Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2937/08.0TVLSB-A.L1-6
Relator: JOSÉ EDUARDO SAPATEIRO
Descritores: ACTO PROCESSUAL
CITIUS
FORMULÁRIO
NULIDADES
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/11/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Sumário: I – O regime legal que enquadra os meios de comunicação a juízo dos actos escritos das partes não lhes impõe a via electrónica (vulgo, Internet) como a única possível de ser utilizada, não havendo, nessa medida e consequentemente, uma obrigação de uso da aplicação informática CITIUS.
II – A conduta da Autora é violadora do disposto nos artigos 4.º, número 1, 5.º, número 1 e 6.º, número 1 da Portaria n.º 114/2008, de 6/02, transformando o acto processual em causa, numa realidade mista, em que convivem formas distintas e excludentes uma da outra: transmissão electrónica e suporte em papel que, contudo, quando usadas isoladamente, são legalmente admitidas e devem ser consideradas pelo tribunal.
III – Nenhuma das nulidades principais elencadas nos artigos 193.º a 199.º do Código de Processo Civil integra a irregularidade em apreço nos autos nem conhecemos, quer ao nível do Código de Processo Civil como da legislação complementar que regula as questões em análise, qualquer disposição legal que comine expressamente com a invalidade tal incorrecção procedimental.
IV – Por outro lado e face ao caldeirão do artigo 201.º do Código de Processo Civil, não se pode afirmar que a irregularidade praticada pela Autora constitui uma nulidade processual secundária, por poder a irregularidade cometida influir no exame ou na decisão da causa, pois a circunstância da Autora não ter sido escrupulosa no preenchimento do formulário do CITIUS não a impediu de praticar o acto em causa no processo respectivo nem de o fazer chegar ao conhecimento do tribunal e da parte contrária, assim tendo o mesmo logrado alcançar o fim pretendido e reconhecido pela lei.
A circunstância de tal requerimento de prova ter de ser digitalizado pela secretaria ou desta ter de inserir no sistema/processo electrónico respectivo a identificação das testemunhas não obsta, de alguma maneira, a que o litígio seja normal e regularmente analisado e julgado, tendo somente reflexos na celeridade processual e eventualmente a nível tributário.
V – Logo, o tribunal recorrido não poderia ter proferido o despacho de não admissibilidade do requerimento de prova em causa, devendo antes ter ordenado a sua admissão e registo (em nome do princípio do aproveitamento do possível, que se acha consagrado no número 3 do artigo 201.º do Código de Processo Civil – cf., a este respeito, os autores acima citados) como requerimento em suporte de papel, com as inerentes consequências ao nível adjectivo (digitalização ou inserção no sistema) e, porventura, tributário (cf. artigos 15.º e 106.º do Código das Custas Judiciais de 1996).
VI – Face ao estatuído no artigo 202.º do Código de Processo Civil, é mesmo duvidoso que o tribunal pudesse ter conhecido, por mera informação da secretaria, essa irregularidade e, na sequência da sua declaração, não admitido o requerimento de prova em causa.
VII – Na análise desta matéria das nulidades processuais, no muito recente mundo da Internet e das aplicações informáticas como o CITIUS, haverá que levar em linha de conta que a prática dos actos processuais já não depende somente da diligência e actuação da parte mas também do funcionamento, disponibilidade e “boa vontade” dos sistemas informáticos utilizados que, como sabemos e apesar das múltiplas vantagens que transportam consigo, são sensíveis, caprichosos, imprevisíveis e enganadores, com os problemas que, inevitavelmente, esses “excessos de personalidade” acarretam para o seu utilizador (designadamente, em termos de prova, as mais das vezes inexistente, só tendo a sua palavra e o senso comum para fundar o por si alegado).
Tudo isso conjugado com os conhecimentos técnicos exigidos pelo sistema e que muita gente ainda não possui (muitas vezes, por desleixo ou por considerar a sua aprendizagem um bicho de sete cabeças mas em muitas outras por incapacidade de lidar e assimilar essas novas tecnologias) e com o constante desenvolvimento do mesmo, impõe um especial cuidado (se não mesmo benevolência e compreensão) na apreciação e julgamento de falhas como a dos autos.
