Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2777/15.0T8CSC-A.L1-8
Relator: LUÍS CORREIA DE MENDONÇA
Descritores: DOMÍNIO PÚBLICO
LEGITIMIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/22/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: - Não pretendendo a autora afastar qualquer presunção de dominialidade sobre os determinados terrenos, mas obter o reconhecimento de que tais imóveis nunca integraram o domínio público, sempre se tendo mantido na esfera de particulares, não se aplica a acção de reconhecimento da propriedade privada sobre recursos hídricos ex artigo 15.º da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro (Lei da Titularidade dos Recursos Hídricos).
- Não é, neste caso, parte certa na acção a Agência Portuguesa do Ambiente, IP.
(sumário elaborado pelo relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral:



Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa
A. instaurou acção declarativa, com processo comum, contra o Estado Português e a Agência Portuguesa do Ambiente, I.P. (APA), pedindo:
- serem os três prédios, que identifica, declarados como não integrando o domínio público marítimo ou hídrico, uma vez que não se integram no domínio público do Estado, em face do disposto no artigo 3.º/e), in fine da Lei n.º 54/2005 e ainda porque nunca foram objeto de qualquer ato de integração dos mesmos em domínio público marítimo.
- subsidiariamente, deve ser reconhecida a propriedade privada a favor da A. sobre a totalidade da área dos três prédios em causa.
A R., a fls. 129, veio arguir a sua ilegitimidade, por entender ser o Estado a única parte a demandar.
A A. pronunciou-se no sentido de que não interpôs a ação ao abrigo da lei 54/2005, tratando-se de ação de simples apreciação negativa que foi interposta devido à atuação da R, quanto ao entendimento de que o “logradouro em causa se encontra parcialmente incluído em domínio hídrico”. Conclui pela improcedência da exceção.
O primeiro grau julgou a APA parte ilegítima e absolveu-a da instância.
Inconformada, interpôs a A. competente recurso, cuja minuta concluiu da seguinte forma:
‘’ 1.ª Na presente ação, que corresponde a uma ação declarativa de simples apreciação negativa, a A. peticiona a declaração de que os prédios urbanos descritos na Conservatória do Registo Predial de Cascais sob os n.os 5427 e 5974, inscritos na matriz, respetivamente, sob os artigos 12372 (Parcela A) e 12374 (Parcela B), da União das Freguesias de Cascais e Estoril, com as áreas de 1.995 m2 e 1.333 m2, e prédio rústico descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Cascais sob o n.º 4421, inscrito na matriz sob o artigo 1068, secção 77, da mesma União de Freguesias, com a área de 981 m2 (Prédio Rústico situado em Cai-Água) não integram o domínio público marítimo ou hídrico.
2.ª Com efeito, quer do pedido, quer da causa de pedir, resulta que, no caso em análise, a A. Recorrente configurou a ação como uma ação de simples apreciação ao peticionar que seja julgado que os seus imóveis não foram integrados no domínio público marítimo ou hídrico. E esse pedido justifica-se em face da posição assumida pela R. APA.
3.ª A presente ação foi motivada pelo parecer emitido pela R. APA em 04.09.2014, no âmbito de procedimentos de controlo prévio de operações urbanísticas que a A. pretende levar a cabo nos prédios identificados, nos termos do qual a primeira defendeu a natureza dominial nos aludidos prédios, não obstante a propriedade dos mesmos se encontrar há muito registada a favor da A., o que determinou a suspensão de tais procedimentos.
4.ª A presente ação não se funda, assim, no artigo 15.º da Lei n.º 54/2005, de 15 de novembro, nem assenta no regime de prova aí regulado, assumindo-se antes como forma de superação da interpretação feita pela R. APA no aludido parecer, que a A. considera ilegal e violador de princípios constitucionais da confiança, boa-fé, justiça, proibição do confisco e defesa da propriedade privada.
5.ª Nos termos do disposto no artigo 30.º, n.º 3, do CPC, a legitimidade das partes é determinada pela forma como o autor configura a ação, sem prejuízo do entendimento que o tribunal possa vir a ter sobre a (im)procedência da pretensão deduzida pelo mesmo.
6.ª Assim, além do R. ESTADO PORTUGUÊS – que é indiscutivelmente parte legítima numa ação em que se discute a propriedade de parcelas de leitos ou margens – é também parte legítima a R. APA, que tem interesse em contradizer os argumentos expendidos pela A., que expressamente contrariam o entendimento contido no seu parecer de 04.09.2014, que a A. considera violador da lei e da Constituição.
7.ª A negação da conformação material da ação tal como resulta do pedido e da causa de pedir formulados pela A., com a consequente absolvição da R. APA consubstanciam a negação do direito à tutela jurisdicional efetiva da A. Recorrente e do princípio pro actione, consagrados (o segundo como derivação do primeiro) no artigo 20.º da Constituição e vertidos no artigo 2.º, n.º 2, do CPC, que pressupõem que o pedido deduzido seja apreciado nos termos em que foi apresentado e conformado pela A., contra os sujeitos da relação com base na qual o formulou.
8.ª Pelo exposto, ao absolver a R. APA da instância, o despacho recorrido enferma de erro de julgamento e viola, por errada interpretação e aplicação, os artigos 2.º, n.º 2, e 30.º do CPC, o princípio pro actione e o direito da A. à tutela jurisdicional efetiva, consagrados no artigo 20.º, n.ºs 1 e 5, da Constituição.
NESTES TERMOS, deve o presente recurso ser julgado provado e procedente, com as legais consequências’’
O MP, em representação do Estado Português ofereceu contra-alegações em que pugna pela confirmação do julgado.

