resta aplicar o preceito supracitado.
No caso vertente, face à total improcedência da apelação, as custas devem ser suportadas pela apelante.

4. Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes nesta 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar a presente apelação totalmente improcedente e em consequência, manter a decisão recorrida.
Custas pela apelante.

Lisboa, 14 de março de 2023 [27]
Diogo Ravara
Ana Rodrigues da Silva
Micaela Sousa
_______________________________________________________
[1] Seguimos de muito perto a redação do relatório da decisão recorrida, a que acrescentámos as incidências subsequentes.
[2]  Neste sentido cfr. Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª Ed., Almedina, 2018, pp. 114-116.
[3] Vd. Abrantes Geraldes, ob. cit., p. 116.
[4] Itálicos nossos.
[5] “Temas da reforma de processo civil”, II volume, Almedina, 1998, p. 75. O autor reporta-se ao CPC1961; contudo as afirmações transcritas mantêm plena pertinência à luz do CPC2013.
[6] “Providências cautelares”, 4ª Ed., Almedina, 2019, pp. 195.
[7] Ob. cit., p. 196.
[8] “Teoria Geral do Direito Civil”, 4ª ed., Coimbra Editora, 2005, p. 444
[9] Ponto 2. dos factos provados.
[10] Ponto 3. dos factos provados.
[11] “Contratos Atípicos”, Almedina 1995, p. 245-246
[12] Todos os acórdãos citados no presente aresto sem indicação expressa do local da sua publicação se acham publicados em http://www.dgsi.pt/ e/ou em https://jurisprudencia.csm.org.pt/. A versão eletrónica deste acórdão contém hiperligações para todos os arestos nele citados que se achem publicados nos mencionados endereços.
[13] Pontos 4. e 5. dos factos provados.
[14] Ponto 5. dos factos provados.
[15] Art.ºs 9º a 11º da oposição, e p. 2 das contra-alegações.
[16] Vd. art.º 36º do mencionado articulado.
[17] “Das obrigações em geral”, 7ª Ed., p. 536.
[18] RLJ, ano 119, p. 232.
[19] “Teoria Geral do Direito Civil”, AAFDL, 1989, pp.372-383. Para uma análise detalhada de cada um dos tipos de atos abusivos cfr. do mesmo autor, “Tratado de Direito Civil”, V, 2ª ed., Almedina, 2015, pp. 295-381.
[20] Cremos que o aresto se reporta ao ac. RP 27-06-2018 (Joaquim Correia Gomes), p. 8/17.7T8GDM.P1. Nota da nossa responsabilidade.
[21] STJ 04-11-2008 (Fonseca Ramos), p. 08A3127. Nota da nossa responsabilidade.
[22] Cremos tratar-se do ac. RP 22-10-2018 (Fernanda Almeida), p. 528/11.7TVPRT.P1. Nota da nossa responsabilidade.
[23] Vd. documento intitulado “Proposta de Aluguer Operacional de Veículos sem Condutor” junta com o requerimento da requerente com a ref.ª /44149878, de 14-12-2022.
[24] Ponto 3. dos factos provados.
[25] Vd conclusões K. e R.
[26] Ponto 7. dos factos provados.
[27] Acórdão assinado digitalmente – cfr. certificados apostos no canto superior esquerdo da primeira página.