VIII – Os excessos de formalismo como o evidenciado no despacho impugnado são incompatíveis e contraditórios com a evolução que se tem verificado deste a reforma de 1995/96 na nossa lei processual civil de índole comum ou geral, no sentido de reduzir e restringir ao máximo as puras e duras decisões de forma, que impeçam a apreciação e julgamento substancial do pleito trazido a tribunal e de, através dos poderes oficiosos conferidos ao juiz do processo e da sua possibilidade de sanação de muitos dos vícios de cariz formal ou adjectivo, dar prevalência às decisões de fundo sobre as decisões de forma (cf., neste sentido e a título de exemplo, os artigos 264.º, números 2 e 3, 265.º, 265.º -A, 266.º e 288.º, número 3 do Código de Processo Civil).
(JES)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NESTE TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:

I – RELATÓRIO

MARIA, residente em Lisboa, intentou, em 24/10/2008, esta acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra STÉPHANE, com domicílio em Lisboa, que seguiu a sua normal tramitação, até à fase da instrução.
As partes ofereceram os seus meios de prova, tendo a Autora MARIA o feito por via electrónica, com o envio à secretaria do denominado “Requerimento Probatório”, onde se pode ler a respectiva referência (2813035), a finalidade (juntar a processo existente), o tribunal competente e a unidade orgânica (Lisboa – 4.ª Vara Cível – 3.ª Secção), a identificação completa do mandatário judicial subscritor do requerimento em questão e a notificação entre mandatários nos termos do artigo 229.º-A do Código de Processo Civil (fls. 17), dizendo-se depois na parte final dessa peça processual que a mesma se acha assinada electronicamente pelo referido advogado, no dia 30/07/2008, pelas 15:45:28 GTM+0100 e que tem o Anexo n.º 1 – Requerimento de Prova (fls. 20).
Tal requerimento de prova (Anexo n.º 1), com duas páginas, não integra o mencionado formulário electrónico mas foi-lhe junto simplesmente, depois de redigido em computador, contendo o rol de testemunhas e o pedido de gravação da Audiência Final.
A Secretaria abriu então conclusão ao juiz do processo com a seguinte informação (fls. 21):
“CONCLUSÃO – 19-10-2009, com informação a V. Exa. de que os requerimentos probatórios das partes, não vêm nos termos do disposto no art.º 5.º da Portaria n.º 114/2008, de 06/02, nomeadamente não estão introduzidas as testemunhas no formulário, quando no requerimento as mesmas são arroladas. Assim, faço os autos conclusos para os efeitos tidos convenientes.”
Veio então a ser proferido pelo juiz do processo o seguinte despacho, datado de 19/10/2009:
“Nos termos do art.º 5.º da Portaria n.º 114/2008 a apresentação de peças processuais é efectuada através do preenchimento de formulários disponibilizados no sistema CITIUS.
Ora, apesar de ter sido apresentado por transmissão electrónica o requerimento probatório da Autora, o certo é que não foi preenchido o respectivo formulário. Trata-se da omissão de formalidade que influi na decisão da causa o que, determina a nulidade do rol de testemunhas apresentado nos requerimentos de fls. 93 e 94, que por isso não pode ser admitido.
Notifique.
Admito o rol de testemunhas apresentado pela Ré na sua contestação.
Indefere-se o requerido depoimento de parte da A. uma vez que este visa obter a prova por confissão e os factos constantes dos artigos 1.º, 7.º, 8.º e 9.º não são passíveis de confissão por aquela.
A audiência será gravada.
Para a realização da audiência de discussão e julgamento designo o dia 23 de Março de 2010, pelas 9.30h.
Notifique.”
*
A Autora interpôs recurso deste despacho (fls. 1 e 2) que foi correctamente admitido como apelação, a subir de imediato, em separado e com efeito meramente devolutivo (fls. 532).
O Apelante apresentou alegações de recurso (fls. 536 e seguintes) e formulou as seguintes conclusões:
“1. O requerimento probatório não admitido pelo Despacho ora em crise é datado de 30 de Julho de 2009.
2. Nessa data, colhiam por inteiro as circunstâncias de experimentalidade, novidade, inabilidade e falta de hábito para utilização das ferramentas electrónicas disponibilizadas.
3. Para que o referido Requerimento Probatório pudesse ter sido enviado por via electrónica para o Tribunal foi, necessariamente, preenchido o formulário que o sistema informático CITIUS disponibiliza.
4. Os campos previstos no respectivo formulário encontram – se preenchidos.
5. A recepção desse formulário foi aceite, validada e certificada pelo sistema CITIUS.
6. Da leitura do Despacho transparece que o rol de testemunhas apresentado pela ora recorrente foi enviado por via electrónica desacompanhado de qualquer formulário.