Constitui único thema decidendum saber se a APA é parte ilegítima na acção.
A facticidade relevante já consta do relatório.
Da (i)legitimidade da APA
Comece-se por referir que não estamos, na verdade, perante, uma acção de reconhecimento da propriedade privada sobre recursos hídricos ex artigo 15.º da Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro (Lei da Titularidade dos Recursos Hídricos).
Em matéria de recursos hídricos, como enfatizam J. Miguel Júdice e J.Miguel Figueiredo, a regra é a da dominialidade, isto é, tais recursos pertencem ao domínio público hídrico (Acção de Reconhecimento da Propriedade Privada sobre Recursos Hídricos, 2.ª ed., 2015: 8).
A esta regra devemos acrescentar uma outra: os recursos hídricos dominiais não podem ser objecto de propriedade privada (op.cit: 9).
Um dos meios para afastar a presunção de dominialidade dos recursos hídricos e de alcançar o reconhecimento de que são bens dos particulares é o recurso à referida acção.
No seu articulado inicial, a Autora sempre rejeita que as parcelas em causa sejam dominiais, afastando a aplicação do disposto no artigo 3.º, alínea e) da Lei n.º 54/2009.
No entanto procura certeza jurídica quanto à natureza particular daquelas parcelas, bem que só uma acção de simples apreciação lhe pode dar.
Nos termos do artigo 10.º, n.º 3 , alínea a), do CPC a acção de simples apreciação visa a declaração da existência (apreciação positiva) ou inexistência (apreciação negativa) de um direito ou de facto.
Ora a autora não pretende propriamente afastar qualquer presunção de dominialidade sobre os terrenos em jogo, mas obter o reconhecimento de que tais imóveis nunca integraram o domínio público, sempre se tendo mantido na esfera de particulares.
Preceitua o artigo 30.º do CPC que o réu é parte legítima quando tem interesse directo em contradizer, exprimindo-se o interesse em contradizer pelo prejuízo que da procedência da acção lhe advenha. Acrescenta o n.º 3 que, salvo indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida tal como a configura o autor.
Nas acções de simples apreciação o réu deve ser o titular do direito alardeado contra o autor, ou o sujeito da obrigação correspondente ao direito a este negado (Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979:85) existindo motivo legítimo de agir quando se verifica um estado de incerteza sobre a existência ou inexistência do direito a apreciar, incerteza que deve ser grave e objectiva.
A autora reage contra a negação da APA em reconhecer o direito real de propriedade do demandante sobre a totalidade dos três prédios em causa.
Acontece que a APA é um instituto público integrado na administração indirecta do Estado, sob tutela do Ministério do Ambiente, dotado de autonomia administrativa e financeira e património próprio, que resulta da fusão de nove organismos (artigo 1.º DL n.º 56/2012, de 12 de Março).
Enquanto Autoridade Nacional da Água, a APA tem, ex artigo 3.º do referido DL, entre outras, as seguintes atribuições:
- propor, desenvolver e acompanhar a execução da política nacional dos recursos hídricos de forma a assegurar a sua gestão sustentável, bem como garantir a efectiva aplicação da Lei da Água e demais legislação complementar;
- assegurar a protecção, o planeamento e o ordenamento dos recursos hídricos;
- emitir títulos de utilização dos recursos hídricos e fiscalizar o cumprimento da sua aplicação;
- aplicar o regime económico e financeiro dos recursos hídricos;
- estabelecer e implementar programas de monitorização dos recursos hídricos;
- promover a conciliação de eventuais conflitos que envolvam utilizadores dos recursos hídricos;
- promover a elaboração e a execução de estratégias de gestão integrada da zona costeira.
Nos termos do artigo 13.º ‘’para a prossecução das suas atribuições, na área dos recursos hídricos, a APA exerce os poderes de autoridade do Estado no âmbito da sua jurisdição.
Como afirma a própria Agência no ofício de fls. 58/59, ‘’ao exercer assuas competências e poderes de jurisdição sobre o domínio hídrico, a APA , IP, não atua a título próprio, fá-lo em nome e representação do Estado, como entidade administrante, não se confundindo a sua atuação, com a do efetivo titular do bem dominial que é, repete-se, o Estado. Tanto assim é, que está subordinado ao princípio da legalidade e não cabe na esfera jurídica da APA, I.P., qualquer poder de disposição, oneração e modificação da dominialidade, ou sequer de reconhecimento de direito de propriedade por parte do particular sobre bens dominiais, como não lhe cabem quaisquer poderes de extinção da dominialidade’’.
Resulta do exposto que só o Estado Português é parte certa no litígio.
E não se diga que esta conclusão viola o direito à tutela jurisdicional efectiva da autora e o princípio pro actione, porquanto a Constituição não garante o acesso indiscriminado a juízo, nada impedindo que o legislador imponha condicionantes processuais aos particulares desde que tenham, como é o caso, fundamento racional e se mostrem úteis e proporcionadas.
Pelo exposto acordamos em julgar improcedente o recurso e, consequentemente, em confirmar a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.

22.06.2017

Luís Correia de Mendonça

Maria Amélia Ameixoeira

Rui Moura