7. O que, no caso dos Autos, não ocorreu.
8. Apenas não foi preenchido a parte do campo onde devem ser introduzidos os elementos identificadores das testemunhas.
9. A regra do CITIUS é de que o sistema informático impede que se prossiga para o campo seguinte sem que o antecedente esteja devida e correctamente preenchido.
10. Ao invés, à medida que o formulário foi sendo preenchido, o sistema foi aceitando e sugerindo os passos seguintes.
11. Durante a introdução dos dados, ou posteriormente, não houve qualquer alerta ou impedimento, por parte do sistema informático CITIUS, no sentido de prevenir o respectivo utilizador da necessidade de preencher o tal campo.
12. Ou, em alternativa, impedi-lo de efectuar a entrega do requerimento probatório.
13. Tanto assim, que o respectivo formulário não só foi aceite, como validada a sua expedição pelo sistema.
14. Ao decidir-se como se decidiu privilegiou-se a forma em detrimento da matéria.
15. A Recorrente preencheu todos os formulários que o próprio sistema informático CITIUS lhe determinou que preenchesse.
16. Não houve qualquer omissão de formalidade essencial.
17. Ainda assim não fosse, tal omissão não é uma nulidade de conhecimento oficioso.
18. As consequências para a ora Recorrente e para a justiça material da causa, advenientes do Despacho ora sub judice são manifestamente desproporcionadas e gravosas.
19. O Despacho recorrido, violou, por isso, o disposto nos artigos 512.º, 201.º, n.º 1, 202.º, 265.º-A, 266.º, n.º 1, e 3.º, n.º 3, todos do Código de Processo Civil e, ainda, o artigo 5° da Portaria 114/2008, de 6 de Fevereiro.
Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 691.º – B do Código de Processo Civil, vem indicar que, para instruir o presente recurso, pretende Certidão do requerimento probatório apresentado pela A., ora Apelante, em 30.07.2009, com a referência 2813035, Conclusão de 19.10.2009, de fls.... e do Despacho de fls..., o qual não admitiu o rol de testemunhas apresentados pela ora Apelante.
Nestes termos nos mais de direito, deve ser concedido provimento à presente Apelação, anulando-se a Decisão recorrida em conformidade, e substituindo-a por uma que admita o rol e testemunhas apresentado pela Apelante, ou, em alternativa, que ordene a notificação desta para completar o formulário por si apresentado aquando da apresentação do seu requerimento probatório, fazendo-se, assim, a pretendida e objectiva JUSTIÇA”
*
A Ré, na sequência da respectiva notificação, não apresentou contra-alegações dentro do prazo legal
*
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II – OS FACTOS
Os factos relevantes para a apreciação e julgamento do presente recurso de Apelação mostram-se descritos no relatório do presente Aresto, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
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III – OS FACTOS E O DIREITO
É pelas conclusões do recurso que se delimita o seu âmbito de cognição, nos termos do disposto nos artigos 685.º-A e 684.º n.º 3, ambos do Código de Processo Civil, salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 660.º n.º 2 do Código de Processo Civil).
A – QUESTÃO PRÉVIA
Importa frisar que a presente acção deu entrada em tribunal em 24/10/2008, ou seja, depois da entrada em vigor das alterações introduzidas no Código de Processo Civil pelo Decreto-Lei n.º 303/2007 de 24/08, que só produziram efeitos em 1/1/2008 e incidem sobre processos instaurados após essa data, o mesmo já não acontecendo com as mais recentes alterações trazidas a público pelo Decreto-Lei n.º 226/2008, de 20/11 e parcialmente em vigor desde 31/03/2009, porque somente aplicáveis a processos entrados após essa data, embora com algumas excepções que não tem relevância na economia dos presentes autos (artigos 22.º e 23.º desse texto legal).
É certo que o pedido de extinção do presente procedimento e o levantamento da providência foi formulado pelos Agravantes em 14/08/2009, mas tal pretensão está visceral e directamente conexionada com os autos de procedimento cautelar comum e com as providências de índole cautelar neles requeridas, não possuindo autonomia formal e substancial que justifique e reclame a aplicação aos mesmos das reformas de natureza adjectiva de 2007 e 2008.
Será, portanto, de acordo com o regime legal decorrente da reforma do processo civil de 2007 que iremos, quando necessário, abordar as diversas questões suscitadas neste recurso de apelação.
B – OBJECTO DO RECURSO
A questão suscitada no quadro do presente recurso é só uma: tendo a Autora apresentado o seu requerimento de prova de uma forma mista (embora utilizando a via electrónica, acaba por remeter o rol de testemunhas e pedido de gravação da Audiência de Discussão e Julgamento como simples anexo, em vez de inserir tais matérias nos locais próprios do correspondente formulário), o tribunal da 1.ª instância, ao invés da sua não admissão, por ter encarado o não preenchimento do formulário como uma nulidade processual que influía na decisão da causa, ao que julgamos de acordo com o disposto no artigo 201.º, número 1 do Código de Processo Civil, deveria ter adoptado a atitude oposta?
Importa, antes de mais, chamar à cena as disposições legais que importam para esta matéria e que são os artigos 138.º, 138.º-A, 150.º, 201.º, 202.º e 205.º do Código de Processo Civil, tendo tais dispositivos legais a seguinte redacção, na parte que nos interessa:
(…)
Interpretando devidamente o regime acima transcrito, constata-se que os actos das partes não obedecem a uma forma ou modelo obrigatórios, devendo, tão-somente, ser praticados pela forma mais simples e adequada ao fim que perseguem (só os actos da secretaria têm de adoptar os modelos legalmente aprovados).
Nessa esteira, o artigo 138.º-A do Código de Processo Civil, no quadro da tramitação electrónica dos processos, só faz referência aos actos dos magistrados e da secretaria, nada dizendo quanto aos actos das partes (estejam patrocinados ou não por advogados).
Não surpreende, portanto, que o artigo 150.º do mesmo diploma legal só manifeste uma preferência (e não uma obrigatoriedade) pela transmissão electrónica de dados, relativamente à prática pelas partes dos actos processuais que o devam ser por escrito, permitindo que os mesmos cheguem também ao processo pelas vias indicadas nas alíneas do seu número 2.
Chame-se, aliás, a atenção para o disposto no último número desse artigo 150.º, quando determina que as peças processuais em suporte de papel apresentadas pelas partes são digitalizadas pela secretaria, assim se conciliando essa liberdade formal com a implementação do processo electrónico.
Logo, o regime legal que enquadra os meios de comunicação a juízo dos actos escritos das partes não impõe a via electrónica (vulgo, Internet) como a única possível de ser utilizada, não havendo, nessa medida e consequentemente, uma obrigação de uso da aplicação informática CITIUS.
Chegados aqui e tendo tal quadro legal como pano de fundo, impõe-se também olhar para os artigos 1.º, alínea a), 2.º, alínea a), 3.º, número 1, 4.º, 5.º e 6.º da Portaria n.º 114/2008, de 6/02, com as alterações introduzidas pelas Portarias n.ºs 457/2008, de 20/06 e 1538/2008, de 30/12 (que, no que toca a tais disposições legais, entrou em vigor em 7/04/2008 – cf. artigo 28.º, número 1, alínea b) dessa Portaria, na redacção que lhe foi dada pela Portaria n.º 457/2008), sem perder de vista que tal regulamentação não pode contrariar ou extravasar os princípios e regras jurídicas de carácter geral que deixámos transcritos e analisados.
Tais disposições normativas possuem a seguinte redacção na parte que releva para o julgamento deste recurso:
(…)
Confrontada a factualidade dada como provada com as normas da Portaria acima transcritas, constata-se que a Autora não utilizou correcta e integralmente a aplicação informática do CITIUS, dado se ter limitado a preencher, no formulário correspondente, os campos de identificação do processo, tipo de acto, remetente, notificação à parte contrária, apondo-lhe depois a sua assinatura electrónica e certificada, tendo omitido a inserção do nome das testemunhas e das demais diligências requeridas (gravação da prova) nos espaços a tal destinados no modelo em questão.
Ora, tal conduta é manifestamente violadora do disposto nos artigos 4.º, número 1, 5.º, número 1 e 6.º, número 1 da aludida Portaria, transformando o acto processual em causa, numa realidade mista, em que convivem formas distintas e excludentes uma da outra: transmissão electrónica e suporte em papel.
Detectada tal irregularidade de cariz formal, interessa talvez realçar que a Autora lançou mão de dois meios ou vias de comunicação que, quando usadas isoladamente, são legalmente admitidas e devem ser consideradas pelo tribunal, sendo certo, por outro lado, que o fim pretendido foi integralmente realizado, apesar da incorrecção formal acima analisada – fazer chegar ao processo o requerimento de prova, a que nada há a apontar do ponto de vista adjectivo ou material, dentro do prazo que a lei concede à parte para esse efeito, tendo ainda notificado a parte contrária do mesmo.
Muito embora exista quem não qualifique a situação em análise como uma nulidade processual, posicionando-a, em termos jurídicos, em momento anterior e diverso (no plano da sua génese), não nos repugna encarar a mesma nessa perspectiva (como, aliás, o fez o despacho impugnado).
Manuel de Andrade em “Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra, 2.ª Edição, 1976, página 175, define as nulidades do processo como “quaisquer desvios do formalismo processual seguido, em relação ao formalismo processual prescrito na lei e a que esta faça corresponder – embora não de modo expresso – uma invalidação mais ou menos extensa de actos processuais (artigos 201.º; cfr. arts. 194.º, 195.º e 198.º-200.º)”
Diz ainda o mesmo autor o seguinte acerca da problemáticas das nulidades processuais:
Princípio geral acerca de quais sejam as irregularidades ou desvios no formalismo processual que constituem nulidade do processo. São só as que possam influir no exame (instrução e discussão) ou na decisão da causa (art. 201°; cfr. uma norma paralela do art. 710.º, n.º 2); as que possam ter reflexos de ordem substancial (hoc sensu). Não assim, todavia, quando a lei preveja diferentemente, como no caso do artigo 483.º (cfr. n.º 78). As outras infracções são irrelevantes. Disso temos exemplo quando não seja deduzida discriminadamente a reconvenção ou quando não seja articulada a narração da petição inicial ou a da contestação (pelo menos se, em qual­quer destas hipóteses, não for notavelmente prejudicada a cla­reza da respectiva peça); e também, dum modo geral, quando a formalidade preterida não impediu que o acto em questão atingisse a sua finalidade (cfr. arts. 193.º, n.º 3, e 198 °, n.º 2).
Formas que podem revestir.
I) Quanto ao modo de violação da lei processual.
a) Prática de um acto que a lei não admite – porque directamente o proíbe (cfr., por ex., os arts. 394.º e 404.º, n.º 1, enquanto mandam que o juiz ordene sem prévia audiência do esbulhador ou do devedor a restituição provisória da posse, no caso de esbulho violento, e o arresto), ou porque repugna à índole do processo, ao espírito do sistema processual vigente. Não são proibidos os actos dispensáveis: por ex., a audiência da parte contrária, quando não legalmente prescrita ou pre­vista. Quanto aos actos inúteis, cfr os artigos 137.º e 448.º, n.ºs 1 e 2.
b) Omissão de um acto prescrito na lei. Assim, v. g., a da citação do Réu.
c) Prática de um acto legalmente permitido (de modo directo; ou não proibido por algum texto nem repugnante à índole do processo) ou prescrito mas sem as devidas forma­lidades.
Para uma referência da lei às três modalidades anteriores, cfr. o artigo 201.º, n.º 1.” (ver também Anselmo de Castro, em “Direito Processual Civil Declaratório”, Volume III, Almedina, 1982, páginas 101 e seguintes).
As normas que interessa chamar à colação nesta matéria são as contidas nos artigos 201.º, 202.º e 205.º do Código de Processo Civil, rezando as mesmas o seguinte:
(…)
Pensamos que nenhuma das nulidades principais elencadas nos artigos 193.º a 199.º do Código de Processo Civil integra a irregularidade em apreço nos autos nem conhecemos, quer ao nível do Código de Processo Civil como da legislação complementar que regula as questões em análise, qualquer disposição legal que comine expressamente com a invalidade tal incorrecção procedimental.
Logo caindo dentro do caldeirão do artigo 201.º do Código de Processo Civil, será que se pode afirmar, como fez o tribunal da 1.ª instância, que a irregularidade praticada pela Autora constituía uma nulidade processual secundária, por poder a irregularidade cometida influir no exame ou na decisão da causa?
A resposta a tal dúvida tem de ser negativa, pois, como já deixámos acima aflorado, a circunstância da Autora não ter sido escrupulosa no preenchimento do formulário do CITIUS não a impediu de praticar o acto em causa no processo respectivo nem de o fazer chegar ao conhecimento do tribunal e da parte contrária, assim tendo o mesmo logrado alcançar o fim pretendido e reconhecido pela lei.
A circunstância de tal requerimento de prova ter de ser digitalizado pela secretaria ou desta ter de inserir no sistema/processo electrónico respectivo a identificação das testemunhas obstará, de alguma maneira, a que o litígio seja norma e regularmente analisado e julgado?
Obviamente que não, tendo somente reflexos na celeridade processual e eventualmente a nível tributário, pois a parte acabou por não utilizar verdadeiramente a via da transmissão electrónica de dados, limitando-se antes a servir-se da Internet e do CITIUS como via de transporte de um requerimento direccionado, em rigor, à sua apresentação em suporte de papel, por qualquer um dos meios mencionados no número 2 do artigo 150.º do Código de Processo Civil.
Logo, o tribunal recorrido não poderia ter proferido o despacho de não admissibilidade do requerimento de prova em causa, devendo antes ter ordenado a sua admissão e registo (em nome do princípio do aproveitamento do possível, que se acha consagrado no número 3 do artigo 201.º do Código de Processo Civil – cf., a este respeito, os autores acima citados) como requerimento em suporte de papel, com as inerentes consequências ao nível adjectivo (digitalização ou inserção no sistema) e, porventura, tributário (cf. artigos 15.º e 106.º do Código das Custas Judiciais de 1996).
Temos mesmo sérias dúvidas que, face ao estatuído no artigo 202.º do Código de Processo Civil, o tribunal pudesse ter conhecido, por mera informação da secretaria, essa irregularidade e, na sequência da sua declaração, não admitido o requerimento de prova em causa.
Pensamos que na análise desta matéria das nulidades processuais, no muito recente mundo da Internet e das aplicações informáticas como o CITIUS, haverá que levar em linha de conta que a prática dos actos processuais já não depende somente da diligência e actuação da parte mas também do funcionamento, disponibilidade e “boa vontade” dos sistemas informáticos utilizados que, como sabemos e apesar das múltiplas vantagens que transportam consigo, são sensíveis, caprichosos, imprevisíveis e enganadores, com os problemas que, inevitavelmente, esses “excessos de personalidade” acarretam para o seu utilizador (designadamente, em termos de prova, as mais das vezes inexistente, só tendo a sua palavra e o senso comum para fundar o por si alegado).
Tudo isso conjugado com os conhecimentos técnicos exigidos pelo sistema e que muita gente ainda não possui (muitas vezes, por desleixo ou por considerar a sua aprendizagem um bicho de sete cabeças mas em muitas outras por incapacidade de lidar e assimilar essas novas tecnologias) e com o constante desenvolvimento do mesmo, impõe um especial cuidado (se não mesmo benevolência e compreensão) na apreciação e julgamento de falhas como a dos autos.
Dir-se-á, finalmente, que excessos de formalismo como o evidenciado no despacho impugnado são incompatíveis e contraditórios com a evolução que se tem verificado deste a reforma de 1995/96 na nossa lei processual civil de índole comum ou geral, no sentido de reduzir e restringir ao máximo as puras e duras decisões de forma, que impeçam a apreciação e julgamento substancial do pleito trazido a tribunal e de, através dos poderes oficiosos conferidos ao juiz do processo e da sua possibilidade de sanação de muitos dos vícios de cariz formal ou adjectivo, dar prevalência às decisões de fundo sobre as decisões de forma (cf., neste sentido e a título de exemplo, os artigos 264.º, números 2 e 3, 265.º, 265.º -A, 266.º e 288.º, número 3 do Código de Processo Civil).
Logo, tem o presente recurso de apelação de ser julgado procedente, determinando-se que o despacho recorrido seja substituído por um outro que admita o mencionado rol de testemunhas, ainda que o encarando/convertendo num requerimento em suporte de papel, com as inerentes consequências legais, em termos de digitalização e eventuais reflexos de índole tributária.
IV – DECISÃO
Por todo o exposto e tendo em conta o artigo 713.º do Código do Processo Civil, acorda-se neste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar procedente o recurso de apelação interposto por MARIA, revogando, nessa medida e integralmente o despacho proferido pelo tribunal da 1.ª instância, que deverá ser substituído por um outro, de admissão do mencionado requerimento de prova, nos moldes acima analisados e determinados.
Sem custas – artigo 2.º, número 1, alínea g) do Código das Custas Judiciais (interpretação actualista do preceito).
Notifique e Registe.
Lisboa, 11 de Março de 2010
(José Eduardo Sapateiro)
(Teresa Soares)
(Rosa Barroso)